MARCOS AURÉLIO DE PAULA PEREIRA ESCRAVIDÃO E CATOLICISMO EM MINAS GERAIS COLONIAL FORMAS DE SOCIABILIDADE E CONTROLE MONOGRAFIA DE BACHARELADO DEPARTAMENTO DE HISTORIA INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SÓCIAS UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO Mariana, 1999 MARCOS AURÉLIO DE PAULA PEREIRA ESCRAVIDÃO E CATOLICISMO EM MINAS GERAIS COLONIAL FORMAS DE SOCIABILIDADE E CONTROLE Monografia apresentada ao curso de História da Universidade Federal de Ouro Preto como parte dos requisitos para a obtenção do grau de Bacharel em História. Orientador : Prof. Dr. Ivan Antônio de Almeida DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO Mariana, 1999 2 Agradecimentos Agradeço ao Professor Dr. Ivan Antônio de Almeida pela sua colaboração e confiança como orientador dessa pesquisa. Ao Professor Dr. Renato Pinto Venâncio pelo apoio importante e pela leitura e avaliação do presente trabalho. A professora Andréa Lisly pela leitura e avaliação dessa monografia. Aos funcionários do Arquivo da Cúria de Mariana e do Arquivo da Casa dos Contos de Ouro Preto, pela atenção dispensada. Quero agradecer especialmente à Marilene da Silva por ter colaborado com a digitação desse trabalho e a todos aqueles que contribuíram de uma forma ou de outra para a realização dessa monografia. Sou grato pelo companheirismo de todos os meus amigos que moram na República "Zona." Aos meus amigos do curso de História: Sérgio Cristóvão Selingardi pelo apoio signifícante e aos demais que comigo ingressaram nessa faculdade e foram meus companheiros de estudo. Dedico com carinho esta monografia aos meus familiares; principalmente à minha mãe e à minha avó. 3 SUMARIO 1-Introdução...............................................................................................................6 2-A sociedade mineira do século XVIII...................................................................9 2.1- A formação da sociedade: aregião das minas e o seu povoamento..................9 2.2-A escravidão urbana em Minas.........................................................................17 2.3- A implantação do bispado de Mariana..............................................................22 3 - A Igreja e a escravidão........................................................................................28 3.1- Poder político e poder espiritual: ideologias em conflito.................................28 3.2- As justificativas da escravidão segundo alguns religiosos católicos................40 4- A atuação e participação do clero........................................................................60 4.1 - Os propósitos da No Brasil e em Minas............................................................60 4.2- A pedagogia dos visitadores e do clero mineiro.................................................66 5 - A evangelização dos escravos.............................................................................73 5.1- As irmandades 5.2-Celebrações 5.3- de negros em Minas colonial...................................................74 e santos........................................................................................80 Os sacramentos e a sua aceitação pelos escravos............................................86 4 6 - Considerações finais............................................................................................95 7 – Abreviaturas......................................................................................................97 8 - Fontes primárias..................................................................................................97 9-Fontes primárias impressas............................................................................98 10-Bibliografia...........................................................................................99 5 1 - INTRODUÇÃO A sociedade da capitania de Minas Gerais no século XVIII era escravocrata e católica como nas demais capitanias do Brasil colonial. A religiosidade da população mineira caracterizava-se pela participação de um grande número de seus habitantes nas comemorações e ritos da Igreja Católica. A formação e ocupação de Minas no século XVIII, veio a efetivar a presença da administração metropolitana em suas terras coloniais sul-americanas. Presente nessa força administrativa estava a Igreja. Como instrumento do Estado - uma de suas características, não a única - a Igreja Católica reproduzia a ideologia dominante. Porém, na nova capitania que começava, a presença do escravo, africano e crioulo, era muito grande, maior que a de brancos, o que acabava acarretando um medo constante de sublevações, "fazendo de Minas um barril de pólvora."1 Fazia-se necessário que a turbulenta população mineira, tivesse seu espirito domado para que o poder do Estado português se fortalecesse. O presente trabalho tem o objetivo de verificar a relação entre escravidão e a religião católica ao longo do século XVIII em Minas Gerais. O catolicismo e o colonizador de Minas configuravam-se como dois elementos indissociáveis assim como escravidão e trabalho. Procura-se entender como essa sociedade evangelizava o escravo que nela era inserido e como esse relacionava-se com os elementos do catolicismo. Desde o descobrimento do Brasil a assimilação da cultura portuguesa, essencialmente católica, fora imposta ao cativo. Primeiramente ao indígena e posteriormente ao africano, através de missionários de ordens que se formaram para essa missão. No século XVIII, com o descobrimento das minas de ouro e pedras preciosas, a Coroa portuguesa proibiu a entrada dessas ordens na região. A formação religiosa dos mineiros e dos seus escravos estava, então, a cargo da própria população até que a Igreja se instalasse oficialmente na nova capitania. A integração dos escravos nessa cultura era imperativo para o sucesso da colonização do Brasil e nesse século principalmente em Minas. Considera-se que a catolização do negro na sociedade colonial brasileira não era a única, mas, sem dúvida, uma das mais fortes e complexas formas de inserção deste na 1 SOUZA, Laura de Melo e. Norma e conflito: aspectos da história de Minas no século XVIII. Belo Horizonte: UFMG, 1999, pp.86-107. 6 sociedade. Nesses termos emprega-se o significado de cultura, como propõe Roger Chartier, como "conceito que dê conta dos aspectos conflitivos da realidade social, criando, para isso, a concepção das formas simbólicas como organizadas em um sistema coerente."2 Aplicando aos estudos da cultura brasileira, o sentido demonstrado por Fernando Azevedo sintetiza a forma como se entende o termo: "cultura como o estudo que incida diretamente sobre a produção, a conservação e o progresso dos valores intelectuais das artes, de tudo enfim que constitui um esforço para o domínio da vida material e para a libertação do espírito.3 A historiografia sobre a religiosidade escrava no Brasil colonial, têm estudado muito pouco o processo de conversão dos escravos ao catolicismo. Em sua maioria privilegiam as conotações sincréticas sobre a relação do cativo com a teologia católica, não considerando a formação católica deste. Essa é a problemática dirigente nessa pesquisa, aplicando-a a Minas Gerias colonial. O processo de pesquisa esbarrou em alguns problemas. Os documentos utilizados foram produzidos por pessoas pertencentes a categoria escravagista. Neles não se pode esperar declarações explicitas sobre como os escravos encaravam a religião católica. A primeira alternativa encontrada foi a de perceber como a Igreja pensava a evangelização dos escravos. Utilizamos para isso das Constituições primeiras do Arcebispado da Bahia 4 , válidas para todo o Brasil colónia. O próximo passo foi o de perceber nas fontes eclesiásticas, o comportamento da população e do escravo inserido nessa sociedade, frente às normas de conduta previstas pela Igreja. O material empregado nessa tarefa foram as devassas diocesanas onde privilegiou-se uma observação de casos previstos pela Constituições primeiras do Arcebispado da Bahia. Por conseguinte a participação da população negra na vida religiosa na região. Nas formas associativas não oficiais -irmandades e festas - e nas pessoais - a relação dos escravos com os rituais da morte. O exame dessas fontes não foi marcado pelo estudo quantitativo de todas em todos os géneros encontrados, mas de algumas amostras preferidas relacionando-as a períodos importantes da história de Minas no século XVIII Entendendo sua importância dentro do tema da pesquisa. 2 CHARTÍER, Roger. A História cultural: entre práticas e representações. Trad. Maria M. Galhardo. Lisboa: Difel/ Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990. 7 No primeiro capítulo foi feita uma apresentação da sociedade mineira. Sua formação e suas características próprias quanto a produção da vida material e a administração. O expressivo contingente de escravos e descendentes desses e a implantação da Igreja na capitania. O segundo capítulo discute a evolução do processo que uniu a Igreja Católica e o Estado português, E em seguida demonstra- se algumas das teorias que religiosos católicos se fundamentam para justificar a escravidão africana. O terceiro capítulo tem a preocupação de demonstrar como norteou-se a intenção da Igreja no Brasil e principalmente em Minas Gerais. Conjuntamente procurou se verificar como na intenção da Igreja de controlar o comportamento social, é revelado a conduta da população e do clero mineiro. O capítulo seguinte é demonstrado a análise de estudos e fontes da participação dos escravos na vida religiosa da capitania. As associações leiga de negros e os benefícios que se buscava. A participação reconhecida em festas católicas oficiais e por último a relação dos negros com a morte cristã, algo pessoal e ao mesmo tempo reflexo da mentalidade da sociedade mineira colonial. Na última parte procura-se demonstrar as considerações possíveis do estudo. A partir da leitura da bibliografia referente a região e ao tema, especialmente religiosidade e cultura popular e as relações com as fontes da época que referem à sociedade e sobre o escravo especificamente. Infere-se mesmo com todas as dificuldades, observações que se válidas para a Minas no século XVIII, podem também ser observadas para outras sociedades coloniais brasileiras sem com isso negar as peculiaridades que a relação entre escravidão e catolicismo suscitaram para a capitania. 3 AZE VEDO, Fernando de. A cultura brasileira. 6 ed. Rio de Janeiro: editora UFRJ, 1996, p.35 Constituições primeiras do Arcebispado da Bahia. Feitas e ordenadas pelo Ilustríssimo e Reverendíssimo Senhor. D. Sebastião Monteiro da Vide em 12 de Junho de 1707. São Paulo,1853 4 8 2 - A SOCIEDADE MINEIRA DO SÉCULO XVIII Minas Gerais setecentista, da descoberta do ouro à formação das primeiras vilas, no trabalho de extração mineral, comércio e agricultura, Minas foi diferente. A forma como a administração portuguesa se fez presente, como a economia foi dinâmica, como os escravos e descendentes participaram de todas as atividades sociais e como a Igreja Católica se representou, fizeram de Minas do século XVIII, algo novo na colónia. Interessante era a forma como a sociedade se organizava e como manifestava sua cultura. Com um catolicismo popular e um grande contingente de escravos, essa população mineira dos setecentos em sua formação produziu uma maneira novo de se encarar a relação dos escravos com o catolicismo, que não era sua primeira religião, mas que ele deveria seguir. 2.1 - A formação da sociedade: a região das minas e o seu povoamento A ocupação e o povoamento em Minas Gerais setecentista, desde o inicio, teve por base a exploração do ouro. Em vários momentos essa atividade delineou o espaço a ser ocupado e incentivou a imigração para as Minas. A geografia local determinou a ereção das primeiras povoações e o labor dos seus moradores. Foi a natureza, que neste momento do nascimento de Minas, que se impôs aos homens e os dominou de acordo com as riquezas que oferecia, relacionando as condições geográficas de um lado e a forma de extração mineral de outro. Atrás do ouro de Minas vem toda sorte de gente procurando fortuna fácil, sonhando com o eldorado tão procurado desde os tempos do descobrimento do Brasil. Através da mineração ou das outras atividades que esta alimenta, a população nessa época cresceu rapidamente. Nestas minas do ouro e de pedras preciosas do início dos setecentos o aventureiro não é um forasteiro que passa, aí todos são aventureiros e vivem na organização que lhes é própria. Vindo de Portugal e de outras partes do Brasil correu para a região toda uma população a procurar ventura, tal foi o relato de Antonil , 9 " cada ano, vêm nas frotas quantidade de portugueses e de estrangeiros, para passarem às Minas. Das cidades , vilas, recôncavos e sertões do Brasil, vão brancos, pardos, pretos e muitos índios de que os paulistas se servem. A mistura é de toda a condição de pessoas: homens e mulheres, moços e velhos, pobres e ricos, nobres e plebeus, seculares e clérigos, e religiosos de diversos institutos, muitos dos quais não têm no Brasil convento nem casa"5. Brancos, pardos e pretos, seculares, clérigos e religiosos, escravos e livres, gente que formando essa nova sociedade produziu algo novo na colónia, com uma cultura cheia de elementos pouco comuns no resto do Brasil. Religiosidade, dinamismo, pluralidade serão marcas indissociáveis dessa nova sociedade O afluxo que ocorreu às minas tão logo António Rodrigues Arzão encontrou no Tripuí em 1693 o primeiro indício de ouro6, esta relacionado não só a atração exercida pelo metal, mas, também a decadência da metrópole e o declínio da importância económica da produção de géneros tropicais da colónia nos mercados europeus, especialmente o açúcar. Segundo a interpretação de Celso Furtado, "iniciara-se uma intensa concorrência no mercado de produtos tropicais, apoiando-se os principais produtores - colónias francesas e inglesas- nos respectivos mercados metropolitanos."7 Celso Furtado considera que a economia mineira abrira um ciclo migratório europeu totalmente novo para a colónia, atraindo imigrantes portugueses e brasileiros devido ao "estado de postração e pobreza que encontravam a metrópole e a colónia com a decadência da economia açucareira na segunda metade do século XVII.8 Antonil faz uma observação sobre o rápido desenvolvimento da economia mineira e da quantidade de pessoas que esta atraía já por volta de 1711, dizendo que nesta região , " mais de trinta mil almas se ocupam, umas em catar, e outras em mandar catar nos ribeiros do ouro, e outras em negociar, vendendo e comprando o que se há mister não só para a vida, mas para o regalo, mais do que nos portos do mar."9 5 ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas. 3a ed. São Paulo: Edusp, 1982, p.167 6 HOLANDA, Sérgio Buarquc de. Metais e pedras preciosas In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. (org.) História geral da civilização brasileira. 3 edição. São Paulo: Difusão europeia do livro, 1973,p.261 7 8 FURTADO, Celso. Formação económica do Brasil. 10 ed., São Paulo: Ed. Nacional, 1970, p. 73 FURTADO, Celso. Op. Cit. p.74. ANTONÍL, André João. Op. Cit. p. 167. 10 Esse catar descrito por Antonil é a realidade mais próxima sobre a forma de extração do ouro mais empregada naquele começo do século XVIII, pois não se exploravam grandes minas e sim o metal de aluvião retirado dos leitos dos rios. Para essa forma de extração os mineradores retiravam o ouro da areia e dos cascalhos dos rios utilizando-se de grandes pratos, pequenas gamelas e bateias, era empregada também a técnica de desvio dos cursos da água para a retirada destes cascalhos. Outra forma de garimpagem eram as catas. Estas realizavam-se fora dos leitos dos rios, em tabuleiros. Eram escavações em forma de poços em que se retirava o material estéril até se achar o cascalho que continha o ouro. Para exploração aurífera nas montanhas, construía-se poços e galerias de pouca profundidade e comprimento. A partir do momento que escasseava o ouro de aluvião aumentava o trabalho nas catas ao lado dos rios. Este tipo de extração que ia de um lugar para outro não conseguia fixar o homem e a falta do ouro o conduzia à outros locais. Vivia-se em acampamentos, abandonados tão logo a escassez provoca-se a mudança em busca de novas catas. Caio Prado Júnior enfatiza esta movimentação determinada pela procura do ouro: para ele, "a industria mineradora no Brasil, não passou de uma aventura passageira que mal tocava um ponto para abandoná-lo logo em seguida e passar adiante."10 Porém, Francisco Vidal e Iraci dei Nero Costa, verificando o processo de estruturação da sociedade mineira, concluem que este "nomadismo" foi uma característica dos trinta primeiros anos de ocupação do território mineiro.11 Passado o primeiro instante de extração em aluviões e catas à margem dos rios, os exploradores começaram a subir os morros à procura de ouro nos aluviões de meia encosta. As exigências técnicas das explorações de meia encosta implicavam investimentos maiores e eram incompatíveis com atividade errante dos primeiros mineradores. Iniciou-se a fixação à terra e começaram a organizar a sociedade. Os lavradores e senhores passaram a construir sua casas próximas às minerações. Surgiram as primeiras vilas e com elas a organização administrativa, jurídica e tributária que caracterizaria a região. Casos como a Guerra dos Kmboabas e outras tantas disputas induziram Portugal a uma posição quanto à administração e ocupação da região. Com o intuito de estabelecer maior 10 PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo: colónia 18 ed. São Paulo : Brasiliense, 1983. p.171 11 LUNA, Francisco Vidal, COSTA, Iraci Del Nero. Minas Colonial, economia e sociedade. São Paulo: FIPE/PIONEIRA, 1982, p. 15 11 autoridade e apaziguar os ânimos, a Metrópole passou a favorecer a tendência de formação de vilas e povoações mais organizadas e pouco dispersas. Entre as medidas postas em práticas para estes fins, se dirigiu a ação do primeiro governador da Capitania de São Paulo e das Minas de Ouro, D. António de Albuquerque. Ele erigiu vilas de acordo com as condições das povoações e dos propósitos da Coroa. Desse modo foram erigidas as vilas de Ribeirão do Carmo à 8 de abril de 1711, a de Villa Rica do Ouro Preto, à 8 de junho de 1711, e a Villa de Sabará à 1711 de julho do mesmo ano. A preocupação com a ordem não se demonstra apenas na criação das vilas, mas, também na rápida organização das câmaras com seus oficiais, juizes e procuradores através da eleição entre os principais de cada localidade, tão logo fosse possível. No caso dessas vilas citadas, as eleições ocorreram, à 4 de julho de 1711, 8 de julho de 1711 e 19 de junho do mesmo, respectivamente. D. Brás Balthazar da Silveira o segundo governador da capitania e D. Pedro de Almeida, o Conde de Assumar, seu sucessor, prosseguiram na mesma linha. São João Del Rei primeira eregida por D. Brás Baltazar à 8 de dezembro de 1713, teve no mesmo processo a eleição dos oficiais da câmara, de Juizes, assim como, definidos os desembargadores e ouvidores e os oficiais de milícias e justiças. Entre 1713 e 1718 surgem outras Vilas importantes, a da Vila Nova da Rainha, no Caeté, ou de Pitangui, a de São José e a Vila do Príncipe.12 Aqueles que poderiam ser inscritos dentre os principais da terra não eram apenas os mineradores, o aventureiro vitorioso que ficara rico com o ouro. O dono de terra, o agricultor, o comerciante, quando enriqueciam, passavam a significar em Minas a condição de Senhor, do nobre, do "homem bom". É a condição financeira a razão direta da capacitação do mineiro para o serviço no senado da câmara de sua vila. Com a eleição dos "homens bons" para os cargos administrativos, estes primeiramente foram se adequando ao "serviço da república." Estes homens ajudavam na arrecadação dos impostos, arrecadando dinheiro para obras pública, disciplinando a vida e a economia comunal e principalmente no apaziguamento dos povos indóceis. 12 RAPM. 1897pp. 81-107. 12 O serviço à Coroa quanto à ordem, sossego e cumprimento das leis reais prestados pelos "bons homens é reconhecido, por exemplo, através das cartas patentes. Como na carta de Capitão-mor da Villa Rica de Ouro Preto conferida a Henrique Lopes Araújo: " (...), Sendo uma das pessoas que no primeiro ajuste, que se fez de quintos nestas Minas por Dom Brás Balthazar da Syíveira, se houve sem um conhecido zelo, da fazenda real, e a todas diligências que o dito governador o encarregou pertencentes ao Serviço de Majestade deu inteiro cumprimento não só com a sua pessoa mas com seus escravos armados, sem reparar no perco do serviço deles,(. ..)"13 É a utilização dos meios pertencentes aos homens da terra que garante a ordem e não as milícias do rei de Portugal e do governador. Mesmo quando começa a organização das forças militares é necessário o apoio destes homens, como pode ser notado na carta patente de Capitão-mor de Ordenanças da Villa do Carmo concedida à Raphael da Silva e Souza, por garantir: "... Segurança a Joseph de Souza Fragoso Capitão da guarnição do Rio de Janeiro quando foi as mesmas Minas buscar os reais quintos acompanhando-o com sua pessoa e escravos armados até o por livre das emboscadas, ..."14 Outro fato interessante diz respeito a constituição das famílias, consideradas importantes para a manutenção da ordem. A família foi preocupação de governadores como D. Lourenço de Almeida e o Conde de Assumar. Originários de famílias nobres - alguns mesmo da alta nobreza lusitana - os governantes defendiam uma colonização de base familiar consoante aos interesses metropolitanos, uns e outros acreditando ser ela o único meio de conter e normatizar a população de Minas.15 Foi preocupação também de S. Majestade D. João em carta ao Conde de Assumar, (...), que considerando-se que os povos das minas por não estarem suficientemente civilizados e estabelecidos em forma de repúblicas regulares, facilmente rompem em alterações e desobediências e se lhe devem aplicar todos os meios que os possa reduzir a melhor forma: me pareceu encarregar-vos como por esta o faço procureis com toda a diligência possível para que as 13 RAPM. 1899 pp. 103.105. RAPM. 1899 pp. 107.109. 15 SOUZA, Laura de Melo e. Norma e conflito: aspectos da história de Minas no século XVIII. Belo Horizonte: UFMG, 1999, pp. 175-194. 14 13 pessoas principais e ainda quaisquer outros tomem o estado de casados e se estabeleçam com suas famílias na parte que elegerem para a sua povoação, porque por este modo ficarão tendo mais amor à terra e maior conveniência do sossego dela e consequentemente ficarão mais obedientes às minhas reais ordens (...)" 16 entre os elementos dessa base familiar está o escravo. O rei reconhece que é preciso "domesticar" a sociedade e um desses meios é o fortalecimento da moral cristã. Tratase do uso de um instrumento de controle por outro. Inseridos nessa "domestificação" estão os escravos, mão-de-obra indispensável, que deveriam não só fazer parte das famílias mas formar as suas. Com o surgimento das primeiras viías e o estabelecimento dos representantes da Metrópole da região do ouro, passada a febre dos primeiros descobrimentos e revoltas, o mineiro passará a constituir família com mulher, filhos e escravos. Embora tenha corrido fama o ouro das minas em toda a Europa e principalmente em Portugal a ponto de, ser mencionado no Triunfo Eucarístico em 1733 a atitude do rei: " (...) que foi necessário um rigoroso e real decreto para talhar a torrente do concurso, porque o Soberano se estimava o aumento da povoação dessas terras peio interesse, e mais no auge dos reditos, sentia faltar no reino a gente necessária a cultura dos campos, e muitos ministérios da república. (...)" 17 A posse de escravos era o primeiro diferenciador das classes de Minas no século XVIII. Não é de estranhar que o contigente de escravos e descendentes destes tenha sido sempre maior que o número de brancos. Mesmo com a facilidade de trabalho oferecida pela economia mineradora na qualidade de oportunidades, pois, um homem com poucos ou nenhum escravo podia "faiscar nas lavras", ainda assim aqueles que possuíam um maior cabedal de cativos era os que detinham as maiores fortunas. O escravo na economia mineradora, como na agrícola, era a riqueza do homem livre. 16 RAPM 1979 pp. 125-126. Triunfo Eucarístico In: ÁVILA, Afonso. Resíduos seiscentistas em Minas: trechos do século do ouro e as projeções do mundo barroco. Belo Horizonte: Centro de Estudos Mineiros, 1967, p. 18. 17 14 Como não poderia ser diferente da sociedade colonial do resto do país, em toda a décima oitava centúria cristã o contingente de homens de cor em Minas superava o de brancos. Mesmo após os anos de apogeu da produção aurífera, a quantidade de negros foi superior. Em 1742, segundo dados do Barão de Eschwege, no total de 266.868 pessoas, numa população de 10.000 famílias de homens livres, contando com uma média de 08 pessoas cada, havia 186.868 escravos para este 80.000 livres18. No terceiro quartel do século XVIII, quando a decadência da produção aurífera se adiantara, Eschwege fornece dados que demonstram a maior quantidade de pardos e pretos em relação ao total de brancos: em 1776 contabilizou 249.000 pardos e pretos contra 70.769 brancos e em 1786, 297.183 pardos e pretos dos quais 174.135 eram cativos numa população total de 362.847 pessoas em Minas gerais19. No "Regimento dos Superintendente, Guarda mores e mais oficiais, Deputados para as Minas de Ouro", fica registrado, o caráter restritivo e eminentemente escravista da mineração. As datas seriam concedidas conforme o número de escravos: diz-se que achado um ribeiro de ouro, deve o Guarda-mor depois de inteirar-se da extensão da jazida destinar ao seu descobridor duas datas, a primeira como um prémio e a segunda como lavrador em outra qualquer parte que ele apontar. Isto contabilizando a reserva para a Real Fazenda e no caso em que sejam descobertos quatro ribeiros, manda o regimento: " (...), as mais datas repartirá o Guarda-mor, regulando-se pelos escravos que cada um tiver que chegando a doze escravos ou daí para cima fará repartição de uma data de trinta braças, conforme o estilo, e aquelas pessoas que não chegaram a ter doze escravos lhes serão repartidas duas braças e meia por cada escravo, (...)" 20 Embora a atividade mineradora pareça evidentemente a maior, detalhes como o que foi citado sobre a distribuição de datas, poderiam servir como elemento de formação de diferentes tipos de lavras. A primeira observação a respeito dessa diversidade incide, sobre o homem livre e pobre. 