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uda começava a escovar os dentes quando ouviu
tocar a campainha da porta social. Àquela hora,
ninguém batia em seu apartamento, nenhum dos
garotos do condomínio. Nem o pai nem a mãe recebiam
visitas pela manhã. Antigamente, Beta vinha esperá‑lo
para irem juntos à escola, mas, desde o ano passado, ela
mudara de turno, passara para a tarde, e dormia a manhã toda.
Era um acontecimento raro, mas também não era
caso de alarme: sempre aparece um vendedor, um sujeito equivocado procurando outro endereço (uma vez bateram em sua porta pensando que fosse consultório de
dentista). O mais incrível era como essas pessoas conseguiam driblar os porteiros e seguranças do condomínio,
que nunca estão onde deveriam.
Duda ouviu a voz da mãe, que conversava com alguém na sala. Ele prestou atenção e notou que havia dois
homens dentro na sala. Bem, isso sim era uma coisa fora
da rotina. O fato de a mãe ter aberto a porta significava
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que os visitantes deviam ser conhecidos. Mas a voz dela,
de repente, mais alta, revelou que estava nervosa.
Ainda com o rosto molhado, Duda abriu a porta do
banheiro, que dava para o pequeno corredor interno. A
voz da mãe agora era bem clara.
— É um absurdo! Não posso acreditar! O que os senhores pretendem?
Um dos homens insistia:
— São ordens. Acredite, não estamos fazendo isso
por prazer. É o nosso dever.
— E não temos tempo a perder — falou outra voz,
mais baixa, soprada com raiva.
Duda percebeu que alguma coisa não ia bem. Precisava ir até lá. Secou o rosto de qualquer jeito e jogou a
toalha para dentro do banheiro sem olhar: por pouco ela
não caiu dentro do vaso sanitário — e ele levaria a bronca de sempre; na semana passada, deixara cair dentro da
privada o aparelho de barbear do pai.
A entrada do garoto na sala não alterou a situação.
A mãe estava agora sentada numa poltrona, a cabeça
apoiada nas mãos, atônita. E, à sua frente, dois homens
vestidos de paletó e gravata, com cara de poucos amigos
e muitas intenções.
— O que está havendo? — perguntou Duda.
Os visitantes olharam para ele e pareceram surpreen­
didos.
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— Quem é esse garoto? — perguntou um deles.
— É meu filho... o nosso filho — respondeu a mãe. E
aí sim, vendo o menino no meio dos dois homens, começou a chorar:
— Não é possível! Não é possível!
Duda aproximou‑se da mãe e acariciou o rosto dela
— coisa que não fazia há muito tempo.
— O que está acontecendo aqui? Não estou entendendo nada!
Os homens não deram importância à pergunta e um
deles limitou‑se a comunicar:
— Bem, Dona Antônia, não leve a mal, temos que
começar. A senhora e o garoto ficam aqui na sala, sem
mexer em nada. Tem empregada?
— Temos — disse a mãe, fungando. — Está de folga
hoje, pediu para ver um parente que está mal, deve voltar
depois de amanhã... mora longe, em Barra do Piraí.
— Então vamos começar pelos quartos.
Os homens sumiram pelo corredor e Duda sentou‑se
ao lado da mãe, sentindo uma zonzeira, tinha que fazer
alguma coisa, mas não sabia o quê.
— Quem são esses caras?
— A polícia, meu filho! — E se sentiu justificada para
chorar mais alto.
Poucas vezes Duda tinha visto a mãe assim. Se morria um parente próximo, ela sentia, claro, chorava, mas
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nunca foi de fazer escândalo. Quando se comovia, ficava
com os olhos úmidos, apenas isso. Agora não: ela estava
aos prantos, tremia toda, como se estivesse recebendo
choques elétricos. Duda foi buscar água na cozinha, sem
se lembrar da recomendação dos policiais. Ao abrir a
geladeira, um dos homens apareceu subitamente a seu
lado e fechou a porta, antes mesmo de ele ter apanhado
a garrafa de água.
— Eu disse para não sair da sala! Não gosto de ser
contrariado!
— Mas... mamãe está passando mal... um pouco de
água...
— Deixa que eu mesmo levo — disse o homem. —
Onde tem copo?
Duda arranjou o copo, o policial encheu‑o e voltou
à sala. Diante da dona da casa, ele passou o copo ao
­garoto:
— Pronto. Dê água à sua mãe e agora fique quietinho.
Não saia daqui para nada sem antes nos avisar. Queremos acabar logo com isso.
— Mas acabar com o quê? — Duda quase berrava.
O homem olhou para ele e, mesmo sem querer ser
mau, fez uma cara terrível:
— Cala a boquinha, meu anjo! Daqui a pouco chega
a sua vez!
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E voltou para os quartos. O garoto ajudou a mãe a
beber água e, então, não teve vergonha de abraçá‑la, tal
como fazia quando era criança.
— Agora me conta, mãe! Explique o que está acontecendo, vamos avisar ao papai...
