verve verve Revista Semestral do Nu-Sol — Núcleo de Sociabilidade Libertária Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, PUC-SP 6 2004 VERVE: Revista Semestral do NU-SOL - Núcleo de Sociabilidade Libertária/ Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, PUC-SP. Nº6 (outubro 2004 - ). - São Paulo: o Programa, 2004Semestral 1. Ciências Humanas - Periódicos. 2. Anarquismo. 3. Abolicionismo Penal. I. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais. ISSN 1676-9090 VERVE é uma publicação do Nu-Sol – Núcleo de Sociabilidade Libertária do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Coordenadoras: Teresinha Bernardo e Silvana Tótora. Editoria Nu-Sol – Núcleo de Sociabilidade Libertária. Nu-Sol Acácio Augusto S. Jr., Andre R. Degenszajn, Edson Lopes Jr., Edson Passetti (coordenador), Eliane Knorr de Carvalho, Francisco E. de Freitas, Guilherme C. Corrêa, Heleusa F. Câmara, José Eduardo Azevedo, Lúcia Soares da Silva, Martha C. Lossurdo, Natalia M. Montebello, Rogério H. Z. Nascimento, Salete Oliveira, Thiago M. S. Rodrigues, Thiago Souza Santos. Conselho Editorial Adelaide Gonçalves (UFC), Christina Lopreato (UFU), Clovis N. Kassick (UFSC), Guilherme C. Corrêa (UFSM), Guilherme Castelo Branco (UFRJ), Margareth Rago (Unicamp), Rogério H. Z. Nascimento (UFPB), Silvana Tótora (PUC-SP). Conselho Consultivo Alexandre Samis (Centro de Estudos Libertários Ideal Peres – CELIP/RJ), Christian Ferrer (Universidade de Buenos Aires), Dorothea V. Passetti (PUC-SP), Francisco Estigarribia de Freitas (UFSM), Heleusa F. Câmara (UESB), José Carlos Morel (Centro de Cultura Social – CSS/SP), José Maria Carvalho Ferreira (Universidade Técnica de Lisboa), Maria Lúcia Karam, Paulo-Edgard de Almeida Resende (PUC-SP), Plínio A. Coelho (Editora Imaginário), Silvio Gallo (Unicamp, Unimep), Vera Malaguti Batista (Instituto Carioca de Criminologia). ISSN 1676-9090 verve revista de atitudes. transita por limiares e instantes arruinadores de hierarquias. nela, não há dono, chefe, senhor, contador ou programador. verve é parte de uma associação livre formada por pessoas diferentes na igualdade. amigos. vive por si, para uns. instala-se numa universidade que alimenta o fogo da liberdade. verve é uma labareda que lambe corpos, gestos, movimentos e fluxos, como ardentia. ela agita liberações. atiça-me! verve é uma revista semestral do nu-sol que estuda, pesquisa, publica, edita, grava e faz anarquias e abolicionismo penal. Desenhos e colagens de Lia Chaia. Intervenção gráfica de Arnaldo Antunes “Página do Oráculo”, p. 169. SU M Á R I O O incômodo Oswaldo Giacoia Junior 11 História anômala e políticas de subjetivação Alexandre de Oliveira Henz 25 Do incômodo das imagens à inquietação do pensamento Márcio Alves da Fonseca 47 Intensidades abolicionistas e a cruel exposição da peste Salete Oliveira 61 A beleza terrível Contador Borges 81 Canibal Dorothea Voegeli Passetti 103 Drogas e liberação: enunciadores insuportáveis Thiago Rodrigues 129 Incomodando Silvio Ferraz 159 Revolta, ética e subjetividade anarquista Nildo Avelino 171 O corpo obsoleto e as tiranias do upgrade Paula Sibilia 199 Devires minoritários: um incômodo Silvana Tótora 229 Um incômodo: a acomodação Guilherme Castelo Branco 249 O inumano Manuel da Costa Pinto 261 A “mulher cordial”: feminismo e subjetividade Margareth Rago 279 Uniformidades e anarquia Edson Passetti 299 Tecnologias de si Michel Foucault 321 o nu-sol apareceu no interior do programa de estudos pós-graduados em ciências sociais da puc-sp, que em 2003 completou 30 anos. para saudar as pessoas que habitam este lugar de inovações, generosidades e debates propusemos o colóquio um incômodo. durante aqueles dois dias, em abril, as conversações e experimentações artísticas que lá ocorreram foram transpostas para um cd-rom, e cada freqüentador foi presenteado com uma cópia. no início deste ano, relembramos que desde o primeiro número de verve temos em mente produzir edições especiais. a ocasião apareceu e fizemos do sexto número esta versão do colóquio. convidamos lia chaia para desdobrar sua original intervenção imagética e sonora em instantes que marcassem a passagem de incômodos. embaralhamos as imagens e as distribuímos pela revista de maneira que elas possam também ser redimensionadas, lidas a parte ou agrupadas por cada leitor. arnaldo antunes redimensionou sua presença para uma peça única. e trouxemos um michel foucault, inédito em português, com tecnologias de si. um incômodo foi um jeito que o nu-sol encontrou para se abalar. gostamos. em abril de 2004, fizemos kafkafoucault, sem medos, publicado pela ateliê editorial de são paulo. para o próximo ano pretendemos realizar mais um colóquio. isso tem nos trazido saúde. é apenas um jeito, não é um programa, um plano e muito menos um projeto. “aquilo que vem ao mundo para nada perturbar não merece respeito nem paciência” (rené char, “fúria e mistérios”). 