Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura DIADORIM: o feminino escondido nas vestes de jagunço Ivana Pinto Ramos1 Reinaldo/Diadorim, personagem importante criado por Guimarães Rosa em Grande Sertão Veredas (1956), jagunço, corajoso, guerreiro. Porém, por trás da veste rude e pesada existe um véu que encobre sutilezas femininas. A veste de Jagunço, que funciona como uma armadura de proteção, esconde um grande segredo: um corpo de mulher. Diadorim, a “mulher dentro do homem”, como afirma Galvão (1986)2, tão perto e ao mesmo tempo tão distante, violenta, forte, mas também sensível, delicada; um grande enigma apresentado por Riobaldo, seu “amigo” fiel, o narrador personagem que conta um pouco da história vivida. Conhecemos Reinaldo/Diadorim a partir da memória de um ex-jagunço, que com seu olhar enigmático narra para o interlocutor, o compadre Quelemém e para nós leitores que, através dessa narrativa, imaginamos e criamos a figura de Diadorim. Diadorim, personagem carregado de simbologia, um signo que comporta várias significações, reveladas pelo olhar do outro, por isso o leitor deve estar sempre atento, a representação subjetiva que ele tem para Riobaldo. Conforme pensei em Diadorim. Só pensava era nele. Um João-de-barro cantou. Eu queria morrer pensando em meu amigo Diadorim, mano-oh-mão, que estava na Serra do Pau d´Arco, quase na divisa baiana, com nossa outra metade dos sô candelários... Com meu amigo Diadorim me abraçava, sentimento meu ia-voava reto para ele... Ai, arre, mas: que essa minha boca não tem ordem nenhuma. Eu estou contando fora, coisas divagadas.3 1 Mestre em Estudos Literários pela UFMG, prof. pesquisadora CIAR/UFG 2 GALVÃO, Walnice Nogueira. Formas do Falso:Um estudo sobre a ambiguidade no Grande Sertão: Veredas. São Paulo: Perspectiva, 1986 3 ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 13 Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura No universo do sertão os papéis do homem e da mulher são muito bem definidos: As prostitutas para a satisfação sexual dos jagunços: “Nhorinhá, prostituta, pimenta-branca, boca cheirosa, o bafo de meninopequeno”4. O papel das mulheres submissas para a maternidade e para cuidar do lar, nesta categoria o narrador destaca como referência, sua mãe e Otacília. Esta última era para Riobaldo a mulher em sua plena feminilidade, meiga, dócil, frágil. Aquela com quem se casou e constituiu família. “Toda moça é mansa, é branca,é delicada. Otacília era a mais”. (ROSA, 1986, p.164) Como afirma Marco Antônio Coutinho Jorge em seu estudo sobre Freud e Lacan5, as mulheres são tachadas de frágeis, historicamente criadas para servir aos homens e à família, a profissão de destaque para elas era a de professora, preparadas em escolas especiais para a formação do magistério. O homem em uma posição de destaque, a mulher em um papel secundário. Neste contexto encontramos a figura de Reinaldo/Diadorim, “cabra macho” que desde criança em seu primeiro encontro com Riobaldo, no porto do D’Janeiro, atravessando o rio São Francisco, ensina Riobaldo menino a ter coragem, amedrontado por não saber nadar e ter que atravessar o rio em uma canoa estreita. O mesmo acontece quando se reencontram, adultos e Diadorim o prepara e encoraja para ser um jagunço temido. Aquele menino de “olhos verdes, folhudas pestanas, mão bonita, macia e quente”, dizia não ter medo de nada, aprendera com o pai a ser corajoso, assim afirma quando Riobaldo pergunta: “Você nunca teve medo? -Costumo não... disse o menino. - Meu pai disse que não precisa ter medo... - Meu pai é o homem mais valente deste mundo.”6 4 ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. p. 164 5 JORGE, Marco Antônio Coutinho. Fundamentos da psicanálise de Freud e Lacan. 3.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002. 