Ela aumentou o choro:
— Não... não fale com seu pai... Álvaro não precisa
saber de nada, ele é inocente... ninguém vai encontrar
nada aqui... ora, onde já se viu...
Entre soluços, começou a contar o que se passava:
— Imagina, meu filho, esses homens da polícia estão
dando uma busca... uma busca aqui em casa para ver...
para ver se encontram o dinheiro.
— Que dinheiro?
— O dinheiro, ora essa... um dinheirão... roubaram
de uma velha por aí... veja só, logo o seu pai, que lida com
dinheiro há tantos anos... lá no banco... logo ele, matar
uma velha para roubar... essa gente está maluca.
— Mas... — Duda começou a sentir o estômago revirar, parecia que ia vomitar. — Mas o que papai tem a ver
com isso? Ele não é ladrão!
— Nem assassino, meu filho. Esses homens vão perceber que estão enganados.
Duda, num impulso, dirigiu‑se ao corredor, disposto
a enfrentar a situação. Os homens revistavam o quarto
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dos pais, estavam revirando tudo, as gavetas jogadas no
chão, uma bagunça infernal:
— Parem! Parem com isso! É uma palhaçada!
Os policiais olharam espantados para o garoto, surpreendidos com aquela reação inesperada. Um deles remexia no fundo do armário, e o outro examinava o colchão. Por um momento, eles não souberam o que fazer,
mas, recuperados do susto, avançaram contra Duda:
— Escuta aqui, franguinho, quem deixou você sair
do castigo? Nós mandamos você ficar lá na sala, junto
da sua mãe. Quer complicar as coisas? Assim não terminamos nunca!
— Meu pai não roubou nada! Quando ele chegar...
Os homens riram. O que estava examinando o colchão aproximou‑se do garoto e deu um tapinha de leve
no rosto dele.
— Seu pai não chega mais, pirralho! Está em cana
desde hoje cedo, quando saiu de casa para ir ao banco. O
jeito é você não amolar mais a gente, pra tudo isso terminar o mais depressa possível.
Duda atirou‑se contra o homem e por pouco não levou um soco na cara. O policial se conteve, mantendo‑o a
distância. O outro veio por trás e facilmente o dominou.
— Quer ser amarrado? Fique quieto ou nós te amarramos numa cadeira! Menino malcriado é assim, tem
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que ficar de castigo — disse um dos policiais com ar debochado.
A mãe ouvira a confusão e não aguentara: viera da
sala e pedia calma aos homens:
— Não! Não encostem a mão no meu filho! Pelo amor
de Deus! Já basta o que está acontecendo!
Foi quando Duda falou o mais calmo que pôde:
— É isso mesmo! Já basta esta situação! E a gente
aqui sem entender nada! Por que tudo isso? Essa violência, minha mãe chorando... E os senhores revirando
tudo.
Duda, enfim, conseguiu comover os dois homens,
que, de certa forma, ficaram menos agressivos:
— Tá certo, menino, tá certo! — falou um deles. —
Você não quer encrenca, não é? Nós podíamos fazer uma
verdadeira miséria aqui dentro. Mas preferimos tratá‑los
com educação, queremos cumprir a nossa missão de forma simpática e rápida. Temos respeito por sua mãe, vê‑se
logo que vocês são gente boa. Não estamos aqui por vontade própria, lá na delegacia esperam pela gente, pelo
nosso relatório. Fique sabendo que estamos proibidos de
falar, de dar explicações. Recebemos ordens para vasculhar tudo, arrebentar tudo, as paredes, os colchões, o
teto, levantar o assoalho, se necessário for. Precisamos
achar o dinheiro que seu pai roubou da velha.
— Meu pai não roubou dinheiro nenhum!
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O policial continuou:
— Vocês vivem no mundo da lua? Então não sabem
do caso da velha, que morava pertinho do banco em que
seu pai trabalha? Ele foi lá, matou a milionária e trouxe
a bolada. O diabo é que a gente tem de achar esse dinheiro. Deve estar por aqui, em qualquer canto. Seu pai não
seria idiota de depositar no banco e levantar suspeitas,
também não teve tempo de mandá‑lo para fora do país.
A mãe de Duda começou a suar frio. Uma nuvem
passou‑lhe pelos olhos e ela desabou. Os homens ajudaram o garoto a reanimá‑la. Levaram‑na para a sala,
deitaram‑na no sofá e pediram que o rapaz não os interrompesse mais. Eram apenas policiais, não tinham
autoridade para mais nada. Não podiam julgar nem absolver. Eram pagos apenas para acatar as ordens de seus
superiores.
— Mas é impossível — murmurava a mãe, ainda fraca pelo rápido desmaio. — Álvaro não faria uma coisa
dessas, nem roubar e muito menos matar. Um absurdo!
Os senhores não conhecem o Álvaro.
— Onde está meu pai? — perguntou Duda, disposto
afinal a enfrentar a situação com realismo. Sentia agora
que não adiantava reagir de forma violenta.
