R. Andrade
NOTA-DE-PESQUISA
211
ESCRAVIDÃO E COTIDIANO EM JUIZ DE FORA, UM MUNICÍPIO CAFEEIRO
DA ZONA DA MATA
Rômulo Andrade
Resenha: GUIMARÃES, Elione Silva e
GUIMARÃES, Valéria Alves. Aspectos
cotidianos da escravidão em Juiz de Fora. Juiz
de Fora: Funalfa, 2001, 96 p.
Escravidão negra, latifúndio e monocultura:
A economia brasileira do século XVI ao XIX
assentava-se sobre este conjunto de fatores, na
ótica da historiografia do início da década de
1960. A importância dada à profissionalização de
historiadores nos anos 80 e 90 fez com que aquela
visão se modificasse, ocorrendo, nas palavras
de Ciro Cardoso, “o incremento da pesquisa
fundamentada em documentações maciças e às
vezes seriadas” aliado a “uma percepção da
importância das diversidades regionais”1 . No
caso da Zona da Mata de Minas Gerais e,
particularmente, de Juiz de Fora, a história e
historiografia da escravidão oitocentista são
relegadas, em âmbito nacional, a segundo plano
– na maior parte das vezes, vistas apenas como
apêndices da área cafeeira fluminense –, tanto
por parte de especialistas como do público em
geral, o que é deveras lamentável, pois Juiz de
Fora foi não só um dos maiores produtores de
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
Aceito em 31/dez/2001
© Univ. Fed. Rural do Rio de Janeiro
café de Minas, como também um dos grandes
concentradores de mão-de-obra escrava,
colocando-se numa posição destacada em
relação a outros municípios da Zona da Mata e
às demais áreas de grande lavoura do sudeste.
O Quadro abaixo2 mostra que o contingente
escravo de Juiz de Fora manteve-se, nos anos
50, 70 e 80, em equilíbrio com toda a província do
Espírito Santo. Por um percentual baixíssimo,
perdeu para Vassouras no ano de 1872, deixandoa para trás, todavia, em 1882. Chegou a superar o
plantel campineiro em 60%, na década de 50,
reduzindo essa diferença para 36% e 40%, em
1872 e 1883, respectivamente. Também Paraíba
do Sul, outro modelo de grande lavoura, deteve,
em 1872 e 1883, um plantel cerca de 30% abaixo
do de Juiz de Fora (-27,5%, em 1872 e -29,5%, em
1883). O que dizer, então, de Rio Claro, cujo total
de cativos atingia apenas 1/8 da população
mancípia de Juiz de Fora, nos anos 50? Esses
dados são indicadores de que a interlocução com
a historiografia sobre a Mata Mineira pode
enriquecer o debate.
Jacob Gorender, em seu mais recente livro,
Rev. Univ. Rural, Sér. Ciênc. Humanas
Vol. 23(2): 211-213, jul./dez. 2001.
Escravidão e Cotidiano em Juiz de Fora
212
de caráter ensaístico e destinado a um público
mais amplo - o que não significou, contudo, perda
de qualidade -, refere-se a pesquisas recentes
sobre a família escrava, que possibilitam uma
visão diferente daquela dos historiadores de
características mais tradicionais: “As pesquisas
incidentes sobre a família escrava se
circunscreveram, até agora, à área paulista e
fluminense, no período de expansão da
economia cafeeira”1 (destaque nosso, R.A.).
Quadro 1: JUIZ DE FORA NO CONTEXTO DEMOGRÁFICO DE REGIÔES DE GRANDES
LAVOURAS DO SUDESTE ESCRAVISTA, 1853-83
Ano
1853
1854
1856
1870
1872
1880
1882
1883
Juiz de fora Campinas Rio Claro Vassouras Paraíba do S
13.037
----------8.149
----------1.426
--------------19.141
14.028
3.935
20.168
13.881
--------------4.852
----21.808
15.665
4.866
18.630
15.369
Na verdade, os estudos sobre a população
escrava na região cafeeira de Minas Gerais têm
sido contemplados em trabalhos acadêmicos e
artigos publicados em revistas especializadas,
desde o início da década passada2 . Calcados
fundamentalmente em fontes primárias, têm
grande potencial de participação nos debates,
transcendendo a questão regional,
principalmente pelo diálogo travado criticamente
com recentes contribuições historiográficas
pertinentes ao tema.