6 2004 um incômodo queríamos encontrar uma situação que rangesse. propusemos situações com artistas, filósofos, ensaístas e pesquisadores sobre o que não cessa, transtorna, perturba existências e provoca abalos, desestabilidades, contestações e afirmações; o que incomoda por não caber num conceito e por provocar o riso. outras subjetividades, reviravolta nas imagens, a peste e o abolicionismo penal; a beleza terrível, canibal, as drogas e as liberações e as inquietações; o corpo hoje, a importância de permanecer menor, as rebeldias anarquistas; o acomodado, o inumano, a mulher cordial e as uniformidades. estas foram as respostas que recebemos. outras tantas, lidas e formuladas pelo ato de abalar estabilidades, poderão advir das práticas de cada um para fora destas páginas. em cima da hora, tecnologias de si. interessa-nos somente inventar espaços para heterotopias, lugares que dispensam o consolo no futuro. para não dizer que se falou pouco de kafka, diante do gato, um rato. pequena fábula, traduzida por modesto carone, para o volume “narrativas do espólio”: “’ah’, disse o rato, ‘ o mundo torna-se a cada dia mais estreito. a princípio era tão vasto que me dava medo, eu continuava correndo e me sentia feliz com o fato de que finalmente via à distância, à direita e à esquerda, as paredes, mas essas longas paredes convergem tão depressa uma para a outra, que já estou no último quarto e lá no canto fica a ratoeira para qual eu corro’ — ‘você só precisa mudar de direção’, disse o gato e devorou-o”. 10 verve O incômodo o incômodo oswaldo giacoia junior* Imaginemos uma nova visita de Zaratustra ao país da formação, ou melhor, da semi-formação. Como por ocasião de suas anteriores aventuras, certamente o filósofo teria mergulhado em profunda meditação, de que sua probidade intelectual teria emergido com a seguinte apóstrofe dirigida a seus insólitos habitantes: “Eles têm algo de que estão orgulhosos. Como chamam isso que os infla de orgulho? Chamam-no formação (Bildung), é isso que os distingue dos pastores de cabra. Por isso, desagrada-lhes ouvir, referida a eles, a palavra ‘desprezo’. Vou falar, pois, ao orgulho deles. Vou falar-lhes do mais desprezível: o último homem1”. A figura do último homem é a caricatura satírica do orgulhoso ideal que animava a crença da moderna Aufklärung; ora, é esse ideal que, na pós-modernidade da terra da semi formação, tornou-se figura do mundo. Há alguns poucos séculos, a consciência filosófica era animada pela convicção de que, nas vicissitudes da história, era preciso reconhecer a laboriosa e heróica peregrinação do gênero humano, na curva de um progres- * Professor no Depto. de Filosofia do IFCH/Unicamp. verve, 6: 11-22, 2004 11 6 2004 so infinito, em busca do fim último de sua existência: a conquista da felicidade e da bem aventurança sobre a terra, o advento glorioso do primado universal da razão e da justiça. Aquilo que, na fase áurea do Esclarecimento ainda podia aparecer como representação ideal de um escatológico final dos tempos, como a realização da essência verdadeira da humanidade, transformou-se em nossos dias no insípido e prosaico fim das ideologias, na débacle das grandes narrativas. E, no entanto, visto na perspectiva de Zaratustra, esse acabamento significa justamente o movimento, o vir-a-ser histórico em que a verdade daquele ideal se realiza de modo pleno, sem deixar para trás nenhum resíduo, ou virtualidade: o último homem é a efetividade sinistra do projeto politico da modernidade, isto é, a tirânica realização da hegemonia dos anões uniformes. Essa bizarra atrofia que a figura do último homem protagoniza, é a incômoda paródia do enredo escrito pela Ilustração, pois que ela é o resultado de um movimento subterrâneo, que acompanha em surdina a litania do fim da