Ilustração: Jubal S. Dohms 50| Confronto de São Boaventura com A Filosofia nas Conferências de Paris sobre Os Dez Mandamentos e sobre Os Sete Dons do Espírito Santo. Marcos Aurélio Fernandes Ano 2 | número 2 | 2013 CONIUNCTIORevista RevistaEletrônica Científica de Psicologia e Religião | Ichthys Instituto | Curitiba - PR CONIUNCTIO O Confronto de São Boaventura com A Filosofia nas Conferências de Paris sobre Os Dez Mandamentos e... | Marcos Aurélio Fernandes | 51 - 68 O Confronto de São Boaventura com A Filosofia nas Conferências de Paris sobre Os Dez Mandamentos e sobre Os Sete Dons do Espírito Santo Marcos Aurélio Fernandes * * Marcos Aurélio Fernandes Doutor em Filosofia; Professor de Filosofia Medieval na Universidade de Brasília (UnB). ([email protected]) 1| A luta entre mestres seculares e frades mendicantes na Universidade de Paris teve seus principais atores em Guilherme de Sant’Amour, Geraldo d’Abeville e Nicolau de Lisieu, por parte dos seculares, e Tomás de Aquino, Boaventura e João Peckham por parte dos mendicantes. Em 1252 os mestres seculares da Universidade de Paris reagiram duramente à “invasão” dos frades mendicantes, franciscanos e dominicanos. A ofensiva secular veio antes de tudo de Guilherme de Saint’Amour. Em relação aos franciscanos, sua estratégia consistia em negar a legitimidade eclesial da sua atividade magisterial (docente). Em 1257, porém, o Papa Alexandre IV interveio na luta em favor dos mendicantes e, tanto Boaventura quanto Tomás de Aquino recebeu o título de “Magister”, embora nesta altura Boaventura já tivesse sido eleito ministro geral dos franciscanos. Mas a militância de Guilherme de Sant’Amour não parou. Entre 1260 Resumo Este artigo visa expor, analisar e interpretar os textos das Conferências sobre os dez mandamentos, de 1267, e das Conferências sobre os sete dons do Espírito Santo, de 1268, enfocando o modo como se dá o confronto de São Boaventura com a filosofia naqueles anos críticos, em que o embate dos teólogos parisienses com os filósofos aristotélico-averroistas da faculdade de artes se tornou mais agudo. O enfrentamento de Boaventura diz respeito a algumas teses que, na visão de Boaventura, negam a temporalidade e historicidade do mundo, bem como o livre-arbítrio e a responsabilidade do indivíduo na história. Por outro lado, o confronto também se dá sobre a questão do sentido, dos limites e das possibilidades mesmas da filosofia e de sua relação com a fé e a sabedoria cristã. . Palavras-chave: Boaventura de Bagnoregio, criação, temporalidade, historicidade, filosofia, fé, sabedoria cristã. Abstract This article aims to present, analyze and interpret the texts of the 1267 Conferences dealing with the Ten Commandments and the 1268 Conferences dealing with the seven gifts of the Holy Spirit, focusing on the way how to understand Saint Bonaventure’s confrontation with the philosophy of those critical years, in which the conflict between the Parisian theologians and the philosophers of the faculty of arts (“averroists” or “radical aristotelians”) became more acute. Dealing with some of their theses, especially with the thesis that the world is eternal, that the individual soul is not eternal and that all humans at the basic level share one and the same intellect, Bonaventure concludes that they deny the temporality and the historicity of the world, as well as free will and responsibility of the individual in history. Another reason for this confrontation was the question of the meaning, the limits and the possibilities of philosophy and its relationship with faith and Christian wisdom. Keywords: Bonaventure of Bagnoregio, creation, temporality, historicity, philosophy, faith, Christian wisdom Introdução No fim dos anos 60 e início dos anos 70 do século XIII, dois grandes pensadores, Boaventura de Bagnoregio e Tomás de Aquino, enfrentaram os mesmos desafios na Universidade de Paris: perseguição aos mendicantes, franciscanos e dominicanos, com resistência aos seus direitos de ensinar ali [1]; e, de modo mais grave, os perigos do aristotelismo de matiz averroísta dos Ano 2 | número 2 | 2013 mestres da faculdade de artes. Pretende-se, com este texto, expor o modo como Boaventura se confrontou com a filosofia neste contexto, mais pontualmente, nas suas Conferências sobre os dez mandamentos (1267) e nas suas Conferências sobre os sete dons do Espírito Santo (1268) [2]. De 1264 a 1274, Boaventura pregou em grandes universidades daquele tempo, como em Paris, Montpellier e Bolonha. Em Paris, convi- CONIUNCTIO Revista Científica de Psicologia e Religião | Ichthys Instituto | Curitiba - PR |51 52| O Confronto de São Boaventura com A Filosofia nas Conferências de Paris sobre Os Dez Mandamentos e... | Marcos Aurélio Fernandes | 51 - 68 e 1265 ele escreve um texto intitulado “Contra pericula imminentia Ecclesiae generali per hypocritas, pseudo-predicatores et penetrantes domos et otiosos et curiosos et gyrovagos”. Em tom escatológico, os frades mendicantes são apontados como novidades ameaçadoras na “Ecclesia” (Igreja), como “perigos iminentes”, que irrompem nos tempos últimos, pondo em questão a consistência e a verdade do cristianismo. Guilherme denuncia que o exercício do magistério por parte dos frades franciscanos vai contra a sua minoridade, a pobreza, a vontade de Francisco de Assis e a regra da Ordem. Em 1270, Guilherme de Sant’Amour se retira da batalha, para ir morrer em sua terra. Mas deixa suas crias: Geraldo de Abbeville e Nicolau de Lisieux. Geraldo de Abeville ataca o conceito de pobreza absoluta dos franciscanos e defende que a pobreza dos sacerdotes seculares é mais perfeita do que a dos franciscanos. Em resposta aos ataques de Gerardo contra os mendicantes, Tomás de Aquino escreve o “De perfectione spiritualis vitae” (Da perfeição da vida espiritual) e Boaventura escreve a “Apologia pauperum contra calumniatorem” (Apologia dos pobres contra o caluniador). 2| Ficará para uma próxima ocasião abordar as Conferências sobre a obra dos seis dias (1273). Os textos das outras duas Conferências, que serão citados aqui, estão em: Opere di San Bonaventura: Sermoni Teologici/2 (Roma: Città Nuova, 1995). O texto latino desta edição é o mesmo da “Editio Maior” publicada pelos franciscanos de Quaracchi (Volume V, 1891). A tradução será do autor deste artigo. Será feita a partir do texto latino, mas veu com João Peckham, seu aluno e seu sucessor Este combate incide diretamente sobre os na cátedra dos franciscanos, e com Rogério Ba- averroistas de Paris, mas incide, também, indi- uma reforma da cristandade a partir de uma re- objetivo do presente texto não seja expor o con- con, o franciscano inglês que se dedicou a pensar forma do saber. A partir de 1267 Boaventura se engaja na luta contra o aristotelismo averroísta dos mestres da faculdade de artes (liberais) [3] de Paris. Com efeito, sob a liderança de Sigério de Brabante (1240c. - 1284) e de Boécio de Dácia (+ 1270), a partir da faculdade de artes instalou- se toda uma crise na faculdade de teologia da Universidade de Paris. Os estudos de dialética e física entravam nos problemas da metafísica e, por fim, penetravam no terreno da teologia. O trabalho dos filósofos “artistas” se fundava sobre a interpretação de Aristóteles feita por Averróis. Para responder aos desafios propostos à metafísica e à teologia por parte do aristotelismo de matiz averroísta, Boaventura se enga- ja com uma série de conferências (Collationes). Começa, em 1267, com as Collationes de decem praeceptis (Conferências sobre os dez manda- mentos); prossegue em 1268 com as Collationes de septem donis (Conferências sobre os sete dons do Espírito Santo) e conclui a sua intervenção com as Collationes in Hexaëmeron (Conferências sobre os seis dias da criação), também chamadas de Iluminationes ecclesiae (iluminações da Igreja). Os escritos que nos foram transmitidos a partir retamente sobre Tomás de Aquino. Embora o fronto específico de Boaventura com cada um dos filósofos averroistas ou com Tomás de Aquino, uma palavra seja dita, a modo de observação preliminar, sobre o modo como Tomás e Boa- ventura viram a questão da autonomia da filosofia. Tomás de Aquino, é verdade, se entendeu fundamentalmente como teólogo. Entretanto, Tomás é o postula uma autonomia da filosofia em relação à teologia. Paradoxalmente, porém, esta postulação de autonomia da filosofia não é motivada pela reivindicação de uma libertação da razão em relação à fé, como acontecerá com muitos filósofos modernos, mas sim, por tomar a sério, como teólogo, o dogma criação do mundo. Deus cria dando o ser ao mundo e o mantendo neste mesmo ser. Entretanto, ao criar, Deus deixa sua obra repousar em si mesma, ou melhor, deixa que sua obra tenha em si mesma o princípio de sua atividade. A “causa primeira” não anula, an- tes promove a autonomia das “causas segundas” que atuam no mundo. A autonomia da razão é o horizonte da filosofia. Aliás, a filosofia é o máximo empenho de autonomia da razão. No entanto, os teólogos que, em geral, destas conferências não são do próprio punho seguiam a Santo Agostinho, não partilhavam são escritos que nos foram legados por mais de ências do pecado original para a razão humana. ventura irá tratar da vida cristã em suas bases: originária, mas decaiu, tornando-se cega para o to e seus dons; e, por fim, das iluminações da espírito e para Deus. Na cruz, porém, o homem de combater os perigos advindos dos filósofos lado, mas também é reconciliado com Deus, por ral, ou melhor, de uma filosofia autônoma, não dimido, só tem sentido sendo subsumida a um de Boaventura, mas são “reportationes”, ou seja, desta perspectiva. Estes salientavam as consequ- um “reportator” [4] . Nestas conferências, Boa- Depois do pecado, esta não está na sua condição a lei (mandamentos) e a graça do Espírito San- ser, ou melhor, para o essencial, para o mundo do sabedoria cristã. Por estas ocasiões, não deixará velho com a sua razão cega é condenado, por um averroistas em especial e de uma filosofia em ge- outro lado. Por isso, a filosofia, na ordem do re- subordinada à “teologia”, ou seja, à “Palavra de Deus” ou “Sagrada Escritura”, ou melhor, à inteligência espiritual desta, por meio da qual se percorre os caminhos ascendentes da iluminação e da sabedoria cristã. Ano 2 | número 2 | 2013 projeto maior, que é o projeto da sabedoria cris- tã. Esta será a perspectiva de Boaventura, que aqui se tentará expor. O conhecimento filosófi- co, portanto, na concepção de Boaventura, não pode ser cultivado em função dele mesmo. Seria CONIUNCTIO Revista Científica de Psicologia e Religião | Ichthys Instituto | Curitiba - PR O Confronto de São Boaventura com A Filosofia nas Conferências de Paris sobre Os Dez Mandamentos e... | Marcos Aurélio Fernandes | 51 - 68 como parar no itinerário da mente para Deus. a fantasia cria o erro, obscurecendo a razão e fa- ao uso da sua razão somente, ele fatalmente erra. e supersticiosas invenções de erros provêm ou da te que a natureza humana foi corrompida pelo perversa compreensão da Sagrada Escritura, ou ção da natureza humana é a ignorância. A na- Aqui, portanto, Boaventura toma como Ademais, se o homem permanece abandonado zendo parecer ser o que não é. E todas as falsas Pois, falando como teólogo, Boaventura adver- audácia ímproba da investigação filosófica, ou da pecado e uma das consequências desta corrup- do desordenado afeto da carne humana [6]. tureza humana não se encontra em seu estado “ídolo” (pequena imagem ou ideia) todo erro A natureza degenerada é como uma flecha que ficção da mente; uma ficção que vem da fanta- perfeito originário, mas em estado degenerado. não consegue alcançar o seu alvo por si mesma. A verdade plena, que a razão com sua iluminacotejada com a versão italiana. Para não citar cada vez todos os dados da referência bibliográfica, recorre-se aqui ao expediente de citar apenas o número da “Collatio” (Conferência), usandose a abreviação “Coll.”, o número do parágrafo segundo aquela edição, e o número da página, também segundo a edição italiana da “Città Nuova”. 3| As sete artes liberais, cujas raízes remontavam à antiguidade, foram organizadas na Idade Média na forma do Trivium, que são as três ciências ou artes da linguagem, a saber, gramática, dialética e retórica; e na forma do Quadrivium, que são as quatro ciências ou artes matemáticas que versam sobre o real, ou seja, a geometria, a astronomia, a música e a aritmética. 4| “Reportator” era aquele que “reportava”, ou seja, transcrevia ou anotava a conferência pronunciada pelo mestre em seu “quaternus” (caderno) e a transmitia a outros. 5| Cfr. De Mystica theologia c. 1, § 1. Pseudo Dionisio Areopagita (Org.: Teodoro H. Martin). Obras Completas del Pseudo Dionisio Areopagita. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1990, p. 371 6| Coll. II, n. 24, p. 61. ção natural busca, só é encontrada quando esta mesma razão for iluminada pela verdade sobre- natural da revelação. A revelação assume, porém, a razão dentro dela mesma. Por isso, a fé não se limita a crer, mas quer também compreender aquilo que crê. Ela se empenha com todas as forças da razão em compreender o sentido daquilo que crê e disso surge a teologia e a sabedoria cristã. Entretanto, todo o empenho racional da razão no interior da teologia consiste na busca de se abrir à iluminação do alto. Todo o conhecimento vem de Deus e retorna para Deus. E toda a sabedoria cristã culmina na mística. Por fim, o homem deve fazer calar em si mesmo toda a voz da especulação e, no silêncio, reconhecer que o mistério de Deus está além de toda especulação. No ápice da experiência mística, a questão é experimentar afetivamente este mistério, no silêncio, transportando-se para dentro dele, para dentro da sua caligem (treva) luminosa, suprar- racional e superessencial, como dizia Dionísio Areopagita [5]. I. Os erros da filosofia Uma crítica à filosofia já aparecem nas Conferências sobre os dez mandamentos. Ao co- mentar o preceito de “não fazer ídolo” Boaven- tura ataca o perigo de “idolatria” na filosofia. Ele diz: Na segunda frase: não te farás ídolo, são proibidas todas as falsas e supersticiosas invenções de erros. E aqui se deve notar que todo erro outra coisa não é que uma criação da mente. De fato, Ano 2 | número 2 | 2013 da mente humana. E assinala que o erro é uma sia. A fantasia obscurece a razão. O que induz o homem ao erro, portanto, não é a sua razão, mas a sua fantasia. A fantasia faz que o homem se apoie em um parecer falso, um parecer que faz aparecer como sendo aquilo que não é, portanto, um parecer que é uma mera aparência. Se a ver- dade, conhecida pela razão, toma o que é como o que é e o que não é como o que não é, assumin- do a identidade (coincidência) de ser e aparecer num parecer; a mera aparência, que é um apare- cer sem ser ou discrepante com o ser, criada pela fantasia da mente, toma o que não é como sendo e o que é como não sendo. A falsidade e a su- perstição ficam do lado, portanto, dessa fantasia, dessa atividade ficcional da mente. Essa fabrica- ção de erros provém, sobretudo, da audácia indevida da investigação filosófica, quando esta não reconhece e não guarda os limites da sua fini- tude, desconhecendo sua potência e impotência; da perversa compreensão da Sagrada Escritura, quando o leitor se atém somente a uma interpretação literal e não alcança uma interpretação espiritual do texto sagrado; e do desordenamento dos afetos produzidos pela sensualidade humana. Ao falar dos erros que nascem de uma audácia ímproba da investigação filosófica, Boa- ventura enumera aquilo que ele considera ser os erros do averroismo dos “artistas” de Paris: Da audácia ímproba da investigação filosófica se originam os erros dos filósofos, como: pôr o mundo eterno e afirmar que o intelecto seja um em todos. De fato, pôr o mundo eterno é perverter toda a Sagrada Escritura e dizer que o Filho de Deus não se encarnou. Afirmar, depois, que o intelecto seja um em todos é dizer que não haja CONIUNCTIO Revista Científica de Psicologia e Religião | Ichthys Instituto | Curitiba - PR |53 54| O Confronto de São Boaventura com A Filosofia nas Conferências de Paris sobre Os Dez Mandamentos e... | Marcos Aurélio Fernandes | 51 - 68 uma verdade de fé, nem salvação das almas, nem observância dos mandamentos; e isso quer dizer que o homem péssimo se salva e o boníssimo se condena (...) [7]. Neste texto e contexto, Boaventura enu- mera apenas dois do que ele considera serem erros dos aristotélicos averroistas: a tese do mun- do eterno e a tese do intelecto único em todos os homens. A tese do mundo eterno contradiz dois dos dogmas fundamentais do cristianismo: a criação “ex nihilo” (do nada) e a encarnação do Verbo. A tese do intelecto único ameaça a compreensão da individualidade da pessoa humana e, por conseguinte, de sua liberdade; e, enfim, de sua responsabilidade, pela qual o homem pode ganhar ou perder a sua alma em face de Deus. Ameaça também a afirmação da imortalidade do indivíduo: pois, se a individualidade é dada pela matéria e se limita à matéria, não pertencendo ao espírito, então com a morte corporal se desfaz a própria individualidade. O que é imortal é o que é impessoal: o intelecto agente único que atua no inteligir de todos os homens. Na criação Deus, do mundo e do ser humano. Na quarta das Conferências sobre os dez mandamentos, ao tratar do preceito de santificar o sábado, Boaventura volta a tratar questão da eternidade e temporalidade do mundo. Ali ele diz que é preciso entender espiritualmente a história bíblica da criação do mundo em seis dias: Deus, com efeito, fez todas as coisas em seis dias, não porque não tivesse podido fazê-las em um dia; mas aqui há que se compreender que o mundo possui algo na arte eterna, ou seja, o ser eterno, que é a eternidade da vida e a posse perfeita na qual não há nem antes nem depois; e Deus imprimiu isto nas mentes angélicas. Ademais, o mundo possui algo na inteligência criada, ou seja, por natureza há o antes e o de- pois, se bem que há simultaneidade segundo a duração. Mas possui o antes e o depois segundo a duração – não segundo a natureza -, segundo aquilo que é na matéria, não por causa de um defeito de quem opera, mas pela sua condescendência, a fim de que proporcionasse todas na encarnação se salvaguarda a liberdade e o obras. E como produziu nas primeiras coisas a humanidade em sua carne; na individualidade, produziu plenamente seja os princípios germi- Deus transcendente, Senhor do ser e do nada; as coisas e as