Nesse sentido, vem a calhar o
excelente livro de Elione Guimarães e Valéria
Alves totalmente dedicado ao cotidiano
escravista de Juiz de Fora. Excelente por vários
motivos, entre eles – além da qualidade da
pesquisa, do texto e da edição -, o fato de ser
distribuído gratuitamente para instituições de
ensino e grupos do movimento negro locais, o
que no mínimo problematiza, na melhor tradição
historiográfica, a vida da população negra
escravizada e/ou de seus descendentes,
disponibilizando-o ao público estudantil do
ensino fundamental e médio, por um lado, e
remetendo-o à discussão por um movimento
social que, embora resguardada sua importância,
costuma pecar pelo apego excessivo a heróis
destacados como Zumbi – independentemente
do fato de ser uma justa homenagem –, deixando,
no entanto, de conhecer e dar importância a
outros aspectos da resistência cotidiana dos
escravos e suas repercussões sociais, políticas,
econômicas e culturais.
Trata-se de um “olhar ao microscópio” que
não perde em momento algum a conexão com a
totalidade, abordando o passado de uma cidade
que de ponto de parada de tropeiros
transformou-se, ao longo do século XIX, em
grande centro cafeeiro, cujo dia-a-dia é
contemplado na abordagem do trabalho dos
escravos nas fazendas e na cidade, assim como
de suas condições de vida (e de morte!). Marcam
presença os temas recorrentes da alforria,
resistência – desdobrada em fugas, crimes,
suicídios, “perturbação da ordem pública”, etc...,
- tudo fundamentado em documentos cartoriais
aliados a uma concisa e pertinente bibliografia
atualizada, objetivando, no dizer das autoras,
“contribuir para que a História do Município seja
mais facilmente trabalhada pelos professores, e
(...) a História do Brasil se apresente mais
palpável, atraente e compreensível”3 . A obra
também tem o mérito de evidenciar a
potencialidade de trabalho e pesquisa contida
no acervo do Arquivo Histórico da cidade de
Juiz de Fora e, à medida que há uma farta
R. Andrade
213
transcrição de documentos – com orientação de
como trabalhá-los -, possibilita o acesso às fontes
primárias sobre a história regional, que abordada
como o foi no livro, toma sabor universal.
NOTAS
* Professor Adjunto de Metodologia da História,
História Econômica e História da África, da Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro. Mestre em História pela
UFF, Doutor em História Social pela USP.
1
CARDOSO, Ciro Flamarion Santana. “O Trabalho
na Colônia”. IN LINHARES, Maria Yedda (org). História
Geral do Brasil. 9ª edição revista e atualizada. Rio de
Janeiro, Campus, 2000, p. 95, 96.
2
Encontram-se as fontes utilizadas na elaboração do
© Univ. Fed. Rural do Rio de Janeiro
Quadro 1 em ANDRADE, Rômulo. “Juiz de Fora no
contexto das regiões de grande lavoura do Sudeste:
população e família escravas em perspectiva”.
Comunicação apresentada no XXI Simpósio Nacional
de História. Niterói, ANPUH/UFF, 22 a 27 de julho de
2001.
1
GORENDER, Jacob. Brasil em Preto & Branco: o
passado escravista que não passou. São Paulo, Editora
SENAC São Paulo, 2000 - Livre Pensar 4, p.46.
2
Há uma boa relação desses estudos em ANDRADE,
Rômulo, op. Cit.
3
GUIMARÃES, Elione Silva e GUIMARÃES, Valéria
Alves, op. cit., p.81.
Rev. Univ. Rural, Sér. Ciênc. Humanas
Vol. 23(2): 211-213, jul./dez. 2001.
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escravidão e cotidiano em juiz de fora, um município