história, bem como a eufórica marcha triunfal da ideologia do progresso: o auto-rebaixamento do homem. De maneira análoga à Dialética do Esclarecimento em que Adorno e Horkeimer desvendavam a imbricação entre mito e a racionalidade, ou melhor a conversão do esclarecimento em mito, Nietzsche denuncia o profundo enraizamento da cientificidade moderna — que se colocava como o princípio programático da consciência esclarecida — ao mesmo ideal ascético, que ela pretendera destronar, revelando, com isso, sua esotérica cumplicidade na tarefa de aviltamento do homem e da terra. “Pensa-se, de fato, que porventura a derrubada da astrologia teológica signifique uma derrubada daquele ideal 12 verve O incômodo [ascético OGJ.]?.. Quem sabe o homem ficou menos necessitado de uma solução no além para seu enigma da existência porque essa existência aparece desde então ainda mais arbitrária, mais confinada, mais dispensável na ordem visível das coisas? Não está precisamente o auto-apequenamento do homem, sua vontade de autoapequenamento, desde Copérnico, em um incessante progresso? Ai, a crença em sua dignidade, unicidade, insubstitutibilidade na hierarquia dos seres se foi — ele se tornou animal, animal sem alegoria, restrição e reserva, ele que em sua crença anterior era quase Deus (‘filho de Deus’, ‘homem-Deus’) ... Desde Copérnico o homem parece ter caído em um plano inclinado, — agora rola cada vez mais depressa, afastando-se do centro — para onde? Para o nada? Para o ‘perfurante sentimento de seu nada’?...”2 É esse inarticulado sentimento de inferioridade que a figura do último homem dramatiza. Para trazê-lo à consciência de si, Zaratustra vai falar do que mais prezam os homens modernos, sua cultura (Bildung), porque à contra-corrente dela que vem à luz seu auto-desprezo, sua vontade de auto-rebaixamento: “Toda ciência (e de modo nenhum somente a astronomia, sobre cujo humilhante e rebaixador efeito Kant fez uma confissão digna da nota, ‘ela anula minha importância’...), toda ciência, tanto a natural quanto a desnaturada — chamo assim a autocrítica do conhecimento —, tende hoje a dissuadir o homem do apreço que teve até agora por si, como se este nada mais tivesse sido do que uma bizarra vaidade: poder-se-ia até mesmo dizer que ele tem seu próprio orgulho, sua própria forma acre de ataraxia estóica, esse laboriosamente conquistado autodesprezo do homem, como sua última, mais séria pretensão de manter em pé o apreço por si mesmo (com razão, de fato: pois aque- 13 6 2004 le que despreza é sempre alguém que ‘não desaprendeu a prezar’...)”3. Zaratustra invoca, pois, o mais entranhado e paradoxal do homem moderno, seu laboriosamente conquistado autodesprezo. É para fazê-lo que apela ao que pode haver de mais desprezível, ao último homem. “Ai, chega o tempo do homem mais desprezível, o incapaz de se desprezar a si mesmo. Olhai: mostro-vos o último homem”4. O último homem é último não somente porque se autocompreende como fim em si — e não mais como travessia para a outra margem, como corda estendida entre o animal e o Além-do-Homem, como caminho de auto-superação. Ele é último porque inverteu a relação entre apreço e depreciação, na medida em que desaprendeu o grande desprezo, ou auto-desprezo. Mesmo outrora, sob o signo e a inspiração de Deus, quando a alma olhava depreciativamente para o corpo — então considerado elemento indigno e impuro — desse desprezo brotava, antiteticamente, da aspiração e anseio pelo sublime, por uma figura ‘mais elevada’ — in hoc signo vinces. O último homem, todavia, representa a plenitude da auto-satisfação, incapaz de se desprezar a si mesmo, portanto, impotente para toda auto-superação. O último homem alegoriza o auto-comprazimento na mediocridade, esta é a forma acabada do amesquinhamento geral do tipohomem, a encarnada impotência para lançar a flecha de sua nostalgia na direção de um mais elevado anseio, o abastardamento do ideal de felicidade e bem-aventurança: “Que é amor? Que é criação? Que é nostalgia? Que é estrela? — Assim pergunta o último homem, e pisca os olhos. A terra se tornou pequena então, e sobre ela saltita o último homem, que torna tudo pequeno. Sua estirpe é indestrutível, como a pulga; o último homem é o que mais tempo vive. ‘Nós inventamos a felicidade’ — dizem os últi- 14 verve O incômodo mos homens, e piscam os olhos. Abandonaram