18 19 20 RAPM I898p.5ó8 RAPAI 1899p.l94. ESCHWEGE Ludwig Von. Pluto Braziliensis. Tradução Domício de Figueiredo. V. 1, São Paulo: EDUSP,1979 p.95 15 José Ferreira Carrato, em estudos sobre a população mineira e sua religiosidade nos séculos XVIII e XIX, nos dá um exemplo da diversidade das profissões. Tomando os livros e devassas eclesiásticas da Arquidiocese de Mariana, nos anos de 1733-1734, o autor encontrou as seguintes ocupações: agricultores, a mais numerosa de todas, subdivida entre "os que vivem de suas roças" e "os que vivem de seu engenho"; as dos artesãos; a dos comerciantes, aqueles que "vivem de sua agência ou seu negócio"; a ocupação de mineradores, os donos de lavras e faíscadores além dos profissionais da mineração (feitores, prepostos, contratados), ainda são relacionados os que se ocupam de viver de "suas lavras e roças", denominados mineradores - agricultores; havia ainda os oficiais ( funcionários régios, militares, ou titulares) e por último a classe dos profissionais liberais da época, padres, cirurgiões, músicos e professores.21 Um rico testemunho sobre a economia diversificada que o ouro movimentou, não só como produto mas também como moeda, nos vem de um documento da época. António Pires da Silva Pontes Leme, ilustre morador de Mariana nascido a meados do século XVIII, discursa sobre a sobre a utilização das minas de ouro e das outras atividades da região como a agricultura e o comércio. "(...), enquanto nas Minas Gerais uns vivem de cultivar as maçãs da Europa, os pêssegos, os marmelos, outros de os beneficiar em doces, outros de os beneficiar em doces fazer calçado de couro, e de pau; muitos de preparar as carnes de porco, outros de vaca, outros de queijos, e todos estes acham cada um o seu cómodo, porque resgatam aquelas obras por ouro, com o quaí tudo compram."22 As esferas da produção, do comércio e dos serviços, além das atividades mineradoras, em crise a partir da segunda metade do século, mas, ainda importantes para o proveito popular, completavam um amplo e dinâmico universo económico da Capitania. Nesta estrutura, onde as relações sociais de produção escravista eram a base, surgia uma característica peculiar à região: uma relação mais próxima entre senhores e escravos e uma maior possibilidade de alforria para os cativos. Quanto mais dinâmica fosse a economia maiores seriam as oportunidades do escravo angariar o pecúlio necessário à compra de sua alforria. As principais atividades que lhe permitiam obter os fundos para a compra de sua liberdade era a 21 CARRATO, José Ferreira. Igreja, ilumiinsmo e escolas mineiras coloniais. São Paulo: NACIONAL/EDUSP, 1968, p.06. 16 a mineração - trabalhando nas horas vagas - no comércio - especialmente como escravos de ganho. 2.2 - A escravidão urbana em Minas "Todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma, quando não na alma e no corpo - há muita gente de jenipapo ou mancho mongólica pelo Brasil - a sombra, ou pelo menos a pinta, do indígena ou do negro. No litoral, do Maranhão ao Rio de Grande do Sul e em Minas Gerais, principalmente do negro. A influência direta, ou vaga e remota, do africano." Gilberto Freyre, em seu ensaio de sociologia genética e de história social, elogia o negro e a influência deste na história brasileira, principalmente na cultura. Mas, é primeiramente na produção das riquezas que observa-se a sua importância na história de Minas Gerais. A função reservada ao africano e seu descendente, no Brasil colonial e mesmo no Império, foi a de trabalhar. Um exemplo do papel do escravo, como força sem a qual o país não produziria riquezas, indispensável mesmo nas tarefas cotidianas, é apresentado por Eschwege: " Os escravos constituem a riqueza dos homens livres, todos estes serviços se fazem pelo se serviço, e sem escravos, ainda que a caixa cheia de ouro, não se passaria senão por pobref ninguém poderia cultivar as terras nem explorar as minas, nem mesmo preparar a própria comida, de sorte que ou teria de viver como pobre ou de ir -se algures com a mesma caixa, para lugar onde esta lhe pudesse servir'25 Caio Prado Júnior é enfático nesse ponto : " Quanto à função desempenhada pela escravidão, ela é, não preciso acrescentá-lo, considerável. Ao tratar da economia da colónia, já vimos que praticamente todo o trabalho é entre nós serviu."26 22 RAPM. 1896, p.419 FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 10a cd Rio de Janeiro: José Olimpio,1961p.282 24 esta definição o próprio autor nos fornece no prefácio do seu livro, p. Lxxxii. 25 RAPM 189S.p.562 26 PRADO JÚNIOR, Caio. Op. Cit. p.278. 23 17 No século XVIII, na nascente sociedade mineira não seria diferente. O escravo era, desde o início, o principal fator de produção nas minas e essencial para a obtenção e distribuição - inclusive no dimensionamento - das datas. Prova, é o quinto capítulo do regimento de 1702, que distribui as datas, "regulando pelos escravos que cada um tiver. 27 A administração portuguesa demonstrou a importância do escravo tanto na produção quanto na tributação. Em 1735, o então governador Gomes Freire de Andrade, estabeleceu pela primeira vez o imposto de capitação. Imposto cobrado por cabeça de escravo trabalhando nas lavras. Os dados censitários sobre os habitantes de minas no período colonial são fragmentados e nem sempre é possível encontrar informações precisas. Utiliza-se então de dados de fontes de outros autores. Herbert S. Klein, historiador norte-americano, cita que em 1710 havia na região 20.000 brancos e o mesmo tanto de escravos. Em 1717, segundo Klein, a população negra atingira 33.000 pessoas, tendo neste mesmo ano ultrapassado o total de brancos . O medo constante de uma revolta de escravos é outra manifestação do montante sempre elevado de negros, que desde os primeiros decénios havia em Minas. D. Pedro de Almeida, Conde de Assumar, percebia que o grande número de escravos e negros e a minguada população branca fazia da região um barril de pólvora: “ que como ainda agora são aqui mui poucos os homens brancos, à proporção dos negros, tiveram estes atrevimento para intentar uma sublevação universal e se comunicavam das partes mais distantes, (...)”29 Não só pelo medo de um levante escravo, mas pela força deles empregada para o controle do representantes da Metrópole frente aos amotinados, percebe-se o grande contingente de cativos. Nas carta patentes de capitães-mores, é notada a utilidade destes, como na de Henrique Lopes Araújo: "(...), e suspeitando-se que os negros destas minas se queriam soblevar em quinta- feira Maior do ano de mil setecentos e dezenove contra os homens brancos para os destruir, (...), em cuja guarda teve o 27 ESCHWEGE. Op. Cit. p.95 citado por Eduardo França Paiva In: Escravos e libertos nas Minas Gerais do século XVIII: estratégias de resistências através dos testamentos. São Paulo: ANNABLUME, 1995, p.67 29 citado por Laura de Mello e Souza In; Op. Cit. p.88 28 18 dito Capitão Maior grande vigillanda, e prevenção, e fazendo, que todas as companhias de ordenanças estivessem em armas de corte, que se desvaneceu o horroroso intento dos ditos negros."30 Nesta carta é demonstrado a força dos cativos utilizada como instrumento de manutenção da ordem e ao mesmo tempo, mostra que a quantidade deles era suficiente para gerar medo constante de sublevação aos brancos. Aqui o escravo é controlado de um lado e força de controle do outro, mas, quanto a cultura dessa sociedade será outra história. Até o século XVIII a sociedade colonial brasileira era caracterizada quase exclusivamente pela dicotomia entre senhores e escravos. Nesse sistema a classe senhorial é a detentora de todos os meios de produção: terra, engenho ou lavoura, escravo e produto. Embora existindo uma diminuta categoria de homens livres pobres, este são dependentes do senhor: agregados, afilhados, meeiros e demais trabalhadores, componentes da "república que é cada casa no Brasil", relatada pelo frei Vicente do Salvador.31 Na cultura a presença constante do escravo também influenciava essa sociedade que se formava. O coíonizador a muito se exaltava de sua superioridade técnica. Mas induzido pelo contato com os povos africanos e indígenas. " a religiosidade cristã que, herdada de Portugal se contaminava de todas essas impurezas afro-índias, sobre tudo nas camadas inferiores da sociedade colonial, atingia sua fase aguda nos séculos XVII e XVIII, em que a vida religiosa , de um lado ,e a paixão, genésica e a dissolução dos costumes do outro, chegaram, na observação de Pedro Calmon a ameaçar de extinção a raça branca na colónia infestada de africanos32 . Na economia mineradora onde a administração metropolitana apressa-se a instalar, para arrecadar os impostos do rei, delineiam-se outras realidades. O escravo da região mineradora tendo sorte de encontrar uma quantidade satisfatória de ouro ou pedras preciosas pode ser agraciado com a alforria. Além disso há - quando permitidoa possibilidade de trabalho nas horas de descanso nas catas. O montante arrecadado nessas horas poderia ser usado para compra da alforria. Ocorre também que o homem livre pobre, branco ou forro, detentor de poucos escravos, trabalha lado a íado com seu cativo. Em Minas colonial : economia e sociedade, estudo sobre a capitania no século XVIIl, escrito por Francisco Vidal e Iraci dei Nero da Costa, a análise sobre a 30 RAPM, 1899, p. 104 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p.81 31 32 AZEVEDO, Fernando de. A cultura brasileira.bzá.. Rio de Janeiro: editora UFRJ, 1996 pp.246-247 19 posse de escravos levantada pelos autores ajuda a entender a aproximação comentada. Trata-se de uma aproximação fruto da necessidade de sobrevivência. Nas localidades estudas por Francisco Vidal e Traci de Nero, demonstrou-se a maior frequência de proprietários com um ou dois escravos. Ademais, há absoluta preponderância do conjunto de senhores com cinco ou menos cativos. Dos senhores com plantei acima de quarenta cativos, avaliaram que a sua expressão era reduzida ao total da ciasse senhorial. Sobre estes dados encontrados, concluíram que na região, as grandes lavras foram exceção e não a regra quanto à organização da estrutura produtiva.33 Decorrida a primeira metade dos setecentos em Minas, a decadência da mineração não significou prontamente a estagnação ou depressão económica. Os efeitos da queda da produção aurífera foram minorados, amortecidos, abrandados pelo dinamismo e diversificação da economia, altamente monetizada. No texto, memória sobre a utilidade pública de se extrair o ouro das minas, de Pontes Leme, escrito no último quartel do século, o autor fala sobre esta monetízação e singularidade económica quando reíata a respeito de comerciantes e trabalhadores: "O ouro dentro daquele districto é um género então moeda como fora dele se julga; e um género que tem mais valor intrínseco sendo de uma lavra, que de outra; porque debaixo do mesmo peso é demais, ou menos quilates isto é de mais ou menos partes heterogéneas, que equivale ao género mais, ou menos bons portanto girando naquele districto por muitas mãos com o mesmo valor o bom, que o mau há uma perda real de parte do primeiro possuidor ou mineiro, e um lucro da parte dom último comerciante, que o leva a moeda."34 O comércio dos produtos é feito com ouro e isto é lucro para o comerciante mais que benefício para ao minerador. A sociedade não fica dependente da produção aurífera, devido a gama de produtos e serviços que há. Daí que os escravos dos mineradores falidos puderam buscar no mercado as oportunidades de trabalho que viabilizavam a auto compra. 33 34 LUNA, Francisco Vidal, COSTA, Traci Del Nero. Op. Cit. p.37-40. RAPM. 1896, pp.417-426. 20 O processo mais frequente da compra da liberdade foi a coartação, ou seja, um contrato através do qual o escravo comprava a alforria pagando o seu valor em parcelas, dentro de prazos que variavam entre 4 e 6 anos.35 Embora a quantidade de forros tenha sido avultada na segunda metade do século em questão, na primeira metade as autoridades já se preocupavam com o fato. Em 1732 uma ordem real ao conde de Gaíveas, então governador da capitania, determinava averiguações sobre negros forros, e a frequência com que são alforriados. Eis a resposta: "Senhor. O que se me oferece dizer a Vossa Majestade em ordem aos forros é que estes ordinariamente são atrevidos, mas no mesmo tempo trabalham todos nas lavras do ouro, nas dos diamantes, nas rocas e commumente faíscam para si (...), o número desses como os não distingue a cor nem o serviço dos mais escravos não é fácil a saber-se porque não houve até agora quem o examinasse, quanto a serem frequentes as alforrias não há duvida que muitas se fazem, umas por gratidão de seus mesmos senhores por algum serviço que deles recebem e outra com o dinheiro que ajuntam os mesmos negros, (...)"36 Esse excerto revela o cotidiano do libertado e sua ocupação mais comum nestes tempos. Tornar-se faiscador. O resultado de seu esforço individual poderia proporcionar-lhe a que viesse a possuir escravos37. Considerada a importância da escravidão para a economia mineira, vem a sua importância cultural. Primeiramente um esclarecimento. " Sempre que consideramos a influência do negro sobre a vida intima do brasileiro, é a ação do escravo, e não o negro por si, que apreciamos, (...). Parece às vezes influência de raça o que é influência pura e simples do escravo; do sistema social da escravidão."38 Gilberto Freyre coloca-se contra o racismo dos estudos, que consideram a influência negativa da escravidão, na vida moral e sexual do brasileiro dos séculos passados, um defeito de raça. Para ele o escravo anulado como ser, considerado como coisa é usado e abusado. Esta perversão característica da escravidão enraíza-se na mentalidade e na cultura do brasileiro como fruto do próprio sistema escravista. Mas, o negro, mesmo como escravo, influência 15 LEKWKOWICS, Ida. Herança e relações familiares : os prelos forros de Minas Gerais do século XVIII. Revista Brasileira de História. São Paulo: USP, v. 9, n.° 7, sei. 88/fev. 89. P.104. 16 citado por Eduardo França Paiva In: Op. Cit. pp. 101-102. 17 LUNA, Francisco Vidal COSTA, íraci Del Nero. Op. Cit. pp.42-47. 18 FREYRE, Gilberto. Op. Cit. . p.315. 21 culturalmente a população. O gosto do exótico, da sensualidade marota, do chichisbeismo descrito por Sérgio Buarque de Holanda, exprimiu-se, como considerou, principalmente na arte rococó e no setecentos. Se a influência é maior no século XVIII, no Brasil sendo esta centúria a do ouro, Minas Gerais foi então a capitania mineira na época que sintetizou a "moral das senzalas"39. Na administração, na economia e nas crenças religiosas, essa moral esteve fortemente presente. Mais que apenas força produtiva, escravos e seus decentes, participavam da sociedade. Socializavam-se para melhor suportar o mundo que os absorvia. Socialização que significava a imersão na cultura de seu tempo. Trabalhavam nos ofícios de arte, participavam da vida religiosa e das festas. O elemento desse universo cultural que se fazia sempre presente era certamente a religião. 2.3 - A implantação do bispado de Mariana A história da Igreja no Brasil é repleta da história das missões catequéticas. Do descobrimento até o alvorecer do século XVIII, os missionários, especialmente os jesuítas, vieram expandir a doutrina católica entre os gentios da terra. Atrás dos portugueses, onde esses abriam fronteiras em busca de riquezas tropicais, vinham os soldados da Cia de Jesus. Homens como Nóbrega, José de Anchieta e António Vieira, deixaram importantes testemunhos de sua atuação em suas cartas e sermões. Mas em Minas não foi assim. "A história de uma estúpida corrida de dezenas de milhares de homens de todas as condições, no encalço de uns ouros abundantes que haviam aparecido nuns ribeirões perdidos no áspero sertão do Brasil, não pode compadecer-se com o belo quadro do missionário santo, tendo nos joelhos um curumim inocente, que lhe aprende a primeira lição. Em Minas é diferente. A fé ira chegar sem nenhuma missão."40 39 40 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Op. Cit. . p.62. CARRATO, José Ferreira. Op. Cit. P. 73. 22 Com o homem comum a procura do ouro vieram também um grande número de religiosos , mais com o intuito de garimpar do que evangelizar ou salvar almas. Eram religiosos, seculares e clérigos, "muitos dos quais não têm no Brasil convento nem casa41. Sérgio Buarque de Holanda, cita um documento contemporâneo à época onde é comentado a "grande multidão de padres que sobem as minas e que sobre não quintarem o seu ouro ensinam e ajudam os seculares a que façam o mesmo.” 42 A administração julgava ser muito grande a possibilidade de um clérigo contrabandear ouro, - na região do Distrito Diamantino especialmente diamantes -, devido à facilidade destes de se locomoverem pela colónia. A saída encontrada pelo governo foi a expulsão direta desse clero por serem demais e principalmente aqueles que não devessem obediência a algum bispo. Em 1711 S. Majestade D. João, escreveu a D. Lourenço de Almeida a respeito ordenando: "não consentisse religioso nem clérigo naquela diocese, sem apresentarem licença minha, nem ainda aqueies que fossem com o pretexto de capelães de navios, dando autoridade para mandar prender e embarcá-los para o reino, o que nunca tivera observância por cujo descuido é que as Minas se encheram de frades e clérigos que bem se pode afirmar que o número de leigos lhe não excede: os quais são os que com mais desordens vivem por se verem fora da obediência dos seus prelados e se o dito Bispo [ D. Francisco de São Jerônimo, bispo do Rio de janeiro] quer conhecer das suas culpas, lhe perdem o respeito e também faltem a obediência da Igreja."43 Nos primeiros idos da história mineira, a ausência do Estado e da Igreja Católica fizeram de Minas, terra de ninguém e cobiça de todos. Passados os primeiros anos a Metrópole fez valer a sua autoridade estabelecendo sua administração e justiça. À Igreja coube a primazia no que tange ao controle da moral e da religiosidade da população mineira. 44 A Igreja no Brasil, colonial e imperial, sempre esteve ligada ao poder secular. Estreitamente sujeita ao poder monárquico, seguindo-íhe as vicissitudes e circunstâncias. Foi a própria Santa Sé , ao conceder à Ordem de Cristo e seus 41 ANTONIL, João André. Op. Cit. p.167 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Op, Cit. p.277 43 RAPM 1979, pp. 168-169 44 VILLAUTA. Luiz Carlos. In: Termo de Mariana: história e documentação. Ouro Preto: Imprensa Universitária da UFOP. 1998, p.73 42 23 Grãos- mestres, privilégios inauditos, quem estimulou a dependência da Igreja Católica lusitana e da Igreja nas colónias de Portugal. O Padroado foi um desses privilégios, senão o mais importante, cedidos aos reis portugueses. Consistia no direito de apresentar ao bispos os clérigos e ao Papa os bispos. Entre os bispos e o Papa, havia a presença e a autoridade do Rei. Entre os bispos e o Papa, nas apelações, obtenção de breves, bulas, licenças e dispensas, o Rei.45 Tanto poder do Estado sobre a Igreja fazia desta um verdadeiro instrumentun regni.46 Mesmo o direito de arrecadação do dízimo, função do clero e demais funcionários da Igreja passou a ser função do Estado. De tal modo a Igreja Católica ficara financeiramente e politicamente dependente da Coroa portuguesa. O rei apropriara-se do dízimo como um imposto de seu governo. Em Minas não poderia ser diferente. A carta de agradecimento de El Rey a Dom Lourenço de Almeida pelo elevo da arrecadação do dízimo é um exemplo: %..), e que esta vossa diligência produzira o ofício de haver de crescimento demais do triénio passado trinta arráteis de ouro e me seguráveis que todos esse povos entendiam que dariam baixa estes dízimos, por andarem em preço alto e que pela certidão que me remetíeis me seria presente em que no vosso tempo tinham crescido os contratos dezenove arroubas e quinze arráteis de ouro; me pareceu dizer-vos que obrastes bem no expediente e arbítrio que tomastes de rematares essa Comarcas, [Ouro Preto, Rio das Mortes, Sabará e Serro Frioj, dividas, pois se viu que por este meio cresceram os trinta arráteis de ouro do que dais conta e que espero do vosso zelo que vá sempre com ele a minha Real Fazenda."41 Esta situação colocava o clero numa conjuntura de dependência do Estado quanto a sua própria sustentação, e o induzia a cobrança excessiva das "conhecenças" que eram as taxas pelas prestações dos serviços sacerdotais. Tal situação gerava um outro lado, uma interferência jurídico-administrativa de muitos vigários e bispos em questões que eram da alçada dos representantes reais. Em Minas, a primeira forma de manifestação da autoridade eclesiástica se deu pelos visitadores diocesanos. O mais remoto destes foi o cónego Manuel da costa Escobar. Costa freguesia de São João Del Rey. Sucederam-lhe outros treze 45 ALMEIDA, Monsenhor Luís Castanho de. C lero secular diocesano brasileiro setecentista. In; Anais do Congresso comemorativo do Bicentenário da transferência da sede do governo do Brasil da cidade de Salvador para o Rio de Janeiro 1963. Rio de Janeiro : ed. IHGB, 1967. 46 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Op Cit p. 118. 47 RAPM 1979, p.167. 24 visitadores, todos visitando várias localidades mineiras até o ano de l746.48 A pedido de D. João V, o Papa Bento XIV criou o primeiro bispado da então capitania das Minas Gerais, com sede em Mariana à 06 de dezembro de 1745. O Brasil à época possuía então cinco bispados: Bahia, criado em 1555; Rio de Janeiro, em 1676; Maranhão em 1677 e Pará em 1719. O primeiro bispo escolhido para administrar a nova diocese foi D. Frei Manuel da Cruz, até então bispo do Maranhão. Instalou-se na chefia da nova jurisdição eclesiástica à 27 de fevereiro de 1748 após uma viagem de 14 meses. Esta viagem assim como a festa celebrada com muita pompa pela sua entrada em Mariana é relatada no Áureo Trono Episcopal.49 . Passada a administração diocesana de D. Frei Manuel da Cruz, devido ao seu falecimento em 1764, o bispado foi presidido por procuradores durante o período de dezesseis anos. Foi a era da estagnação da vida religiosa da diocese no século XVIII. Em fevereiro de 1780 D. Frei da Encarnação Pontevel assume o trono da sé marianense. As atribuições que recaiam sobre a Igreja, em todo o período da história colonial brasileira, tornaram-se verdadeiros referenciais da vida da população. O nascimento, batismo casamento , óbito, além do comportamento moral e social registrados por exemplo nas devassas, faziam da Igreja Católica, a primeira autoridade presente aonde fossem desbravados sertões. Onde se erigissem vilas. Com a instalação do bispado a capitania de minas encontrava-se nos planos de controle da monarquia portuguesa. O povo: escravos, livres e libertos, passam a integrar efetivamente, em relação a obediência, ao império português. Porém, por baixo da religiosidade oficial pulsavam práticas e formas religiosas pouco ortodoxas. Magia e tradições católicas mesclavam-se. A simplicidade, exterioridade, intimidade e sentimentalismo do catolicismo brasileiro, identificados por Sérgio Buarque de Holanda, facilitaram o surgimento dessas práticas que fizeram do catolicismo brasileiro uma religião "heterodoxa."50 Prova dessa mistura pode ser verificada nas devassas diocesanas e | nos relatórios do tribunal eclesiástico. Outra forma de manifestação desta religiosidade 48 TRINDADE, Raimundo. Arquidiocese de Mariana: subsídios para a sua história. 2 edição. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1953. p.56-63. 49 Áureo Trono Episcopal In: ÁVILA, Afonso. Op. CU. 50 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Op. Gí. pp. 149-151 25 nos relatórios do tribunal eclesiástico. Outra forma de manifestação desta religiosidade popular eram as procissões, principalmente, as festa barrocas como as do Triunfo Eucarístico e do Áureo Trono Episcopal . Em Minas as irmandades leigas proliferaram. Estudos sobre estas foram desenvolvidos nos últimos anos. Julita Scarano e Caio César Boschi, figuram entre os que pesquisaram as associações religiosas mineiras do século XVIII.51 As ordens terceiras e congéneres, mais preferidas, onde se congregavam os ricos e poderosos eram: a confraria e arquiconfraria de São Francisco, Ordem Terceira do Carmo, de São Miguel e Almas e confrarias do Santíssimo Sacramento. As irmandades de Santa Efigênia e de Nossa senhora do Rosário dos Pretos eram as que congregavam a maioria de pardos e negros. As irmandades mineiras em seus primórdios foram uma forma de manifestação e defesa de interesses de grupos locais onde seus membros ajudavam-se mutuamente.52 Caio César Boschi demonstra que, embora fossem erigidas, sustentadas e lideradas pela população local. Essas irmandades contribuíram para a reprodução da ideologia dominante. Um exemplo dessa atuação da religião percebeu-se nas confrarias de negros e mulatos. Fundadas nos moldes das confrarias dos homens brancos, correspondiam a ação da Igreja de reunir à sua sombra os africanos e seus descendentes. Outra forma de religiosidade popular manifestada pelos negros nas minas setecentistas era a eleição do Rei do Congo. Estas festa não se limitavam apenas àqueles que supostamente teriam vindo da região do Congo. Gilberto Freyre, segundo observações em Koster, considera que a festa era uma forma de disciplinar os escravos: "os reis do Congo eleitos no Brasil rezam à Nossa Senhora do Rosário trajem à moda dos Brancos, eles e os seus súditos conservam, é certo, as danças do seu país: mas nas suas festas admite-se escravos de outras regiões, crioulos e mulatos que dançam da mesma maneira , essas danças atualmente são mais danças nacionais brasileiras do que da África".53 A ação da igreja em Minas, permitindo a ereção das irmandades de negros com suas festas e culto a santos de escolha sua, não foi um ato de bondade desta. Com isso dirigiam-se e determinavam as formas que norteariam os contatos religiosos dos negros com a cultura 51 BOSCHI, Caio César. Os Leigos e o Poder. Irmandades leigas e política colonizadora em Minas Gerais. São Fauío: Ática, 1986; SCARANO, Julita. Devoção e escravidão: A irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos no Distrito Diamantino no século XVIII. São Paulo: Nacional, 1978. 52 BOSCHI, Caio César. Op. CU. p31. 