6 ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 89 Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura Numa sociedade tradicionalmente machista, uma figura é apresentada com traços femininos e masculinos, uma figura enigmática e ambígua. Apontaremos a seguir alguns aspectos que marcam esses sinais de feminilidade. O Feminino em Diadorim Ao mesmo tempo que inspirava coragem, pois foi Diadorim que motivou Riobaldo a se tornar um jagunço corajoso, respeitado, temido, que chegou a ser inclusive chefe do bando, também, indiretamente, acalenta, afaga, diminuindo as aflições e preocupações do seu amigo , inquieto, nervoso com Hermógenes, Medeiro Vaz e seu bando. Com palavras, como faz na maioria das vezes a figura feminina, materna, embalando uma cantiga para dormir, tranqüilizando para o sono. Assim sentiu Riobaldo com as palavras de Diadorim. De Diadorim, aí faz que descansando do meu lado, assim ouvi: “Pois dorme Riobaldo, tudo há de resultar bem. […] ”Antes palavras que picavam em mim uma gastura cansada, mas a voz dele era o tanto-tanto para o embalo de meu corpo. Noite essa, astúcia que tive uma sonhice: Diadorim passando por debaixo de um arco-iris. Ah, eu pudesse mesmo gostar dela - os gostares [...]7 Na mitologia popular, passar por baixo do arco-iris , remete à mudança de sexo, simboliza a transformação, a renovação. Como poderia Riobaldo gostar de um “macho” como ele? Mas no sonho tudo é possível, como afirma Freud em seu estudo sobre a interpretação do sonho: “O sonho é a realização de um desejo”8. Riobaldo, atordoado em seus pensamentos e sentimentos em relação ao amigo, que desde a infância causava nele sentimentos estranhos, o atraia sexualmente. 7 ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 39 8 FREUD, Sigmund. A Interpretação dos sonhos. Rio de Janeiro: Imago, 1976. Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura O que compunha minha opinião, era que eu, às loucas, gostasse de Diadorim, e também recesso dum modo, a raiva incerta, por ponto de não ser possível dele gostar como queria, no honrado e no final.[...] Ambicionando de pegar Diadorim, carregar Diadorim nos meus braços, beijar, as muitas demais vezes, sempre.9 Não podemos esquecer que são relatos do passado, Riobaldo narrador, ex-jagunço, já sabia da verdadeira sexualidade de Diadorim. É um narrador frustrado pois , sabia que seus desejos poderiam ter sido realizados, aquilo que parecia um sonho difícil de ser compreendido no contexto dos dois amigos, era uma realidade, ele era uma mulher trasvestida de homem. Mas o narrador-personagem tenta aproximar o narrado do vivido e surpreender, assim como foi surpreendido, com a morte e revelação da verdadeira sexualidade do amigo. O narrador dá pistas desse enigma em vários momentos, o mais preciso, e ao mesmo tempo sutil, pois, ele interrompe a narrativa para falar de algo que naquele momento não tinha sentido, causando certo estranhamento no interlocutor e consequentemente em nós leitores. Esta colocação só fará sentido no final da narrativa. O senhor mesmo, o senhor pode imaginar de ver um corpo claro e virgem de moça, morto a mão, esfaqueado, tinto de seu sangue, e os lábios da boca descorados no branquiço, os olhos dum terminado estilo, meio abertos, meio fechados? E essa moça de quem o senhor gostou, que era um destino e uma surda esperança em sua vida?! Ah, Diadorim... E tantos anos já se passaram.10 Neste ponto da narrativa não era possível ao leitor nem ao interlocutor, o compadre Sr. Quelemém, compreender que aquela moça descrita morta, 9 ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 29. 10 ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 165. Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura era seu amigo Reinaldo/Diarorim. Era um feedback, lembranças amargas, registradas na memória de um ex-jagunço, já velho, mas que ainda o fazem sofrer. Os olhos verdes carregavam também uma sombra, uma neblina... O que estava por trás daquele jagunço? “Homem brabo, bem jagunço”, que ao mesmo tempo em que demonstra ódio, sede de vingança; em derramar o sangue do Hermógenes, também se mostra delicado em ver e admirar as pequenas coisas da natureza. - É aquele lá: Lindo! Era o Manuelzinho-da-croa, sempre em casal.[...]