“A nossa presença na universidade tem sido muito mais que formação acadêmica” O presente trabalho refere-se a uma pesquisa em andamento com dois estudantes xakriabá recém-graduados pela licenciatura indígena realizada na UFMG, FIEI (Formação Intercultural de Educadores Indígenas). Um dos propósitos que embasam essa pesquisa diz respeito na tentativa de colocar em relevo a trajetória acadêmica desses dois estudantes indígenas, trazendo à tona episódios particularizados relacionados ao percurso desses. As histórias de vida dos interlocutores, intercruzadas a suas trajetórias de formação, trazem elementos que permitem identificar os agentes em um contexto mais amplo. Como se fosse possível instrumentalizar-se de uma lupa, “mudar a objetiva, aumentando o objeto da observação” (REVEL 1998: 11) para deflagrar “detalhes que adquirem valor e significado na rede de relações plurais de múltiplos elementos constitutivos” (REZICK 2000: 03), essa pesquisa vê na etnobiografia um aporte metodológico pertinente. Como salienta Gonçalves (2012), a narrativa como gênero da composição etnográfica ancora experiências localizadas no âmbito de percepções individuais à percepções culturais. Assim, a análise dos relatos dos interlocutores podem evidenciar situações particulares vividas pelos irmãosestudantes Célia Corrêa Nunes Xakriabá e Edgar Corrêa Nunes Xakriabá. Dessa maneira, quando aportadas em um contexto mais amplo, não necessariamente irão identificar os indivíduos como espelho do coletivo, entretanto, trarão elementos interessantes para discutir o processo em que se inseriram: o de formação de professores da licenciatura indígena da UFMG. O montante do material de pesquisa, ainda em análise, reúne relatos dos estudantes indígenas localizados em suportes distintos: entrevistas concedidas a pesquisadora, entrevistas concedidas a jornais, trabalho monográfico, audiovisual e memoriais elaborados pelos estudantes. O material em questão revela elementos interessantes para discutir a formação de estudantes pela licenciatura indígena: I- através do relato de entrevista de Célia, é possível perceber que a inserção dos estudantes indígenas no espaço acadêmico apresenta-se mais do que uma realização pessoal, também como conquista de mais um território para os indígenas. Pois, ao adentrar a universidade não se ocupa a carteira de uma sala de aula, ocupa-se a universidade com a presença indígena; II- através da consulta ao memorial de Célia, identifica-se um aspecto interessante relacionado a formação de professores: a intensificação do processo dereafirmação identitária via educação escolar indígena. Segundo ela: a licenciatura indígena proporcionou-a ter dois certificados: [o de professora acrescido de outro] que, apesar de outras pessoas não enxergarem, porque não estará em um papel escrito, está dentro de mim, a experiência única na minha vida que está me fazendo crescer enquanto povo (...) foi na universidade, foi este universo diferente que contribuiu ainda mais para enxergar o “eu ser povo xakriabá”; III- Edgar também destaca um elemento interessante relacionado à licenciatura: a sua formação como pesquisador. Segundo ele: (...) queira ou não, a gente se transforma, lá também, ne? Quando você vai [para a universidade] ... Quando você volta pra [para a aldeia] cá também... você percebe as coisas de um jeito diferente...Não é que mudou meu jeito de ser indígena, mas só que você lida com as coisa com outra visão também. Com uma visão mais aprofundada que você percebia antes... (Trecho de entrevista concedida por Edgar) A formação dos professores indígenas como pesquisadores é um elemento que merece destaque especialmente quando se trata de populações remanescentes que estão passando pelo processo de emergência identitária, como é o caso do povo Xakriabá. Durante seu percurso de formação, os professores se instrumentalizam para atuar em circunstâncias propícias ao resgate e valorização cultural. A exemplo, Edgar se interessou pela questão da caça ao conhecer sobre o perspectivismo ameríndio[1] e se apropriou do conhecimento antropológico para recuperar histórias sobre os modos de caçar dos “mais antigos” justamente pelo fato de pouco se caçar no território indígena: No trabalho de Viveiros de Castro, o que me chamou mais atenção foi a questão da caça ... Eu vi que aqui [na aldeia] as pessoas falavam disso, só que de outra forma... Por isso que me despertou interesse em saber mais sobre as histórias e os modos como as pessoas caçam ... e caçar não era somente ir no mato... pra gente parecia que era, ne? ...Só ir no mato e pegar um animal e tal ... Mas tinha muitas outras coisas envolvidas ali, que a gente não percebia ... Eu resolvi falar sobre esse tema porque pode ser algo mostrado pra própria comunidade ... Como eu já disse, quando você tá convivendo aqui, no dia-dia, talvez você não percebe muitas coisas, mas quando você pára pra pensar, analisar... tem muita coisa de fundo, ne? Além de se empoderarem de conhecimentos acadêmicos para atuar no resgate da cultura xakriabá, os professores indígenas formam pequenos pesquisadores, seus alunos; IV- a licenciatura indígena da UFMG tem como proposta formar professores aptos a atuarem em sala de aula, entretanto, apesar de diplomar estudantes como educadores indígenas, a mesma forma não só professores. O caso de Célia e Edgar ilustra algumas das possibilidades de atuação de um estudante formado pela licenciatura indígena. Depois de exercer brevemente o cargo de professora de cultura na escola Xukurank da aldeia Barreiro Preto, Célia foi convidada a atuar na Secretaria Estadual de Educação de Minas Gerais (SEE-MG) como primeira servidora indígena a auxiliar a viabilização da criação da categoria escola indígena para o estado. Já Edgar trabalha na comunidade indígena em diversos projetos culturais, a maioria deles audiovisuais, na produção de registros materiais que valorizem a cultura, podendo ser utilizados pela escola como recursos didáticos. Assim, ao retomar a trajetória acadêmica dos estudantes, a pesquisa tem como finalidade dar visibilidade ao processo de inserção, permanência e saída dos indígenas na/da academia. Além disso, através de percepções, questionamentos e apontamentos apresentados pelos estudantes indígenas, intenta-se propor um diálogo entre comunidade acadêmica e professores indígenas. Espera-se que esse diálogo traga questões instigantes para se pensar os formatos existentes de licenciaturas indígenas. REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS: GONÇALVES, M. et al. Etnobiografia: esboços de um conceito. In: GONÇALVES, M. et al. Etnobiografia: Subjetivação e etnografia. Rio de Janeiro: Ed. 7Letras. 2012 REVEL, J. Apresentação. Jogos de escalas: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas. 1998 REZNIK, L. Qual o lugar da história local? In: Projeto “História de São Gonçalo: memória e identidade”. Rio de Janeiro: UERJ, 2000 VIVEIROS DE CASTRO, E. Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio.Mana vol.2 no.2 Rio de Janeiro. 1996 [1] O perspectivismo ameríndio é definido por Viveiros de Castro (1996) como “uma teoria indígena segundo a qual o modo como os humanos vêem os animais e outras subjetividades que povoam o universo — deuses, espíritos, mortos, habitantes de outros níveis cósmicos, fenômenos meteorológicos, vegetais, às vezes mesmo objetos e artefatos —, é profundamente diferente do modo como esses seres os vêem e se vêem”. Sessão Temática: Educação Indígena, Quilombola e Educação do Campo Palavras Chave: licenciatura indígena, formação de professores, trajetórias Tipo de Bolsa: Nenhuma Categoria de Participação: Estudante de Graduação Autores: Amanda Jardim da Silva Rezende