as regiões onde é duro viver, pois a gente precisa de calor. A gente, inclusive, ama o vizinho e se esfrega nele, pois a gente precisa de calor. Adoecer e desconfiar, consideram-no perigoso: a gente caminha com cuidado. Louco é quem continua tropeçando com pedras e com homens! Um pouco de veneno, de vez em quando, produz sonhos agradáveis. E muito veneno, por fim, para ter uma morte agradável. A gente continua trabalhando, pois o trabalho é um entretenimento. Evitamos, porém, que o entretenimento canse. Já não nos tornamos nem pobres, nem ricos: as duas coisas são demasiado molestas. Quem ainda quer governar? Quem ainda quer obedecer? Ambas as coisas são demasiado molestas (...). Nenhum pastor e um só rebanho! Todos querem o mesmo, todos são iguais: quem sente de outra maneira, segue voluntariamente para o hospício (...). A gente ainda discute, mas logo se reconcilia, senão se estropia o estômago. Temos nosso prazerzinho para o dia e nosso prazerzinho para a noite, mas prezamos a saúde. ‘Nós inventamos a felicidade’, dizem os últimos homens e piscam o olho”5. A felicidade, tal como a desejam os últimos homens a saber, bem estar, conforto assegurado, tranqüilidade e tédio com boa consciência — simboliza a ascendência de um tipo de homem, uma figura histórica do humano que pretende se fazer passar pelo homem. Nietzsche revela tal estratégia em ação no caso exemplar das diversas variantes do utilitarismo inglês — um caso de ideologia pseudo-científica, dominante no século XIX (apenas então?): “Em última instância, todos eles querem que se dê razão à moralidade inglesa: na medida em que é justamente desse modo que melhor se serve a humanidade, ou ao ‘proveito geral’, ou à ‘felicidade da mairoria’, não!, à felicidade da Inglaterra; eles gostariam de demonstrar para si mesmos, com todas as suas 15 6 2004 forças, que o aspirar à felicidade inglesa, quero dizer ao comfort e fashion (e, em última instância, a um posto no Parlamento) é também, a uma só vez, o justo caminho da virtude, mais ainda, que toda virtude que até agora existiu no mundo consistiu justamente nessa aspiração”6. Talvez a realidade que tenhamos conquistado hoje seja apenas uma universalização desse ideal de bem aventurança, a saber: a efetiva planetarização do shopping center 24 horas, pela Internet. Com efeito, essa miopia que afetava os utilitaristas ingleses constiui, em verdade, o Zeitgeist da modernidade, cuja existência se prolonga em nosso mundo pós moderno. Ainda hoje vige a unanimidade em que comungam os assim chamados livre-pensadores de todos os tempos: “Aquilo a que gostariam de aspirar com todas as suas forças é à universal e verdejante felicidade do rebanho em verdes pastagens, plena de segurança, livre de perigo, repleta de bem estar e de felicidade na vida para todo o mundo: suas duas canções e doutrinas mais repetidamente entoadas se chamam: ‘igualdade de direitos’ e ‘compaixão com tudo aquilo que sofre’- e o próprio sofrimento é considerado por eles como algo que tem de ser eliminado”7. Ou seja, a segurança, o conforto, o plácido bem estar, a ausência de atrito constituem o objeto do desejo — uma aspiração universal que denuncia a completa impotência para o sofrimento. E, com isso, a felicidade — a finalidade última de todas as ações morais —, acaba rebaixada , enfim, à condição de adiposo e tranqüilo contentamento de merceeiros: a consciência moderna e pós-moderna aliam-se, desse modo, na pacíficadora boa consciência, que se deleita na plácida calmaria dos verdes prados. Esse tipo de ‘virtude’ não pode ser considerada como um dado da natureza. Ela é um produto da história, efeito 16 verve O incômodo de uma longa disciplina, que investe os corpos, de um penoso aprendizado — mais ainda, de uma pedagogia política do moderno ethos; esta, por sua vez, é forte o suficiente para alinhar a filosofia prática de Kant aos valorosos representantes das ‘idéias modernas’, pois esse ideal narcótico de felicidade tem como sua condição uma transfiguração filosófica do tédio. “Aqui está a primeira pedra de tropeço, o tédio, a uniformidade, que traz consigo toda atividade maquinal. Aprender a suportar isso [uniformidade e tédio, OGJ.] e não somente suportar, mas aprender a ver o tédio envolto por um estímulo superior: essa foi até agora a tarefa de todo sistema de ensino mais elevado. Aprender algo