. As vezes davam beijos de biquimquim- a galinhonagem deles. - É preciso olhar para esses com todo carinho...O Reinaldo disse: - Era. Mas o dito assim, botava surpresa. E a macieza da voz, o bem-querer sem propósito, o capuchado ser. E tudo num homem d’armas, brabo bem jagunço, eu não entendia! 11 Para Jung12, o feminino personifica um aspecto do inconsciente denominado anima. A anima é a personificação de todas as tendências psicológicas femininas na psique do homem, como por exemplo: os sentimentos e humores instáveis, as intuições proféticas , a sensibilidade ao irracional, a inerente capacidade de amar, a faculdade de sentir a natureza e, finalmente, embora não menos importante, as relações com o inconsciente. Diadorim, ensinou Riobaldo a ver a beleza da natureza, a delicadeza dos sons dos pássaros. Nos momentos em que se encontravam sozinhos, Diadorim revelava um pouco de sua sensibilidade. Outro traço dessa feminilidade, é representado no pudor e castidade feminina, que demostra Diadorim nos momentos de intimidade, quando 11 ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 122 12 CHEVALIER, Jean. Dicionário de Símbolos. 24. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009. p. 421. Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura não se banha , nem se aproxima dos jagunços quando estão se banhando no rio. Às vezes sumia a noite, segundo Riobaldo. Quando foi ferido em batalha, se afastou sem dizer para onde ia, para se tratar, voltou quando estava curado. Ainda, neste contexto, quando ainda menino, pediu a Riobaldo para que não urinasse na sua frente: “Assim quando me veio a vontade de urinar, e eu disse, ele determinou: “Há-te, vai ali atrás, longe de mim, isso faz...” (ROSA, 1986, 91). Uma atitude ambígua, estranha em se tratando de um “menino”, uma criança, que na sua inocência não se preocupa com essas atitudes. Mas Diadorim era uma criança criada de forma diferente, para ser diferente. Maria Rita Khel em seus estudos sobre a feminilidade e as teorias freudianas sobre o ser castrado e a sexualidade infantil, afirma: Segundo essa linha de interpretação, proveniente dos desdobramentos das teorias sexuais infantis, a mulher aparece como moralmente inferior: a castração consumada seria interpretada pela criança como confirmação da culpa por um desejo sexual proibido pela lei, pelo pai. O mesmo desejo que um menino também conhece e vem a recalcar, “bem a tempo”, antes que a ameaça também se consume sobre ele. A superposição do feminino e do infantil se dá por essa via. 13 Diadorim confessa a Riobaldo que é diferente: “Sou diferente de todo mundo. Meu pai disse que careço de ser diferente, muito diferente...”. (ROSA,1986, p. 92) Joca Ramiro preparou e ensinou o “filho” a ser diferente... Afinal este era o filho que iria vingá-lo e honrá-lo no futuro, era essa a lei do sertão. Diadorim foi criada como um jagunço, um homem no meio dos homens e com a morte do pai fica obcecado, vivia para vingá-lo, e assim brava e heroicamente morre. Um investimento crescente no filho, futuro da família, muitas vezes até extremamente coercitivo, projeta neste as esperanças de realizar todos os projetos que os pais não conseguiram ou não terminaram de realizar. O filho é, assim, responsável pela continuação das conquistas 13 KEHL, Maria Rita. Deslocamentos do Feminino. 2. Ed. Rio de Janeiro: Imago, 2008. p. 200 Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura paternas...14 O sertão impunha sua lei, como afirma Riobaldo ao compadre Quelemém: “O sertão é o penal, criminal. Sertão é onde o homem tem de ter dura nuca e mão quadrada” (ROSA, 1986, p.92) Diadorim não tinha mãos quadradas, mas sim mãos pequenas, delicadas e macias, mas que carregavam a astúcia e força de um homem, foi com essas mãos que com um golpe forte e certeiro vingou a morte de seu pai. Manuais de instruções existem, sim, na trama simbólica que constitui a cultura, que nos designa lugares, posições, deveres, traços identificatórios. “Identidade feminina” e “identidade masculina” são composições significantes que procuram se manter distintas, nas quais se supõe que se alistem os sujeitos, de forma mais ou menos rígida, dependendo da maior ou menor rigidez da trama simbólica característica de cada sociedade. 