significasse todas nas primeiras amor pelo qual a pessoa divina do Verbo assume as raízes de todas as operações, assim também pessoa humana, ou seja, a tese de que o homem individual é livre e responsável por seus atos e que, ao exercer esta liberdade na responsabi- lidade, no tempo da sua história biográfica ele decide sobre seu destino eterno. As verdades de fé do cristianismo, portanto, a saber, a criação a nativos de todas as obras seja o repouso. Mas no sétimo dia repousou e chamou a si a criatura intelectual e no sétimo dia trouxe de volta à quietude do paraíso as almas que estavam no limbo. Então o significado do sétimo dia está na quietude simbólica das almas [8]. Neste contexto, Boaventura retoma a con- partir do nada, a encarnação e salvação eterna cepção platônica das ideias, reelaborada no seu pressupõem a temporalidade e a historicidade. gunda a qual Deus não somente é causa eficiente ou não da alma humana em sua individualidade, A temporalidade e historicidade do universo (decursus mundi); a temporalidade e historici- dade da ação imanente do Deus transcendente (encarnação); a temporalidade e historicidade da 8| Coll. IV, n. 7, p. 81-83. rista e impessoal da realidade como um todo, de se salvaguarda a liberdade e onipotência de um se salvaguarda a liberdade e a imortalidade da 7| Coll. II, n. 25, p. 61. sua concepção a-histórica, fatalista ou necessita- existência humana, do exercício de sua liberdade e responsabilidade. O perigo do aristotelismo averroísta, na perspectiva de Boaventura, está em Ano 2 | número 2 | 2013 assim chamado “exemplarismo”, doutrina se- e causa final do universo criado, mas é também sua causa exemplar. O mundo, marcado pela temporalidade e historicidade, sai de Deus pela criação (egressus, productio), mas deve retornar a Deus pela consumação de todas as coisas (reduc- tio), especialmente pelo retorno da criatura intelectual ou espiritual à paz paradisíaca. Quando CONIUNCTIO Revista Científica de Psicologia e Religião | Ichthys Instituto | Curitiba - PR O Confronto de São Boaventura com A Filosofia nas Conferências de Paris sobre Os Dez Mandamentos e... | Marcos Aurélio Fernandes | 51 - 68 esta criatura retorna para a sua origem (Deus) Assim como a fonte não tem duração, a não ser sua paz. origem, assim como a luz, assim também a graça e nela repousa, então todo o universo alcança a 2. A necessidade de uma “reductio” da filosofia Da reductio Boaventura trata na primeira das Collationes de septem donis Spiritus Sancti, que apresenta um tratado introdutório da graça, antes de falar dos dons do Espírito septiforme. Falando do uso da graça, Boaventura diz que ele tem de ser fiel em relação a Deus. Fiel é o uso da graça quando o homem a põe em serviço da glória de Deus. Boaventura usa, então, uma imagem que lhe vêm da óptica ou da ciência da perspectiva daquele tempo: Os sábios em perspectiva dizem, que se o raio cai perpendicularmente sobre um corpo terso e polido, necessariamente repercute pela mesma via. O influxo [9] da graça é como um raio perpendicular; digo a respeito da graça que faz grato (gratia gratum faciente), porque a graça dada de 11| Coll. I, n. 9, p. 134. 12| Coll. I, n. 9, p. 134. 13| Coll. I, n. 10, p. 136. 14| Coll. II, n. 1, p. 144. ser pela sua reversão (reversio) ao seu princípio original (originale principium) [12]. Esta reversão e conjunção são custodiadas pela humildade e destruídas pela soberba. Hu- milde é aquele que atribui ao seu princípio original todo o bem que tem, ou seja, atribui a Deus e não a si mesmo. O humilde, assim, está sempre unido à sua origem, enquanto o soberbo rompe com ela. Lúcifer, o portador da luz, se tornou escuro por causa de sua soberba; “sed Christus reduxit se in suum originale principium per humi- litatem, et ideo clarus fuit” – “mas Cristo se recon- duziu ao seu princípio original pela humildade, e daí se torno claro” [13]. Humildade e soberba, aqui, portanto, são compreendidas por Boaventura em sentido ontológico e não simplesmente ético. Elas são possibilidades de ser fundantes da existência humana e são relacionamentos com o graça de Deus verdadeiramente, restitua (reddat) o saber. glória a Deus [10]. 10| Coll. I, n. 9, p. 134. do Espírito Santo não pode viger na alma a não graça (gratia gratis data) é como é como o raio que incide. É necessário, pois, que quem recebe a 9| Influxo (influxus) é uma palavra fundamental na concepção de “hierarchia”, a regência do sagrado, no pensamento de Dionísio Areopagita, a qual é retomada também por Boaventura: diz a comunicação gratuita e graciosa do Sumo Bem às criaturas, quer no ser de natureza (esse naturae), quer no ser sobrenatural da graça (esse gratiae). que tenha contínua união (coniunctio) com a sua princípio original de todo o poder-ser e de todo Por sua vez, na segunda conferência, ao A mente do homem deve ser como um es- retomar o conteúdo da primeira, Boaventura re- lhe advém de Deus, ao incidir nela, possa refletir, passagem da carta de Tiago, que ele pôs como na em gratidão, à medida que o homem se torna ductio artium ad theologiam” (Redução das artes é agraciado por Deus rende glória a Deus. Neste ótima e todo dom perfeito vem do alto, descen- passagem do livro do Eclesiastes que recorda o “per Verbum incarnatum, per verbum crucifixum et passagem do comentário de Bernardo de Clara- pelo Verbo Crucificado e pelo Verbo inspira- pelho limpo e polido, de modo que o dom que corda a origem da graça, recordando a mesma ou seja, retornar para Deus. Assim, a graça retor- mote do seu famoso opúsculo intitulado “Re- grato e agradável a Deus. Assim, o homem que ou saberes à teologia), ou seja, que toda dádiva momento de seu discurso, Boaventura cita uma do do Pai das luzes (cfr. Tg 1, 17); e acrescenta: retorno de todas as coisas a Deus, bem como uma per Verbum inspiratum” – “pelo Verbo encarnado, val ao livro do Cântico dos cânticos. A passagem do Eclesiastes diz: “ad locum, unde exeunt flumina revertuntur” – “ao lugar de onde saem, os rios retornam” (Eclesiastes 1,7). E o comentário de Bernardo é: “origo fontium mare est, virtutum et scientiarum origo est Christus” – “origem das fon- tes é o mar, origem das virtudes e das ciências é Cristo” [11]. E Boaventura completa: Ano 2 | número 2 | 2013 do” [14]. Graças a esta mediação, o Verbo tem também a função de operar a nossa “reductio”, a nossa redução, no sentido de recondução, ao sumo princípio: “E eu disse que aquele Verbo nos reconduz (reduxit nos) ao sumo princípio (in summum principium)”. Então Boaventura recor- da um comentário de Dionísio Areopagita ao mesmo passo da Carta de Tiago. Neste comen- CONIUNCTIO Revista Científica de Psicologia e Religião | Ichthys Instituto | Curitiba - PR |55 56| O Confronto de São Boaventura com A Filosofia nas Conferências de Paris sobre Os Dez Mandamentos e... | Marcos Aurélio Fernandes | 51 - 68 tário, Dionísio nota: “E assim, o processo das ignorância”. As claridades da ciência advêm ao vém de modo tão vasto e oportuno que a virtude men): um lume inato (lumen inatum) e um lume e nos converte (convertit nos) ao Pai das luzes” lume natural da faculdade do juízo ou razão; o ra trata da piedade, de novo é apresentada a di- zão e fé, ambos são lumes, cuja fonte é a única e manifestações procedendo do Pai em nós sobreunitiva (unifica virtus) nos plenifica (nos replet) [15]. Na terceira conferência, em que Boaventunâmica ontológica da “reductio”, quando é dito: e os rios correm ao mar, enquanto a árvore é con- sensíveis por meio da sensação e da imaginação. ação com a raiz. Deiforme é a criatura racional, vel e apreender o inteligível. Ele é capaz de ope- seja sobrenatural. O homem conhece as coisas tinuada com a raiz, e outras coisas têm continu- Mas ele é capaz também de transcender o sensí- mesma (refundat se) sobre a sua origem [16]. Piedade (pietas) é o que os gregos chama- vam de theosébeia, ou seja, a veneração para com o divino, a religiosidade. Boaventura a identifica com a reverência para com Deus e a denomina 18| Coll. III, n. 5, p. 166. 29| Coll. III, n. 17, p. 180. 20| Coll. IV, n. 1, p. 182. 