26 branca. Com certeza uma das formas do sincretismo planejado, identificado por Boschi e Roger Bastides.54 Se para Gilberto Freyre a religião tornou-se ponto de encontro e de confraternização de duas culturas, em Minas a intenção da Igreja foi uso de seu poder como instrumento e sistema de controle social. Sua missão não foi a de semear a fé, mas de controlar. A união poderosa e controladora Igreja-Estado que houve em Minas gerou protestos. Um deles é exemplificado por Tomás António Gonzaga nas Cartas Chilenas : " Não há meu Doroteu, não há um chefe Bem que perverso seja, que não finja, Pela religião um justo zelo, E, quando não o faça por virtude, Sempre, ao menos, o mostra por sistema." Mas quanto a escravidão? Se os homens livres protestavam, seus cativos também o poderiam fazer , mesmo com as limitações previstas. Saber se nas possíveis revoltas dos negros temidas constantemente pela população, teria algum plano de construção de uma religião própria, ou o massacre de padres e religiosos é algo praticamente impossível. Os escravos em sua condição já eram muito pressionados, junte-se a essa situação uma Igreja a serviço da Coroa centralizadora. Qual seria a relação desses cativos com o catolicismo nessa sociedade? 53 FREYRE. Gilberto. Op. Cit p.356. termo primeiramente empregado por Roger Bastides In: BÂSTIDE, Roger. As Religiões Africanas no Brasil: contribuição a umn sociologia das interpretações de civilizações. São Paul. 54 27 3 - A IGREJA E A ESCRAVIDÃO A Igreja Católica Apostólica Romana era, sem a menor sombra de duvida, a maior instituição religiosa do século XVIII. A doutrina cristã da qual a Igreja Católica Apostólica Romana se diz diretamente herdeira, não se apraz com a aceitação, conveniência e condescendência da escravidão de um ser humano por outro Notar-se-á que é intrínseco ao sistema escravidão-religião católica, um paradoxo: Como essa Igreja procura justificar para si e para as nações escravistas a sua participação numa sociedade escravocrata? Como ela se apresenta diante dos escravos e discursa em nome de Deus agindo contra o mandamento do amor maior, amar ao próximo como a si mesmo? Escravidão, de jeito algum faz parte dos mandamentos do Senhor. Qual a teologia da Igreja Católica moderna se aplica a essa questão sem entrar em choque com o Estado? Questões importantes na relação entre escravidão e catolicismo. A relação entre os poderes espirituais e eclesiásticos mesmo antes do descobrimento do Brasil era marcada pelas questões de autonomia e poder. Como esses poderes relacionavam se e como entendiam a escravidão é o que se discutirá a seguir. 3.1- Poder político e poder espiritual: ideologias em conflito ? A história da Igreja na América configurou-se como uma missão evangelizadora. O "paraíso" aqui fora descoberto com homens igualados a Adão em pureza, porém, sem fé1, a terra nova a ser povoada impunha aos descobridores a tarefa de fazer dessa terra a continuidade do seu mundo, um mundo cristão. Os missionários que ao Brasil vieram não chegaram aqui desacompanhados, vieram com os ocupantes. O projeto de exploração das terras brasileiras era dirigido pelo estado monárquico português e a participação da Igreja era um dos pontos desse projeto. Assim, quando em 1549 os soldados da Companhia de Jesus chegaram à colónia portuguesa da América, como homens a serviço de Deus e do rei. 1 Alusão que aqui se faz do termo aplicado por Sérgio Buarque de Holanda sobre a colonização portuguesa. 28 Mas o que fazia com que as intenções da expansão da Igreja estivessem a serviço da monarquia? Como Igreja e Estado se entendiam à respeito da colonização? Como se entendiam condizente a escravidão? Como poderes instituídos da Igreja e realeza se relacionavam? Responder a estas questões é o que se propõe neste capítulo. A forma, o modo, o instrumento histórico conhecido pelo qual a Igreja estava diretamente ligada ao Estado Português, denominava-se Padroado. No século XV em 1436, a coroa portuguesa através de D. Duarte insistia ao abade D. Góes o direito de indicar os candidatos ao bispado de Portugal. A partir da expansão ultramarina, com o infante D. Henrique, este direito começou a ser conquistado. "A 08 de janeiro de 1455, o papa Eugênio IV concedia a D. Afonso V e ao infante navegador através da buía Romanus Pontifex, o direito de "fundar e construir igrejas [...] tanto [...] nos lugares já adquiridos como os que viessem a adquirir" e de enviar a estes lugares missionários. A 13 de março de 1456, pela bula Inter Coetera, concedia à ordem de Cristo a jurisdição espiritual a estas mesmas terras. Em 1514 o Papa Leão X, pela bula Pm Excellent, concedia aos reis de Portugal o direito de apresentar, ao Papa, o bispo que daria a jurisdição do vigário e ao mestre ou administrador da Ordem de Cristo e direito de indicar à Santa Sé aos bispos. Desde então todas as conquistas passaram a jurisdição ordinária delegada da Ordem de Cristo. A 30 de dezembro de 1551, pela bula Proclara Clarissimi, o Papa Júlio III cedia aos reis portugueses o Grão-mestre da Ordem de Cristo. Na dupla qualidade de soberanos e de administradores da ordem, os reis adquiriam o total direito do padroado em todas as terras portuguesas.2 Com esse poder passaram livremente a agir sobre a Igreja Portuguesa: propunham candidatos aos bispados e nomeavam com cláusula de ratificação pontifica, cobravam dízimos e induziam a fundação de dioceses.2 Quando em 1745 criou-se a diocese de Mariana, sendo a única do Brasil Colonial na Capitania de Minas Gerais, o Padroado já fizera da Igreja uma corporação do Estado. A realeza dirigia a Igreja no reino e suas colónias. Desse modo a carreira eclesiástica transformara-se em uma carreira de funcionário público. Com a união de dois poderes importantíssimos como Igreja e Estado, a população mineira sentia a presença das autoridades efetivamente como forma de controle da metrópole sobre a colónia. Como se sentiriam então 2 SERRÃO, Joel (dir) dicionário de História de Portugal. Vol. IV. Lisboa : livraria Figueirinhas/Porto. pp. 508-510. 29 os escravos? Tratava-se de uma situação onde até seus senhores eram constantemente vigiados e a interferência das autoridades em todos os negócios, da mineração ao comércio, da distribuição de lavras a tributação dos sacramentos às irmandades, fazia-se presente, qual era a posição dos escravos? Como se sentiriam a não ser "esmagados" por tamanha falta de liberdade? Primeiramente é preciso compreender a forma como realeza e religião paulatinamente reuniram-se até que produzissem o Padroado. O processo histórico que resultou na jurisdição do Padroado, começa na Tdade Média. São as discussões teológicas jurídicas da Igreja e das realeza medievais que geraram este tipo de corpos jurídico, essa fusão de poderes instituídos. A fusão de termos: direitos e poderes, eclesiásticos e monárquicos durante a Idade Média é trabalhado por Ernest H. Kantorowicz no livro Os dois corpos do Rei. 3 Kantorowicz, analisando a partir dos termos empregados à Cristo e à realeza, pelas sociedades medievais estabelece uma concatenação entre "persona" e "corpus". Estuda a forma como a teologia medieval discute a dupla identidade mística religiosa e humana social dos bispos e reis, onde as "pessoas" da Igreja incorporam as funções de vassalos do rei e onde o rei torna-se o personifícador de Cristo. Para Ernest H. Kantorowicz a coesão de termos legais entre o governo real e governo eclesiástico se sintetiza na Baixa Idade Média. É a partir dos empregos da noção de corpo místico que o autor demonstra sua coesão. Porém, lembra E. H. Kantorowicz, Corpus Mysticum, na linguagem dos teólogos carolíngeos, não refere-se de modo algum ao corpo da Igreja nem a unidade da sociedade cristã, mas à hóstia consagrada. O autor demonstra que a partir do emprego do termo Corpus Christi como a personificação de Cristo no sacramento da Eucaristia, a noção de Corpus Mysticum passou a significar o corpo como organização da sociedade cristã unido no altar. "Os esforços para adotar as instituições do Estado de certa auréola religiosa, contudo além da adaptabilidade e utilidade geral do pensamento e linguagem eclesiástica, levaram rapidamente os teóricos do Estado secular a uma apropriação mais que superficial dos 2 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995?p.l!8 KANTOROWÍCZ, Ernest H. os dois corpos do rei: um estudo sobre teologia política medieval. Tra. Cid Knipel Moreira. São Paulo : Companhia das Leiras, 1998. 3 30 vocabulários não só do Direito Romano, mas também do Canónico e da Teologia em geral." Assim pode-se resumir o que Ernest Kantorowicz explica com a expressão da realeza centrada no governo, onde teóricos de vários reinos medievais - principalmente Espanha, França e Inglaterra - utilizam-se do termo Corpns Mysticum como teoria corporativista do Estado: se os escritores papais afirmavam que o corpo místico da Igreja estava onde estava o papa, o mesmo poderia ser dito do corpo místico do Estado. Conforme Pierre Ansart, o resultado dessa evolução entre os poderes políticos e espirituais da Igreja e do Estado seria: "Dois poderes se justapõem, de agora em diante e passam a se rivalizar: a religião já não é apenas o sentido universal, e sim um poder particular, que assegura um certo tipo de domínio das condutas e aspirações. Rivalidades complexa, como o demonstra em particular o final da Idade Média, pois se o poder "espiritual" tem por meio os bens de significado universal, detém ainda bens materiais e autoridade de ordem política; e se o poder "temporal" tem por meio as forças militares, possui também riquezas materiais e bens simbólicos e de prestígio, de que se servirá com crescente vigor."5 A formação das monarquias modernas, onde termos jurídicos-teológicos foram adaptados para fortalecê-las, não é o ponto final das relações ideológicas ou conflituosas na sociedade moderna europeia. Se Portugal permitiu uma legislação onde transitavam termos dessas instituições, a culminar no Padroado do século XVI, isso ocorreu porque as trocas entre esses "poderes" sociais estão inseridos num longo período de discussão a respeito dos poderes da Igreja e do Estado português. A relação entre o papado e o Estado não se passava sem graves conflitos. O autor José Luís de Torgal cita que mesmo na Espanha havia conflitos. Enquanto a Santa Sé conferia o Padroado a Fernando e Isabela, reis espanhóis, era instaurada a "nova inquisição". Surgida no tempo de Fernando, a nova inquisição é um exemplo onde verifica-se a intromissão direta do Estado, dos problemas judiciais de ordem religiosa, fazendo do tribunal o símbolo da ligação entre o poder político e o poder espiritual.6 Por outro lado, a formação peninsular ibérica, onde o direito canónico "amacia" o antagonismo entre o direito romano e o direito consuetudinário dos povos formadores dessa 4 5 Id. Ibid. p.133. ANSART f Pierre. Ideologias, conflitos e poder. Tradução Áurea Weissemberg. Rio de Janeiro Zahar editores, 1978fp. 32. 31 civilização, estabelece uma nobreza episcopal com poderes também no direito civil. Na Espanha, eram vulgares os conflitos resultantes do recurso para os tribunais civis dos vassalos julgados em tribunais eclesiásticos: recurso de fuerza12. Do mesmo ficou autorizada a jurisdição dos bispos em causas civis desde que o autor ou réu optasse pelo julgamento episcopal o chamado Fuero Juego este direito era válido em Espanha e Portugal.13 Vários teólogos e juristas discutiram as relações e extensões dos poderes políticos e espirituais. Gabriel Pereira de Castro, jurista português, na sua obra de manu regia íratacdus14, publicada em 1622 procura mostrar que o rei tem um poder temporal genérico . Este poder abrangeria até a justiça eclesiástica, a partir do princípio de se socorrer as vítimas da injustiça, mesmo que tome posições diversas dos defendidos peia justiça eclesiástica. Em suma, a análise dos tratados sobre a jurisdição temporal e eclesiástica revela que a autoridade da Igreja deveria ser co-participante para a consolidação do poder real - em Portugal , principalmente na Restauração - procurando o crescimento e o bem do governo personificado no rei. Quando do descobrimento e ocupação do Brasil, Igreja e Estado encontravamse irmanados para o bem do reino português. Esse passado da metrópole e a influência do catolicismo na cultura e na sociedade portuguesa é que permitiram as observações contundentes de Gilberto Freire. "O Brasil formou-se, despreocupados os seus colonizadores da unidade ou pureza de raça. Durante quase todo o século XVI a colónia esteve escancarada a estrangeiros, só importando às autoridades coloniais que fossem de fé ou religião católica"18. Percebe-se nas Ordenações Filipinas, a relação entre os poderes político e eclesiástico cooperando para união do reino, principalmente na União Ibérica. O segundo livro das Ordenações Filipinas, ao tratar da imunidade da Igreja, legisla-se sobre o criminoso que refugia-se em alguma igreja. 7 TORGAL. Luís Reis. Ideologia política e teoria do estado na restauração. Vol. II Coimbra; Biblioteca Geral da Universidade, 1982. 12 TORGAL, Josc Luis de . Op Cit. p.54 13 FREYRE. Gilberto. Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime de economia patriarcal. 10a ed. Rio de Janeiro: José Olímpio. 1961. p.206. 14 Id. Ibid. p. 58. 15 ld.Ibidpp.59-60. 16 FREYRE, Gilberto. Op. Cit., p.29. 32 "E todo o que de propósito, ou insidiosamente comete alguma grave ofensa, porque merece haver pena de morte natural, ou civil, ou cortamento de membro ou qualquer outra pena de sangue, se ocultar a Igreja não será por ela defendida."19 Verifica-se que em caso de crime mortal, a imunidade eclesiástica não é válida. É interessante notar que em alguns casos como o adultério e o estupro, neste mesmo título, prevalece a imunidade prevista no Direito Canônico. "Porém, o que forçar mulher virgem ou o que por força e com armas a tomar e levar a outro lugar, e a corromper forçosamente, gozará da dita imunidade, por assim ser determinado por Direito Canónico20." Nas obras que legislam a sociedade portuguesa que colonizaria o Brasil, no civil, as Ordenações Filipinas, século XVII, e no religioso, as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, 1707, primeiro sínodo brasileiro, a imunidade eclesiástica é discutida ocorrendo uma breve discordância. As Ordenações citam: "Os Arcebispos , Bispos, Abades, Priores, Clérigos, e outras pessoas Religiosas, que em nossos Reinos não tem Superior ordinário em qualquer feito civil, (...). E bem assim por razão de alguns danificamentos, se os no Reino fizerem, podem ser citados perante quaisquer justiça e juizes leigos, onde forem moradores, ou perante os corregedores da nossa Corte, ou o Juiz das ações novas..."21 As Ordenações valendo para a União Ibérica estendiam-se às colónias de Espanha e Portugal. Mesmo após a Restauração, muitas leis de seu corpus legal prevaleceram em Portugal com poucos ajustes, foram o corpo legislativo do Brasil durante todo o período colonial. As Constituições Primeiras, de 1707 estavam sobre o efeito das Ordenações, porém, em alguns pontos demonstram diferenças, por exemplo; sobre as imunidades eclesiásticas essas versam: "A boa razão ensina que as pessoas eclesiásticas, especialmente dedicadas ao Divino Culto, devem ser tratadas de todos com maior respeito, e veneração, não se admitindo coisa que encontre sua isenção 19 ALMEIDA, CM. de. (ed.) Código Filipino ou Ordenações e leis do Reino de Portugal. Rio de Janeiro. Tip. Do Insíiíuto Filornático, 1870.Título 5 livro 02 p.424. 20 Id. Ibid. p,424. 33 nem dando ocasião, a que se divirtam do ministério espiritual, ou de o não poderem fazer o recolhimento, quietação, e devoção devida: e por isso se lhes devem guardar inteiramente sua imunidade, e liberdade Eclesiástica, segundo a qual são isentos da jurisdição secular, a qual não podem estar sujeitos os que pela dignidade do Sacerdócio e Clerical ofício ficam sendo Mestres espirituais dos leigos."22 Analisando estes excertos da lei secular e da lei canónica, parece nos haver um desentendimento. Tomando, por exemplo este ponto pode-se pensa-lo como uma configuração do conflito entre os dois poderes constituídos, estes deveriam concorrer para o bem comum do reino, onde: "Por quanto de tal modo ordenou Cristo Nosso Senhor as coisas, distinguiu os poderes, que nem o eclesiástico usurpasse o do secular nem o secular tomasse o do eclesiástico23 . É preciso notar no texto das Ordenações Filipinas, que estas conferem ao Estado na pessoa do rei o direito de propriedade, quando este é colocado em dúvida de juízo por todo o reino. Por exemplo no caso do escravo: "(...) Se o escravo (ainda que seja cristão) fugir a seu senhor para a Igreja, ocultar-se a ela, por se livrar do cativeiro, em que está- não será por ela defendido, mas será por força tirado dela. E defendendo-se ele, se de sua tirada se lhe seguir a morte, por de outra maneira o não poderem tirar, não haverá seu senhor, ou quem o assim tirar (sendo seu criado, ou fazendo por seu mandado) pena alguma .”24 Desse modo o direito a propriedade do senhor sobre o escravo é demonstrado como inalienável, se este for fugitivo a se esconder numa igreja. O escravo, mesmo cristão, tem no seu valor de propriedade seu aspecto mais importante e a Igreja, Santa Madre da cristandade não pode defendê-lo mesmo se sua vida estiver em jogo. Essa situação remete a uma questão essencial deste capítulo. Como Igreja e Estado entendiam-se sobre a escravidão? 21 22 ALMEIDA, CM. de. (ed.). Op. Cif., TitOl. livro 02. p. 415 Constituições primeiras do Arcebispado da Bahia. Feitas c ordenadas peío Ilustríssimo e Reverendíssimo Senhor. D. Sebastião Monteiro da Vide em 12 de Junho de 1707. São Paulo, 1853 livro 04. Titulo 1, p.237 " 23 Constituições primeiras do Arcebispado da Bahia. Op. Cit. Livro 04 Título, I. 24 lá. flãd Livro 05. Título V. 34 A discussão sobre essa questão refere-se às considerações do escravo diante de duas de suas naturezas, coisa ou cristão. A natureza do escravo foi estudada por Perdigão Malheiros25, em 1860, de onde extrai a melhor definição: "Desde que o homem é reduzido à condição de coisa, sujeito ao poder de domínio ou propriedade de um outro, é havido por morto, privado de todos os direitos e não tem representação alguma, (...) -exclusão dos escravos da comunhão política, dos cargos públicos, do exercício de qualquer direito de semelhante ordem, de qualquer participação da soberania nacional e do poder público."26 Perdigão Malheiros procura as definições históricas em seu ensaio sobre a escravidão nos livros de Direito Romano, Ordenações, Direito Canónico e em vários juristas, além de alvarás e decretos. Escrevendo na segunda metade do século XIX, seu objetivo é revelar os males e as contradições da escravidão no Brasil. Seus pensamentos e suas intenções são anti-escravistas e abolicionistas. Convém exemplificar a definição de Malheiros: Nas Ordenações Filipinas, documento do período colonial, vigorante no Império português do século XVIII entram novamente em cena: nelas, os escravos são igualados a bestas. São citados como coisas animadas. "E o que o dito é nos escravos de Guiné haverá lugar nas compras e vendas de todas as bestas que por quaisquer pessoa forem compradas, e se quiserem enjeitar por manqueira ou doença."27 A preocupação em enjeitar ou não o escravo da Guiné não é um detalhe. Sua saúde deve estar visivelmente boa. O negro deve ser apresentado ao comprador no seu melhor aspecto físico e até mesmo moral, pois trata-se de comércio. 28 E propriedade de um ou de outro. Como propriedade esta sujeito a sequestro, embargo, arrestamento, penhora, depósito, arrematado, adjudicado29 e a ser herdado. No Brasil o comércio de escravos, ao longo dos séculos da escravidão negra realizou-se por meio de leilões públicos ou vendas privadas. Kátia Maria de Queiroz Mattoso, mostra 25 MALHEIROS, Perdigão . A escravidão no Brasil: ensaio histórico-jurídico-social. 2ed. São Paulo: Edições Cultura, 1944. 26 MALHEIROS, Perdigão. Op, Cit. p. 17-19. 27 Id. lbid. livro 04 Título XVII. 28 MATTOSO, Káfia Maria de Queirós. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 65 29 Id. lbid. p.75. 35 uma compra reaíizada no Rio de Janeiro na segunda metade do setecentos, onde um escravo adulto é vendido a 90.000 réis e um molecão vendido a 64.000 réis.30 Em Mariana no mesmo período um escravo de dezesseis anos foi inventariado a 120.000 réis e um casal de escravos a 90.000 réis; ele sessenta anos, 30.000 e ela trinta anos, 60.000. Significante informar que o proprietário era um forro, africano de nascimento.31 A escravidão moderna africana como se apresenta nas leis civis é simplesmente propriedade? Permanecer nesta observação seria reducionismo. O corpus jurídico português comumente era permeado de assuntos do foro religioso. Transitava entre os dois mundos. As Constituições primeiras do Arcebispado da Bahia, feitas para o Brasil é expressa quanto à necessidade do cativo ser introduzido na fé católica. "Manda todas as pessoas, assim, Eclesiásticas, como seculares, ensine ou façam a Doutrina Cristã à sua família e especialmente a seus escravos que são os mais necessitados desta instrução pela sua rudeza, mandando-os para a Igreja, para que o Pároco lhes ensine os Artigos da Fé."32 Mas as Constituições Primeiras sendo um corpo legislativo de cunho religioso não foi o primeiro artigo a fazer tal legislação.. G titula 90 do livro 05 das Ordenações Filipinas intitulado: (Wque tiverem escravos de Guine osoatizem, traz a mesma ordem. "Mandamos, que qualquer pessoa, de qualquer estado ou condição que seja, que escravos de Guiné que tiver, os faça batizar, e fazer cristãos do dia, que o seu poder vier, até seis meses, sob pena de os perder para quem os demandar." Aliás, trata-se da reprodução do título 99 das Ordenações Manuelinas promulgadas em 1521 por O. Manuel. Pela legislação secular percebe-se a confluência de dois sentidos: escravos são propriedades, são coisas; e os escravos são cristãos, portanto devem ser convertidos à religião católica. Os escravos eram irmãos em Cristo dentro da comunidade religiosa, devotavam santos católicos, assistiam missas, participavam de procissões. Igualavam-se ao branco livre no plano espiritual, conforme tencionava a Igreja. Eram coisa, sem direito, "animais de força", "peças", segundo o direito secular. 30 MATTOSO, Káíia Maria de Queiroz Op. Cit p.69. Inventário de Diogo Souza Coelho códice 103 auto 2141 ano 1774 CSM. 32 Id. bid. livro 01 Título II. 31 36 Os senhores, também pertenciam a este mundo, deviam obrigações e reconhecimento à Deus e aos reis. Deveriam, por exemplo, assistir missas aos domingos e dias santos devendo fazer com que seus filhos, criados, escravos e todos que estivessem a seu cargo também cumprissem o dito mandamento religioso. As Constituições primeiras, obviamente, trazem este preceito e em seguida o dever de guardar os dias santos. "é obrigação abster de todo o trabalho e obra servil c mecânica, e autos judiciais, começando a guardar da meia noite, até outra meia noite, ocupando o dia em exercícios louváveis, fugindo dos pecados e ocasiões de os cometer, (...)."33 O mesmo título do sínodo brasileiro elenca além dos domingos de todo o ano a obrigação de guardar os dias de preceito e abstenção de trabalho de mais outros cinquenta e sete dias do ano, completando assim mais de cem dias levando-se em conta que um ano possui em média cinquenta e duas semanas. Em Minas colonial, na região mineradora, o que previa as Constituições primeiras não era seguido pela população. A busca do ouro e pedras preciosas, mesmo numa sociedade marcada pela religiosidade como era, atropelava os cânones do sínodo baiano. Era comum se achar escravos trabalhando nas lavras a mando de seus senhores nos dias reservados às atividades religiosas. É o que relatam as devassas sobre a admoestação que recebeu Salvador Lopes Pinto, "por vir mandar trabalhar seus escravos nos dias de preceito e por consentir que suas escravas vivam mal"34. Do mesmo modo foram outros tantos senhores. Não só mineradores, mas muitos dentre os que dependiam de escravos para o seu sustento incorriam em tal delito, como Custódio Gomes Pereira, acarretador de madeira, também acusado de andar amancebado com suas escravas.35 A quantidade de reclamações sobre senhores que insistiam em mandar trabalhar feitores e escravos nos dias de guarda religiosa era tanta em Minas que o bispo D. Lopes Antunes , cónego penitenciário da catedral do Rio de Janeiro, responsável pela diocese de Mariana em 1747 - D. Frei Manuel da Cruz tomou posse em fevereiro de 1748 - escreveu as autoridades locais dando ordem de : 33 Id. Ibid. Tit. 02. 34 Livro de Devassas 1742-1743, AEAM. 35 Livro de Devassas 1742-1743, AEAM. 37 "que os escravos que forem achados nos dias [ domingo e dias santos] a mineirar, faiscar ou em outro qualquer serviço lhe seja tomado O ouro bateas almocafrez ou outros quaisquer instrumentos os tomem os oficiais para si o indague seja dos senhores a estes assim o insultem já que por si e seus feitores não.trabalhem, (...).”36 A necessidade do trabalho escravo é imperativo, não pelo seu valor em sua lógica capital, mas da necessidade dos senhores e do poder de disporem de seus cativos como ferramentas como lhes aprouvessem. Eis um ponto onde a escravidão moderna difere da antiga, ela reduz o homem a instrumento de trabalho vivo. Na economia colonial todo trabalho é servil, urbana, doméstica, mineradora ou agrícola, a escravidão é trabalho compulsório. "Assim no campo como na cidade, no negócio como em casa, o escravo é onipresente. Torna-se muito restrito o terreno reservado ao trabalho livre, tal o poder absorvente da escravidão.37 O historiador Fernando Novais insere o Brasil colonial em sua teoria sobre a acumulação primitiva de capital, no período da Europa mercantilista. Nesse processo a metrópole portuguesa impõe ao Brasil, como colonial de exploração, a adoçao do escravismo. Novais considera escravidão e tráfico de cativos como parte desse período de acumulação, para ele, "paradoxalmente, é a partir do tráfico negreiro que se pode entender a escravidão africana colonial, e não o contrário." 38 Concebe o tráfico, em sua ótica, como meio de acumulação dos mercadores da metrópole. Discorda-se da sua opinião. Entende-se que a necessidade de braços para o trabalho, numa colónia onde o serviço livre praticamente inexistia em seus primórdios, acompanhado da grande oferta de terra, concentrada na mãos de poucos, é que fomenta o tráfico.