que não nos interessa; reconhecer justamente aí seu “dever”, nessa atividade “objetiva”; aprender a avaliar separados um do outro o prazer e o dever — essa é a inapreciável tarefa e realização do sistema de ensino mais elevado. Por causa disso, o filólogo foi até agora o educador em si: porque sua atividade fornece o modelo de uma monotonia da atividade que atinge o grandioso: sob sua bandeira o discípulo apreende a “trabalhar como um boi”: primeira pré-condição para uma aptidão inicial para o maquinal cumprimento do dever (como funcionário do estado, cônjuge, aprendiz de burocrata, leitor de jornais e soldado). Ainda mais que qualquer outra, tal existência necessita, talvez, de uma justificação filosófica e uma transfiguração: por parte de alguma infalível instância, os sentimentos agradáveis têm de ser, em geral, desvalorizados como sendo de nível inferior; o “dever em si”, talvez até o pathos da reverência em face a tudo o que é desagradável — e essa exigência falando imperativamente, como além de toda utilidade, divertimento, finalidade ... A forma de existência maquinal como a suprema, a mais digna de honra, idolatrando a si mesma. ( —Tipo: Kant como fanático do conceito formal ‘tu deves’)”8. 17 6 2004 Percebe-se pois, que esse movimento atinge tamanha profundidade, ameaçando tornar-se irreversível, justamente porque se fundamenta na formidável potência da unanimidade moral, do politicamente correto: a dominação mais efetiva, mais medular, mais capital e capilar não é a que se faz com violência e ruído, mas a que se insinua no plano tácito e diáfano das estimativas de valor, portanto, no campo das interpretações: “Descobrimos que a Europa tornou-se unânime em todos os juízos capitais, inclusive naqueles países onde domina a influência da Europa: sabemos aquilo que Sócrates pensava não saber, e que a velha e célebre serpente prometeu um dia ensinar – ‘sabemos’ hoje o que é o bem e o mal’”9. Porque estão pacificados nesse ideal, os últimos homens tornaram-se incapazes de distanciar-se de sua própria acomodação. Niguém mais se admira, ninguém mais se surpreende com nada, desapareceu a capacidade do espanto, de tal modo que não se pode mais ter consciência da própria degradação. É por causa disso que, para Nietzsche, um único aceno de esperança ainda pode ser vislumbrado naqueles que são de outra crença. Nos antípodas dos niveladores, daqueles que pregam e realizam o rebaixamento de valor do homem, de sua mediocrização, descortina-se um remoto horozonte para uma outra forma de comunidade, para um ‘nós, com nossas esperanças’: “Para novos filósofos, não resta outra escolha; para espíritos suficientemente fortes e originários como que para impelir em direção a valorações opostas e transvalorar, para inverter ‘valores eternos’; para precursores, para homens do futuro, que atem no presente a coação e o nó, que constranjam a vontade de milênios a percorrer novos caminhos” 10. 18 verve O incômodo Cultivar esses novos filósofos — eis uma tarefa que exige uma pedagogia política antagônica àquela dos niveladores de todas as confissões. Aqueles que são de uma crença inversa, que “abrimos nossos olhos e nossa consciência para o problema de saber em que lugar e de que modo a planta ‘homem’ veio até hoje crescendo em altura da maneira mais vigorosa, opinamos que isso sempre ocorreu em situações opostas, opinamos que, para que isso se realizasse, a periculosidade de sua situação teve antes que aumentar de maneira gigantesca, que sua energia de invenção e simulação (‘seu espírito’—) teve que se desenvolver sob uma pressão e uma coerção prolongadas, até converter-se em algo sutil e temerário, que sua vontade de vida teve que intensificar-se, até chegar à vontade incondicional de poder”11. Essa pedagogia política, que prepara para uma inversão da crença dominante, tem como condição aquele gesto simbólico de ‘abrir um olho e uma consciência’, ou seja, de despertar para uma nova sensibilidade em relação ao sofrimento: “A disciplina do sofrimento, do grande sofrimento —não sabeis que somente essa disciplina criou até agora todas a elevações do tipo homem?”12 É isso que surpreende, que choca nossa pacificada autocompascência, que incomoda, que escandaliza nossa má consciência filistéia. Pensar essa figura dos antípodas da unanimidade no politicamente correto — aqueles novos filósofos