21| “Lumen” significa o mesmo que claridade, condição de possibilidade da visibilidade de alguma coisa. Já “Lux” significa mais a fonte do lume ou claridade, como, por exemplo, os raios do sol. 22| Da Trindade XIV 15, 21. Agostinho. A Trindade. São Paulo: Paulus, 1994, p. 470. mesma luz: Deus. Toda ciência tem sua origem sua origem: a pedra para baixo, o fogo para cima, tade; e não é piedosa, a não ser que reflua a si 17| Em latim “sentire” quer dizer sentir, no sentido de experimentar uma sensação ou um sentimento; entretanto, também significa perceber, pelos sentidos ou pela inteligência; e, ainda, ser de determinado parecer, pensar, julgar. Por isso que, neste contexto, traduziu-se “sentire” por “pensar”. lume que se infunde do alto é o lume da fé. Ra- numa iluminação divina, quer seja natural, quer originem suam) pela memória, inteligência e von- 16| Coll. III, n. 5. infuso (lumen superinfusum). O lume inato é o Naturalmente qualquer coisa que seja tende à que pode voltar sobre a sua origem (redire super 15| Coll. II, n. 1, p. 144 homem por meio de um duplo lume [21] (lu- de “cultus dei” (culto de Deus). A piedade im- plica em “cum reverentia et timore sentire de Deo” – “com reverência e temor pensar [17] a cerca de Deus”. Como exemplo, Boaventura recorda o tema da criação a partir do nada: “Se pensas de modo diminuto a respeita da potência de Deus, a saber, que ele não possa criar todas as coisas do nada, não pensas de modo altíssimo” [18]. A piedade é também útil para conhecer o verdadeiro. O homem ímpio é soberbo, um néscio, um doente que se enferma lidando com questões e com lutas verbais, diz Boaventura. E, por isso, adverte: “si vultis esse veri scholares, oportet, vos habere pietatem” – “se quereis ser verdadeiros escolares (escolásticos), é necessário que tenhais piedade” [19]. Na quarta conferência, que trata do dom da ciência, Boaventura apresenta Salomão como rar a abstração do inteligível junto ao sensível. Esta abstração é obra quer do intelecto possível quer do intelecto agente, que são, para Boaven- tura, duas “differentiae” (diferenças) da mesma faculdade intelectiva do homem. Entretanto, no exercício desta faculdade intelectiva, a criatura racional que é o homem necessita ser iluminada pela Verdade divina. Aquilo sobre o que julgamos provém da experiência, mas aquilo a partir do que e segundo o que julgamos, já não provém da experiência e nem mesmo da própria razão, mas de uma iluminação divina que nos faz conhecer o ideal. Na trilha de Agostinho, Boaventura se re- fere à iluminação natural da razão ou da facul- dade de julgar, dizendo que esta iluminação é como que uma impressão. Deus, que contém em si as ideias, ou melhor, as “rationes aeternae” ou “rationes exemplares” de todas as coisas criadas, permite que estas possam resplandecer sobre a mente da criatura racional. Da parte de Deus a iluminação é uma comunicação ou doação. Da parte da criatura racional, é uma recepção. Ao se comunicar, a luz da Verdade resplandece na mente do homem. Ela advém à mente sem, po- rém, deixar a sua fonte. “Não como se ela emi- o grande escolar (clericus magnus) [20]. A ciên- grasse de um lado para o outro, mas a modo Boaventura: “claritas animae est scientia, econtra um anel fica impressa na cera, sem se apagar do cia é designada como claridade. Assim sentencia tenebra animae est ignorantia” – “claridade da alma é a ciência; ao contrário, treva da alma é a Ano 2 | número 2 | 2013 de impressão na alma. Tal como a imagem de anel”, dizia Agostinho [22]. Boaventura expli- ca a partir de um exemplo: o homem conhece a CONIUNCTIO Revista Científica de Psicologia e Religião | Ichthys Instituto | Curitiba - PR O Confronto de São Boaventura com A Filosofia nas Conferências de Paris sobre Os Dez Mandamentos e... | Marcos Aurélio Fernandes | 51 - 68 ideia de todo e a ideia de parte, e, daí, consegue comparação à claridade da ciência cristã. Con- te”. A verdade é, antes de tudo, manifestativa e ce pequena segundo a opinião dos homens do formular o juízo: “o todo é maior do que a par- tudo, a claridade da ciência teológica que pare- só por isso é que ela pode ser judicativa. Sem mundo, segundo a verdade é grande. A claridade o homem não pode conhecer os princípios e ciência gloriosa é máxima [24]. a impressão das ideias ou das “rationes aeternae” julgar com certeza a respeito do real. Os juízos da verdade enquanto pode ser perscrutada. A ci- seja, se ela intui as ideias, os princípios, as regras da verdade enquanto pode ser crida. A ciência do ser, do conhecer, do agir, que se encontram originariamente na mente divina. As “rationes aeternae” ou “exemplares” que estão na mente de Deus e que se imprimem na mente do homem quanto pode ser amada. A ciência gloriosa é o conhecimento sempiterno da verdade enquanto desejável. Nota-se que a ciência filosófica se que (id quod) o homem conhece e julga. Com verdade enquanto essa é perscrutável. Esta ciên- pelo qual o homem conhece e julga. Isto não natural), lógica (filosofia racional) e ética (filo- e de sua essência, mas apenas uma “cointuição” perscrutável que, por sua vez, se apresenta como dá ao modo de um conhecimento da causa por monum (verdade dos discursos) e veritas morum a fonte intuindo (vendo diretamente) o manan- a “indivisio entis ab esse”, ou seja, a “indivisão” homem conhece e julga, não são, porém, aquilo que advém de uma investigação que indaga a outras palavras, elas são o “medium quo”, o meio cia é tríplice, pois se divide em física (filosofia permite, pois, um conhecimento direto de Deus sofia moral). As três se ocupam com a verdade (contuitio, contuitus) de Deus. Esta cointuição se veritas rerum (verdade das coisas), veritas ser- meio do efeito, como, por exemplo, eu co-intuo (verdade dos costumes). A verdade das coisas é cial. Assim, deste modo, conhecendo os princí- do ente a partir do ser. Dito de outro modo: a A luz natural da razão, contudo, não é o bastante para que o homem alcance toda a ciên- cia, que lhe é possível. Ele precisa, antes de tudo, do lume infuso da fé, para alcançar uma clara noção de Deus como criador e como salvador. Além da ciência filosófica, há a ciência teológi- ca. Entretanto, as ciências não se exaurem nestas duas. A elas Boaventura acrescenta, ainda, uma 26| Coll. IV, n. 11, p. 188. gratuita é o conhecimento santo da verdade en- define a partir da certeza de um conhecimento fonte: a Verdade eterna, a mente divina [23]. 25| Coll. IV, n. 7, p. 186. ência teológica é o conhecimento pio (religioso) quando este julga são aquilo pelo que (id quo) o pios intelectuais somos capazes de cointuir a sua 24| Coll. IV, n. 3, p. 184. A ciência filosófica é o conhecimento certo são atos do intelecto, mas a mente só pode jul- gar corretamente acerca do real se vê o ideal, ou 23| Tonna, I. Lineamenti di Filosofia Francescana: sintese dottrinale del pensiero francescano nei sec. XIII-XIV. Roma/Marsa (Malta): Ed. Tau, 1992, p. 73-81. da ciência gratuita é maior, mas a claridade da “ciência gratuita” e uma “ciência gloriosa”, cada qual com sua claridade. Conhecer é, para o homem, transcender de claridade em claridade. verdade das coisas é a adequação do intelecto (divino, arquétipo) e as coisas reais. Talvez pudéssemos dizer: a verdade das coisas é quando o ente realiza a sua ideia, isto é, a sua essência originária, o exemplar presente na mente divina. A verdade dos discursos é a “indivisio entis ad esse”, ou seja, a “indivisão” do ente em relação ao ser, melhor dizendo, é a adequação do que é expresso com o intelecto. A verdade dos costumes é a “in- divisio entis a fine”, ou seja, a “indivisão” do ente a partir do fim, que é o sumo Bem; quer dizer, é a retidão, pela qual o homem vive bem, dentro e fora, segundo o ditame do direito e da justiça. Estas três sendas da ciência filosófica conduzem Aqui há de se notar que há a claridade da ci- a Deus, enquanto este é a “causa essendi” (causa gratuita e da ciência gloriosa. A claridade da ci- e o “ordo vivendi” (ordem do viver) [25]. A filo- homens do mundo, entretanto, é pequena em vestígios da Trindade [26]. ência filosófica, da ciência teológica, da ciência ência filosófica é grande segundo a opinião dos Ano 2 | número 2 | 2013 do ser), a “ratio intelligendi” (razão do inteligir) sofia é, assim, um grande espelho que reflete os CONIUNCTIO Revista Científica de Psicologia e Religião | Ichthys Instituto | Curitiba - PR |57 58| O Confronto de São Boaventura com A Filosofia nas Conferências de Paris sobre Os Dez Mandamentos e... | Marcos Aurélio Fernandes | 51 - 68 3. A insuficiência da filosofia Entretanto, a ciência filosófica é insufi- ciente. Sua claridade se eclipsa facilmente: “si aliquid interponatur inter ipsum [homo] et solem iustitiae, patitur eclipsim stultitiae” – “se algo se interpõe entre ele [o homem] e o sol da justiça, ele sofre o eclipse da estultícia” [27]. Quem Deus, Boaventura diz: o qual nada pode conhecer. Mas, assim como o vela, quisesse ver o céu ou a luz do sol. O conhe- olho, voltada para as várias diferenças das cores, sumas, e que aí o homem chegue e aí repouse: é impossível que isto se dê, sem que o homem caia em erro, a não ser que seja ajudado pela luz da fé, ou seja, que o homem creia em Deus uno e trino, potentíssimo e ótimo segundo a influência não vê a luz, pela qual vê tudo o mais, e se acaso vê, não se dá conta que vê; assim também o olho de nossa mente, voltado para os particulares e os universais, não adverte, porém, o ser mesmo, que está fora de todo o gênero, a saber, aquele que primordialmente ocorre á mente e pelo qual to- das as outras coisas lhe vêm ao encontro. Donde, mostra-se de maneira muito verdadeira, que “as- sim como o olho do morcego se comporta com a luz, assim também o olho da nossa mente com a natureza mais manifesta”. Isto se dá porque, acostumado às trevas dos entes e aos fantasmas da bondade [28]. 