* Partindo-se das observações de Novais sobre o Brasil como uma colónia de exploração fornecedora de produtos para a metrópole mercantil ista, é que procura-se entender nesse sistema, tráfico e escravidão. O trabalho, segundo ele, se fez necessariamente escravista pois, 36 Pastoral de D. Frei Manuel da Cruz pasta 8 arquivo 1 AEAM. 37 PRADO JÚNIOR. Caio. Formação do Brasil contemporâneo: colónia 18 ed. São Paulo : Brasiliense, 1983, p. 278 38 NOVAIS, Fernando. Portugal e o Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1809). São Paulo: Hucitec,1979,p.105. * Sobre o tráfico de escravos e relação aqui considerada ver: FRAGOSO, João Luís Ribeiro. Homens de grossa. 38 "do contrário, ou não se produziria para o mercado europeu ( os colonos povoadores desenvolveriam uma economia voltada para o consumo interno) ou se imaginasse uma produção organizada por empresários que assalariassem o trabalho, os custos da produção seriam tais que impediriam, a exploração colonial,(...) como poderiam, então funcionar os mecanismos do exclusivismo colonial? Não convém alongar essa discussão, pois, não é esse o tema central dessa pesquisa. O que aproveita-se dessa discussão refere-se a dois pontos . Primeiramente, o trabalho: escravo é quase único interesse do proprietário sobre o seu cativo. È por isso que se estuda as Ordenações nas garantias que estas fornecem do recurso de devolução se o comprador percebê-lo ( o escravo) doente ou manco, trata-se de peça, de ferramenta com defeito. Não poderiam os colonizadores do Brasil, mesmo os padres , absterem-se de escravos para viverem. Em Minas setecentista muitos clérigos eram senhores de negros cativos, utilizados para os serviços domésticos, serviços urbanos e trabalho nas lavras. Mesmo nas pequenas localidades pode se constatar isso, Catas Altas do Mato Dentro é um exemplo, o padre António Baptista, no rol de desobrigados de 1755, só na rua Direita do arraial contou 689 escravos , dos quais 84 pertencentes a quatro sacerdotes, "ministros do amor de Deus”39 A necessidade do trabalho compulsório sobre o cativeiro dos negros fornecia ao senhor "o direito de auferir do escravo todo o proveito possível, isto é, exigir o seu serviço gratuitamente pelo modo e maneira que mais lhe convinha. Por outro lado permeado da moral cristã, essa sociedade resguardava certas obrigações aos seus senhores, "alimentar, vestir, curar, o escravo, não se devendo jamais esquecer de que há nele um ente humano"40. A Igreja estava num conflito onde considerava o cativo negro como cristão, reservando os seus direitos como tal, numa sociedade que o tinha por coisa. A atitude da Igreja em favor deste não foi tão contundente como no caso da escravidão indígena, mas, é preciso considerar:" Não sendo possível [aos religiosos] destruir a escravidão negra (e sabemos todos a campanha que foi necessária, durante quase um século, para a sua abolição), procuraram tornar menos dura a condição servil e prestar toda a assistência possível, moral e relisiosa ás vitimas do cativeiro."41 39 Padre Manuel Mendes Pereira de Vascor.cellos . Caías Altas do Matto Dentro (continuação de várias coisas que não hão nome, e ainda ficam sem eie). Tomo II. 1886, pp.16-19. 40 MALHEIROS, Perdigão, Op. Gt p.7í 41 Azevedo, Fernando de. A cultura brasileira.6ed. Rio de Janeiro: editora UFRJ, 1996. p.244 39 O segundo ponto referente a análise de Novais a interessar, incide sobre a sua observação encontrar uma explicação histórica da escravidão negra no Brasil. Não é essa abordagem aqui pretendida , mas, ao estudar escravidão e catolicismo, uma questão emerge, quais seriam as justificativas da Igreja Católica para o cativeiro dos africanos e seus descendentes? É o que se discutirá adiante 3.2 - As justificativa da escravidão segundo alguns religiosos católicos Escravidão e catolicismo, dois componentes de uma mesma sociedade onde cada um se faz enfaticamente presente no dia-a-dia das pessoas. Em Minas colonial as contradições e tensões que esta relação suscitava faziam da região, devido as suas peculiaridades quanto a administração e economia, um barril de pólvora, A civilização europeia moderna que colonizara as Américas, um mundo cristão, saíra recentemente da Idade Média, onde a doutrina cristã constituíra a principal e mais forte característica cultural dessa civilização. O modo de viver e entender a vida do mundo antigo havia sido superados, suas convicções, cultura, ideologias, leis e política havia sido adequadas a nova forma de conceber o mundo da Idade Média. No século XV quando Portugal se adiantara nas navegações que descobririam as novas rotas de comércio com as índias e posteriormente quando Colombo descobre a América, a Península Ibérica constituíra-se numa porção da Europa, não só uma das mais importantes como uma das mais fiéis a Igreja Católica. Portugal, reino católico, também se transformara num dos mais importantes centros europeu de comércio de escravos, a partir de suas feitorias e entrepostos na África, realizava o tráfico negreiro para o continente assim como para as terras do novo mundo. Porém, o mundo cristão europeu dos séculos XV, XVI,XVII e XVIII vivia uma contradição que hoje em dia é um paradoxo óbvio a qualquer cristão. O que em primeira instância se coloca é a consideração de que, a doutrina cristã da qual a Igreja Católica Apostólica Romana se diz diretamente herdeira, não se apraz com a aceitação, conveniência e condescendência da escravidão de um ser humano por outro. Como essa sociedade moderna justificaria a escravidão de num mundo cristão? Quais as justificativas dos religiosos para tal "contradição"? 40 Para introduzir a discussão remete-se primeiramente à origem da escravidão. Na antiguidade a guerra era o elemento que proporcionava aos vencedores, segundo seus costumes, o direito destes conservarem a vida do prisioneiro inimigo, julgando-se no direito de sujeitar o prisioneiro ao cativeiro em compensação do direito que antes tinha de matá-lo. No Direito Romano além de se conferir ao senhor ojus dominii, conferia-lhe também ojus potestatis, obtendo então o senhor o direito de dispor do escravo como bem lhe aprouvesse, tratá-lo como um animal ou objeto e podendo até matá-lo. Mas, a própria Roma começou a restringir o direito dos senhores.42 Vários imperadores romanos passaram a legislar sobre o assunto, criando íeis que punissem em diversos casos aqueles que matassem de propósito o escravo alheio ou o próprio, concedendo o direito ao escravo de requerer às autoridades ser vendido a outro, acusando o dono por sevícias ou falta de pudor. Criou-se posteriormente leis que impedissem que eles fossem mandados às feras nas arenas.43 A escravidão antiga romana produziu discussões de grande importância para a civilização do império. Sêneca é um dentre os filósofos romanos que defendiam o escravo contra os maus tratos dos seus donos. Para ele um bem consistia aquilo que fosse conforme a natureza e a natureza do homem distinguia-se das outra que ele enumera pela sua capacidade racional, "há na natureza quatro tipos de seres: a árvore, o animal, o homem, o deus. Estes dois últimos, por serem racionais, possuem natureza idêntica, apenas diferindo entre si por ser um imortal e outro mortal." ( Ep. Mor. CXXIV,14). Desta forma o homem, seja ele escravo ou livre possui uma mesma natureza caracterizada pela razão. Trabalhando forçosamente contra a sua vontade o escravo é, para Sêneca, alguém que não dispõe do próprio tempo para o exercício que o filósofo considera o mais importante , cultivar a razão. O homem que é posto longe do alcance da razão, sua característica primordial, escapa ao que lhe é natural, torna-se um sério problema social! O escravo, colocado por princípio em uma posição desumanizadora, é manancial de crises. Um homem desumanizado é uma cizânia com a natureza, és pois, um engano. Outro fator do aspecto da inferiorização do escravo refere-se a sua coação sob o medo. Como diz Sêneca, em oposição à Aristóteles: "Não há bem moral numa ação praticada contra a vontade ou sob coação; todo o bem moral tem de ser 42 43 MALHEIROS, ibid p.21. Id.Ibidp,22. 41 voluntário." (...) "Não pode haver bem moral onde não há liberdade; medo é sinónimo de escravatura." (Ep. Mor. LXVI, 16) O filósofo Sêneca, nas Epistulae Morales, recomenda ao senhor de escravos o mesmo que recomendou ao Imperador em De Clementia: Sê clemente! (Cf. Ep. Mor., 4-5). Em De Clementia Sêneca explica que a superioridade está na pessoa que beneficia seus inferiores (I, 3, 3). Sendo necessário tratá-los com humanidade (I, 18, 1-3), sem isolá-los do convívio do seu convívio, o que seria um erro. Sêneca não é o que se pode chamar de anti-escravista, mas seus conselhos e sua tese de igualdade de senhores e escravos , além de sua exortação para que os cativos sejam bem tratados, é quase um preceito cristão. Com o cristianismo e a sua crescente aceitação a escravidão foi abrandando-se cada vez mais. Na idade média ela propriamente deixa de existir, especialmente nos seus primeiros séculos. Assim, a escravidão moderna não é a continuação da antiga, mas uma nova escravidão, com outras justificativas, em um mundo transformado culturalmente. Uma conhecida "explicativa" da escravidão cristã, refere-se à Sina de Cam. Alfredo Bosi, por exemplo cita: "O fato é que se consumou em plena cultura moderna, a explicação do escravismo como resultado de uma "culpa," exemplarmente punida perpetrada pelo patriarca ,salvo do dilúvio para perpetuar a espécie humana. A alusão à "Sina de Cam", circulou reiteradamente nos séculos XVI, XVII, XVIII, quando a teologia católica e protestante se viram às voltas com a escravidão e o tráfico negreiro .A igreja com o velho mito de Cam, alegava justificar este sistema em um discurso salvacionista que via nesta ocasião, uma missão de catequizar populações antes entregues ao fetíchismo ou ao domínio do Islã."44 O padre José Geraldo Vidigal de Carvalho em estudo sobre a escravidão, ressalta a opinião de que o texto bíblico não é preconceituoso, defende o mesmo livro sagrado, lembrando que sendo a escravidão um elemento comum as civilizações hebréias e israelitas, vários excertos bíblicos exortam para o bom cuidado com o escravo. Vidigal de Carvalho cita Martins Terra de forma destacada para desmentir que a teologia católica não se baseara na "herança de Cam" como uma justificativa do cativeiro africano.45 É tomando por base o livro de Ronaldo Vainfas Ideologia e escravidão: os letrados e a sociedade escravista no brasil colonial, sua dissertação de mestrado, que 44 BOSI, Alfredo. Dialética da colonização, São Paulo: Companhia das letras. 1992, p.258. 42 inicia-se a tarefa de exame das justificativas da escravidão dos africanos. Em Ideologia e escravidão, o autor apresenta como são tratadas e discutidas pelos representantes da classe dominante, durante o período colonial, a escravidão indígena e a africana. Tomar-se-á de empréstimo deste livro, a indicação de dois pensadores que escreveram sobre a escravidão negra, primeiro, o padre António Vieira, e depois a obra do padre secular e advogado da Santa Casa de Misericórdia na Bahia no século XVIII, Manuel Ribeiro Rocha. O outro importante religioso que considero como alicerce nessa tarefa é D. José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho. A escolha desses três para a discussão deste tema tem por motivos os seguintes fatos: cada um dentro da ótica religiosa justifica a escravidão de maneira distinta; o recorte temporal que estes três autores apreendem contém todo o século XVIII escrevendo um no final do XVII, outro na metade do XVIII, e o último nos fins do XVIII e no começo do XIX. Até então não estaria se realizando algo a mais que alguns estudiosos do assunto já fizeram, mesmo levando-se em conta a importância destes dentro da historiografia brasileira, o que proponho além de analisar as diferentes posições dos religiosos mencionados, é uma comparação com um texto documento de 1764, intitulado originalmente: Nova e curiosa relação de hum abuzo emendado, ou evidencia da razão; expostas a favor dos homens pretos em um diálogo entre hum letrado e hum mineiro.46 Principalmente, pelo fato de pertencer ao século em exame, sobre um atividade que veio a dar o nome a capitania, a mineração. Além disso esse texto possui críticas sobre a escravidão de negros no Brasil. Trata-se de realizar então, um paralelismo entre as ideias de justificativa da escravidão de um lado e os pontos onde no texto encontram-se as críticas à essas ideologias. Outra parte da tarefa a demonstrar as colocações dos religiosos consistirá em relacioná-las a excertos bíblicos do Novo Testamento sobre servidão. A análise seguirá por base trechos desse panfleto, tomados, ora a partir dos textos a serem comparados, ora a partir de partes desse panfleto. Comecemos a análise comparativa entre uma Nova e curiosa relação com os três autores citados, a partir de António Vieira. Português, nascido em 1608, 45 CARVALHO, José Geraldo Vidigal. . A escravidão: convergências e divergências. Viçosa, Editora Folha de Viçosa, 1988. p.13. 43 ingressou em 1623 na Comecemos a análise comparativa entre uma Nova e curiosa relação com os três autores citados, a partir de António Vieira. Português, nascido em 1608, ingressou em 1623 na Companhia de Jesus na Bahia, ordenou-se sacerdote em 1634. Após uma vida de dedicação à Companhia e por problemas políticos que o levaram ao tribunal da inquisição sem grandes prejuízos, retorna ao Brasil em 1681 e passa a organizar a publicação de suas obras e vem a falecerem 1697. Os sermões de Vieira aqui analisados são os XIV, XVII, XX e XXVII. Nestes sermões a legitimidade da escravidão é explicada como uma herança do calvário e dos filhos de Core. Como? Ele usando de alegorias e comparações e de uma interpretação diferente faz ver que na crucificação de Cristo há um triplo nascimento. No sermão XIV Vieira insere a escravidão dentro das visões das "heranças dos amaldiçoadas", numa alusão à "Sina de Cam", ou à "descendência de Caim". A originalidade do inaciano refere-se à interpretação que ele faz neste Sermão do triplo nascimento de Cristo no Calvário. Triplo nascimento, o primeiro é o de Cristo, que é Cristo no sentido de ungido, de filho de Deus, e passa a ser Jesus Cristo como filho de Deus e Salvador dos Homens, só a partir de seu martírio, morte e ressurreição é que se cumpre sua missão salvadora. O segundo é o de João, que renasce como igual a Cristo porque este lhe faz igual não só por ser amado e apóstolo mas porque torna-se filho de Maria como Jesus era. O terceiro nascimento, o dos filhos do calvário se dá de forma mais alegórica porque ,Vieira os iguala aos etíopes dos Salmos de Davi, não como todos os pretos mas só aqueles que pelo batismo são cristãos. ''Os Etíopes de que fala o texto de Davi, não são todos os pretos universalmente mas somente daqueles de que eu também falo, que são os que por mercê de Deus, e de sua santíssima Mãe, por virtude do baptismo são cristãos."47 O nascimento dos negros como filhos da mãe de Cristo no Calvário carece de uma explicação mais elaborada por parte do padre. Ele explica que Core em hebraico equivale a calvário, continua explicando que os pretos seriam herdeiros dos filhos de Core que não foram para o inferno como as famílias de Data e Abirão e como o próprio Core.48 46 Charles C Boxer é responsável pela contribuição dessa Nova e Curiosa Relação, que o mesmo adquiriu num alfarrabista de Lisboa em 1961, e com o título: Um panfleto raro acerca dos abusos da escravidão negra no Brasil: enviou para ser publicado nos Anais do Congresso comemorativo do B/centenário da transferência da sede do governo do Brasil da cidade de Salvador para o Rio de Janeiro iP(53.ed:IHGB, 1967. 47 VIEIRA, Antônio. In: Obras completas de António Vieira. Sermão XIV. Porto: Lello & irmão. 44 Core, na língua hebréia, quer dizer Calvário e chama-se filhos do Calvário, e filhos da sua cruz os mesmos que nesse texto se chamam nomeadamente filhos da Virgem Maria,..."49 Na ótica de Vieira, a comparação é que os pais dos escravos são como Core que se rebelou, e quando morrem eles vão ao inferno. Acrescenta o autor do Sermão que os pretos filhos de Core - etíopes na visão de Vieira - quando veneram e obedecem a Deus são salvos do inferno. "Oh, se a gente preta tirada das brenhas da sua Etiópia, e passada ao Brasil conhecera bem quanto deve a Deus, e a sua Sanlíssima Mãe por este que pode parecer desterro, cativeiro, e desgraça, e não é senão milagre! Dizei-me: vossos pais. que nasceram nas trevas da gentilidade, e nela vivem e acabam a vida sem lume da fé, nem conhecimento de Deus, aonde vão depois da morte? Todos, como já credes e confessais, vão ao inferno, e lá estão ardendo e arderão por toda eternidade. E que perecendo todos eles, e sendo sepultados no inferno como Core vós que sois seus filhos, vos salveis, e vades ao céu? Vede se é grande milagre da providência e misericórdia divina. "50 O que chama a atenção nessa parte primeira dos sermões aqui estudados é a menção ao caráter "hereditário" como explicação da escravidão. Embora na explicação que continua nos seus sermões para a condição de escravo, Vieira não siga esta linha, a origem causal da escravidão negra se baseia na ideologia construída a partir da herança de uma personagem bíblica, o que de um certo modo, remete à Deus os desígnios da escravidão. Ainda que nessa parte não se explique de acordo com o livro dos Números da Bíblia, porque se os filhos de Core salvaram-se devido a permanecerem fiéis a Deus, por qual motivo, não está esclarecido no Sermão: Os seus prováveis descendentes, os africanos mesmo depois de balizados, fiéis portanto a Deus como os filhos de Core, seriam condenados à escravidão, A primeira parte a extrair-se do diálogo entre o letrado e mineiro da Nova e curiosa relação, a contrapor-se as perspectivas da causa de escravidão moderna, segundo os religiosos, opõe-se as considerações do cativeiro africano como fruto da descendência de antepassados, que nos textos bíblicos teriam sido amaldiçoados 1959,p.I95 48 Num. 26, 9-10. 49 VIEIRA, A.Op.Cit.p.294.. 50 Jd. íbid.p.294. 45 " letrado - É certo que todos os brancos são descendentes de Adão, e também é igualmente certo que todos os racionais dele descendem, ou sejam pretos, ou pardos, ou fuscos, ou vermelhos, ou azuis, etc. tenha um homem a côr que tiver, é certo que é fiiho de Adão. Ainda seguindo o que Vossa Mercê mesmo diz, são os pretos descendentes de Adão. Pois se os pretos descendem de Caim, e Caim é filho de Adão segue-se que descendem, e são também filhos de Adão. Agora que Caim fôsse amaldiçoado, é de Fé; mas que èle fôsse negro, e os pretos seus descendentes, é que eu tomara saber aonde vossa Mercê achou esta notícia?" 51 Nesse extraio fica claro a opinião de que a descendência de todos os homens indiferentes de sua cor advém de Adão. Não há concordância com o consenso de que Caim fosse negro, pois, era filho de Adão que não era negro. Assim porque seus descendente haveriam de ser?. Outro elemento que pode se examinar neste excerto é, qual seria a maldição dos filhos de Caim ?, pois, Deus condenara somente a ele e não a seus filhos que não teriam nascido até o momento relatado na passagem. O letrado do diálogo da Nova e curiosa relação não se limita a discutir somente sobre a origem da escravidão negra com base nas Escrituras somente com a história de Caim. Prossegue o mesmo com referência a "Sina de Cam" ligando-a à relação dos filhos de Caim, revelando na observação sobre os sobreviventes do dilúvio que não havia entre eles algum de pele negra. O que leva a concluir que, se nenhum dos filhos de Noé: Cam, Sem e Jafet era negro porque os descendentes de Cam amaldiçoados com a escravidão seriam necessariamente negros?. "Letrado - O que, senhor! Ora já que depois me falou em escritura, ouça agora: É certo, e de fé, que no Dilúvio Universal morreram todos os homens , mulheres, e meninos, ficando só com vida oito pessoas, a saber: Noé, sua mulher, três filhos, e três mulheres, que o eram dos mesmos filhos. É também certo, que da Escritura não consta, que alguns deles fôsse preto; logo os pretos não são pretos por serem descendentes de Caim."52 A comparação sobre a legitimidade e a origem pela escravidão, segundo António Vieira e o letrado 7 demonstra a evolução do pensamento da sociedade escravista. Se no 51 BOXER, Charles R. Um panfleto raro acerca dos abusos da escravidão negra no Brasil (1764) In: Anais do Congresso comemorativo do Bicentenário da transferência da sede do governo do Brasil da cidade de Salvador para o Rio de Janeiro J963.ed:ÍRGB, 1967,p. 177. 52 BOXER, Charles R. Op.àt.p. 178. 46 argumento de Vieira ele tende a legitimá-la, nos argumentos do letrado do diálogo, tende-se a questionar a veracidade das altercações que remetem a escravidão à hereditariedade de uma maldição, não permanecendo no texto bíblico simplesmente mas, acrescentando o fator da cor dos escravos a esta questão. Porém, convém lembrar que Vieira não permaneceu na questão da legitimidade. Como pregador e orador que era, o jesuíta prega aos escravos numa missão catequética de mostrar a estes porque devem ser resignados e aceitar a escravidão: ÍL o sentido da escravidão enquanto penitência e graça "53 . "Em um engenho sois imitadores de Cristo crucificado: imitatoribus Christi crucifixi, porque padeceis em um modo muito semelhante o que o mesmo Senhor padeceu na sua cruz, e em toda a sua paixão. A sua cruz foi composta de dois madeiros, e a vossa em um engenho é de três. Também ali não faltaram as canas, porque duas vezes entraram na Paixão: uma vez servindo para o ceptro de escárnio, e outra vez para a esponja em que Lhe deram o fel. A paixão de Cristo parte foi de noite sem dormir, parte foi de dia sem descansar, e tais são as vossas noites e os vossos dias. Cristo despido e vós despidos: Cristo sem comer, e vós famintos: Cristo em tudo maltratado, e vós maltratado em tudo. Os ferros, as prisões, os açoutes, as chagas, os nomes afrontosos, de tudo isto se compõe a vossa imitação, que se for acompanhada de paciência, também terá merecimento de martírio."54 É a visão da escravidão como virtude, resignação e martírio, em favor da alma, como o exemplo de Cristo. É o trabalho em toda as suas condições e sofrimentos transfigurado para a salvação e sacrifício e o que seria mais justificável, a aceitação da escravidão em comparação ao sofrimento de Cristo, induz a aceitação da mesma numa atitude de imitação à resignação do senhor. Na carta do apóstolo Paulo aos Filipenses, (Fil. 2, 5-8) ele exorta o desprendimento de Cristo, sendo ele de condição divina, se fez escravo vindo a morrer na cruz. Vieira faz quase o mesmo com os escravos, porém, permanecendo no sofrimento e não na igualdade dos cristãos ao Senhor Jesus. "Porque nesse estado em que Deus vos pôs. é a vossa vocação semelhante à de seu Filho, o qual padeceu por nós, deixando-vos o exemplo, que haveis de imitar." 55 53 VAINFAS, Ronaldo. Ideologia e escravidão: os letrados e a sociedade escravista no Brasil colonial. Petrópolis. Vozes. 1986, p.101. 54 Idlbidp. 305-306. 55 Id. Ibid. p.355. 47 O autor da Nova e curiosa relação de 1764, provavelmente já teria entrado em contato com essas ideologias dos séculos anteriores que, de forma diversa, explicariam a legitimidade da escravidão e em especial as que pertenciam a religiosos. Talvez por já conhecer essas teorias, o mesmo condenaria o estado triste e abusivo dos escravos, com argumentos renovados e que não só refutassem essas ideias, mas, que trouxessem elemento novo. Tomando por exemplo a resposta do 'letrado* ao argumento do 'mineiro' onde esse comenta: :í Mineiro -já ouvi dizer que a negrura dos pretos procede deles nascerem em clima muito quente, e que está mais próximo do sol."56 Esse mesmo argumento que o mineiro já ouvira, poderia ser melhor explicado como um consenso quase geral, que por exemplo, Vieira, faz menção no Sermão XX, assim: "E como os homens divididos pelas mesmas quatro partes do mundo, os da Europa, os da África, os da Ásia, e os da América, conforme os diferentes climas haveriam de nascer de diferentes cores: traçou a sabedoria do Supremo Artífice, que assim como em todo o nome de Adão, Ruber, estava rubricada a memória do Pai, e o sangue comum de que descendiam; assim a cada letra do mesmo nome, respondessem os diversos clima do mundo, que lhe haviam de variar as cores, para que na variedade da cor se não perdesse a irmandade do sangue."57 A questão da cor da pele foi explicada durante séculos como produto dos climas diferentes de várias regiões do planeta. Onde cada variação climática corresponderia a um povo diferente, com traços específicos de cor e esta diferença seria uma designação de origem divina. Os homens, pelo que comenta Vieira, seriam descendentes de Adão, mas diferentes entre si pela sua cor, característica essa que a natureza impingiria. A partir dessa teoria contrapõe-se uma outra da qual aparece um simples elemento de observação que ainda assim refuta as considerações anteriores. Tendo como ponto as observações sobre o designo de serem filhos negros, de homens negros e filhos brancos, de homens brancos, que posterior à sua época veio a ser designado hereditariedade genética. 56 57 BOXER. Charles. Ibid. p. 178. Id. ibid. Sermão XX.p.98. " Letrado- Isso é conto de rapazes. Dessa sorte todos quantos nascessem em terra de pretos seriam pretos, e pelo contrário todos os que nascessem em terra de brancos seriam brancos. 48 Porém isto não é assim, pois vemos que de pais pretos sempre nascem filhos pretos, e de pais brancos sempre nascem filhos brancos. Isto é coisa que nós estamos vendo a cada passo. Na mesma Etiópia, aonde quase todos os naturais são pretos, há povoações de gente muito branca, c o clima lodo é o mesmo; como a causa na gente preta até agora não se tem podido averiguar." 