de que fala Nietzsche — na chave interpretativa de uma idealização reacionária e anacrônica, do saudosismo aristocrático, significa perder de vista aquilo que ela essencialmente sugere: a saber, que a consciência filosófica é coetânea do espanto, que ela nasce e se nutre da admiração. Que o filósofo é justamente aquele que se situa em conflito com sua sociedade e com o seu tempo — que o espanto e o incômodo são os gestos filosóficos originários: 19 6 2004 pensemos no conflito entre Heráclito e a Éfeso de seu tempo, sem nos esquecermos que, para Nietzsche, Heráclito de Éfeso constitui talvez a realização suprema da filosofia. Para o cultivo dessa sensibilidade renovada, seria necessário recuperar dois tipos de sentimento a que o homem moderno já não tem mais acesso: em primeiro lugar o asco pela banalização do humano, por sua transformação em engrenagem impessoal e descartável, a ser consumida e indefinidamente reposta na maquinaria global dos interesses e rendimentos em que se transformou a terra. Em segundo lugar, a compaixão pelo que ainda resta de trágico e de belo na epopéia humana, de fermento de autosuperação. “E Zaratustra falou assim ao povo: É tempo que o homem fixe sua própria meta. É tempo que o homem plante a semente de sua mais elevada esperança. Seu terreno é ainda bastante fértil para isso. Mas algum dia esse terreno será pobre e manso, e dele não poderá brotar já nenhuma árvore elevada. Ai, chega o tempo em que o homem deixará de lançar a flecha de sua nostalgia mais além do homem, e no qual a corda de seu arco já não saberá vibrar! Digo-vos: é preciso ter ainda um caos dentro de si para poder dar à luz uma estrela dançarina. Digo-vos: vós tendes ainda caos dentro de vós. Ai, chega o tempo em que o homem já não dará à luz nenhuma estrela”13. Para tanto, é necessário dirigir as esperanças para aquele tipo antagônico desse tempo que não mais se espanta, que não mais incomoda, que não mais suporta ser incomodado. Por isso, Nietzsche recorre àquele cujo ofício é o incômodo: “A mim quer me parecer sempre mais que o filósofo, como um necessário homem do amanhã e depois de amanhã, sempre se encontrou e teve de se encontrar em contradição com seu hoje: seu inimigo foi, a cada vez, 20 verve O incômodo o ideal de hoje. Até agora, todos esses extraordinários promotores do homem — que são denominados filósofos e que raramente sentem a si mesmos como amigos da verdade, porém antes como desagradáveis loucos e perigosos pontos de interrogação —, encontraram sua tarefa, sua dura, involuntária, incontornável tarefa, e, afinal, a grandeza de sua tarefa, em ser a má consciência de seu tempo. Ao colocar justamente no busto da virtude do tempo o bisturi da vivissecação, eles delataram qual era o seu segredo; saber de uma nova grandeza do homem, um novo, não percorrido caminho para seu engrandecimento. Eles desvelaram, a cada vez, quanta hipocrisia, quanta comodidade, quanto de se deixar levar e deixar-se cair, quanta mentira se esconde sob o mais venerado tipo de sua moralidade contemporânea, quanta virtude estaria sobrevivida, a toda vez, disseram eles: ‘temos que ir para lá, para adiante, onde o seu vós hoje menos vos sentis em casa”14. Tomando de empréstimo um conceito de Heidegger, que implica num acurado diagnóstico de nosso tempo, podemos dizer que, em nossos dias, o antigo maravilhamento, o espanto diante do real, de que sempre se originou o autêntico gesto filosófico, assumiu a forma do sentimento de horror. Talvez aquela nova sensibilidade, de que tratou Nietzsche, se expresse hoje justamente no fato de ser aterrorizador que ninguém mais se espante — de que nos deixemos penetrar pelo conformismo e pela adaptação, a ponto de permanecer ofuscada toda e qualquer possibilidade que não a eterna repetição do mesmo. É horrível que justamente isso não nos incomode mais. Notas F. Nietzsche. Also Sprach Zarathustra. in Ed. G. Colli e M. Montinari Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe (doravante KSA), vol. 4. Berlin, New York, München, de Gruyter, DTV. 1980, p. 18. Não havendo indicação em contrário, 1 21 6 2004 todas as citações de obras de Nietzsche se referem a essa obra, e as traduções são de minha autoria. F. Nietzsche. Para a Genealogia da Moral, III, 25. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. in F. Nietzsche: Obra Incompleta, Coleção Os Pensadores, 1ª ed., São Paulo: Abril Cultural, 1974, pp. 328s. 2 3 Idem. 4 F. Nietzsche. Also Sprach Zarathustra, op. cit., p. 18. 5 Idem, pp. 19s. 6 F. Nietzsche. Para Além de Bem e Mal, 228 in KSA, op. cit., pp. 163s. 7 Idem 44, op. cit., pp. 60s. F. Nietzsche. Nachgelassene Fragmente. Fragmento no. 10 [11], vol.12, in KSA, op. cit., outono de 1887, p. 459. 8 9 F. Nietzsche. Para Além de Bem e Mal, 202 in KSA. vol. 5, p. 124. 10 Idem, 203, op. cit., pp. 126s. 11 Idem, 44, op. cit., pp. 60s. 12 Idem, 225, op. cit., pp. 160s. 13 Idem. 14 Idem, 212, pp. 145s. RESUMO Noção de último homem em Nietzsche e o desafio à ruptura com a tradição filosófica que acomoda o tédio na boa consciência. Palavras-chave: Filosofia, incômodo, Nietzsche. ABSTRACT Nietzsche’s notion of the last man and the challenge to the severance of philosophical tradition that places tedium in good consciousness. Keywords: Philosophy, annoyance, Nietzsche. 22 verve História anômala e políticas de subjetivação história anômala e políticas de subjetivação alexandre de oliveira henz* História criação sem criador. História de rebanho. História bovina. História ruminação. História com tempo e a tempo. História de passeios e peles de cobras deixadas pra trás. História perdulária. História de dores, sofrimento, lamúria. História de não caber. História portátil. História de contar e contadores. História pequeníssima, fragmento e quase frase. História, sem fim, infinitazinha. História pipocando, cutucando. História de não dormir, insônia madrugada adentro. História de se perder, sem caráter e moral da história. História sem contra. História sem coração. História de crueldade, alegria. História do falso e da ilusão. História do enfraquecimento. História sem esperança e saudade. História em cena sem vida real ou fingimento. História sem vergonha, escancarada, enfiada. História sem verdade. História máscara superficial, sem atrás. História do esquecimento, de estômago frágil, de vomitar. História sem sexo moderno com nem duas caixinhas nem três. His* Psicólogo e filósofo, professor no Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Maria/RS. Doutorando no Programa de Estudos PósGraduados em Psicologia Clínica da PUC/SP. verve, 6: 25-44, 2004 25 6 2004 tória nem Eu nem Nós. História sem prescrição e proscrição. História sem tampão portátil. História sem romantismo de festim e arma só para polir. História todo mundo, ninguém. História fendida. História ferida sem cura. História sábia clandestina. História de paradeiro. História sem jardim do sossego. História sem futuro nem segunda sessão. História de morte, guerra, sem paz eterna. História de tamponamento, vazamento, transbordamento sem hidráulica nem encanador. História nunca mais. História recolhida pelo helenista Marcel Detienne em que apresenta a Ilha das mulheres: “Posidônio afirma que há no Oceano uma pequena ilha, por ele situada na embocadura do Loire, e não de todo em alto mar; que essa ilha é habitada pelas mulheres dos ‘namnetas’, mulheres possuídas por Dioniso e dedicadas a apaziguar esse deus por meio de ritos e toda sorte de cerimônias sagradas. Nenhum macho pode pôr o pé na ilha. Em contrapartida, as próprias mulheres, que são todas esposas, atravessam as águas para se unirem aos maridos, e regressam em seguida. Manda o costume que uma vez por ano elas retirem o telhado do santuário e coloquem um outro no mesmo dia, antes do pôr-do-sol, cada uma trazendo sua carga de material. Aquela cujo fardo cai no chão é estraçalhada pelas outras que passeiam seus membros em volta do santuário, gritando o evoé. Não cessam enquanto seu delírio (lúttê) não termina. E sempre acontece que uma ou outra caia e tenha de sofrer igual destino”1. As imagens desta versão insular de Dioniso2 nos remetem a uma polissêmica, cuja força irrompe de súbito permanecendo incompreensível, alheia a qualquer classificação. Assim, que provocações nos propõe esta história? Que questões, o Dioniso que chamou a atenção do filósofo Posidônio de Apanéia pode trazer a uma abor- 26 verve História anômala e políticas de subjetivação dagem das políticas de subjetivação na contemporaneidade? Um primeiro aspecto significativo na Ilha das mulheres possuídas por Dioniso que se apresenta como uma figura curiosa sobre os efeitos momentâneos de estabilidade, refere-se ao fato de serem