32| Cfr. Coll. IV, n. 13, p. 190. festo na realidade. No Itinerário da Mente para comporta como o homem que, com a luz de uma tural e metafísica, que se estenda às substâncias 31| De Trinitate I, c. 2, n. 4 (PL 42, 822). morcego em relação ao que há de mais mani- não considera aquilo que por primeiro vê e sem Admitindo-se que o homem tenha a ciência na- 30| Tradução minha a partir do texto latino apresentado em manuscrito com ensaio de tradução de Raimundo Vier (Curitiba, s/d.). Cfr. também: Boaventura de Bagnoregio. Escritos filosófico-teológicos. Introdução, notas e tradução de Luis A. De Boni e Jerônimo Jerkovic. Coleção Pensamento Franciscano, v. I. Porto Alegre/Bragança Paulista: EDIPUCRS e USF, 1999, p. 334. A referência de Aristóteles é: Metaphysica II, c. 1, 993 b 3-14. Aristotele. Metafisica. Testo greco a fronte. A cura di Giovanni Reale. Milano: Rusconi, 1993, p. 70-71. Aristóteles, nós temos olhos semelhantes aos de considerando-se melhor, se torna estulto. Ele se próprias possibilidades: 29| Coll. IV, n. 12, p. 190. diz Boaventura recorrendo a uma expressão de Admirável, pois, é a cegueira do intelecto, que ao erro, se o homem se apoia somente em suas 28| Coll. IV, n. 12, p. 190. que é Deus, é uma luz inacessível para nós, pois, confia na ciência filosófica e se aprecia por isso, cimento metafísico fatalmente se desvia e induz 27| Coll. IV, n. 12, p. 188. é somente credível. Com efeito, a luz eterna, Assim, os filósofos foram obscurecidos pela ciência filosófica, que, em si mesma é uma claridade e um dom de Deus, devido ao fato de considerarem-na autossuficiente e de não terem recorrido à luz da fé. A filosofia deve ser encara- da pelo homem sempre como via e nunca como destino de sua existência: “philosophica scientia das coisas sensíveis, quando o olho da mente in- tui a luz mesma do sumo ser, parece-lhe nada ver; não compreendendo que a própria caligem é a suprema iluminação de nossa mente, assim como quando o olho vê a pura luz, parece-lhe que nada vê [30]. Portanto, sem a luz da fé, ou melhor, como via est ad alias scientia; sed qui ibi vult stare ca- diz Agostinho [31], sem a purificação do olhar outras ciências; mas quem quer ficar plantado a contemplação das coisas mais elevadas acaba ao homem é fazer a travessia (transire) da vida, dão. A fé funda a ciência teológica. A ciência ência em ciência. Além da ciência filosófica se ciência filosófica está fundada sobre os primeiros ológica, que é o saber da revelação contida na Escritura interpretada espiritualmente, ou mais iluminação da fé. Trata-se de um conhecimento pela Igreja a partir da revelação bíblica [32]. A dit in tenebras” – “a ciência filosófica é via para da mente (acies mentis) por meio da justiça da fé, aí acaba caindo em trevas” [29]. O que importa terminando numa queda no abismo da escuri- transcendendo de claridade em claridade, de ci- teológica está fundada sobre a fé, assim como a encontra, imediatamente depois, a ciência te- princípios. “Sobre a fé” significa: sobre a Sagrada Escritura Sagrada, saber alcançado a partir da exatamente, sobre os artigos da fé professada pio (notitia pia), ou seja, de um conhecimento que é cultivado na relação religiosa do homem com Deus; e um conhecimento pio de uma verdade que, desta vez não é perscrutável, mas que Ano 2 | número 2 | 2013 leitura literal não basta. É preciso a leitura espiritual. É que a Escritura Sagrada é sempre multiforme em seus sentidos. “In uma littera est multiplex sententia” – “em uma letra há multípli- CONIUNCTIO Revista Científica de Psicologia e Religião | Ichthys Instituto | Curitiba - PR O Confronto de São Boaventura com A Filosofia nas Conferências de Paris sobre Os Dez Mandamentos e... | Marcos Aurélio Fernandes | 51 - 68 ce sentença” [33]. Entretanto, a ciência teológica 1). Estão num relacionamento justo com o sa- tem esta ciência não a completa com as obras do edificados e para edificar os outros [36]. mesma não é útil, mas danosa, se o homem que amor. Se a primeira claridade, a da ciência filo- sófica, pode obscurecer quem com ela se ocupa, 4. O intelecto e o empenho da busca da sabedoria condenar o homem, se este não faz aquilo que Na sétima conferência sobre os dons do Espírito aquilo que a fé lhe ensina [34]. Por isso, acima conselho, Boaventura pergunta: onde encontrar ência, que é a “scientia gratuita”. responde que a sabedoria não é encontrada pelo a segunda claridade, a da ciência teológica, pode sabe dever fazer, ou seja, se ele não vive segundo Santo, em que Boaventura fala do dom do da ciência teológica está a claridade de outra ci- a sabedoria? Qual é o lugar da inteligência? E A ciência gratuita é aquela que, de modo próprio, é um dom do Espírito Santo. É o conhecimento santo da verdade, que, aqui, mais do que crida, é amada. O amor é mais excelente do que a fé. Sem o amor, a fé é vã. Poderíamos dizer que não se trata mais de um “intellectus fidei” (intelecção da fé), mas sim de um “intellectus amoris” (intelecção do amor, da caridade). É a ciência dos santos. É a ciência dos mártires. Desta ciência está longe a filosofia dos esco- lásticos: “hoc non docet philosophia, quod pro conclusione exponham me mori” – “isto não ensina a filosofia: que, pela conclusão (de um silogismo) eu deva me expor à morte” [35]. Evidencia-se assim que, recorrendo a Bernardo de Claraval, o que importa não é o homem saber muitas coi- sas (multa scientem), mas saber o modo de saber (modum sciendi). O modo de saber se define pela ordem, pelo empenho e pelo fim. Pela ordem: que o homem primeiramente aprenda aquilo que é mais maduro para a salvação (maturius est ad salutem). Pelo empenho (studium): que o homem estude de modo a se deixar atrair ardentemente por Deus. Pelo fim: que o homem es33| Coll. IV, n. 15, p. 192. 34| Cfr. Coll. IV, n. 18, p. 194-196. 35| Coll. IV, n. 22, p. 198. 36| Cfr. Coll. IV, n. 23-24, p. 198-200. 37| Cfr. Coll. VII, n. 1, p. 236. 38| Coll. VII, n. 8, p. 240. ber, porém, aqueles que querem saber para serem tude não por causa de uma inane glória própria homem “carnal”, ou seja, pelo homem que vive segundo o modo humano de viver (ab homine humano modo vivente). Se o homem quiser encontrar a sabedoria, tem de transcender o próprio homem e o que é naturalmente humano. Ele tem que se tornar mais que homem (plus quam homo). Ele deve poder viver a partir do Espírito de Deus e a partir daí receber a sabedoria, que provém da profundidade do mistério. O homem pode saber essa sabedoria se transcende o modo carnal, cômodo e meramente humano, de viver. A sabedoria (sapientia) que ele aprende assim, porém, não é mero conhecer, mas é também e acima de tudo um saborear, um perceber o sabor das realidades divinas [37]. Na perspectiva boaventuriana, com efeito, sapiência é mais do que ciência. A ciência consiste num saber (scire), que se dá no modo de um conhecer. A sapiência, por sua vez, é mais do que saber: é saborear o mistério. Trata-se, portanto, de um saber afetivo experimentado a partir do cultivo da relação religiosa do homem com Deus. Tratase não só de um saber afetivo, mas também de um saber operativo, de um saber que se traduz em ação, obra, práxis: ou por curiosidade, mas para a edificação sua e Não basta ter boa vontade, a não ser que o ho- aqueles que querem saber apenas por saber; de força ou capacidade (virtus) intelectiva à afetiva do próximo. São tomados de torpe curiosidade, mem queira agilizá-la em obras, passando da torpe vaidade, aqueles que querem saber apenas e da afetiva à práxis (operationem). O Filósofo diz saber para vender a sua ciência por dinheiro ou ber, “saber, querer e operar resolutamente” [38]. para se tornarem reconhecidos ou que querem pelas honras dos homens. Como diz o Apóstolo: a ciência infla, mas a caridade edifica (1 Cor 8, Ano 2 | número 2 | 2013 que três são as coisas necessárias à virtude, a sa- Esta concepção afetiva e prática da sabe- doria cristã é reafirmada na oitava conferência, CONIUNCTIO Revista Científica de Psicologia e Religião | Ichthys Instituto | Curitiba - PR |59 60| O Confronto de São Boaventura com A Filosofia nas Conferências de Paris sobre Os Dez Mandamentos e... | Marcos Aurélio Fernandes | 51 - 68 quando Boaventura trata do dom do intelecto. O intelecto se encontra no tesouro da sabedoria. esconde os seus mistérios aos sábios e revela-os souro. Este estudo o homem o realiza em parte Sabedoria e simplicidade andam juntas. Deus aos pequeninos, como diz o evangelho (Mt 11, 25). Neste contexto, “sábios” são os que sabem muitas coisas; “pequeninos” são os que sabem pouca coisa. Mas “pequeninos” também são aqueles que sabem muitas coisas, e que, portan- to, poderiam ser considerados sábios aos olhos do mundo, mas que se atém humildemente em relação à sabedoria. A humildade franqueia ao homem o caminho da sabedoria, enquanto a presunção lhe fecha este caminho: Quem mais crê saber, frequentemente é quem sabe menos. Sem disciplinar o seu inte- lecto e seguir pela fé o que a Sagrada Escritura diz, o homem não compreende as coisas divinas, e acaba cogitando muitos erros. Por isso, Boa- ventura reafirma o dito da versão dos setenta da Bíblia, abraçado como lema para Agostinho: 44| Coll. VIII, n. 13, p. 260. rior; por fim, em parte a partir da iluminação da luz eterna, como por uma luz superior [42]. A experiência torna o homem experto, perito em muitas coisas. Neste ponto, ao falar da intelecção que parte da experiência, Boaventura recorre a ências se faz o universal, que é o princípio da quentemente se ensoberbece” [39]. 