58 É a genética que explica a cor negra dos africanos, e não o clima da região onde estes nascem, de maneira que possam nascer brancos e negros em todos os países do mundo, negros no meio de brancos e brancos no meio de negros. De sorte, que esta Nova e curiosa relação, ao mesmo tempo contrapõe a explicação e os argumentos do Padre António Vieira em dois pontos: a escravidão como "herança maldita" e a cor negra como causada pelo clima. No diálogo o que se apresenta é que, se os negros são escravos não é por castigo divino ou se são diferentes sendo negros não é por força do clima. O segundo autor a qual se fará uma comparação com o texto da Nova e curiosa relação é Manuel Ribeiro Rocha e sua obra, Etíope resgatado, empenhado, sustentado, corrigido, instruído e libertado. Nascido em Lisboa em 1687, estudou com os jesuítas e morou na Bahia, publicou seu livro em 1758. Para ele a escravidão é legitima se estiver adequada as normas do direito civil e canónico. Manoel Ribeiro Rocha em seu livro busca fazer um projeto no qual a liberdade do escravo viria a ser futuramente condicionada, como do próprio título do livro. A obra não defende explicitamente a escravidão, mas não a condena, antes seu discurso jurídico-teológico deixa transparecer a sua consciência de classe dominante. A justificativa da escravidão possui implicitamente razões várias que combinamse em direção ao projeto escravista-cristão. O primeiro ponto a observar inicia-se no continente africano. Analisando a condição de cativeiro e comércio dos africanos, teria início o processo de escravidão a partir de guerras, consideradas injustas para a cristandade. A servidão africana tem desde então, uma crítica que observa na sua raiz uma injustiça. "Entre os etíopes porém ninguém se preocupa normalmente com a justiça da guerra, mas todo o direito deles está nas armas, e os que são mais fortes maiores capturas de escravos fazem, agredindo 58 Id. Ibid. p. 178. os adversários na caiada da noite; os nossos próprios mercadores ctiegam mesmo a coniessar singelamente que à guerra deles caberia melhor o nome de latrocínio. Nessas 49 ocasiões, costumam roubar coisas também de seus próprios concidadãos."59 A guerra entre os etíopes não era considerada justa, nem as pilhagens e sequestro de bens ainda que autorizados por seus príncipes e reis, pois, não declaram esses guerras públicas contra seus inimigos. Com isso os cativos de guerra injusta ou pilhagem devem ter sua liberdade devolvida. Por tal motivo há a reprovação do comércio "ilícito" de escravos por comerciantes que não averiguam da justiça ou injustiça da escravidão daqueles mesmos cativos. E considerando a impossibilidade da averiguação necessária da justiça da escravidão dos cativos, diz o autor que, estão estes comerciantes obrigados debaixo de pecado mortal, a absterem-se de semelhante comércio. Diante desse discurso parece evidente ao escravo que, na dúvida da procedência de sua escravidão, desde a sua captura até o estar possuído por seu senhor, estaria então garantida a restituição de sua liberdade. Mas, não é assim, dentro desta primeira parte manifesta-se a consciência escravocrata do autor para alívio dos senhores. "Aqueles que futuramente comprarem tais escravos das mãos dos comerciantes que os trazem da Etiópia, por não lhes terem chegado aos ouvidos razões de dúvida se desde o princípio foram justamente reduzidos à escravidão, ou por algum outro motivo são possuidores de boa fé, podem retê-los de consciência tranquila, a menos que lhes conste como certo que foram reduzidos injustamente à escravidão. Prova-se a conclusão, porque de fato são possuidores de boa fé: na dúvida, é melhor a condição deles que os reterem para si."60 De tal modo a possível correção da injustiça do estado escravo, não é garantia de liberdade, a dúvida beneficia o possuidor. O comerciante continua a lucrar com o comércio, pois, se tal não tem lícita procedência, o fim último de sua mercadoria não sofre o julgamento e alteração de seu estado devido a tal comércio. Deixa-se entender que a dúvida procedente da captura e a irregularidade das transações, ambas ilegítimas, possuem um terceiro elemento que as justificariam : na mão de um novo e definitivo senhor há a razão da continuidade do estado de cativo do etíope. É aqui apresentado um elemento dentro do raciocínio do autor que identifico como, o estado de Uberdade sendo uma mercadoria. A partir da dúvida, 59 ROCHA, Manuel Ribeiro. Etíope resgatado, empenhado, sustentado, corrigido, instruído e libertado. Discurso teológico -jurídico sobre a libertação dos escravos no Brasi! de 1758. Pctrópolís: Vozes, 1992, p.26. a liberdade é vista como um elemento a ser comercializado entre o seu proprietário (o escravo) e o seu possuidor (o senhor). Dessa forma: "converte-se o escravo em 50 proprietário de uma liberdade fictícia, reduzindo-se o senhor à detentor sub judice de um bem que não se confunde com a pessoa do escravo, senão com a mesma liberdade fictícia".61A análise poderia ser até mais enfática. O estado de liberdade como mercadoria, implica, como descreveu Vainfas, propriedade e posse, a escravidão mantida reduz o direito de propriedade e valoriza o direito de posse. Na visão de Ribeiro Rocha, o escravo comercializaria a sua liberdade com o seu senhor, que a possui, até que pague o valor que "o possuidor" despendeu pelo direito de posse, pagamento este realizado com o trabalho compulsório pelo cativo. Desta maneira, o "penhor" da liberdade interpretando-se Ribeiro Rocha, é que é o estado da escravidão. "E a diversa é; porque suposto, quando a dúvida é igual, ou igual ao seu fundamento, tanto direito tem à propriedade da cousa alheia o possuidor de boa fé, como tem o duvidoso dono; contudo, como o possuidor de boa fé tem de mais o direito certo da posse atual, em que existe, neste deve ser conservado e protegido em um e outro foro; e seria injustiça tirar-lhe a posse que tem e restituir a cousa ao duvidoso dono; (...)-"62 Ribeiro Rocha, escreveu que a liberdade, passaria a ser não só elemento de barganha entre escravo (proprietário) e senhor (possuidor); como também, que é dividida em dois estados. Uma primeira liberdade, a natural, com a qual nasceu o africano com as relações de seu reino, e uma segunda, a liberdade fruto do penhor com o qual se paga o resgate. Resgate da escravidão injusta ou da liberdade que o deixava em estado de ignorância na fé. Assim o autor transmuda a escravidão, resgate e penhor terão um objetivo: conduzi-lo a uma liberdade futura diferente da anterior que possuía. E tudo se faz com engrandecimento do Reino de Deus e glória dos reis cristãos. A escravidão torna-se necessário para a conversão do gentio. "E não somente fica sendo a dita negociação, por esta via, comércio lícito, e livre de calúnia, e dolo; senão também positivamente pio, e católico, em razão de que estes miseráveis gentios trazidos a terras da cristandade, recebem a santa Fé e o sagrado Batismo, com o qual se livram da infame escravidão 60 ROCHA, Manuel Ribeiro. Op. Cit. p.36. Id. Ibid.p.143. 62 Id. Ibid. p. 40. 61 do demónio, e pelo tempo adianta podem satisfazer, ou com os próprios serviços extinguir a causa, o direito da retenção em que ficam; vindo assim a livrar-se compietamente da injustiça, 51 e violenta escravidão, a que barbaramente os reduziram os seus próprios nacionais."63 Em tudo isso apresentado do Etíope Resgatado, em suas contradições e linearidade, por mais racional que aos senhores possa ter parecido, revela-nos contradição. Contradição em favor dos interesses dos portugueses. " A possibilidade de libertação, embora remota, tendo em vista a crueldade com que são tratados os escravos, resgata o senhor do crime de escravização sem o privar do serviço escravo O africano, livre da barbárie deve ser percebido pela ótica da nova criatura e ser servo pela caridade, talvez uma alusão aos versos da carta aos Gaiatas do apóstolo Paulo( Gal. 5,13-15) . São atendidas as leis divinas e humanas".64 A Nova e curiosa relação que nesse trabalho tem se apresentado, colocando em contato com as ideologias escravistas-cristãs dos autores já citados, é considerado por Charles R. Boxer como na mesma linha de autores com Jorge Benci, AntonilAndreoni e Manuel R. Rocha. Mas, em alguns pontos apresentam elementos destoantes e de sintonia. No geral essa Nova e curiosa relação, sem dúvida faz uma crítica muito mais ferrenha a escravidão, criticando o comportamento dos escravistas no trato com os escravos, principalmente os portugueses. Os pontos que o autor anónimo se deixa aproximar de Ribeiro Rocha, servem de partida para uma crítica posterior e sempre contundente. O texto da Nova e curiosa relação, não é um discurso com conotação de projeto, mas, partindo de uma realidade concreta, cobra-se uma atitude que deixa explicita uma posição anti-escravista. O caso mencionado do mineiro no dialogo, parte de uma posição que assemelha-se ao projeto de Manuel Ribeiro Rocha: " Mineiro - Senhor Doutor, o caso é que eu tenho um negro haverá dez para onze anos. No princípio serviu-me como devia : atendendo eu a isto, prometi-lhe que, se continuasse em servir me bem, no fim de dez anos o daria forro."65 A exposição do letrado no diálogo, após a explanação do mineiro do seu comportamento revela uma posição em que não há dúvida de que ele - o letrado discorda 63 64 Id. Ibidp.51-52. CARVALHO, José Murilo de. Pontos e bordados. Belo Horizonte: UFMG Editora, 1998. p. 44. das atitudes dos senhores que não cumprem com sua palavra. Adiante a posição de tal senhor, contradiz a posição que teriam os escravagistas de Ribeiro Rocha, pois, é contra 52 as mazelas da escravidão, contra considerar que a negritude da peie e escravidão são sinónimos. O sábio discorda com a palavra não cumprida de um senhor ao escravo, e por conseguinte é contra os castigos rigorosos. "Letrado - E quem duvida? Senhor, eu o que entendo é que Vossa Mercê quer quem aprove todos os seus desejos ou delírios, porém eu digo o que entendo: o que Vossa Mercê deve fazer é cumprir o que prometeu, ou pelo menos não aflija mais o pobre escravo, bem lhe basta a infelicidade de o ser (...) A promessa condicional tem força de lei. Vossa Mercê prometeu ao seu preto de o fazer Forro se êle continuasse em o servir bem. Êle não só continua em servir bem, mas cada vez melhor, logo, Vossa Mercê está obrigado a fazê-lo forro".66 O autor do "Etíope resgatado " em seu discurso pela libertação dos escravos, dirige-se aos senhores, é o senhor que realizaria o projeto de rendição, instrução e libertação dos escravos. A Uberdade em Rocha como já mencionado, torna-se elemento de barganha, que é negociado entre o seu dono "fictício" e o seu "possuidor de fé". A questão a que chamo atenção é que não se deve partir daí , o elemento a ser tratado e o que o autor da Nova e curiosa relação deixa claro, não é um projeto libertador como fruto de uma escravidão bem produzida. O que o autor trabalha é a escravidão como injustiça, com todos seus males e a liberdade não como um fim último, mas um direito do homem. Continuando sua explanação "o letrado" do diálogo, faz uma espécie de crítica, que de maneira enfática vai contra os projetos de Benci e Manuel R. Rocha. Pois, se no Etíope resgatado, Rocha antevê um período de 20 anos para o pagamento do resgate do escravo, o autor do panfleto anti-escravista previu algo que o mesmo não considera. A escravidão é um estado de vida do escravo. A partir do escravo e não da categoria senhorial é que deve principiar a análise sobre a liberdade do mesmo. Nesse caso, a idade, o comportamento, a dedicação, a submissão, produção e aculturação do cativo entram -oemo fatores importantíssimos quando se quer considerar conceder ou não a liberdade ao cativo. Há de se considerar que num prisma senhorial tal posição não seria bem 65 66 Id. Tbid. p.181. Id. Ibid.p. 184. compreendida. Mas, numa crítica ao sistema escravocrata nada mais cabível que a censura tenha como ponto de partida a observação daqueles que nesse sistema são 53 os mais prejudicados. A eficácia do projeto de libertação de Ribeiro Rocha, na ótica do letrado da Nova e curiosa relação, esbarra em pontos que dizem respeito à situação do escravo, e diante desses pontos interroga-se , nas observações que faz o texto, quem sairia ganhando ao longo de tantos anos de escravidão. " Letrado - E Vossa Mercê quer-lhe dar carta de alforria daqui a quinze ou vinte anos ? que é o mesmo do que quando êle já não puder trabalhar coisa alguma! Pois então dessa sorte não vem Vossa Mercê fazer favor ao seu prêto, mas no fim que têm é livrar-se de dar de comer a quem já não pode trabalhar. E nesse caso ião longe está de cumprir a promessa que antes uma tirania. Ora diga-me, que coisa mais contra a razão que servir-se de um homem de um escravo, enquanto êle pode trabalhar, e depois quando êle já não pode, despedi-lo e deixa-lo ir morrer com fome! Enfim, tenho dito a Vossa Mercê o que me parece, agora lá fará Vossa Mercê o que quiser."67 O dialogo entre um letrado e um mineiro dessa Nova e curiosa relação^ apresenta de maneira incisiva uma opinião que ao contrário de Manuel Ribeiro Rocha, não deixa implícita uma posição de pertencente a ordem escravocrata porque critica diretamente o comportamento desonesto de alguns senhores que explorariam de forma vergonhosa os seus escravos. Tal crítica não permanece no plano da relação entre um senhor e um escravo , mas entre todos componentes do sistema escravista. O último autor com quem trabalho trata-se de D. José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho, nasceu em Campos, Rio de Janeiro em 08 de setembro de 1742. Filho de senhor de engenho, aos 33 anos renunciou ao morgado e mudou-se para Portugal. Matriculou-se em Coimbra formando-se em Filosofia e em Direito Canónico em 1780. Tornou-se bispo no Brasil em 1798. Em 1796, em Portugal, escreveu sua obra mais contundente: Análise sobre a justiça do comércio do resgate dos escravos da costa da África. Posteriormente escreveu Concordância das leis de Portugal e das bulas pontifícias das quais umas permitem a escravidão dos pretos da África e outras proíbem a escravidão dos índios do Brasil, serviu como complemento do outro trabalho do autor antes mencionado. Ambas obras que neste trabalho é objeto de estudo 67 Id . Ibid. .p. 185. Resumindo o seu significado, o autor, em resposta aos filósofos dos dezoito e início dos dezenove, justifica historicamente a escravidão como alicerce da civilização 54 da Europa moderna, onde muitos dos trabalhos que faziam os trabalhadores da Europa foram substituídos e passaram a ser feitos pelos escravos, dando condições para que os europeus passassem a se dedicar mais as artes, a filosofia e enriquecessem. Outro tema de sua justificativa, é a da a transformação de uma forma de escravidão mal gerenciada pré-existente entre os povos africanos que escravizavam em guerras internas seus inimigos e os vendiam a outros povos, para uma escravidão bem produtiva ao modo europeu. Azeredo Coutinho não apresenta a ambiguidade tão contundente que nos apresentam Vieira e Ribeiro Rocha. Sua defesa da escravidão parte da necessidade de debater com os filósofos da Enciclopédia que combatiam o tráfico de escravos. Não utiliza imediatamente de argumentos bíblicos ou eclesiásticos, este recurso está em segundo plano nos seus escritos pois o seu interesse era de combater os seus adversários no campo da filosofia. A primeira justificativa da escravidão no debate de Azeredo Coutinho, tem seu alicerce na história. Coutinho deduz que o cativeiro dos africanos é fruto de circunstâncias históricas e que ela existiu desde os tempos mais remotos. Primeiramente examinar-se-á as características históricas que ele percebe no momento em que escreve, para, através do processo que o mesmo fez, analisar a escravidão em sua bases naturais, indo para a discussão filosófica e depois discussão histórica da necessidade dos escravos na sociedade moderna. Em sua obra Concordância das leis de Portugal e das Bulas pontifícias, o autor defende a ideia do negro da África pertencer a uma forma de civilização onde as práticas de produção da vida material incluíam a agricultura e a pecuária: " Os portugueses que primeiro descobriram a Costa de Guiné já acharam muitas nações com algum género de governo, obediência e subordinação, comércio e agricultura, entre as quais já se achava introduzida a escravidão: ou dos vencidos na guerra ou dos réus de certos crimes capitais."68 Enquanto que o índio no Brasil, vivia em condição muito primitivas para se adaptar a estas formas de trabalho: 68 COUTINHO, D. José Joaquim de Azeredo. Concordância das leis de Portugal e das Bulas Pontifícias das quais umas permitem a escravidão dos pretos da África e outras proíbem a escravidão 55 " Os portugueses que primeiro descobriram as terras do Brasil não acharam nações propriamente; acharam, sim, alguns bandos de homens selvagens sem algum género de governo nem de subordinação."69 Outro argumento histórico que elenca Azeredo Coutinho é sobre o fato de já existir escravidão na África. Cita o autor que entre os povos africanos existia comércio de escravos, de vencidos na guerra ou de réus de crimes capitais. Coutinho não considera tal redução do estado livre do africano ao cativeiro pelos seus próprios nacionais injusto, como observou Manuel Ribeiro Rocha, avalia sim, desperdiçado. Não condena o comércio de escravos, antes encontra subsídios eclesiásticos que o regulamentariam diante as leis da cristandade. " Este comércio foi aprovado por Bulas do papa Nicolau V, de 6 de janeiro de 1454; de Calixto III, de 3 de março de 1455; de Xisto IV de 21 de junho de 1481; e de Leão X, de 3 de dezembro de 1514, por se achar ser este comércio o meio de se introduzir a nossa santa religião entre aquelas nações barbaras ou, ao menos, salvar muitas almas que, aliás, seriam perdidas no centro do gentilismo."70 Assim nos apresenta o indicativo do pensamento de Coutinho, o emprego do "resgate" significando " livrar do cativeiro". A escravidão promovida pelo branco civilizado seria mais justa que o cativeiro africano. Não é o estado do cativo que é injusto, mas a sua má utilização, o seu pouco proveito para o progresso da civilização, nesse caso a Europeia. Ao mesmo tempo que se comercializa, introduz-se o escravo no mundo cristão civilizado, aproveita a sua força de trabalho e o liberta do gentilismo, salvando a sua alma e o seu corpo de uma escravidão inútil. Na bíblia uma passagem fala sobre a servidão, mas não com essa conotação. (I Ti 6, 1-2) “ Em uma palavra, a escravidão na África já estava estabelecida. Os portugueses não fizeram mais do que aproveitarem-se dos desperdícios daquelas nações e, por isso, as nossas leis e os nossos soberanos, como bons políticos e encarregados de fazer o maior bem dos seus vassalos, o permitiram em favor da cultura das suas terras que, aliás, estavam perdidas” 71 dos índios do Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional Edição de 19S8,p. 21. 69 COUTINHO,D. José Joaquim de Azeredo. Op. Cit. p.22. 70 Id. Ibid. p.20-21 71 Id. Ibid. p.26-27. 56 A posição de Azeredo Coutinho a favor da escravidão não termina aí. A sua colocação a partir da história e a necessidade de argumentar contra os filósofos modernos o leva a examinar as teorias contratualistas da sociedade e suas leis naturais. Daí sua consideração que na história, a escravidão se fez necessária para o bem da sociedade, se a natureza criou o homem para a sociedade, a sociedade é obra da natureza, donde que, todos os meios necessários á preservação da sociedade são concedidos peía natureza. "A natureza prescreve ao homem e á sociedade que defendam sua existência com todas as armas e meios disponíveis." " a lei natural adaptável ao homem na sociedade é aquela que lhe regula o maior bem ou que lhe manda fazer o mal, ainda assim mesmo para salvar a sua existência em tais ou tais circunstâncias. Logo, a lei natural que regula o maior bem do homem no meio das circunstâncias ou perigos não é absoluta, mas sim relativa as circunstâncias em que cada membro da sociedade se acha. Ora, a justiça das leis humanas consiste na conformidade da lei natural que regula o maior bem do homem em tais circunstâncias".73 Embora não se encerre aqui a discussão de Coutinho com os filósofos, convém abrir um parêntese. Qual seria a posição demonstrada na Nova e curiosa relação sobre tal argumento? O letrado do diálogo não discutira tão profundamente esta questão, pois, Azeredo Coutinho escreve posterior a ele, porém, no diálogo a uma frase que considerando a natureza, tão citada por Coutinho, poderia se opor as suas opiniões. O letrado considera que a natureza não faz distinções, como mostrou antes, a escravidão não é um desígnio da natureza mas dos homens, é ela- a natureza - sem preconceitos: "Letrado - (...), É um abuso introduzido entre muitas pessoas imaginarem que os pretos foram nascidos só para serem escravos, porém a natureza a todos os homens sem diferença ama."74 Mas Coutinho não permanecera apenas nestas observações, historicamente analisa a condição das opções desenvolvidas da Europa, e da sua observação sobre os 72 CARVALHO, José Murilo cie. Op. Cit. p.45. COUTINHO f D. José Joaquim de Azeredo. Análise sobre a justiça do resgate dos escravos da costa da África. In: Obras económicas de JJ. de Azeredo Coutinho, 1794-1804. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1966, p.13. 74 Id.Ibid.p.l84. 73 57 alicerces que favoreceram o modo de vida do Europeu e continua a sua crítica aos "novos filósofos". Coutinho ressalta, que toda a riqueza europeia fora obtida através do comércio com produtos produzidos pelo braço escravo. O tipo de trabalho realizado pelos cativos é aquele do qual os europeus teriam evoluído, os escravos no estado a que foram reduzidos, contribuem desta maneira para a evolução da sociedade, para o conforto e fortuna dos mais civilizados. A defesa da escravidão tem assim, segundo Azeredo Coutinho, uma sólida base económica e histórica. "Os trabalhos feitos ao sol e à chuva são sempre constrangidos e obrigados, ou sejam pela força da fomef ou pela força dos que têm a maior força na mão. Aos que trabalham ao sol e a chuva chamam os filósofos 'escravos dos outros'. Chamem-lhes como quiserem. A verdade é que muitos dos trabalhos que faziam os trabalhadores da Europa foram substituídos e feitos pelos trabalhadores escravos da África; os da Europa foram passando para a classe dos que trabalham à sombra para a classe dos ricos, dos livres, dos civilizados."75 O trabalho forçado para ele, é um pilar de sustentação da sociedade moderna e através do comércio do seu produto enriquece os detentores da civilidade evoluída. O que se observa no pensamento do bispo é a total primazia da sociedade, do coíetivo, do todo, sobre o homem, sobre o indivíduo, sobre a pessoa. "Logo, para que a Europa se diga rica, livre e civilizada é necessário que ela confesse, ou a necessidade da escravidão da África, ou que ela deve tornar para o seu antigo estado de escravidão e barbaridade, como dizem os seus filósofos, ou ao menos para aquele estado de cavaleiros andantes em que ela se achava antes que os braços da África fossem postos em ação."76 O texto do panfleto anti-escravista de 1764, não vai diretamente a esta avaliação histórica. Porém, em sua simplicidade - tratando-se de um diálogo- percebe-se uma posição contrária a esta. É a consideração do homem como constituinte da sociedade que é aqui valorizada. É a partir da situação do escravo - como demonstrado sobre o Etíope resgatado -e não dos representantes da classe dominante é que percebese as imbricações do sistema escravista, e não o contrário, ou seja, partir do sistema num todo para então chegar à pessoa 75 Id. Ibid p.25. Id.Ibidp.25. 76 58 do cativo. Com essa preocupação a Nova e Curiosa relação, acrescenta mais um elemento que futuramente a seu tempo os filósofos vieram a escrever : a consciência individual, elemento essencial ao bom andamento das relações sociais. "Mineiro - Logo no princípio, que Vossa Mercê havia sempre de sentenciar a favor do negro. Ora é possível que sendo Vossa Mercê um homem branco, e Douto, acuda mais pelos negros do que pela gente branca! Não sei em que se funda, ou que razão tenha para tal! Letrado - A razão e que me fundo é seguir a verdade, porque eu olho mais para a minha conveniência, e por isso o meu costume foi sempre desenganar aquelas pessoas que procuram o meu conselho."77 Assim, mais uma vez a crítica à situação dos escravizados tem na Nova e curiosa relação a atenção voltada para o relacionamento direto entre senhor e escravo como ponto de partida a uma análise sobre a sociedade. Para o autor do texto não se justifica o mau trato dos cativos pelo bem de uma fração sócia!, ainda que esta estivesse em um estado considerado "superior". Uma crítica de um certo modo, ao conhecido ditado de que os fins justificariam os meios. Trata-se da valorização do escravo como homem e como tal deveria ser respeitado nos seus mínimos direitos. Por último lembro um conselho do Letrado aos senhores de escravos " Letrado - (...), Mas o que cada um deve fazer, é tratar aos servos com caridade, com zelo e amor de Deus; e o que não tem paciência para lidar com escravos, deve tomar outro modo de vida, pois primeiro está o não ofender a Deus, do que o interesse de quantas conveniências pode haver no mundo."77 Assim, quis se apresentar as justificativas da escravidão no mundo cristão na qual se inserem os escravos de Minas no século XVIII, demonstrando não só as ideias escravistas, mas as contrárias a essas e no caso do estudo aqui apresentado, uma discussão que remete às regiões mineradoras no Brasil colonial 77 78 ld.lbicLp.185. Id. Ibid.p.381. 59 4- A ATUAÇÃO E PARTICIPAÇÃO DO CLERO. O clero que para Minas Gerais afluiu no período do povoamento da capitania , já se mencionou, não foi o maios fiel aos propósitos de pastoreio cristão. Por outro lado a presença da Igreja se fez notar primeiramente por seus visitadores. Expansão do mundo português e expansão da sua religiosidade eram duas coisas numa só. O que se privilegia neste capítulo é o Estado a procura de controlar a sociedade e a Igreja a procura de controlar as condutas. O vigiar, punir e disciplinar contido na pedagogia católica ira afetar a atitude do escravo que tenta reconstruir sua identidade. Mais uma vez escravidão e catolicismo são examinados não naquilo que se prevê mas no que se quer ocultar. 4.1 - Os propósitos da Igreja no Brasil e em Minas " O Brasil, pode-se dizer com Serafim Leite nasceu cristão. E nasceu cristão, antes de tudo, pela fé que ardia no peito dos descobridores e de seu rei e se transportara, com os costumes e os usos, as mercadorias e as armas, no bojo das caravelas"1 Desde os tempos do descobrimento do Brasil, a expansão do catolicismo esteve presente na colonização. Estimulada não por Roma, mas, pelos monarcas portugueses que através do padroado se colocavam como chefes e estandartes da Igreja. Nesse afã, nas caravelas de Cabral vinham padres para não só cuidarem da fé dos descobridores, mas, também para marcarem as terras descobertas com o signo do catolicismo do rei. Nos domínios portugueses d'além mar, foram sempre os jesuítas que desde os primórdios da expansão lograram a primazia missionária evangelizadora. Começando pela índia, passando pela África e chegando a América, em alguns lugares estiveram antes mesmo da realização do Concílio de Trento.2 No caso da escravidão não é preciso exemplificar mais do que com uma ação dos inacianos junto aos filhos do cativeiro africano. António Vieira, que em 1663, falava num engenho da Bahia, aos escravos e negros devotos de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, 1 AZEVEDO, Fernando de. A cultura brasileira.