— Preso na 14ª Delegacia, em Copacabana.
— Podemos ir até lá para falar com ele?
— Não. Agora não. Vocês têm advogado?
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Duda não respondeu. O pai de Beta era advogado,
mas talvez não entendesse de crimes, vivia metido em
companhias financeiras, em empresas.
Mas poderia orientá‑los, indicar um criminalista. Um
zumbido nos ouvidos começou a importuná‑lo, sentia‑se
diante de um destino. Virou‑se para a mãe e segurou‑lhe
a mão.
— Eu cuido disso.
— Mas você, meu filho, tão menino, como vai enfrentar essa complicação toda?
O garoto levantou‑se e declarou aos policiais:
— Vamos logo, o que tem de ser feito, deve ser feito.
Vou ajudar vocês.
E, junto com os dois homens, voltou ao quarto dos
pais e começou a levantar tapetes, a arrastar móveis, a
revirar roupas. Depois de certo tempo, os homens não
prestaram mais atenção nele, e Duda aproximou‑se do
telefone no escritório do pai. Discou com cuidado, para
não ser ouvido, e falou baixinho, bem perto do bocal.
— Dona Vera? Por favor, chame a Beta, depressa...
— Mas a essa hora, Duda? Ela pediu para não acordá‑la tão cedo.
— É importante, Dona Vera, tenho pressa, chame a
Beta, por favor!
Ela estranhou a aflição do garoto e foi acordar a filha. Beta ficou enfurecida:
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— Que droga! A essa hora! O Duda não tem jeito
mesmo!
— Dê um pulo aqui embaixo, depressa, venha logo, é
muito importante, caso de vida ou morte!
— Você não devia estar na aula, não?! Que mistério
é esse?
— Venha logo que eu não posso...
Duda teve de desligar porque percebeu que um dos
policiais vinha para o escritório, a fim de examinar as estantes e os livros. Teve sorte de largar o telefone na hora:
mais um pouco e seria apanhado com a mão no aparelho.
Nem cinco minutos se passaram e a campainha tocou. Os policiais se entreolharam, e um deles mandou
que Duda fosse abrir, avisando:
— Eu vou também. Se for alguém de fora, despache
logo, porque não temos tempo a perder. Não abra o bico.
Duda abriu a porta e Beta abriu os olhos:
— Você não tem jeito mesmo! Já disse...
— Beta! — gritou Duda, impedindo que ela conti­
nuasse a falar. — Foi bom você chegar. Fique com mamãe, temos um problema!
O policial tentou impedir a entrada da garota, mas
ela já estava dentro da sala, ao lado da mãe de Duda.
— Está passando mal, tia?
Como conhecia Dona Antônia desde pequena, Beta
se habituara a chamá‑la de tia.
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— Eu pensei que Duda estivesse...
— Beta, pare de falar! Você veio para ajudar ou para
atrapalhar?
Só então a menina reparou na presença dos dois homens. Em poucas palavras, Duda explicou o que estava
acontecendo. Beta logo se arrependeu de ter sido tão
intolerante com o namorado. Arranjou uma almofada
para Dona Antônia colocar a cabeça e se sentou ao lado
dela.
Duda voltou com os homens para os quartos e reiniciou a tarefa. Uma hora depois tinham terminado: estava
tudo de pernas para o ar. Todos os cantos haviam sido
revirados. Os três suavam, mas Duda suava mais.
— Como é? Não encontraram nada? — perguntou o
garoto.
Os homens estavam cabisbaixos, mas nem por isso
deram a batalha por perdida.
— Vai ver que ele guardou a grana em outro lugar.
Nada mais tinham a fazer ali. Foram até a sala, pediram desculpas e, mais uma vez, aconselharam Dona
Antônia a contratar um advogado. Seria esse o primeiro
passo para uma longa caminhada, até que pudesse tirar
o marido da cadeia. Então se retiraram, depois de deixarem algumas instruções: não deveriam comunicar o
fato a ninguém. Novas ordens viriam da delegacia ainda
naquele dia.
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— E agora? O que vai ser de nós? O que vai ser do Álvaro? Como será que ele está? — a mãe de Duda reiniciou
o choro convulsivo, enquanto Beta procurava consolá‑la:
— Papai é advogado e vai dar um jeito nisso, ele entende dessas coisas, daqui a pouco chega ao escritório e
aí eu telefono...
Mas Duda parecia decidido:
— Deixa por minha conta, mãe. Vou resolver tudo
sozinho desta vez!
— Você?! E pode me explicar por que quer dispensar
a ajuda da turma? Eu, Jacaré e Joca já te ajudamos a
resolver tantos casos, e agora você quer dar uma de autossuficiente?! — protestou a namorada.
— Este caso é diferente, Beta. Trata‑se da honra do
meu pai! Além disso, esta manhã, agora mesmo, eu vivi
muito. Não sou mais aquele garoto que brinca de ser detetive com a turma. Sou um homem feito. Vocês vão ver.
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