43| Coll. VIII, n. 14, p. 262. As referências de Aristóteles são: Analíticos Posteriores II, c. 19 (100 a 3-8); Metafísica I, c. 1 (980 b 29 – 981 a 4). Cfr. Aristóteles. Órganon. Tradução de Edson Bini. Bauru-SP: EDIPRO, 2005, p. 344. Aristotele. Metafisica. Testo greco a fronte. A cura di Giovanni Reale. Milano: Rusconi, 1993, p. 2-3. da luz natural da razão, como por uma luz inte- presunção. Todos louvamos a humildade e vi- que “disputando contra a soberba o homem fre- 42| Coll. VIII, n. 12, p. 260 te a partir do que o homem aprende pelo ditame uma memória; a partir de muitas memórias se imunes da presunção. Diz Ricardo de São Vítor, 41| Coll. VIII, n. 8, p. 256-258. experiência, como por uma luz exterior; em par- Nada obscurece tanto o intelecto em relação tuperamos a presunção, poucos, no entanto, são 40| Coll. VIII, n. 5, p. 254-256. a partir do que ele aprende pela frequência da Aristóteles: “a partir de muitas sensações se faz àquelas coisas que concernem a Deus do que a 39| Coll. VIII, n. 1, p. 252. O estudo da verdade consiste em cavar este te- “nisi credideritis, non intelligetis” – “a não ser que creiais, não compreendereis”. Com efeito, as coisas de que versam as Escrituras Sagradas trans- cendem a nossa inteligência, ou seja, a razão que atua segundo a luz natural. Por isso, a indiscipli- na na potência racional da alma torna-se o maior impedimento para que o homem compreenda as coisas divinas [40]. faz uma experiência; a partir de muitas experiarte e da ciência” [43]. De fato, há arte ou ciência quando o homem conhece, a partir da experiên- cia, certas leis que regem o acontecer das coisas, as quais podem ser expressas em proposições universais. Ao falar do intelecto a partir do que o homem conhece segundo o ditame natural da razão, que é como uma luz interior, Boaventu- ra nota que a alma humana tem três operações ou três potências. Ela pode se voltar (convertere) sobre o seu corpo; sobre si mesma; e às coisas divinas. Daí advêm três definições da alma: como forma do corpo; como “hoc aliquid” (este algo), ou seja, como uma substância singular de na- tureza intelectual (pessoa); e como “imago Dei” (imagem de Deus). A propósito da iluminação natural Boaventura diz: A nossa alma, porém, tem sobre si certo lume natural impresso (quoddam lumen naturae signatum), pelo qual é hábil a conhecer os primeiros O intelecto tem três funções: é a regra das princípios, ainda que isto somente não baste, ções científicas e a chave da contemplação das princípios, enquanto conhecemos os termos”. circunspecções morais; é a porta das considera- porque, segundo o Filósofo, “conhecemos os coisas divinas. No primeiro caso, trata-se do in- Quando, pois, sei o que é “todo” e o que é “par- o ditame da divina lei, conhece o mal que deve que sua parte” [44]. telecto prudencial, em que o homem, seguindo evitar e o bem que deve realizar [41]. Em segun- do lugar, o intelecto é a porta das considerações das ciências (ianua considerationum scientialium). Ano 2 | número 2 | 2013 te”, imediatamente sei que “todo todo é maior do Entretanto, somente a intelecção a partir da experiência e da a partir do ditame natural da razão não são o suficiente. O homem precisa CONIUNCTIO Revista Científica de Psicologia e Religião | Ichthys Instituto | Curitiba - PR O Confronto de São Boaventura com A Filosofia nas Conferências de Paris sobre Os Dez Mandamentos e... | Marcos Aurélio Fernandes | 51 - 68 de uma iluminação “sobrenatural”, que se dê “per do ser (causa essendi) produzindo imediatamente se pode saber de Deus com certeza a não ser zindo todas as coisas temporais; e imediatamen- divinam influentiam” (pelo influxo divino). Nada que se saiba por graça dele mesmo. Neste ponto, Boaventura recorda Agostinho, que pergunta a partir donde acontece que o injusto, de vez em quando, julga bem acerca da justiça. Onde estão escritas as leis da justiça segundo as quais e a partir das quais mesmo um homem injusto pode julgar de modo justo? A sua resposta vem na seguinte versão boaventuriana: “estão escri- tas no livro da luz eterna, e não emigrando dela, mas imprimindo-se, descem à alma, assim como a imagem passa do anel à cera, sem abandonar o anel” [45]. Assim, na intelecção acontece um processo em que, por um lado, o intelecto age com sua capacidade natural de discernir e de julgar, por outro lado, ele recebe a iluminação divina. Por sua vez, a iluminação acusa um con- tato imediato entre Deus e a alma. Se há alguma mediação angélica, esta mediação é apenas a modo de uma assistência ou de um serviço (ministerialiter et adminiculative). Se se diz que o anjo ilumina a alma, falando-se por analogia, ele o faz não como o sol ilumina uma sala, mas como alguém que abre a janela para que a luz penetre na sala. Somente Deus tem poder sobre a alma racional, porque esta é formada por ele de modo imediato. A conclusão positiva é que somente Deus é mestre do homem. A negativa atinge o ensinamento dos filósofos sobre as Inteligências: “portanto, não é verdadeiro o que dizem os filósofos, que uma Inteligência cria ou- tra, porque criar é próprio do Deus onipotente, 45| Coll. VIII, n. 15, p. 262. 46| Coll. VIII, n. 15, p. 262. 47| Coll. VIII, n. 15, p. 264. A referência de Agostinho é: Da Trindade XIV, c. 12, n. 16. Cfr. Agostinho. A Trindade. São Paulo: Paulus, 1994, p. 462. 48| Coll. VIII, n. 15, p. 264. não de algum poder criado; por isso, fazer isso é próprio daquela luz que é Ato Puro” [46]. Deus está imediatamente próximo do ho- mem. “Nele vivemos, nos movemos e somos”, como disse Paulo no seu discurso aos filósofos no Areópago em Atenas (At 17, 28). E Agosti- nho esclarece que Paulo não está falando, aqui, de nossa vida corpórea, mas de nossa vida in- telectiva [47]. Deus é, como já vimos, causa do ser, razão do inteligir e ordem do viver. É causa Ano 2 | número 2 | 2013 todas as coisas perpétuas; mediatamente, produ- te também ao produzir as virtudes elementares do cosmo. Deus é razão do inteligir (ratio intelligendi) porque é a partir dele que advém à in- teligência criatural a certeza, acima de toda sua mutabilidade. É ordem do viver (ordo vivendi), pois, por sua inabitação na alma, o homem é regido pelas regras da vida reta. Assim sendo Deus entra na alma como princípio do seu ser, como sol da inteligência e como dom infuso [48]. 5. Outra abordagem sobre os erros dos filósofos: o embate de círculo e cruz. Neste contexto, Boaventura volta a com- bater os erros dos filósofos. Segundo ele, três são os erros a serem evitados nas ciências, os quais exterminam a Sagrada Escritura e a fé cristã. O primeiro erro é contra a causa do ser, a saber, o erro da eternidade do mundo. O segundo erro é contra a razão do inteligir, ou seja, a necessidade fatal. O terceiro erro é contra a ordem do viver, isto é, a tese da unidade do intelecto humano. Uma tríplice tese do aristotelismo averroísta dos filósofos da faculdade de artes é combati- da, ou seja: que põe o mundo eterno; que põe que tudo acontece por necessidade; e que põe que há um único intelecto (agente) em todos os homens. A aparição deste tríplice erro, contudo, é visto por Boaventura em chave escatológicoapocalíptica representado no número da besta do Apocalipse: seiscentos e sessenta e seis (Ap. 13,18), que é, segundo Boaventura, um núme- ro cíclico. O número seis é três vezes repetido. O número seis é o número das criaturas e do homem. As criaturas são criadas em seis dias. O homem é criado no sexto dia. Trata-se, aqui, de um aprisionamento do homem na imanência criatural, uma recusa da transcendência. Um aprisionamento que, repetido por três vezes, se potencializa cada vez mais (há o seis; depois o sessenta, que é o seis dez vezes; e seiscentos, que é o seis cem vezes). Sobre o caráter cíclico da re- CONIUNCTIO Revista Científica de Psicologia e Religião | Ichthys Instituto | Curitiba - PR |61 62| O Confronto de São Boaventura com A Filosofia nas Conferências de Paris sobre Os Dez Mandamentos e... | Marcos Aurélio Fernandes | 51 - 68 presentação aristotélica-averroísta dos filósofos Sendo que tomamos o círculo como símbolo da põem ser o mundo eterno se fundamentam so- cruz como o símbolo ao mesmo tempo do misté- da faculdade de artes Boaventura elucida: os que razão e da loucura, podemos muito bem tomar a bre o círculo do movimento e do tempo; os que rio e da saúde (...)... o círculo é perfeito e infinito põem ser a necessidade fatal que rege todos os acontecimentos se fundam sobre o movimento dos astros; os que põem ser um só o intelecto em todos os homens, consideram que esta Inteligência entra e sai no corpo. Este tríplice erro choca com a Sagrada Escritura e com a fé cristã: contra a criação a partir do nada; contra o livre-arbítrio, anulando, assim, a cruz de Cris- to; e contra a diferença entre mérito e prêmio, anulando, assim, a individualidade, a liberdade e a responsabilidade dos diferentes indivíduos [49]. Por conseguinte, a luta entre a fé cristã e a filosofia dos artistas aristotélico-averroistas é a luta entre o círculo e a cruz: entre identidade e diferença, entre unidade e oposição, entre plenitude e vazio, entre eternidade e tempo, entre atemporalidade e temporalidade, entre imanên- cia e transcendência. A defesa da cruz é a defesa da diferença, da individualidade, da liberdade, do amor. Chesterton intuiu isso quando escreve: O amor deseja a personalidade; por isso deseja a divisão. O cristianismo instintivamente se alegra por Deus ter fragmentado o universo em pequenas partes, porque essas partes são vivas. Instintivamente ele diz “Criancinhas, amai-vos umas às outras”, em vez de mandar uma pessoa enorme amar a si mesma (...). Todas as filosofias 49| Coll. VIII, n. 16, p. 264. modernas são correntes que se interconectam e 50| Chesterton, G. K. Ortodoxia. Traduzido por Almiro Pisetta. São Paulo: Mundo Cristão, 2008, p. 218. ra e liberta. Nenhuma outra filosofia faz Deus de 51| Chesterton, G. K. Ortodoxia. Traduzido por Almiro Pisetta. São Paulo: Mundo Cristão, 2008, p. 49. 