ôcá. Rio de Janeiro: editora UFRJ,1996, p.238 60 2 VAINFAS, Ronaldo. Trópicos dos pecados: Moral, sexualidade c inquisição no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Campus;1989,p.l4 exortando para que aceitassem o estado em que se encontravam pois eram "imitadores de Cristo." Mesmo com um discurso de justificativa da escravidão jesuítas como Vieira pregavam aos escravos, sua preocupação era com a propagação da fé cristã, não com a ordem estabelecida, explicitamente defendida em alguns casos, primeira preocupação de eclesiásticos. Em Minas Gerais, na região aurífera , mais uma vez seria diferente. Mesmo após a expulsão dos Jesuítas do Brasil, ordem confirmada no bispado de Mariana por carta régia a câmara da cidade, onde se tem, "a lei porque Sua Majestade extinguiu todas as confrarias, associações, comunicações dos privilégios da referida companhia chamada de Jesus, declarando ao mesmo tempo ab-reptícia, sub-reptícia, como tal nula,(...)” ; a região produzira suas exceções. Em 1791, no reinado de D. João VI, o padre Francisco da Silva Campos, marianense, capelão cura dos índios coroados na capela de São João Batista, escreveu ao rei pedindo ajuda de custos para a criação de uma companhia para a catequese e civilização dos índios da capitania de Minas Gerais. A intenção do padre é a mesma dos jesuítas; " civilizar os índios selvagens, unindo-os em povoação conforme as Reais Ordens, para serem meíhor instruídos nas verdades da religião, e nos conhecimentos precisos para os seus decentes destinos já na Agricultura, já no trabalho, de ofícios, e artes, habilitando-os por este meio, a serem hum dia capazes de servir, e ser úteis ao Estado, e a Religião."4 Nesta carta, o padre propõe ao monarca a criação de uma companhia para a catequese indígena com todo um aparato, capelão, cura, mestres de ofício, inspetores e setenta e dois escravos, além de todo o material como madeira e ferramentas, para "civilizar" cento e cinquenta índios. Só para a compra dos escravos, o padre contabilizou gastos no valor de oito contos e quatrocentos mil réis (8 $ 400.000). Os detalhes que o padre oferece são muitos: calculou quanto gastaria com as roupas dos índios e dos escravos, quanto estes cultivariam de milho e feijão, quanto as escravas fiariam, quanto se gastaria com os curas, regentes, mestres e calculou também os gastos para cera, hóstia, vinho e ferramentas. 3 Carta régia para a câmara de Mariana, pasla de D. Frei Manuel da Cruz 1767. AEAM. 61 4 Catequese e civilização dos índios da Capitania de Minas Gerais., In: RAPM1896, pp. 685-733. O fato é que em todo o projeto, com todas as suas justificativas e cálculos, não há uma só menção sobre a catequese, ou trabalho religioso com os setenta e dois escravos. Não se prevê a evangelização dos negros cativos, nem mesmo quando estes estão num ambiente de tal funcionalidade. Se o padre Francisco era um remanescente dos jesuítas já expulsos, o documento não permiti concluir, porém, pode-se afirmar que sua ação quanto aos escravos, maioria na capitania, não era permeada pelo exemplo de Vieira. Se nos séculos XVI e XVII, o catolicismo tornava-se o cimento de nossa unidade, como entendera Gilberto Freyre,5 a ação dos jesuítas deve ser considerada. Mesmo no caso da escravidão negra, eles tentaram disseminar alguma fé, é o que defende Fernando de Azevedo. "A medida que se alargava para os sertões e as florestas, num esforço imenso de penetração catequista, infiltrava-se o evangelho na região tenebrosa das senzalas, trazendo, com a fé, à raça infamada pela pirataria da escravidão uma palavra de alívio e uma porção de energia, e promovendo a conversão em massa das populações negras apanhadas pelas garras do tráfico."6 No século XVIII, na capitania do ouro e das pedras preciosas, a imagem do missionário no turbilhão de todo tipo de gente à cata do ouro, com ou sem escravos, é escassa. Quem poderá falar de um Anchieta, Nóbrega ou Vieira em Minas, desbravando os sertões junto com os bandeirantes, eles, a procura de almas, estes, a caça de ouro? Outra forma de introdução da cultura portuguesa no Brasil, que desde o primeiro século de colonização se fez presente, foi o Santo Ofício da Inquisição. Surgida na Idade Média para detectar e combater seitas heréticas, a Inquisição atingira seu apogeu na Idade Moderna. Fora recriada na Itália em 1542, pouco antes de iniciar-se o Concílio de Trento, assumindo então os mesmos objetivos da Contra Reforma: conter o avanço protestante na península, combater as heresias oriundas dos saberes eruditos e perseguir as manifestações da cultura e da religiosidade populares que não condiziam com os dogmas católicos. Seu método de verificação da mentalidade e religiosidade da sociedade moderna, tanto na Europa quanto nas colónias dos países onde fora instaurado, revelavam que a principal função desempenhada pelos inquisidores foi o "vigiar, punir e disciplinar". 62 5 FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime <le economia patriarca!. 10a ed Rio de Janeiro: José Olímpio, 196l.p 30. 6 AZEVEDO, Fernando. Op. Cit. p.242. Com exceção da "questão Judaica", especificidade da Península e do Santo Ofício espanhol e português, a Inquisição foi um entre outros instrumentos orientados para o disciplinamento do homem moderno - corpo e espírito adestrados para a glória de Deus e do rei.7 No Brasil a ação do Santo Ofício prendeu-se à tónica dominante da colonização: a integração da Terra de Santa Cruz ao Império de Avis, através, não só do domínio de explorador, mas principalmente, através da implantação da cultura portuguesa. Cultura que se transmudou ao longo dos séculos XVI, XVII, XVIII: do Barroco à Ilustração. Voltada à manutenção de um elenco de valores, a Inquisição realçava suas estruturas numa hierarquia definida, indispensável à própria sobrevivência da instituição que vinha inserir-se num ambiente de remodelação da velha ordem tradicional. Associava o Santo Ofício elementos da hierarquia civil e eclesiástica, dado o duplo caráter da instituição. Desse modo poderes espirituais e poderes políticos agiam conjuntamente sobre a sociedade, policiando a mentalidade e o comportamento dos católicos da sociedade colonial brasileira. Igualmente aos reis portugueses, chefes da Igreja lusitana, que no seu aspecto administrativo concediam, por autorização explícita ou implícita do papa, privilégios a instituições religiosas ou paraeclesiásticas, ou delegava autoridade para concedê-los; assim consentia o Tribunal Inquisitorial a seus oficiais e familiares destes, atingindo até os criados e os serviçais destes oficiais.8 A autoridade dos inquisidores era ampla e para cuidar da manutenção da fé católica, o aparelho inquisitorial concedia nos seus regulamentos, o direito se inquirir qualquer um que não estivesse protegido pelos reis ou oficiais do Santo Ofício. Diz o regimento de 1640 que perdurou até 1774 em todas possessões de Portugal. "Procederão contar todas as pessoas Eclesiásticas, senhores e regulares, de qualquer estado, e condição que rejam, que forem culpadas, suspeitas, ou infamadas no crime de Judaísmo, ou em qualquer outra heresia; contra os que tendo confessado suas culpas, revogam a confissão, que delas tinham feito; contra os que jactam de não haver cometido as culpas que confessaram; contra os autores, receptores e defensores dos hereges; (...) contra os que fazem irreverências, ao desacato ao 7 VAINFAS, Ronaldo. Op. Cit. p.192. 63 santíssimo sacramento, imagens de Cristo Senhor Nosso, de Nossa Senhora, ou dos santos; contra os que usam de arte mágica; contra os feiticeiros, sacrílegos, adivinhadores, astrólogos judiciários." 9 Dos dogmas do catolicismo à magia; dos sacramentos à heresia; dos concubinatos e bigamias aos que impedem a ação do Santo Ofício; os inquisidores deveriam ter todo um comportamento que o regimento prevê, em toda uma hierarquia e corpo legislativo. A Inquisição, em Portugal e no Brasil, organizara-se como um aparelho de Estado - em partes o era - a investigar a conduta e a consciência da população. Tratar da Inquisição em Minas Gerais não é assunto aqui pretendido. Sua importância nos vem da semelhança na ação dos "visitadores diocesanos". Tanto é essa semelhança que no título IV do mesmo regimento do Santo Ofício de 1640, prevê sobre a ação dos visitadores. "Procurará [o visitador] quando for possível, começar a visita nos Bispados, pelas cidades onde o Bispo residir; e antes de entrar nela, avisará com tempo por carta as justiças, e oficiais da Câmara do dia da entrada, enviando-lhes as cartas de sua majestade, para que o venha receber, e passam com comunidade aposentar."10 Peregrino com autoridade, à serviço da fé e do rei, os visitadores do Santo Ofício no Brasil tinham seus congéneres nas Igrejas diocesanas. Os visitadores eclesiásticos estavam a serviço do Bispo e do rei. A inquisição no Brasil, estudada por Ronaldo Vainfas, revela traços da moral e comportamento dos povoadores do Brasil, do século XVI e XVII. Uma das observações de Vainfas, vem a esclarecer a relação entre Santo Ofício e visitas pastorais, "paralelamente ao descobrimento de dioceses e prelazias, simultaneamente à estruturação da Igreja Colonial, montava-se a máquina inquisitorial no Brasil. E de outro lado, à medida que se aperfeiçoava estrutura eclesiástica, tornavam-se frequentes e periódicas as visitas pastorais, ou devassas, ordenadas pelos bispos, que como bem notou Caio César Boschi, acabaram "alimentando o 8 SIQUEIRA, Sônia Aparecida. A disciplina da Vida Colonial. Os regimentos da Inquisição.p.521522. In: R1HGB, n°392. Jul/ Set. 1996. 64 9 RIHGB, 1996, p.703. RIHGB,1996 p.714. 10 Tribunal do Santo Oficio Lisboeta com culpados de crimes mais gravosos", agindo como tribunais itinerantes e complementares da Instituição inquisitorial. 11 Percebe-se que em Minas, não havendo uma ação missionária como a dos Jesuítas ou o desenvolvimento plenamente livre da religiosidade popular, a fé instalou-se de forma oficial com o intuito de apaziguar os ânimos, de estabelecer a ordem. Se a Inquisição, com toda a sua "pedagogia do medo", fizera-se sentir com força nos séculos anteriores ao da edificação das vilas mineiras, as visitas diocesanas, continuavam a sua tarefa nos bispados da capitania: vigiar, punir, disciplinar. A catequese não se fazia pelo dever missionário, mas, sim, pela repressão. Os princípios religiosos da Igreja Católica em sua origem foram o de levar o evangelho a toda criatura como ordenou Cristo. Passados mais de dezessete séculos, quando nascia Minas Gerais, as intenções de alguns de seus membros poderiam ser a mesma, mas da Igreja portuguesa num todo e principalmente a parte vinculada ao poder dos reis, certamente era muito mais que isso. Em Minas a religião não chega com o missionário, com o jesuíta, com as ordens religiosas, em Minas a religião é popular. Popular porque o povo na manifestação de sua religiosidade faz dessa manifestação uma bandeira e arregimenta aqueles que chegam para o seu lado. "No seu ermo físico espiritual, os mineiros como que se disfarçaram de sua solidão construindo muitas igrejas, justamente nos locais onde todos se encontravam e se sentiam mais perto um dos outros."12 Era mais pela necessidade de agrupar e socializar-se do que de contemplação e crescimento da fé é que o povo mineiro, em seus primórdios, edificava os seus templos. Sérgio Buarque de Holanda, José Ferreira Carrato e Julita Scarano, escreverem sobre a corrida desenfreada de clérigos e religiosos de várias ordens que no alvorecer das Minas para essas correram, mais com o intuito de garimpar do que de cuidar da espiritualidade do povo. Antonil já o relatara em 1711, escrevendo a sobre o afluxo de pessoas que veio as minas descobertas. O fato é que em Minas colonial a presença da Igreja católica não foi um negócio de fé, mas de ordem. 65 11 12 VA1NFAS, Ronaldo. Op. Cit. p.220. CARRATO, José Ferreira. Igreja, iluminismo Paulo: NACIONAL/EDUSP,1968, p.41. e escolas mineiras coloniais. São Antes mesmo que se criasse a primeira vila na nova capitania, antes da criação do bispado de Mariana, os visitadores da Igreja percorriam a capitania, numa peregrinação a investigar o comportamento e a religiosidade da população desta nova sociedade que se configurava: a sociedade colonial mineira. 4.2 - A pedagogia dos visitadores e do clero mineiro Os visitadores diocesanos tinham função semelhante a dos inquisidores do Santo Ofício, mas, na abrangência das dioceses. Na tarefa de investigação do comportamento e da mentalidade das povoações acabaram por fornecer uma fonte muito boa para o estudo das sociedades coloniais. Seus detalhes sobre cotidiano dos "entrevistados" bem estudados permitem entender como viviam, para além da produção da vida material, boa parte da população. Laura de Melo e Souza, que estudou as devassas em sua tese de doutorado comentou sobre elas: "Numa abordagem geral, a documentação das devassas serve de modo privilegiado à melhoria dos conhecimentos que se tem sobre a sociedade colonial, enriquecendo especialmente a compreensão da mentalidade do colono. Sua leitura elucida de igual maneira aspectos da sexualidade do homem de então, de suas práticas mágicas das relações de tensão e de conflito entre as diferentes camadas da sociedade, propiciando ainda o desvendamento do modo de vida da população urbana e rural nas suas diversas facetas: habitação, vestuário, condições materiais de vida e lazer."13 Previstas no Sínodo bahiano de 1707, valendo estas também para a capitania de Minas, é o melhor documento de onde se tira o significado do termo devassas. "As devassas, a que o direito, chamou inquirições, são uma informação do delicto, feita por autoridade do Juiz ex-oficio. Foram ordenadas para que não havendo acusador não ficassem os delictos impunidos: e estas, ou são gerais, ou são totalmente como aquelas, em que se inquire geralmente dos crimes, excessos, e pecados para se emendarem, e castigarem, 66 quais são as que os Prelados fazem quando visitam as suas Dioceses; ou são gerais quanto ás pessoas, e especiais, quanto aos crimes, e 13 SOUZA, Laura de Melo. In: Norma e Conflito: aspectos da história de Minas no século XVIII. Belo Horizonte: ed. UFMG. 1999 p.22. delictos, como sucede, quando consta ser cometido algum sacrilégio, ou crime grave, cujo conhecimento pertence ao foro eclesiástico, e não se sabe quem o cometeu. As inquirições ou devassas especiais são quando se inquire especialmente assim quanto ás pessoas, como quanto ao delicio, especificando pessoas certas, e certo crime. As gerais se podem fazer, ainda que não haja infâmia, ou indícios contra pessoa alguma, por quanto se fazem para se saber se ha culpas, ou pecados, que devam emendar, ou castigar, ou outras cousas, que se devam reformar."14 Assim como o parágrafo 12 do regimento de 1640 do Santo Ofício português prevê sobre o que deveriam os inquisidores interrogar e investigar, do mesmo modo o seriam os visitadores nas localidades onde deveriam passar. A semelhança entre o regimento e a ação dos visitadores encontra-se nas questões que estas deveriam fazer. As perguntas que compõem o interrogatório são no total de quarenta. A maioria versa sobre se sabe o interrogado a respeito de alguns casos de concubinato, incestos, alcovitamentoJudaísmo e ccmá fama" consentida por pais ou senhores a seus filho e escravos. Em seguida vem as questões sobre comportamennto dos párocos e sacerdotes, inclusive sobre simonia, sexo e práticas de seu ofício. As demais perguntas se dividem em heresias, feitiçarias ou benzedíces, perjúrio, usura e das obrigações religiosas dos leigos.15 Os processos eclesiásticos estudados por Laura de Melo e Souza para a capitania mineira, estavam quase sempre ligados a uma acusação de desrespeito a preceitos católicos.16 Casos de heresia e manifestações anti-católicas, embora previstas nos interrogatórios dos visitadores não parece ter sido a preocupação dos visitadores. Esse dado permite levantar a questão sobre, se no século XVIII, a Igreja teria o consenso de que a religião católica era, quase, em todo o território brasileiro, a única religião cristã assumida pela população? Também nos relatos estudados por Ronaldo Vainfas, em Trópicos dos pecados, estes revelam mais questões de comportamento sexual e moral do que heresias e apostasias.17 67 14 Constituições primeiras do Arcebispado da Bahia. Feitas c ordenadas pelo Ilustríssimo e Reverendíssimo Senhor. D. Sebastião Monteiro da Vide em 12 de Junho de 1707. São Paulo, 1853. Livro 5, Título XXXlX,p.362. 15 Livro de Devassas de 1733 . AEAM. 16 SOUZA, Laura de Mello e. Os desclassificados do ouro : a pobreza mineira no século XVÍIL Rio de Janeiro: Edições Graal, 1982. 17 VAINFAS, Ronaldo. Op. Cit. O estudo sobre a participação da população negra, nas devassas ou nos processos da inquisição, são encarados dentro das categorias que estes autores privilegiaram. A utilidade das devassas para o conhecimento da vida da população mineira colonial é extensa. Aqui, tratar-se a de dois pontos: casos referentes ao comportamento frente aos símbolos do catolicismo, pelos habitantes de distritos da região de Mariana e Ouro Preto e estudos das devassas sobre os escravos e forros, os casos e as condições que estes aparecem. Dessa maneira pretende-se demonstrar com um instrumento de "repressão" ou melhor de "vigilância" pode permitir restabelecer relações entre a escravidão e o catolicismo. Percebe-se no total das perguntas do interrogatório dos visitadores, que apenas uma vez aparece a palavra escravo. A décima terceira pergunta do livro de devassas de 1733 em Mariana e distritos diz: "Se algum pai, ou mãe concede que suas filhas façam mal de si, ou marido a sua mulher, senhores, a seus escravos, e estão disto informados.” 18 Providencial mente, em Mariana este caso é um dos que mais aparecem nos relatos das devassas. O fato da referência ao escravo não aparecer mais vezes nas questões do interrogatório, «isso não significa que a participação ou citação destes esteja limitado a esse ponto. Quase todas as questões referentes a leigos começam com a oração "se há alguma pessoa", ficando independente a condição ou cor do delatado nestes casos. O concubinato é o tipo de delataçao mais presente na maioria das devassas. O resultado de uma visitação a oito freguesias da visitação eclesiástica em 1734 apurados por José Ferreira Carrato, é de 399 casos de concubinato.19 Nas devassas realizadas entre os anos de 1731 a 1738, para Vila Rica capital da capitania, Luciano Raposo Figueiredo encontrou 182 casais em práticas extras conjugais. "O concubinato, ou amancebamenío consiste em uma ilícita conversação do homem com mulher continuada por tempo considerável". Conforme as constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Continuam estas a respeito dizendo sobre as culpas que as pessoas 68 acusadas "sejam admoestadas que se apartem de sua ilícita conversação, e focam cessar o escândalo." 20 Os acusados nesse delito, comprovada a acusação, sendo solteiros deveriam 18 19 Livro de Devassas de 1733. CARRATO, Op. Cit, Quadro das culpas canônicas de uma devassa. Anexo 1. pagar cada um oitocentos réis e quando casados cada um pagaria mil réis. Reincidência seria aplicado o dobro da pena anterior. Uma terceira vez teriam que pagar seis cruzados os solteiros e os casados três mil réis. Continuado o caso, a pena prevê prisão, degredo ou excomunhão, segundo o que parecesse mais conveniente. Estas penas, deve-se notar, incidem sobre pessoas livres, para os escravos o tratamento é mais complexo. " É porque o amaiicebamento dos escravos necessita-se pronpto remédio, por ser usual, e quase comum em todos deixarem-se andar em estado de condenação, a que cies por sua rudeza, e miséria não atendeu, ordenamos, e mandamos, que constando na forma sobredita de seus amancebamentos sejam admoestados, mas não se lhes ponha pena alguma pecuniário, porém judicialmente se fará a saber os seus senhores do mau estado, em que andam."21 Demais casos envolvendo negros são relatados nas devassas com menor incidência. Festas e calundus também são encontrados nas delações. Francisco Veloso dos Santos, fazendeiro foi admoestado nesse caso. " (...) Foi admoestado paternalmente para que não consinta fazer em sua casa semelhantes galhofas e folguedos que são contra os bons costumes, e se não fazem sem pecado, pena de proceder contra ele, com pena de excomunhão, e por ele foi dito que aceitava a admoestação."22 As festas de negros descritos pelos viajantes da qual não participavam, mas permitiam os seus senhores, eram comuns em Minas Setecentista. Sobre os batuques, porém a historiografia brasileira produziu discussões diferentes. Gilberto Freyre comenta a política da assimilação que incluía permitir aos escravos que estes conservassem à sombra dos costumes europeus e doutrinas católicas, formas e acessórios da mística africana. Chega a afirmar que alguns padres vinham nos folguedos dos negros algumas vantagens.23 Não parecia ser este o caso dos padres visitadores em Minas colonial. Por outro lado Roger Bastide, considera que o senhor permitia, mas não participava das festas de seus escravos. Para ele esta "distância" tinha o significado 69 de demonstrar ao 20 Id. Ibid Livro 4 Titulo XXII p.338. Id. Ibid. LH TO 4 Título XXTÍ p.34I. 22 Livro de Devassa 1742/1743, AEAM. 23 Livro de Devassas 1742/1743, AEAM. 212 negro que devia tentar elevar-se respeitosamente à religião de seu senhor, sendo que o senhor não participava da religião dos cativos, mesmo sendo o catolicismo dos escravos.24 O caso das festas dos escravos é um bom exemplo sobre a posição da Igreja e dos senhores sobre a religião destes. Divergente, Antonil recomenda aos senhores de engenho a autorizar os escravos a cantarem e dançarem em certos dias do ano, dias santos. Os clérigos como os visitadores do relato acima, admoestam e ameaçam de excomunhão senhores que permitissem os folguedos e batuques dos cativos. Não só senhores brancos são citados por mandar trabalharem seus escravos nos dias santos e de preceito, como Salvador Lopes Pinto e João de Souza Rodrigues, mas também forros proprietários de negros. Paulo de Oliveira, preto forro foi admoestado: "(...) por não guardar os dias de preceito antes neles manda trabalhar os seus escravos e vai com eles. "25 Do mesmo modo outros forros entram no crime de alcovitaria e por dar "má vida" a outros negros. Por exemplo um caso citado várias vezes: " De Gracia da Fonseca preta forra é informada [o vistador] de que consente, que em sua casa se desonestem vários negros com suas escravas e com elas durmiam até pela manhã.26 Do mesmo modo que Gracia em 1730; Lourença, preta forra foi citada por dar alcoice em sua casa.27 Citar todos os casos de alcoviteiros e pessoas que permitam escândalos com suas filhas e escravos é desnecessário. Desvios do comportamento sexual percebidos peia Igreja eram comuns e é este tipo de relato que mais se percebe a devassas. Os padres, estes sim, que deveriam cuidar do rebanho de Cristo na capitania de Minas, são casos interessante de citar. Havia os casos de incesto, como do padre Manoel de Figueiredo Perdigão, com sua escrava mulata, Maria de Jesus. O mesmo sacerdote havia se relacionado com Francisca do Rosário mãe da dita escrava.28 Assim como os padres envolvidos em bebedices: Padre António de Araújo, em 70 Catas Altas e o Padre João Gomes, que ateou fogo em um homem por este não querer lhe dar água ardente. Também haviam os padres que não ensinavam a doutrina cristã: Padre Antônio da 24 BA STI DE, Roger. As R eligiões Africanas no Brasil: contr ibuição a uma sociologia das interpretações de civilizações, trad. Maria Eloisa Capelato. São Paulo: editora da universidade de São Paulo,1971.p.65. 25 Livro de Devassas, 1733 AEAM. 26 L ivr o de Devassas 1733 AEA M. 27 L ivr o de D evassas 1730- 1731 AEAM. 28 Livro de Devassas ] 740-1743. AEAM. Silva, Padre Paulo Alvares, Frei Luís Coelho e o padre José de Souza Geraldes nos dois casos.29 Clérigos solicitadores e escandalosos havia muitos, mas como o sacerdote Francisco de Moura da Cunha, talvez não fossem tantos. Este foi admoestado para : "Cessar todo escândalo que tinha dado com uma escrava de João Ribeiro, se afastasse de andar provocando com escriptos certa mulher casada e que nas confissões que ouvia aos penitentes fosse mais pacífico não dando pancadas neles no mesmo acto de confissão e de lhe não perguntar cousas desnecessárias,... de ser nas conversações mais composto e modesto de língua,(...), e que assim dava mau exemplo ao próximo, (...) se tornasse a vir segunda vez e por esta lhe dava por pena que se ausentasse fora da comarca do Ribeirão e da Vila Rica.30 O mau exemplo citado no relato do padre Francisco de Moura é a questão. Se o clero dava mostras de tal comportamento, o que esperar dos escravos, que não desvios de conduta? Retirados de seu mundo brutalmente, inseridos num outro, forçados a assimilar a cultura dos seus senhores, privados de direitos e da liberdade, como poderiam os africanos e seus descendentes comportarem-se como previa a Igreja? Os desvios de conduta desse clero agia, de certo modo, em toda a sociedade. A desmoralização do clero, espalhado pelas vilas mineiras, certamente contribuiu para afastar a população da religiosidade oficial ou pelo menos proporcionou um desgaste entre alguns fiéis menos convictos. As devassas, não só revelam facetas da sociedade mineira, mas exprimem de um certo modo a intenção da Igreja. Assim como o Santo Ofício, a manutenção dos princípios católicos de sua ética e moral, seus dogmas e autoridade são cobrados nas devassas. Se estas revelam uma sociedade permeada de pecados, só se é possível sabê-lo pela vigilância que representam. Os escravos não são eximidos de suas culpas, e são punidos. Fazem assim parte dessa sociedade que tem nos seus templos a manifestação de sua religiosidade, e no seu cotidiano as práticas que estas lhes permite para se 71 "acomodar" a ela. Mas, se saem da conduta prevista pela Igreja são censurados por ela. 29 30 Livro de Devassas 1733 AEAM. Livro de Devassas 1733 AEAM. O "vigiar, punir e disciplinar" da igreja tem nas devassas um de seus representantes. Nas delações e proclamas convocando a população percebe-se sua vigilância. Nas admoestações, cobranças e penas está a punição. Em sua constância, com vários visitadores, onde vê-se que as localidades eram visitadas sempre mais de uma vez a procura das reincidências, está a sua disciplina. Luciano Raposo Figueiredo entende nas devassas, apesar de seus limites suas intenções. "Sua ineficiência [da Igreja] em organizar um trabalho mais doutrinário, sua relativa tolerância para com determinadas reincidências, a rapidez dos processos e da condenação, nada disso nega seu significado primordial. Toda a superficialidade de sua ação é mais do que condizente com sua finalidade, exercer o poder de julgar.31 72 31 FIGUEIREDO, Luciano Raposo. Op. Cit. p.41. 