15 A mulher ocupa aqui, uma posição que não foi estabelecida para ela, ela foge a regra, imaginem se os jagunços descobrissem o segredo de Diadorim, ela seria literalmente massacrada. Embora homens e mulheres sejam vários diversificados quanto aos modos de inclusão nos universos ditos masculino e feminino, o conjunto de homens raramente esteve em questão quanto ao que os identifica. Por sua vez o conjunto das mulheres, ao deslocar-se de uma posição construída de modo a completar e sustentar a posição masculina, motivou uma produção de discursos e saberes extremamente prolixa, na proporção direta da 14 PERROT apud KEHL, Maria Rita. Deslocamentos do Feminino. 2. Ed. Rio de Janeiro: Imago,2008., p.35 15 KEHL, Maria Rita. Deslocamentos do Feminino. 2. ed. Rio de Janeiro: Imago, 2008. p. 27 Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura perplexidade que este deslocamento produziu.16 Outro aspecto que podemos apontar como sinal da feminilidade de Diadorim, está na demonstração do ciúme que sente Riobaldo e que ela não consegue disfarçar de Otacília. A troca de olhares, o sentimento recíproco de repulsa, pois , Otacília também não gostava de Diadorim, pela admiração que Riobaldo demonstrava por ele. Desde esse primeiro dia Diadorim guardou raiva de Otacília. E mesmo eu podia ver que era açoite de ciúme. O senhor espere o meu contato. Não convém agente levantar escândalo de começo, só aos poucos que escuro fica claro. Que Diadorim tinha ciúme de mim com qualquer mulher, eu já sabia, fazia tempo, até. Quase desde o princípio.17 Diadorim propõe a Riobaldo que nenhum dos dois enquanto estivessem em missão com o bando, ficasse com mulher alguma. Ela inclusive pede a Riobaldo que prometa, jure pela sagrada escritura, como uma exigência: “Promete que temos de cumprir isso, Riobaldo, feito jurado nos Santos-Evangelhos! Severgonhice e airado avejo servem só para tirar da gente o poder da coragem... Você cruza e jura?! Jurei.” (ROSA,1986, p.165) Jurou mas não cumpriu, não resistiu “Ás poesias do corpo”18, fez abstinência no início, mas não resistiu. Afinal que direito tinha o amigo de exigir isso! Mas Diadorim guardou o prometido até a morte. o masculino, detentor do falo, ele estava livre para usufruir dos prazeres da carne, já o feminino, com seu segredo e por ser ”castrado”, se sacrificou, abdicou do prazer sexual. Mais um ponto importante para pensarmos no feminino em Diadorim, está na contradição bem/mal, que permeia toda obra, inclusive este personagem. Diadorim aparece em muitos momentos, como a figura da tentação, e aqui abrimos um parêntese para pensarmos no mito bíblico da 16 KEHL, Maria Rita. Deslocamentos do Feminino. 2. ed. Rio de Janeiro: Imago, 2008. p. 29 18 Expressão utilizada pelo narrador personagem. 17 ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 165. Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura criação e do pecado original: A mulher, que ofereceu o fruto proibido ( do pecado ) ao homem. O sentimento que sentia quando via e tocava em Diadorim, o levava a pensar que sentia desejos homossexuais, “coisa do demo”, inadmissível para um jagunço. Cavalcante Proença19 faz uma análise muito interessante sobre esse aspecto: Diadorim - Diá – Demo – treva. Uma representação do mal, do demo, pela sede de vingança, o ódio que nutria pelo Hermógenes e pela tentação que fazia com que Riobaldo desejasse o amigo jagunço. Diadorim - mesmo o bravo guerreiro - ele era para tanto carinho: minha repentina vontade era beijar aquele perfume no pescoço: a lá, aonde se acabava e remansava a dureza do queixo, do rosto...Beleza - o que é?