52| Rombach, H. Leben des Geistes - Ein Buch zur Fundamentalgeschichte der Menscheit.Freiburg / Basel / Wien: Herder, 1977, p. 140. prendem; o cristianismo é uma espada que sepafato exultar com a divisão do universo em almas vivas. Mas segundo o cristianismo ortodoxo essa separação entre Deus e o homem é sagrada, porque é eterna [50]. em sua natureza; mas é fixo para sempre em seu tamanho; ele nunca pode ser maior ou menor. Mas a cruz, embora tendo no seu centro uma co- lisão ou contradição, pode estender seus quatro braços eternamente sem alterar sua forma. Por ter um paradoxo no seu centro ela pode crescer sem mudar. O círculo retorna sobre si mesmo e está encarcerado. A cruz abre seus braços aos quatro ventos; é o poste de sinalização dos viajantes livres [51]. Não que a cruz deva se contentar em sim- plesmente excluir o círculo. Um relacionamento que exclui o seu oposto não consegue ser um relacionamento pleno. Por isso, no cristianismo, a cruz subsume o círculo, como aparece, por exemplo, na imagem da cruz irlandesa. Heinrich Rombach, analisando esta imagem escreve: “Cruz e Círculo são sinais, os mais antigos e elementares. Ambos em contraposição: a Cruz, dura, reta e contraditória; o Círculo, redondo, tenro e oscilante. A antiga Cruz irlandesa de pedra liga ambos os sinais em compenetração mútua: o Círculo se cruza com círculos. A Cruz abraça um movimento circular. O que dizem es- ses sinais? Círculo significa plenitude, riqueza, dom, como também, alegria, estima, valor. O que nos é importante, nós o marcamos com círculos; o que nos é caro, o rodeamos em círculo. Anel e aro são símbolos da Vida e da Unidade. Tam- bém do sol. Cruz diz diferença, significa opo- sição, contradição, também risco. Serve para a marcação, para sinalizar, para estigmatizar. Ela diz evento, ação, quebra, dor e morte. Círculo e Cruz, se unidos, podem só ser lidos como: ir- rupção para plenitude, evento da unidade através de uma única ação singular; em suma: superação E Chesterton, assim como Boaventura, também entende que uma concepção cíclica ou [52]. Numa concepção cíclica e circular não circular da realidade, presente no paganismo e acontece propriamente história. Historicidade cruciforme ou “crucial” da realidade, presente no se experimenta liberdade, responsabilidade, em todo o imanentismo, é oposto da concepção cristianismo. Ele diz: Ano 2 | número 2 | 2013 se experimenta a partir do momento em que singularidade, diferença, oposição, contradição, CONIUNCTIO Revista Científica de Psicologia e Religião | Ichthys Instituto | Curitiba - PR O Confronto de São Boaventura com A Filosofia nas Conferências de Paris sobre Os Dez Mandamentos e... | Marcos Aurélio Fernandes | 51 - 68 risco, enfim, quando a cruz marca a realidade. diz Tiago (1, 17). O modo de ser espelho, porém, da morte e a irrupção da vida plena. Entretanto, na mente humana. Em Deus, espelho e luz é Mas o evento pascal da cruz é também a morte trata-se de uma plenitude que advém e sobre- vém pelo esvaziamento e de uma nova criação que se dá, de novo, de nihilo (do nada), do abismo da morte. Ao fim da oitava conferência, pois, Boa- ventura argumenta contra os três supraditos erros. O primeiro erro, que põe a tese segundo a qual o mundo é eterno, destrói a causa dos ser. Ao se negar a criação de nihilo (a partir do nada), se afirma que as coisas têm, simultaneamente, o ser e o não-ser, ou que têm o ser antes do nãoser, o que é inconveniente [53]. Ao se afirmar a necessidade fatal (ou o determinismo fatalista), a partir das configurações astrológicas, torna- se vão o livre-arbítrio: “porque se o homem faz o que faz a partir da necessidade, o que vale o livre-arbítrio?” [54]. A consequência é que se destrói todo o mérito e toda a imputabilidade. O terceiro erro, que nasce da ignorância sobre a natureza do intelecto, porém, é o pior de to- tempo. É que o intelecto angélico compreende todas as formas ou arquétipos das coisas num só instante. Mas, no homem, espelho e luz são coi- sas diversas não só segundo a razão e a natureza, mas também segundo o tempo: o homem não compreende subitamente tudo o que ele pode compreender. Assim, a temporalidade é caráter radical do espírito ou do intelecto humano. Por ser radicalmente temporal e finita é que o inte- lecto humano precisa aprender, precisa julgar e raciocinar, precisa se dar como intelecto possível (receptivo) e como intelecto agente (ativo), pre- cisa, enfim, ser iluminado por uma luz superior à sua própria luz, pois, como diz o Filósofo: “Assim como se comporta o olho do morcego em relação à luz do sol, assim também se comporta o nosso intelecto em relação às coisas claríssimas da natureza” [56]. distinção e da individuação, porque em diversos Na nona e última conferência sobre os indivíduos o intelecto tem um ser distinto: por- sete dons do Espírito Santo, Boaventura trata individuantes da sua essência” [55]. Os filósofos ria provém de Deus como sua dádiva, mas, para ensinaram que uma única Inteligência criada irradia sua luz sobre todos os homens. Na verdade, porém, esta é uma prerrogativa somente de Deus. Toda inteligência criada é apenas um espelho da luz divina e eterna. Toda inteligência é capaz de reflexão, isto é, é capaz de um retorno 55| Coll. VIII, n. 19, p. 266 sobre si mesma (reditio). Por isso, toda substân- 56| Coll. VIII, n. 20, p. 266-268. A referência a Aristóteles é: Metafísica II, c. 1, 993 b 9-14. Aristotele. Metafisica. Testo greco a fronte. A cura di Giovanni Reale. Milano: Rusconi, 1993, p. 70-71. julga. Por isso, se assemelha a um espelho, que 57| Cfr. Coll. IX, n. 1, p. 270. renciam por razão e por natureza, mas não pelo 6. VI. A sabedoria do mundo contra a sabedoria de deus tanto, possui os princípios próprios, distintos e 54| Coll. VIII, n. 18, p. 266. a mesma coisa. No anjo, luz e espelho se dife- dos, pois reúne os outros dois. “Que este intelecto seja um em todos, isto é contra a raiz da 53| Coll. VIII, n. 17, p. 266 é diverso, na mente divina, na mente angélica e cia intelectual conhece a si mesma, se ama e se irradia de volta a luz que sobre ele incide. Neste sentido, Boaventura parece equacionar “reditio” e “reductio”, ou seja, a capacidade de reflexão, de retorno sobre si mesmo, e a capacidade de fazer retornar à sua fonte a luz do conhecimento que sobreveio ao homem do “Pai das luzes”, como Ano 2 | número 2 | 2013 da sabedoria ou sapiência (sapientia). A sabedoreceber este dom, o homem tem que desejá-la e também tem que preparar a sua alma, dedicando-se à justiça. E a suma justiça é o homem render glória a Deus e desejar e pedir de Deus a sabedoria [57]. Na verdade, o cristão é cha- mado a pedir e a receber a sabedoria verdadeira que vem de Deus e a fugir da vã sabedoria que vem do mundo, ou seja, dos homens que amam o mundo, dos homens mundanos. Com efeito, há a sabedoria celeste e há a sabedoria terrena. A alma está entre ambas: ela tem “duplex aspec- tus”, ou seja, duas perspectivas ou dois olhares; tem também “duplex affectus”, dois afetos. Um olhar e um afeto se voltam para o alto, ou seja, para as coisas incorruptíveis do espírito, para a CONIUNCTIO Revista Científica de Psicologia e Religião | Ichthys Instituto | Curitiba - PR |63 64| O Confronto de São Boaventura com A Filosofia nas Conferências de Paris sobre Os Dez Mandamentos e... | Marcos Aurélio Fernandes | 51 - 68 eternidade. Outro olhar e outro afeto se voltam cado, parecia-me demasiadamente amargo ver do mundo terreno, para a temporalidade. Por eles e fiz misericórdia com eles. E afastando-se uma sabedoria que é de baixo, que, no dizer do se em doçura da alma e do corpo; e, em seguida, para baixo, ou seja, para as coisas corruptíveis leprosos. E o próprio Senhor me conduziu entre isso, há também uma sabedoria que é do alto e deles, aquilo que me parecia amargo, converteu- apóstolo Tiago é “terrena, carnal, diabólica” (Tg detive-me por um pouco e saí do mundo [60]. 3, 14-15). Esta sabedoria, diz Boaventura, “com suas conferências em Paris, também recorda aos experiência dos deleites sensuais e na excelên- ência terrena e apreciar a sapiência da cruz. Pois avidade, na afluência das riquezas seculares e na cia ou na ambição das pompas mundanas” [58]. A solicitude por se deleitar na riqueza a torna terrena; a solicitude por se deleitar nos prazeres a torna carnal ou animal; e a solicitude por se deleitar na excelência e na pompa mundana a torna diabólica. Com efeito, o caráter distintivo do diabólico é a soberba, que é a raiz de todos os males. É esta sabedoria que Paulo chama de “sa- bedoria do mundo” oposta à “loucura da cruz”, que é a sabedoria do cristão (Cfr. 1Cor 1, 1830). É esta sabedoria que está destinada a ser Em lugar da riqueza, a pobreza; em lugar dos prazeres sensuais, o sofrimento; em lugar da so- 62| Coll. IX, n. 6, p. 274. 