5- A Evangelização dos Escravos A sociedade mineira colonial, dinâmica, católica e escravista, tinha constantemente a preocupação - mesmo que superficial - de fazer dos escravos participantes de sua cultura. Os negros introduzidos no Brasil pertenciam a civilizações diferentes e provinham das mais variadas regiões da África. Possuíam suas religiões, e culturas e organização próprias, famílias, clãs e aldeias. O tráfico negreiro violou tudo isso. E o escravo foi obrigado a se incorporar, quisesse ou não, a um novo topo de sociedade baseada na família patriarcal, no latifúndio, no regime de castas étnicas, na fé católica. Nas Constituições primeiras do Arcebispo da Bahia, o título II do livro primeiro, manda que se ensine os escravos os "artigos da fé para a sua salvação.1" A forma prevista para a instrução dos escravos, na sua catequese é determinada pela mesma constituição. Se divide entre perguntas e respostas as quais deveriam ser ensinadas aos escravos. "Os africanos importados de Angola são batizados em massa antes de saírem de sua terra, e chegando ao Brasil ensinam-lhes os dogmas religiosos e os deveres do culto que irão seguir. Trazem no peito o sinal da Coroa Real a fim de indicar que foram batizados e por eles pagos os direitos."2 O batismo em massa era a primeira, mas não a única forma de integração do escravo à doutrina católica. As orações do Padre Nosso e Ave Maria, os Mandamentos de Deus e da Igreja, os sacramentos e mais orações católicas constituíam a segunda parte no processo de evangelização dos africanos. Junto a isso tudo vêm a "breve instrução dos mistérios da fé, acomodada ao modo de falar dos escravos do Brasil," apresentadas em forma de perguntas as quais estes deveriam responder. Seria duvidoso acreditar que a simples reprodução das respostas do modelo de instrução fosse necessário para que os escravos africanos entendessem a doutrina católica. 1 2 Id. Ibid. livro 1. Título II. p. 3. . FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime de economia patriarcal. 10a ed. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1961. pp.352-353. 73 A quinta pergunta e sua reposta, remetem ao dogma da Santíssima Trindade. Questão essa muito discutida por muitos teólogos da Igreja.3 Como esperar que os africanos oriundos de povos com religiões, muitas vezes politeístas, entendessem que Deus poderia ser três pessoas em um só? Como querer que eles entendessem que a mãe de Cristo o concebera virgem, como a resposta da décima pergunta? Qual seria o significado de Diabo, céu ou inferno para os africanos em suas religiões e crenças? Assim demonstradas as dificuldades da breve instrução para se considerá-la como ponto principal de evangelização dos escravos africanos, há necessidade de se procurar outros elementos. A sociedade fornece alguns interessantes. A análise da participação dos escravos na cultura da sociedade mineira para tentar perceber traços do catolicismo na vida dos escravos se dividira aqui em 3 pontos. No coletivo social, através das irmandades de negros. Nos grupos de negros e participações em episódios do dia-a-dia, e dos cultos aos santos. No individual, pelos sacramentos que recebiam pela hora da morte, e seu pelo sepultamento 5.1 - As Irmandades de negros em Minas Gerais colonial As irmandades em Minas Colonial eram uma forma de agremiação bastante comum. Seus templos podem ser visitados, demonstrando na sua arquitetura e decoração barroca como a sociedade dos setecentos tinha na religião uma forma de coesão social. As irmandades de negros eram as únicas instituições onde este podiam, dentro da legalidade, exercerem atividades que pairavam acima de sua condição. Em síntese, segundo Caio César Boschi, as irmandades funcionaram como agentes de solidariedade grupai, congregando, simultaneamente, anseios comuns frente à religião e perplexidades frente à realidade social.4 A irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos de ouro Preto é um bom exemplo de como estas se organizavam. Havia a eleição de um rei e uma rainha, ambos pretos 74 3 Constituições primeiras do Arcebispado da Bahia. Feitas e ordenadas pelo Ilustríssimo e Reverendíssimo Senhor. D. Sebastião Monteiro da Vide em 12 de Junho de 1707. São Paulo,1853 livro 03 título XXXIII, p.220. 4 BOSCHI, Caio César. Os Leigos e o Poder. Irmandades leigas e política colonizadora em Minas Gerais, São Paulo; Ática, 1986. p. 14. de qualquer nação. Deveria haver também um juiz e sua juíza negros, de qualquer nação, forros ou cativos. Do mesmo modo se prevê a condição de um sacristão e um orador, este teria a obrigação de visitar 2 vezes na semana os irmãos e irmãs enfermos e principalmente aos libertos que fossem pobres.5 As irmandades mineiras caracterizavam-se por atender aos anseios comuns dos seus membros, não apenas quanto à religião, como também em relação a coesão e à proteção social. Essa proteção era reconhecida pela sociedade. Isto não se dava por consenso. Julita Scarano esclarece que os livros de compromissos das Irmandades que se erigissem deveriam ser aprovados pelo rei para que estes fossem reconhecidos6. Por isso, o exemplo que o texto da Nova e curiosa relação nos fornece, fala da proteção que os irmandades oferecem. "Mineiro - Como dizia: Vendo eu que o preto me servia com fidelidade, e prontidão em tudo, e que ainda depois da promessa a sua presteza em tudo era maior, assentei logo comigo, que por nenhum modo lhe daria caria de alforria. Letrado - Isso foi contra toda a razão: pois da razão que houve para em Vossa Mercê se aumentar a causa para dar por forro ao tal escravo, fêz Vossa Mercê motivo para faltar à sua palavra. Mineiro - O negro, vendo que eu lhe faltava ao que tinha prometido, começou a esfriar-se do fervor com que me servia, e de tal sorte me desagradou, que intentei vendê-lo para o Brasil, só para que lá i com rigoroso castigo acabasse a vida. O negro, sabendo isto, aconselhado com outros, foi assentar por Irmão de uma sua Irmandade, que dizem tem o Privilegio para não poderem os pretos da dita Irmandade serem vendidos par ao Ultramar; porém eu, tanto que tal soube lhe dei um áspero castigo, e não obstante issos determino vendê-lo às escondidas e mandá-lo para as Minas. Letrado - O Privilégio que os Senhores Reis concederam aos pretos dessa Irmandade é uma lei pela qual eles mandam que os tais Irmãos não possam ser vendidos para o Ultramar, logo todo o que violar assim me parece que nesse caso há matéria de restituição, assim à mesma Irmandade, pelo que 75 5 Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos pretos de Ouro Preto. 1753. Rolo/microfilme 0005/0932-1020 AEPNSP Casa dos contos de Ouro Preto. 6 SCARANO, Julita. Devoção e Escravidão: A irmandade de nossa senhora do Rosário dos Pretos no Distrito Diamantino no século XVTII. 2o edição. São Paulo: Ed. Nacional, 1978, p.46 pode interessar nesse Irmão, como ao mesmo Irmão, pelo que podia interessar em estar na dita Irmandade."7 Mas é a ação da sociedade escravocrata nas irmandades negras, o principal ponto a ser considerado. O porque é simples. Irmandades, confrarias e ordens terceiras não são elementos da cultura africana. Os escravos quando formavam suas associações estavam reproduzindo a ideologia do homem branco. O compromisso da Irmandade de N.S.a do Rosário dos Pretos de Ouro Preto, prevê a participação de homens brancos em cargos importantes e que deveriam ser considerados irmãos com todos os direitos dos demais. "Ordenamos, e havemos por bem; que todos os brancos que nesta Irmandade servirem de Protector, Escrivão e Tesoureiro, fiquem sendo Irmãos desta Irmandade e gozando de todas as graças e indulgências, a ela concedidas, e de todos os sufrágios, obras meritórias que fizer, para o que assinarão termo, pagarão anualmente como os demais irmãos, porém não pagarão entrada, atendendo ao trabalho que tem em zelar, administrar esta Irmandade, e seus bens com declarações porém, que não terão voto em mesa, mais que no templo em que servirem de oficiais desta,(...)"8 Marcos Magalhães Aguiar, em sua dissertação de mestrado, Vila Rica dos confrades9, explica a presença destes homens brancos nos cargos administrativos pela necessidade de alfabetização de alguns, como os escrivães e pela boa situação económica providencial para os tesoureiros. O socorro aos recursos de um tesoureiro eram, segundo o autor, frequentemente exigidos na suplementação da receita através de empréstimos, mormente em circunstâncias específicas.10 Vários autores destacaram o papel assistência! das irmandades mineiras do século XVIII. Em Vila Rica dos Confrades , seu autor, destaca que muito pouco ou quase nada era gasto no amparo de irmãos necessitados, por motivos de doenças, pobreza, ou tragédias familiares específicas. O que não significa que inexistia a assistência aos confrades. Na sua irregularidade, respondendo a solicitação de oficiais, os gastos em assistência geralmente 7 . Um panfleto raro acerca dos abusos da escravidão negra no Brasil (1764)..pp.l&2-283 Livro de Compromisso. Irmandade. N. Sr.a do Rosário dos Pretos de Ouro Preto. Rolo/microfilme 005/0932- 1020 AEPNSP casa dos contos Ouro Prelo 8 76 9 AGUIAR, Marcos Magalhães de. Vila Rica dos confrades: a sociabilidade confrarial entre negros e mulatos no século XVIII. São Paulo: USP, 1993. 10 AGUIAR, Marcos Magalhães, Op. Cit. pp.69-70. cobriam despesas básicas de sustento e assistência médica, mas algumas chegaram a cobrir gastos de enterros, restrito nesse caso aos irmãos cuja atuação fosse reconhecida pela mesa da irmandade.11 Apesar de sua função assistencialista, Caio César Boschi, vê na açao das irmandades, inclusive a dos negros, a sombra do estado. Para ele ? o socorro do Estado decorria de se enxergar nelas a sua contribuição para a propagação da fé, para a manutenção do culto cristão e para o assistencialismo social. "Ao permitir e mesmo estimular a criação de comunidades leigas de negros, Estado e Igreja, ao mesmo tempo em que lhes facilitava a assimilação da religião cristã, proporcionavam aos negros uma espécie de sincretismo planejado" isto é, dirigiam e determinavam as formas pelas quais seriam norteados os contatos religiosos dos negros com os brancos, no esforço de assimilação e fixação daqueles ao mundo destes.12 Deste modo, para o autor, as irmandades negras funcionavam como aparelhos ideológicos de um Estado e Igreja escravistas. O sincretismo planejado em Caio César Boschi, remeteria ao fato de que as práticas repletas de místicas africanas seriam permitidas porque nesse processo a ideologia católica e governamental estariam sendo atendidas e ao mesmo tempo conservava-se os negros em sossego. Para Roger Bastides este sincretismo planejado, produziria outros fins. Para Roger Bastides, estudando as confrarias e irmandades, o sincretismo planejado, surgiria, por exemplo, na aceitação de alguns costumes africanos adaptáveis ao catolicismo. É o caso, por exemplo, das eleições de reis e rainhas nas confrarias. Os reis das confrarias intermediariam o controle dos senhores brancos através da obediência que os seus irmãos-súditos lhes prestassem. Constituindo desse modo canais de controle do branco sobre a massa de negros.13 Ao contrário de Caio César Boschi, para Roger Bastides este seria o primeiro ponto do sincretismo planejado nas irmandades de negros. Não o único. O sociólogo analisa que a partir da ignorância linguistica dos brancos, se permitiu proteger, contra o controle dos padres e senhores, suas crenças menos ortodoxas. Para ele as irmandades de africanos e descendentes foram importantíssimas para a sobrevivência das religiões dos 77 escravos africanos no Brasil. 11 12 Id. ibid.p.69. Id. ibid.p.63. Roger Bastides cita: "Não sabemos de onde Diogo Pereira ou Vasconcelos deduz sua afirmação de que uma das confrarias do Rosário era composta de filhas de lemanjá, mas o que sabemos é que em toda parte onde existiram confrarias de negros a religião africana subsistiu, no Uruguai, na Argentina, no Peru e na Venezuela, e que religiões africanas desapareceram nesses países quando a Igreja proibiu as confrarias de se reunirem fora da Igreja depois da missa para dançar.14 Se a Igreja planejou o sincretismo como forma de controle sobre os escravos como quer C.C. Boschi, sem querer ajudou a sobrevivência dos cultos africanos como demonstrou Bastides. Roger Bastides não permanece na questão do sincretismo, para ele irmandades também representavam conflitos. Fato é que as associações leigas em Minas do século XVIII eram tanto a maior forma de manifestação religiosa popular, que disputavam prestígio num ciúmes mútuo. Concorriam para ver qual delas ornaria melhor sua capela, qual teria mais poder, qual seria a mais rica. "Os homens de cor se contagiaram por esse movimento; organizaram também confrarias calcadas no modelo dos brancos e assim, o conflito racial vai se dissimular sob o manto da religião e oposição étnica vai tomar aspecto de uma luta de sociedades religiosas."15 Como todas as outras, as irmandades dos escravos, africanos ou crioulos, foram usadas pelo Estado para amenizar as tensões pertinentes à escravidão. Nesse ponto a dissimulação vista por R. Bastides em C. C. Boschi é encarada como um mascaramento das tensões. A Igreja em Minas Colonial, controlada pela coroa portuguesa é ferramenta eficiente para o domínio da administração de Portugal. Constata Boschi: por intermédio das irmandades, a religião em Minas Gerais permaneceu sendo um de seus sustentáculos, isto é, para além de ser uma forma de consolidação dada por Deus aos homens, também ali deveria funcionar como melhor ou mais seguro meio para conservar a tranquilidade e a subordinação necessárias para os povos.16 A preocupação com os rituais da morte era uma das principais características, não só das irmandades negras, mas, do mesmo modo de suas similares_de homens 78 brancos. 13 BASTIDE, Roger. As Religiões Africanas no Brasil: contribuição a uma sociologia das interpretações de civilizações, trai Maria Eloisa Capclato. São Paulo: editora da uriversidade de São Paido. 1971,p.78. 14 BASTIDE, Roger. Op.Gip.79. 15 Id.Ibid.p.l64. 16 Id. Ibid. p.105. Se as irmandades num todo, foram expressão da sociedade colonial, em suas tensões, conflitos e estratégias, um ponto elas tinham em comum, representam a religiosidade de seus membros. Para além das festas, assistências e disputas por prestígio, os ritos fúnebres e atitudes diante da morte marcam essa preocupação com a fé. O dever de se evitar a "morte solitária" 17, era costume em todas as irmandades brasileiras. João José Reis, em estudo para a Bahia e sobre a morte seus ritos e o comportamento popular envolta desta, afirma que todos os irmãos deveriam comparecer com as vestes, velas, tochas e os emblemas da irmandade onde o defunto se filiara.18 As confrarias negras, desde as primeiras, imitavam as irmandades brancas quanto aos funerais de seus membros. Os escravos tinham um motivo a mais para se preocupar que a análise dos estatutos sobre a pompa fúnebre de suas irmandades não permite ver. A atitude dos seus senhores quando de sua morte. Alguns senhores mandavam dizer missa por alma dos escravos de estimação. Mas havia também aqueles que passavam por cima dessa tarefa. Também no nordeste, existiam desses senhores. Gilberto Freyre, fornece o exemplo: "na cidade, com a falta de cemitérios durante os tempos coloniais, não era fácil aos senhores, mesmo caridosos cristãos, darem aos cadáveres dos negros o mesmo destino piedoso que nos engenhos. Muitos negros foram enterrados na beira da praia: mas em sepulturas rasas, onde os cachorros quase sem esforço achavam o que roer e os urubus o que pinicar."19 A situação de escravos, mesmo de forros, pela situação económica que lhes é característica, remetia as irmandades de negros, a intenção de que seus membros fossem enterrados nas suas próprias igrejas.20 Por isso os irmãos destas raramente eram enterrados nos cemitérios da matriz. Nos registros de óbitos percebe-se que quando morre um membro das confrarias de negros é indicado o sepultamento na capela da mesma, sabia-se que era o desejo do falecido irmão. "Aos sete dias do mês de agosto de mil setecentos e cinquenta e cinco anos faleceu de vida 79 presente com o sacramento da penitência Ignácio Saburú escravo de Braz Martins Cameyro morador no morro 17 AGUIAR, Op. Cit. p.232. REIS, João José: A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: cia das letras 1991, p.144. 19 FREYRE, Op Cit. p.439. 20 Id . Ibid. p.240. 18 do Baixo, era depositário António Ramos dos Santos: esta sepultura na capela de N. Snra. do Rosário dos Pretos desta vila por ser irmã de que fiz este assunto. O pároco Pedro Leão de Saa."21 Desse modo a importância da irmandades para o exame da religiosidade escrava em Minas do século XVIII, revela ser quase sempre transitória. Da tensão ao assistencialismo. Da estratégia de controle à possibilidade de expressão. Da integração do escravo na sociedade ao seu falecimento. Do catolicismo às marcas da escravidão. 5.2 - Celebrações e Santos: "A primeira grande mostra da Igreja nas Minas será a realização do Triunfo Eucarístico, em 1733, a maior festa talvez da história colonial brasileira, o primeiro marco histórico do fastígio do ciclo do ouro de Minas Gerais, que irá resultar consequentemente na criação em 1745, do Bispado de Mariana, o verdadeiro atestado de maioridade da Igreja Mineira."22 A exaltação de José Ferreira Carrato ao Triunfo Eucarístico é condescendente com o estilo do autor do mesmo. Simão Ferreira Machado, português, morador em Ouro Preto na época do translado. A festa do Triunfo Eucarístico foi uma comemoração religiosa da sociedade mineira setecentista, muito interessante para o estudo das relações entre escravidão e catolicismo. O livro de Simão Ferreira Machado fora encomendado pelos "donos" da festa. A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos da então Vila Rica. Festa católica, um verdadeiro "carnaval religioso" - se se permite a expressão -, símbolo de celebração do principal sacramento da liturgia católica. Sem dúvida, manifestação da religiosidade popular que permite perceber "forças" desta sociedade articulando-se ainda enquanto esta se formava. Afonso Ávila percebe o Triunfo Eucarístico, mais que 80 uma festa religiosa. A celebração para 21 Registro de óbitos documento microfilmado, rolo/microfilme 054 /043Í-0737 AEPNSP/ Casa dos Contos - Ouro Preto 22 CARRATO. Ibid.p.28. ele revela o estado de euforia da sociedade mineradora, que se expande numa festa mais de regozijo do que do comprazimento espiritual.23 Simão Ferreira, narra em sua Previa Allocutoria a história da colonização do Brasil, de Minas Gerais, e de suas principais vilas: Mariana e Ouro Preto. Lembra que Ouro Preto, tornara-se a capital da Capitania e demonstrava ser a mais rica e opulenta dentre as vilas mineiras. Mas, é sua observação exaltada talvez da religiosidade que chama a atenção. "Excede as povoações de toda a América esíe opulento e mistério das Minas, onde avulta, mais que as riquezas, o fausto dos Templos, e a preciosidade dos altares; e como o sol, a cujas luzes ficam sombras de todos os astros, os esplendores, a nobilíssima Vila Rica, mais que esfera da opulência, é teatro da religiãof...) novo exemplo Christandade."24 Augusto de Saint-Hilaire, no início do século XIX vê nas festas das irmandades, a vaidade. Afirma Sain-Hilaire, "constróem -se templos sem necessidade fazem-se despesas loucas para celebrar os padroeiros com festividades quase pagãs, e, como já o fiz notar alhures, não se pensa em fundar estabelecimentos de caridade, hospitais, escolas gratuitas, ete, etc. Nem mesmo o se poder dizer para esse abuso concorra uma piedade mal compreendida, na maioria das vezes a causa é a vaidade."25 Uma festa religiosa, com ritos pagãos numa situação de ostentação; é isto o que Saint-Hilaire vê no século XIX. Mas e para os negros da irmandade do Rosário, à época do Triunfo Eucarístico? a maioria de seus irmãos eram escravos. Seria a oportunidade de concorrer de igualmente na luta pelo status entre as irmandades. A oportunidade de cada um em seu papel no "desfile" que se configurava o translado, de se sentir aos olhos dos outros, participante da sociedade. Pode-se dizer que trata de uma vaidade que se fazia necessária. A festa que ocorrera aos 24 de maio, domingo, de 1733 movimentou toda a cidade de Ouro Preto, então Vila Rica. 81 É pela posição das personagens negras nos relatos do translado que primeiramente considera-se a participação dos negros no arranjo do cortejo. A contarse a participação dos 23 Á V I L A , A f on so . R e sí duo s se is ce nt is ta s em Mi na s: tr ec ho s d o s éc ul o do our o e a s pr o je çÕ es do m und o barroco. Belo Horizonte: Centro de estudos mineiros, 1967 p.15. 24 ÁVILA, Afonso. Op. Cit. pp.183-184 25 SAINT-HÍLAIRE, Auguste de. viagem as províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais. São Paulo : EDUSP. 1975 p.84. negros na procissão do translado, não sabemos se são todos escravos, pois a festa não expõe as condições sociais, só as étnicas, estas são muitas. Só os pajens, segurando as estribeiras dos cavalos das figuras principais são 25 no total, negros ou "mulatinhos" como os das estribeiras do cavalo da figura representativa do sol. "Vinham às estribeiras seis pajens, três a cada lado, mulatinhos de gentil disposição; todos da mesma estatura e semelhantes no traje."26 A posição dos pajens, permite pelo exemplo citado, inferir que fossem negros, adultos ou adolescentes. Uma posição, talvez, inferior. Mas não se pode dizer que estavam insatisfeitos com a sua participação na procissão. A participação ativa, é o que o exame das procissões pode sugerir sobre as populações que participavam. Peter Burke, remete aos estudos das procissões para entender a religiosidade popular. Para ele estes eventos, realizados na rua e não na igreja, permitem que os leigos participem e não apenas assistam ao cerimonial religioso.27 No caso do Triunfo Eucarístico, além das irmandades no cortejo, individualmente pode-se perceber o papel dos negros na celebração. A cavalos, cantando em coro e tocando charamelas, os negros se integram a religião. As festas da Igreja que permitiam a participação dos escravos africanos configuravam-se em todo Brasil e em Minas inclusive uma forma de integração, permitida e desejada. Permitida pela Igreja para a catoíização e aproximação do escravo. É o que Gilberto Freyre exemplifica sobre as festas de Reis, Natal, Ano novo e carnaval. Mas ele chama a atenção: "Liberdade a que não deixou nunca de corresponder forte pressão moral e doutrinária da Igreja sobre os escravos."28 Desejada pelo seu sinónimo de "liberdade" as festas foram reconhecidas como necessárias pelo governo, como por exemplo no início do século XIX, o Conde de Arcos , escreveu de que os batuques dos africanos servia para reforçar seu passado de guerra étnicas na África, o que no Brasil vão se apagando pouco a pouco. 29 No caso de uma festa como Triunfo Eucarístico, não é o maniqueísmo do Conde de Arcos que se 82 valoriza. O contrário, de um grupo de negros africanos e crioulos unidos, é que se vê, a manifestação, perante toda a 26 Ávila, Afonso Op. Cit. p.235. BURKE, Peter. O mundo como teatro. Estudos de antologia histórica. Lisboa: DIFEL, 1992(coleção memória e sociedade) p. 120 28 FREY RE Op. Cit, p 356. 29 Citado por Bastides, Op. Cit p.81. 21 sociedade mineira, da potencialidade do seu grupo. No momento da celebração, e isso é o que o catolicismo lhe oferece, o escravo deixa de ser para estar escravo. O modo como ele se enxerga é diferente do seu cotidiano, de seu labor, dos castigos, das privações que sofre. Nesse momento o escravo é igual ao branco no cerimonial religioso. A celebração que sai da missa na igreja, onde o escravo ficava na porta, vai para a rua. No cortejo ele canta e celebra, dentro da organização que lhe é permitida. Ao mesmo tempo celebra os seus santos e carrega seus estandartes. "Seguia uma Irmandade da Senhora do Rosário dos Pretos, numerosa de muitos Irmãos, todos com roupas de seda branca. No meio dela iam três andores. O primeiro de Santo António, o segundo de São Benedito, o terceiro da Senhora do Rosário: na imagem era muito vistoso o ornato em sedas de ouro, e prata; e em vários; e custosas peças de ouro; e diamantes: nos andores em sedas, galões, e franjas de ouro; e variedade, e galanteria de diferentes flores de diversos materiais, e alternadas cores.”30 Os africanos puderam conservar traços de sua cultura nessas festas e agremiações como considera Roger Bastides; ao mesmo tempo, como ele mesmo reconsidera, "também exerceram influência [em sua cultura] os modelos europeus impostos, como as confrarias ou as associações de danças dos negros em nações"31 Para o estudo da religiosidade popular, e obviamente a escrava, perceber como os cativos cultuavam os santos do catolicismo, é algo essencial. Primeiramente é preciso tentar esclarecer uma questão. Laura de Mello e Souza no seu livro, O diabo na Terra de Santa Cruz, cita à página 53, algumas considerações do sociólogo Roger Bastides. A questão que a remete a Roger Bastides é a do culto de santos católicos por escravos, especialmente Nossa Senhora do Rosário, Santa Efigênia e São Benedito. Escreveu o sociólogo no livro, As religiões africanas no Brasil: "Esses fatos bem indicam que o culto de santos negros ou de virgens negras foi, de início, 83 imposto de fora ao africano, como uma etapa da cristianização; e que foi considerado pelo senhor branco como um meio de controle social, um instrumento de submissão para o escravo." 32 30 Id. Ibid. p.254. Id. Ibid.,p.83. 32 ld.,lbid.,p.l63. 