[...] Ela fosse uma mulher, e à alta e desprezadora que sendo, eu me encorajava: no dizer paixão e no fazer- pegava, diminuía: ela nos meus braços! Mas, dois guerreiros, como é, como iam poder se gostar[...].20” Reinaldo era o nome de jagunço, Diadorim, nome de segredo, que o próprio pede a Riobaldo que nunca revele a ninguém e nem o chame assim diante do bando. Esse pedido, esse segredo, é justificado no final, após a morte de Diadorim, quando Riobaldo de posse do batistério do amigo/amor e do corpo nu de mulher, descobre seu nome completo: Maria Deodorina da fé Bettancourt Marins. Além da figura da tentação, Diadorim remete também a representação do sagrado, pela beleza, pela sensibilidade diante da natureza e por atitudes que contradizem as vestes de jagunço. Para exemplificar, retomemos o momento em que Diadorim não deixa Riobaldo matar o leproso que encontram no caminho, com palavras que valeram mais que uma atitude repressiva, pois as palavras de Diadorim eram lei para Riobaldo, que com in19 PROENÇA, Manuel Cavalcanti. Trilhas no Grande Sertão. Cadernos de Cultura. Ministério da Educação e Cultura. Serviço de Documentação. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, 1958 20 ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1986, p. 510. Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura dignação o atende. Nesse momento, as palavras, o gesto piedoso, o olhar, o levou a imagem de Maria, Nossa Senhora. Porque não tirar a vida de alguém que sofria e que merecia a morte a viver daquele jeito? Diadorim o impede, dizendo que se for para matar, que o mate a faca, pois não era merecedor do revólver e que ali ainda corria sangue quente., ou seja, era um ser humano! Nesse momento Riobaldo constrói a imagem do sagrado: Diadorim, nas asas do instante, na pessoa dele vi foi a imagem tão formosa de Nossa Senhora da Abadia! A Santa... reforço o dizer: Que era belezas de amor, com todo respeito, e mais o realce de algumas coisas, que o entender da gente por si não alcança.21 Logo em seguida Riobaldo retira do pescoço um escapulário e joga para Diadorim, reprimindo sua fala para que apenas aceite, um o mesmo que lhe será devolvido após a morte do amigo, quando é revelada sua verdadeira identidade. Esse presente, o escapulário, pode representar um símbolo de ligação, de união entre ambos e Deus, como uma aliança de compromisso e manifestação de seu sentimento. Diadorim, Deus ou o Diabo, amor ou ódio, homem ou mulher, o amor impossível de Riobaldo, o masculino e o feminino representados duplamente. Ela resiste aos seus desejos mais íntimos, não se entrega e nem revela a Riobaldo sua identidade feminina. Sacrifica-se para satisfazer as vontades do pai, seria somente a do pai? Stendall, refere-se a firmeza com que certas mulheres resistem ao amor, com a qualidade mais admirável que existe sobre a terra. Mas esta coragem, temperada pelo hábito do sacrifício e do pudor, assim como o orgulho feminino, são qualidades íntimas, invisíveis socialmente.22 21 ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p.437 22 STENDALL apud KEHL, Maria Rita. Deslocamentos do Feminino. 2. Ed. Rio de Janeiro: Imago,2008. p.82 Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura Diadorim morre como mulher guerreira, forte e corajosa, deixando o sentimento de frustração em Riobaldo, mas, fica além da imagem dos verdes e esperançosos olhos, uma representação do feminino, diferente do estabelecido pela sociedade. Mais uma personagem “esculpida” pelo grande mestre Guimarães Rosa. Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura Bibliografia GALVÃO, Walnice Nogueira. Formas do Falso: Um estudo sobre a ambiguidade no Grande Sertão: Veredas. São Paulo: Perspectiva, 1986 JORGE, Marco Antônio Coutinho. Fundamentos da psicanálise de Freud e Lacan. 3.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002. KEHL, Maria Rita. Deslocamentos do Feminino. 2. Ed. Rio de Janeiro: Imago,2008 PROENÇA, Manuel Cavalcanti. Trilhas no Grande Sertão. Cadernos de Cultura. Ministério da Educação e Cultura. Serviço de Documentação. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, 1958 CHEVALIER, Jean. Dicionário de Símbolos. 24. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009. ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1986, p. 13