63| Coll. IX, n. 7, p. 276. subiu ao céu para que o homem desejasse a sabedoria do alto e amasse a fonte da vida, que é Deus. Portanto, a máxima estultícia é o cristão tornar vã ou vazia a morte de Cristo, aban- donando a sapiência da cruz pela sapiência do mundo. Fazê-lo, seria ir contra a admoestação do Apóstolo de não se esvaziar e tornar vã a cruz de Cristo: ne evacuetur crux Christi (1 Cor. 1, 17) [61]. Entretanto, como é a sabedoria do alto, descende do Pai das luzes (Tg 1, 17). É luz que colheu o que é contrário à sabedoria do mundo. 61| Coll. IX, n. 4, p. 274. esvaziar a sapiência do mundo; e ressuscitou e a morte de cruz. Foi para ensinar os homens aflito e humilde. Na loucura da cruz, Cristo es- 60| Fassini, D. (org.).Fontes franciscanas. Santo André: Mensageiro de Santo Antônio, 2004, p. 83. Cristo sofreu a loucura da morte de Cruz para a sapiência cristã? Enquanto a sapiência do a precaver-se com ela que Cristo se fez pobre, 59| Coll. IX, n. 3, p. 272. seus ouvintes a necessidade de desprezar a sapi- destruída e reprovada por Deus. Com efeito, foi para dispersar esta sabedoria que Cristo morreu 58| Coll. IX, n. 2, p. 272. Boaventura também, neste contexto de toda a solicitude busca deleitar-se em toda a su- mundo é trevas, a sapiência do alto é luz, que sobrevém ao homem para iluminar as três po- tências da alma humana: a cognitiva, a afetiva e a operativa; ou seja, o intelecto, o afeto e a ação do homem. Ela ilumina a potência intelecti- va da alma como um esplendor da luz eterna, berba, a humilhação [59]. Aos olhos da sabedo- tornando o homem amigo de Deus. Ela é luz um louco. A sapiência da cruz é amarga para o alma: “ubi veritas illabitur animae et eam replet do mundo é doce para os homens mundanos; plenifica e a alegra” [62]. Em terceiro lugar, a luz evocar as palavras de Francisco de Assis em seu sua potência operativa. Ela dá ao homem a for- em termos de mudança de sapiência, ou seja, em Boaventura passa a falar de modo perso- ria do mundo, Cristo aparece como um estulto, que sobrevém para alegrar a potência afetiva da mundo; mas é doce para o cristão. A sapiência et laetificat” – “onde a verdade penetra a alma, a mas é amarga para os cristãos. Aqui pode-se da sapiência sobrevém à alma para corroborar a Testamento, quando ele fala de sua conversão taleza para operar o bem [63]. termos de mudança de sabor, uma mudança que acontece quando ele passa a viver com os leprosos: nificado da sabedoria, regatando, assim, um uso dos escritos sapienciais do Antigo Testamento. Esta sabedoria é edificante. Ela edifica a Igreja e O Senhor deu a mim, Frei Francisco, começar a fazer penitência assim: como estivesse em pe- Ano 2 | número 2 | 2013 a alma, tornando-as morada de Deus. Na verda- de, ela ama habitar junto dos filhos dos homens CONIUNCTIO Revista Científica de Psicologia e Religião | Ichthys Instituto | Curitiba - PR O Confronto de São Boaventura com A Filosofia nas Conferências de Paris sobre Os Dez Mandamentos e... | Marcos Aurélio Fernandes | 51 - 68 (Cfr. Pr 8, 31). Ela constrói uma casa ou uma plicidade vence a sabedoria do mundo. Para colunas, e convida os homens a virem morar jun- pocrisia, ou melhor, da duplicidade de coração morada para os homens, uma casa que tem sete to dela e alegrar-se com o seu banquete (Cfr. Pr. 9, 1-6). Mas, quais são as sete colunas da casa da sabedoria? Boaventura responde a esta pergunta recorrendo às sete condições da sabedoria do alto, apresentadas pelo apóstolo Tiago (Tg 3,17) [64]. Boaventura comenta, então, as sete propriedades ou condições da sabedoria, vendo- as não só como colunas, mas também como degraus. A primeira condição da sabedoria é a pu- reza em relação à sensualidade carnal; a segunda é a inocência na mente; a terceira é a moderação no falar; a quarta é a suavidade no afeto (in affec- tu); quinta, a liberalidade no agir (in effectu); sex- ta, a maturidade no julgar (in iudicio); e, sétimo, a simplicidade na intenção (in intentione) [65]. Esta sétima é a mais alta e a mais importante condição da sabedoria: a simplicidade. Pode-se evocar, aqui, a figura de Francisco de Assis, ícone da simplicidade. Ele mesmo, na sua “saudação das virtudes”, ao saudar as virtudes como damas, que estão ordenadas em pares, saúda a simplicidade como irmã da sabedoria. Ele chama a sa- bedoria de rainha e põe a simplicidade do seu lado: “Ave, rainha sabedoria, o Senhor te salve com tua irmã, a santa e pura simplicidade” [66]. Neste escrito poético, Francisco retoma o tema medieval da conexão das virtudes (apoiado em Tg 2,10), ao dizer: 64| Coll. IX, n. 8, p. 276. 65| Coll. IX, n. 9, p. 276. 66| Fassini, D. (org.). Fontes franciscanas. Santo André: Mensageiro de Santo Antônio, 2004, p. 131. 67| Fassini, D. (org.). Fontes franciscanas. Santo André: Mensageiro de Santo Antônio, 2004, p. 131-132. 68| Coll. IX, n. 17, p. 284. 69| Coll. IX, n. 17, p. 284. Boaventura, a simplicidade é o contrário da hiou de alma. Simplicidade é unidade: unidade de coração, de alma, de intenção. Ora, a intenção do coração está ali onde está o tesouro que o homem ama. A intenção do coração do cristão está no alto, onde está Cristo, a vida [68]. Por isso, Boaventura retoma a imagem segundo a qual o homem é como uma árvore invertida: suas raízes estão no céu: O modo de ser do homem se põe em modo con- trário ao da árvore em relação à raiz: a árvore, com efeito, tem a raiz em baixo, o homem, no alto; também o edifício espiritual tem o funda- mento no alto, enquanto aquele corporal o tem em baixo [69]. Boaventura, pois, em nome da sabedoria do alto, combateu a sabedoria terrena. Pode-se, sem mais, identificar a filosofia com a sabedoria terrena? Sim e não. Sim, caso o cristão tome a filosofia como autossuficiente, fechada em sua imanência, tornando, assim, vã a cruz de Cristo, ou seja, a loucura da cruz, que oculta em si a sa- bedoria de Deus, a sabedoria do alto. Não, caso o cristão assuma a filosofia como via para ciên- cias mais elevadas, quais sejam, a ciência da fé, a ciência da caridade, a ciência da visão beatífica. Ou, dito de modo melhor, caso o cristão subsuma a filosofia como iluminação ou claridade que vem do “Pai das luzes” e se torna capaz de fazer a Santíssimas virtudes, / o Senhor do qual vindes “reductio”, ou seja, de reconduzi-la à sua origem, soluto, / homem algum no mundo inteiro que a causa do ser, a razão do inteligir e a ordem e procedeis, / vos salve a todas. / Não há, em ab- ao seu princípio fontal, reconhecendo em Deus possa ter / uma de vós sem que morra primeiro. do viver. Sim, caso o cristão não reconheça os / Quem tem uma e às outras não ofende, a todas possui. / E quem a uma ofende, nenhuma possui e a todas ofende. / E cada uma delas confunde os vícios e pecados./ A santa sabedoria confunde Satanás e todas as suas malícias./A pura e santa simplicidade confunde toda a sabedoria deste mundo [67]. No combate, pois, entre vícios e virtudes, a sabedoria vence a malícia diabólica, e a simAno 2 | número 2 | 2013 limites, as fraquezas, as impotências e impossi- bilidades do intelecto humano abandonado a si mesmo, bem como a impregnação nela do modo de ser de uma sabedoria terrena, carnal, animal, inflada de soberba. Não, caso o cristão reconheça na filosofia uma possibilidade impossível, uma potência impotente, e, na loucura da cruz, a impossibilidade possível, a impotência que é mais forte do que toda a potência humana. Filosofia e CONIUNCTIO Revista Científica de Psicologia e Religião | Ichthys Instituto | Curitiba - PR |65 66| O Confronto de São Boaventura com A Filosofia nas Conferências de Paris sobre Os Dez Mandamentos e... | Marcos Aurélio Fernandes | 51 - 68 70| Coll. IX, n. 17, p. 284. 71| Pascal, B. Pensamentos. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 237 (fr. 513/4). sabedoria cristã, por si mesmas, são heterogêneas. Mas, em concreto, se na existência do cristão elas, têm o poder de abrir-lhe riqueza imensa de possibilidades de saber e de viver. Todo o empenho filosófico e teológico de Boaventura foi de cavar para conquistar o tesouro da ciência e da sapiência, o qual está escondido, em última análise, em Cristo [70]. Combatendo a filosofia em seu tempo, Boaventura filosofou, pois, como disse Pascal, “zombar da filosofia é verdadeiramente filosofar” [71]. Obras citadas Agostinho. (1994). A Trindade. São Paulo: Paulus. Areopagita, Pseudo Dionisio. (1990). Obras completas del Pseudo Dionisio Areopagita. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos. Aristóteles. (1993). Metafisica. Milano: Rusconi. _________ (2005). Órganon. Bauru-SP: EDIPRO. Boaventura. (1995). Opere di San Bonaventura: Semoni Teologici/2. Roma : Città Nuova. ___________(1999). Escritos filosófico-teológicos volume I. Porto Alegre: EDIPUCRS / USF. Chesterton. (2008). Ortodoxia. São Paulo: Mundo Cristão. Fassini, D. (. (2004). Fontes Franciscanas. Santo André-SP: Mensageiro de Santo Antônio. Rombach, H. (1977). Leben des Geistes - Ein Buch zur Fundamentalgeschichte der Menscheit. Freiburg / Basel / Wien: Herder. Tonna, I. (1992). Lineamenti di Filosofia Francescana: Sintesi del Pensiero Francescano nei sec. XIII-XIV. Roma: Tau. Ano 2 | número 2 | 2013 CONIUNCTIO Revista Científica de Psicologia e Religião | Ichthys Instituto | Curitiba - PR