31 Os fatos a que se refere o autor são o do culto a Nossa Senhora do Rosário. A partir desse culto, que ele menciona ter sido criado por São Domingos de Gusmão, sendo restabelecido quando os missionários europeus foram para a África, é que ele fez as considerações acima. Aqui, é a partir do culto de um santo negro, cultuado por negros é que pretendese verificar até que ponto as considerações de R. Bastídes, repetidas por Laura de Melo e Souza são pertinentes para o estudo do catolicismo dos escravos mineiros. São Benedito negro era um frade Franciscano, morreu a 4 de abril de 1589, começou a ser cultuado no reino da Sicília e também em toda Europa ,logo após a sua morte. Já no ano de 1610 seu culto estendia-se até a América e havia uma imagem sua no convento de São Francisco, da cidade dos Anjos, na Nova Espanha, onde se dizia que fazia milagres. Nas igrejas e conventos da Ordem Franciscana de Portugal, suas imagens aparecem no início do século XVII. Em Lisboa, no mosteiro de Santa Ana, 1609, instituía-se uma irmandade de São Benedito, com as festas do santo. Na cidade de Évora, veneravam-no com devota ostentação, numa capela particular.33 Para a igreja, porém seu culto só foi oficialmente permitido em 1743, e a sua colonização data de 1807. Quanto ao culto a Santa Efigênia, sua origem está na peregrinação dos primeiros apóstolos. Segundo a lenda diz-se que São Mateus teria convertido e consagrado a filha de um rei da Etiópia., após essa consagração ela teria passado a dirigir duzentas virgens, também consagradas a Deus.34 O caso de São Benedito por se do mesmo período do surgimento da escravidão negra, é o que mais se aplica a este estudo. Sobre a popularidade de alguns santos em Portugal, já escrevera Gilberto Freyre: "Os grandes santos nacionais tornaram-se aqueles a quem a imaginação do povo achou de atribuir milagrosa intervenção em aproximar os sexos, em fecundar as mulheres, em proteger a maternidade: Santo António, São João, São Gonçalo do Amarante. São Pedro, o Menino Deus, Nossa 84 Senhora do Ó, da Boa Hora, da Conceição, do Bom Sucesso, do Bom Parto".35 Acre logo após acrescente o grande número de escravos que existia na Península Ibérica,scente ao culto de São Benedito em Portugal a popularidade dos 33 ROSÁRIO, Diogo do. F/os sanctorum ou história das vidas de Ckristo e sua Santíssima Mãe e dos santos e suas festas. Volume IV. Lisboa : Typographia Universal de Tomás Quintino Antunes, 1870. 34 ROSÁRIO. Diogo do, Op. Cit, p.71. santos no reino e principalmente entre os portugueses, já nos séculos XVI e XVII. Como refere novamente Gilberto Freyre. "Todo o serviço é feito por negros e mouros cativos. Portugal esta a abarrotar com essa raça elegante. Estou quase a crer, que só em Lisboa, há mais escravos e escravas que portugueses livres de condição (...)". Alexandre Gusmão se alarmava então a respeito da escravidão em Portugal. Deduzir que seriam os escravos do reino a trazer o culto aos santos preferidos dos escravos no Brasil é uma questão lógica. Encontra-se no trato popular que se tinha com os santos, e não a imposição de um culto, a preferência deste ou aquele santo. São Benedito e Santa Eílgênia eram negros, é uma questão de semelhança de cor. Questão de identidade do escravo negro no mundo branco. O senhor poderia pensar a fé aos santos e aos cativos que possuíam como instrumento de dominação, mas, pensar estrategicamente e impor, como inferiu Roger Bastides seria ir além do culto. Seria partir da relação de catolicismo e escravidão, para a de domínio ideológico e social determinados por uma "classe" dominante. No caso de Minas colonial, é na questão do relacionamento homem-santo, o que pode ser notado pela quantidade de templos erguidos a vários santos em todas as vilas e cidades mineiras surgidas no século XVIII, que se considera o catolicismo dos escravos. A religiosidade popular, ao gosto barroco, externava-se mediante manifestações marcadas por forte emoção e ostentação. Luís Mott encontrou um exemplo, em 1770, em Mariana, uma amostra do sincretismo com elementos católicos comuns não só aos escravos, mas, à população em geral. A escrava, Caetana, moradora no Sumidouro, distrito marianense aprendeu que, se cortasse uma ponta de sua camisa onde caíra o sémen e enfiasse-lhe numa conta do 85 rosário com um alfinete enterrando-a no chão onde ele [o homem que queria prender] costumava urinar(...).Essa "mandinga" envolvendo uma imagem de santo não foi a única que ensinaram à escrava. Dona Antônia Silva Leão, mulher de um doutor, sugeriu-lhe que medisse com um barbante a porta por onde saíra seu marido e cingisse Santo António com o cordão, prendendo-o e tirando-lhe o Menino Jesus e metendo-o numa caixa fechada, rezando a treze padre-nossos e treze ave-marias pela alma de sua tia por treze dias seguidos.36 35 Id. Ibid p.246 MOTT , Luís: Entre a capela e o calundu. In: SOU ZA, L aur a de Mello (org.). História da vida privada na América portuguesa. São Paulo: CiadasLetras,1997?pp. 90-91. 36 Este tipo de relação onde uma escrava utiliza das imagens de um santo para suas simpatias, também revela que os brancos, como Dona António Silva Leão, também mantinham, nas Minas do século XVIU, sua relação intima com os santos. Ao mesmo tempo, demonstra que nessa sociedade as crenças e simpatias não reproduziam a separação em castas da vida social. O mundo religioso, repleto de crenças não separa, une pessoas colocadas em pontos oposto da pirâmide social. Isso de certa maneira suavizava o cotidiano do escravo. Não só as irmandades, mas também a fé neste ou naquele santo podia funcionar como elemento de integração do negro na sociedade. Desse modo as celebrações e o culto aos santos permitem verificar como, em Minas colonial, os escravos encaravam os costumes e tradições católicas, aprimorando-se do que lhes era oferecido a favor de sua integração à sociedade de um lado, e de outro, na sua intimidade, procurando ajustá-las as suas crenças e necessidades. As celebrações e culto à santos da Igreja, não foram tão controladoras numa sociedade tão diferente como a capitania das minas de ouro de Mariana e Ouro Preto. 5.3 - Os sacramentos e a sua aceitação pelos escravos A Igreja Católica tem na efusão de seus dogmas e sacramentos um dos seus alicerces doutrinários. Juntos com a liturgia e o culto aos santos representam quase toda a sua teologia. Qualquer católico, praticante ou não, aprende no catecismo, como é 86 ensinado até hoje, os sacramentos da Igreja. Por isso, para se examinar como os escravos do século XVIII mineiro se relacionavam com os sacramentos escolheu-se o exame de alguns registros de óbito das duas maiores vilas da época, Mariana e Ouro Preto. Nessas fontes a presença dos sacramentos do católicos é significativa. É em torno da morte e o que ela representa no mundo cristão, que se pretende entender como os escravos entendiam essa cristandade e como se relacionavam com ela. A importância da morte é formada a partir da relação do homem (social) com ela (o cultural). Trata-se de uma diferença entre morte natural : falecimento biológico e morte cultural: movimento através do qual os sobreviventes confirmam socialmente a morte biológica, considera-se portanto, a consciência que se tem da morte.37 A partir do comportamento social diante da morte é que privilegia-se as observações sobre a morte dos escravos nas minas de ouro do século XVIII. Antes porém, é preciso entender o ritual de morte no mundo ocidental. Philipe Aries, em sua obra: História da morte no ocidente, conclui três características sobre os ritos que precedem a morte, que são válidos para a sociedade do Brasil Colonial. A primeira conclusão é que a morte é esperada no leito. O enfermo ou moribundo, morre na cama, de preferência em sua casa ou na de alguém próximo a ele, amigo ou parente. No caso dos escravos a morte nas propriedades de seu senhor serão as mais comuns . Observa-se que sendo uma morte "repentina" obviamente não há um "ritual". A segunda conclusão do autor é que a morte é uma cerimónia pública e organizada. Organizada pelo próprio moribundo ou seus familiares, que conhecem o protocolo e pública, pelas constantes visitas e expectativa dos vizinhos, parentes, padre e demais pessoas que passam pelo enfermo até que este faleça. E por último a simplicidade. Simplicidade no sentido de aceitação e cumprimento de todo um cerimonial, sem drama ou excessos de emoção.38 Este cerimonial, percebido, a envolver a morte, sempre foi de muito significado para a Igreja Católica. A Igreja lutando contra as religiões pagãs que realizavam banquetes funerários e cremavam os corpos dos falecidos; ao mesmo tempo 87 criava uma nova mentalidade sobre como encarar a morte. Estabelecia nesse ínterim uma fronteira entre os convertidos e os pagãos que cultuavam seus mortos.39 As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, em seu livro quarto, título XLIV, determinavam que nenhum defunto fosse enterrado sem ser encomendado pelo seu pároco. Esse direito era estendido aos escravos e no Brasil de 1707, a Igreja ordenava que os senhores cuidassem do sepultamento destes. 37 CAMPOS, Adaígisa Arantes. Notas sobre os rituais da morte na sociedade escravista. In: Revista doDepartamento de História da UFMG.1988,p.l09 . 38 ARIES. Philípe. A História da morte no ocidente Trad. Luiza Ribeiro, 2a ed. ;Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989 p.109. 39 VENANCIO. Renato Pinto. Os escravos e a morte cristã: uma investigação nos arquivos paroquiais de Minas Gerais no século XVIII, DEfflSAJFOP 1998 p.5. “ E porque é alheio da razão e piedade enrista, que os senhores, que se servirão de seus escravos em vida, se esqueçam deles em sua morte, lhes encomendamos muito f que pelas almas de seus escravos defuntos mandem dizer missas, e pelo menos sejam obrigados a mandar dizer por cada um escravo, ou escrava que lhe morrer, sendo de quatorze anos para cima, a missa de corpo presente, pela qual dará a esmola acostumada.”40 Sobre os enterros de escravos, previstos pelas Constituições Primeiras, as considerações de Adalgisa Arantes Campos são complementares às observações deste estudo : "Na luta contra a animalização do homem a conquista do direito de enterrar os mortos constitui, segundo Clarival do Prado Valladares, primeiro passo de ascensão sociai dos escravos no Brasil Colonial."41 Quanto aos locais das sepulturas, Philipe Aries descreve como o defunto passou de enterrado fora da cidade até o enterro no interior ou adro da igreja. Escreve o autor que sendo os mártires enterrados em necrópoles extra-urbanas, esses locais passaram a atrair a população que queria ser enterrada próxima aos mártires. Passaram-se a construir basílicas onde os corpos dos mártires seriam enterrados, essas basílicas eram administradas por monges. Com o costume se popularizando, chegou um momento em que desapareceu a distinção entre os bairros periféricos -onde se enterrava ad sonetos, porque se estava extra urben- e a cidade, sempre proibida às sepulturas. A partir do enterro do bispo Saint Vaast, em Amiens, no século VI, sendo enterrado dentro da catedral, como relata Philipe Aries, começou-se o costume de se enterrar as pessoas no interior das igrejas. A separação 88 entre a abadia cemiterial e a igreja catedral foi então abolidda.42 Em Minas Gerais do século XVTII, escravocrata e católica, o costume medieval era comum à todas as pessoas, de serem os seus sepultamentos perto ou dentro das igrejas, inclusive aos escravos. Era garantido aos cativos da África e seus descendentes, os mesmos direitos sacramentais que precediam a morte. Nos registros de óbitos da região de Ouro Preto e Mariana são encontrados três sacramentos normalmente empregados aos moribundos, a saber: extrema-unção, penitência, eucaristia e as vezes o batismo de escravos à hora da morte. A extrema unção consiste em: 40 41 42 Id.. Ibid. Livro 4, título LI, p.294. CAMPOS. Adalgisa Araníes. Op.Cit.p.110. ARIES, Philipe. Op. Cit. pp.22-23. " Os efeitos próprios deste sacramento são muitos, e principalmente três. O primeiro é, perdoarnos as relíquias dos pecados, pelos quais faltava satisfazer da nossa parte, ficando por isso aliviada a alma do enfermo. O segundo é, dar muitas vezes, ou em lodo, ou em parte a saúde corporal ao enfermo, quando assim convêm para bem de sua alma. O terceiro é, consolar ao enfermo, dando-lhe confiança, e esforço, para que na agonia da morte possa resistir aos assaltos do inimigo, e levar com paciência as dores da enfermidade."43 A penitência, também chamada pela Igreja de contrição: para o que fosse perfeita, deve seguir o seguinte processo segundo as Constituições Primeiras,: "Consiste este Sacramento em muitas cousas, que para ele são necessárias; umas da parte do penitente, que o recebe, e outras da parle do Sacerdote, que o administra. O penitente que o recebe, há de concorrer com a contrição, confissão, satisfação. O sacerdote que o administra há de concorrer absolvendo, e há de ter para isso legítima faculdade, ou ordinária, ou delegada, de quem lha pode dar/"44 Quanto aos cativos, o Sínodo Baiano ensina como os padres deveriam proceder para a contrição dos "escravos e gente rude" devia lhe ser ensinado a repetir: "Meu Deus, meu Senhor o meu coração só vos quer, e ama: eu tenho feito muitos pecados, e o meu coração me deve muito por todos os que fiz perdoai-me meu senhor, não hei de fazer mais pecados: todos boto fora do meu coração, e da minha alma por amor de Deus."45 A administração da Eucaristia aos enfermos é ordenada aos sacerdotes para 89 que aplicassem a todos os seus fregueses, tendo estes ainda a obrigação de investigarem na sua paróquia se há alguém que precise, o procurasse e administrasse o sacramento. Caso alguma pessoa viesse a morrer sem a Eucaristia por culpa ou negligência do padre, este seria preso e suspenso do seu ofício e dos benefícios por um ano e demais penas que lhe imputassem os visitadores.46 Para a comunhão dos escravos está previsto uma forma para que os padres a empreguem"47. A aplicação dos três sacramentos ao agonizante, é relatado nos registros de óbitos como o termo todos. Desse jeito a morte, para além de pública e 43 Id. Ibid. livro 1, título XLVI - p.41. Id. Ibid. Livro 1 título. XXXIII p.54. 45 Id. Ibid. Livro 3 título. XXXII p.221. 46 Id. Ibid. Livro 1, titulo XXIX pp.46-48. 47 Id. Ibid. livro 3 titulo XXXII p.221. 44 organizada como referiu Philipe Aries, possui no mundo católico uma feição de confirmação da fé. Os sacramentos que a precedem possuem mais que um caráter social, possui também um forte apelo teológico. Só estavam isentos de receber os sacramentos que precediam a morte: os meninos e meninas que não têm uso da razão (inocentes); os que morrem por morte violenta por justiça; os que entram em batalha ou larga e perigosa navegação no mar; os excomungados e impenitentes que tiverem em pecado público; os doidos; e os que faleciam repentinamente. No geral, os registros dos óbitos dos escravos em Mariana e Ouro Preto relacionavam além da data do falecimento, os sacramentos, situação (escravo ou forro) às vezes e o local da sepultura; em alguns casos como os de africanos, uma referência a nação. Na maioria das vezes seguiam o modelo abaixo: "Aos oito de junho de mil setecentos e quarenta e cinco faleceu com todos os sacramentos, Maria angola de cinquenta anos pouco mais pouco menos escrava de Ignácia da Sylveira moradora no rosário e foi encomendada e sepultada na capela da Igreja de Nossa senhora do rosário dos pretos de que fiz esse assento."48 A partir do trabalho do professor Renato Pinto Venâncio, sobre a difusão dos sacramentos examinados nas atas de óbitos de 1755 nas paróquias de Mariana, Campanha e Diamantina é que se iniciou a tarefa. Preferindo nesse exame dos dados os referentes a Mariana, pesquisou-se registros 90 para 10 anos antes e 10 anos após, para a verificação da variação. O caso de Mariana é um bom exemplo, localiza-se na região rica de mineração, com muitos escravos. É a mais antiga cidade de Minas e por fim sede do bispado. Mariana é aqui considerada, por esses motivos, o centro da questão entre escravidão e catolicismo em Minas Colonial. Por isso além das amostras de 1745 e 1755 uma amostra a mais se fez para verificar os sacramentos dos registros da população negra da época da criação do bispado à deccadência da mineração. Os dados de Mariana para os sacramentos levantados por Renato Pinto Venâncio no total de 57 para Mariana, demonstram segundo o autor: "é sintomático o fato de justamente em Mariana, cidade sede do bispado, ter apresentado os mais altos índices de difusão de 48 AEPNSP (Rolo/microfilme/ 054/43 l-0737Vol. 1852) Casa dos Contos Ouro Preto. sacramentos entre os escravos"( gráfico 1). Para comparar com Mariana nesse mesmo período estudou-se os registros em Ouro Preto, demonstrados no gráfico 2. 91 O gráfico feito a partir do exame de 115 registros de óbitos demonstra que em Ouro Preto a difusão dos sacramentos entre os escravos para esse mesmo ano foi bem menos que em Mariana. Fica difícil deduzir porque, mas é preciso valorizar que o montante de escravos que receberam todos os sacramentos é uma constante relativamente proporcional aos que receberam só a penitência. O caso de Mariana chamou a atenção. Para um exame mais detalhado toma-se de amostra os anos referidos de 1745, ano da criação do bispado e 1775 ano em que a economia mineira já estava em decadência na região. Gráfico 3 92 Num todo de 1745 a 1755, a população escrava de Mariana continuou recebendo os sacramentos pelo falecimento eminente. Penitência administrada junto com a extrema unção, foram os sacramentos mais comuns entre os escravos. Dado a sua importância na liturgia católica destes sacramentos não se pode inferir que os escravos negavam a doutrina da Igreja, nem mesmo na hora da morte. A fé que manifestaram em vida, ainda que desprezada pela ortodoxia católica, não seria renegada pela aproximação da morte. Percebe-se também sobre aqueles que recebiam todos os sacramentos, que se preparavam à moda cristã para morrer. O lugar da sepultura vai expressar a condição social do falecido e sua relação com a ideia da morte. João José Reis menciona que na mentalidade colonial, ser enterrado na igreja era também uma forma de não romper totalmente como mundo dos vivos, inclusive para que estes, em suas orações, não esqueçam os que tivessem partido. Os mortos eram sepultados nos mesmos templos que frequentaram na vida.49 Isso explica bem a relação das irmandades leigas com o sepultamento de seus irmãos. Segundo as leis do arcebispado da Bahia, todo católico tinha o direito de ser enterrado na igreja de sua escolha. As autoridades eclesiásticas ameaçavam com pena de excomunhão os religiosos que, por algum motivo, induzisse aiguém a optar por sua igreja, capela ou convento. 49 REIS, João José. Op. Cit. 171. Para a sede do bispado encontrou-se a seguinte variação de enterros de escravos. 93 A maioria dos enterros de escravos foram no cemitério e no adro da igreja matriz. Nesse caso é preciso salientar que ser enterrado no interior da Igreja representava na mentalidade do século em questão estar mais próximo das orações dos vivos. Acreditava-se que essas orações intercediam pelos mortos diminuindo o tempo desses no purgatório. Por isso mesmo fora das capelas das irmandades dificilmente um escravo poderia pagar pelo preço de um túmulo no interior da igreja matriz Os escravos enterrados em capeias de santos normalmente eram irmãos destas. A maioria dos sepuítamentos foram realizados nas capelas de São Gonçalo e de N. Sra. Do Rosário dos pretos. Assim o exame dos registros de óbitos dos escravos revela além de sua condição reafirmada na decisão de se enterrar, na grande maioria das vezes, os escravos em covas mais baratas porque que esses ou seus senhores nào podiam, ou não queriam pagar mais. O recurso as irmandades de negros para os enterros foi uma opção comum entre a massa escrava e forra. Por outro lado, a morte e todo o seu ritual íitúrgico não foi comumente dispensada pelos escravos. Seus sacramentos tiveram uma boa aceitação. Se o falecimento era um ato público, parecia no inconsciente dos cativos que assistiam ao seu semelhante agonizante, uma oportunidade de se demonstrarem solidários e socializados ao mundo que os escravizara. Ao mesmo tempo no ritual da morte confirmava-se os sacramentos da Igreja Católica que deveriam ser ensinados aos escravos, as questões que os párocos deveriam fazer a estes deveriam ser ensinados aos escravos, as questões que os párocos deveriam fazer a estes tinham como resultado, revelar a consciência cristã dos livres e dos cativos destes. 94 Avaliar até que ponto os escravos enfermos nas Minas do setecentos compreendiam estes sacramentos e se aplicaram-no em sua vida é algo que ao historiador parece impossível. Nas Minas Gerais colonial, morrer podia ser uma festa, um acontecimento social,, como em toda a colónia portuguesa das Américas, mas uma festa dentro de toda reflexão que o pensamento católico oferece sobre a morte e tudo o que a sociedade vivia de sua religiosidade. 6- Considerações finais 95 A investigação do processo de evangelização de escravos na região de Mariana e Ouro Preto, como foi proposto, foi um trabalho árduo e detalhado. As fontes históricas referentes a este assunto não são muito especificas. Exige-se uma leitura de vários tipos de fontes eclesiásticas: cartas pastorais, livros de devassas, livros de compromisso de irmandades, registros de óbito de escravos, para se produzir algum conhecimento sobre o assunto. Desta maneira as considerações a que chegamos dizem respeito ao escravo de certa forma catolicizado em relação a cultura dominante, mas este catolicismo não se dera por vias exclusivamente da Igreja Católica. Embora tivesse o interesse em administrar o sacramento aos escravos - principalmente batismo, eucaristia, unção dos enfermos e penitência -,em minas setecentista a própria Igreja não possuía um quadro de padres e vigários suficientemente preparados ou de conduta exemplar como se exigia para a tarefa. A população mineira do século XVIII, era formada inicialmente por aventureiros em busca do ouro. Progressivamente se diversificou e estratificou-se com um grande número de escravos. A mobilidade da economia mineira, mais flexível que a agrícola, favoreceu o surgimento de categorias variadas na sociedade colonial mineira. Sociedade de costumes, no geral, de pouca ortodoxia católica ou quase nenhuma, que não se preocupavam muito com a catequese de seus escravos, nem com o seu próprio comportamento. Essas pessoas entretanto, não deixavam de demonstrar uma certa religiosidade exterior, de cobertura, de tal modo também o faziam alguns escravos. Quanto ao escravo, é interessante analisar que aqueles que se diziam cristãos confessam isto, não só no seu comportamento religioso, mas também no cumprimento de alguns sacramentos, como batismo de filhos e unção dos enfermos, mas também nos dias de festas da Igreja e nas agremiações religiosas como as irmandades de negros. A busca da ajuda na irmandade contribuía para a integração do escravo nesse mundo desconhecido Os escravos viviam uma luta pelo status humano, desejavam sair de sua coisifícação. Arrancado de sua terra, de sua família, de suas raízes ele se vê jogado em um outro mundo de cultura diferente. A necessidade de reconstrução de sua identidade o obrigava a utilizar dos meios que esta sociedade mesmo sem querer oferece. O catolicismo como elemento indissociável da sociedade mineira colonial era uma desses elementos oferecidos inconscientemente pela "civilização em formação." 96 Outro fator a considerar é que esse ambiente, o da mineração, da urbanidade, da mobilidade social-, da religiosidade exterior, estava em vias de formação. Sua cultura passava por um processo de adaptação para um tipo de sociedade que o Brasil ainda não testemunhara na amplitude de que foi a Minas colonial. A própria Igreja católica não se consolidara na região, o que ocasionou desvios de conduta que inseriam o escravo. Ao mesmo tempo que oferecia ao cativo africano a oportunidade de se integrar ao "novo mundo" o catolicismo, na pessoa daqueles que o tinham por tradição queriam fazer dele um instrumento de controle, mas o cotidiano era diferente do planejado. E a "evangelização" da massa cativa vai fazer parte da integração social que é buscada pelos cativos nas entrelinhas do contexto de Minas Gerais no século XVIII. Esta religiosidade escrava, não era portanto, filha de um plano e ação direta da Igreja e nem pode-se dizer que era puro sincretismo. Permite inferir que era fruto da necessidade de reconstrução da identidade do escravo e esta se formava especialmente no plano religioso, não nas regras rígidas do sistema escravidão-religião, mas, em suas brechas. Essas brechas não seriam produto da ação evangelizadora da Igreja em Minas, demonstram serem resultado da própria formação da população de sua religiosidade popular e da forma como se estruturou a sociedade mineira colonial. 7- ABREVIATURAS 97 AEPNSP = Arquivo Eclesiástico da Paróquia de Nossa Senhora do Pilar AEAM - Aclesiástico da Diocese de Mariana 8 - FONTES PRIMÁRIAS Mariana - Documentos do AEAM: Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana Cartas pastorais: Pastoral sobre emolumentos paroquiais de D. Frei Manuel da Cruz - 1795 Cartas pastorais de D. Frei Manuel da Cruz - 1747 Visita Pastoral (Inficionado)/ Pastoral de D. Fr. Manuel da Cruz - 1749 Carta régia sobre a expulsão de eclesiásticos escandalosos. Carta pastoral de D. Bartolomeu Manuel Mendes dos Reis - 1773. Carta sobre a supressão da Companhia de Jesus da Pastoral de D. Bartolomeu M, M. dos Reis - 1772. Recomendação episcopal sobre observância das ordens reais( D. Frei Domingos da Encarnação Pontevel ) - 1790. Livros de devassas de visitas eclesiásticas: Livro de devassas- I Iivrol730-1733 Livro de devassas-1 Iivrol733-1734 Livro de devassas- II Iivrol733-1734 Livro de devassas-1726-1743 Livro de devassas-1727-1748 Livro de devassas-1742-1743. Livros de registros de óbitos Livro de óbitos n°10 prateleira Q Livro de óbitos n° 11 prateleira Q Livro de óbitos n° 13 prateleira Q Livro de óbitos n°15 prateleira Q Livro de óbitos n° 16 prateleira Q Livro de óbitos n° 17 prateleira Q Ouro Preto - Arquivo da Paróquia de Nossa Senhora do Pilar (AEPNSP) / Ouro Preto / Casa dos Contos documentos microfilmados: registros de óbitos 1-Rolo/microfilme:054/0351-0430 2-Rolo/microfilme:054/0431-0737 SÉCULO XVIII. 98 9 - FONTES IMPRIMARIAS IMPRESSAS ALMEIDA, CM. de. (ed.) Código Filipino ou Ordenações e leis do Reino de Portugal. Rio de Janeiro. Tip. Do Instituto Filomático, 1870. ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil. 3a ed. São Paulo: Edusp, 1982. ÁVILA, Afonso. 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