mulheres casadas que cumprem regularmente seus deveres conjugais nos limites do domicílio, do continente. Existe ao mesmo tempo, por parte delas, ritos e cerimônias e, poderíamos dizer, estratégias e políticas que buscam apaziguar o caos Dionisíaco desfavorecendo a evocação de outras intensidades, o arrombamento do mesmo, da forma que é também um dos motes dos versos de Willian Blake quando indica: “a forma humana, uma forja de fogo, a figura humana uma fornalha lacrada, o coração humano, sua garganta faminta”3. Mas mantendo a fornalha lacrada nessa estranha versão de Dioniso, o deus entre suas mulheres insiste nas formas, proteções, telhados que devem ser feitos e desfeitos no espaço de um dia, um trabalho sob a luz do sol4. Na troca da cobertura do santuário, um acidente, um acaso que produz5, faz estourar um corpo, deformação de uma forma, fornalha aberta por um Dioniso dos esgaçamentos, das dilacerações que carrega a outros lugares, deus que faz os fiéis tropeçarem. Mesmo permanecendo todo um ano em aparente apaziguamento, lembra em um só dia, aos esquecidos, que ele é o estrangeiro no interior, o disruptivo que nos habita e que continua implacável. A mulher fulminada por Dioniso deixa cair seu fardo (se pensarmos no século XIX, a forma-homem que pesa sobre o homem) e na dilaceração de seus membros jorra no tempo fora dos eixos, tempo de transmutação. 27 6 2004 Lançando setas na direção dos telhados6 da formahomem e das promessas de segurança, nos fala Nietzsche, num de seu textos mais insolentes: “a visão do homem agora cansa”7. Nós sofremos do homem. O que é que ele está querendo dizer? O que nos cansa e o que nos faz sofrer é o fato de que o homem se tornou este verme manso, incuravelmente medíocre e insosso. É o diagnóstico de Nietzsche da cultura ocidental. O pior é que essa mesmice, este apequenamento do homem, este apaziguamento de Dioniso, este nivelamento do homem, tornou-se a meta da nossa civilização e não um acidente de percurso. Assim, Nietzsche conclui que o homem está doente. Mas no que consiste a doença do homem? A doença do homem consiste precisamente nesta forma medíocre que ele assumiu, nesta forma que é expressão de uma negação da vida. Em suma, a doença do homem chamase homem. Essa forma impotente que na Ilha das mulheres não é mantida, porque ali um acidente, um acaso, produz rupturas, isto é, movimentos de já ser ‘outro’ no jogo constante do mesmo e do outro. “Ao acaso irresistível de um fragmento de céu aberto em um telhado”8 temos a fratura do tempo domesticado, a irrupção da multiplicidade dionisíaca da vida, o desencadeamento de novas formas do viver. O que Nietzsche insiste é que este homem manso, morno, monótono, que faz questão da sua mesmice, esse homem igual a si mesmo, idêntico a si e que quer se perseverar como tal é um produto da história9. Esse homem não é natural, foi criado, produzido ao longo dos séculos, ele foi domesticado desta maneira, existindo interessantes descrições sobre a violência que foi necessária para domesticá-lo e dar-lhe essa forma mansa, medíocre, insossa, essa forma que o homem tem 28 verve História anômala e políticas de subjetivação hoje10 e que é reafirmada através de estratégias e políticas de manutenção dos telhados. Evidentemente outras questões poderiam ser libadas pela sabedoria trágica narrada por Detienne. A própria vizinhança entre saúde e loucura na agonística de forças impalpáveis, mas intensamente ativas e interativas que nos falam e levam tanto à rasteira do deus que faz saltar como potência de vida — o grande livramento de Nietzsche —, quanto ao destroçamento de si — nomadismo incondicional na embriaguez fatal de Dioniso —, que conduz à loucura11. Pois, o que seria, na noite, um deus sem telhado, um Dioniso a céu aberto? Saber trágico que flagra o capitalismo contemporâneo alimentando a sua própria utopia: a utopia de uma vida que escapa a essa “miséria”, o ideal de uma vida consumidora sem dor, inteiramente passada na tranqüilidade e na proteção uterina dos telhados. O grande sonho de proteção ininterrupta sincrônica com a promessa de segurança em que os países pobres e ricos resumem hoje toda a sua política12. Diagnosticando esses perigos Nietzsche lembra: “a fôrma aprisionou a vida”. A forma-homem aprisionou a vida. Neste caso seria preciso livrar-se do homem para liberar a vida. Isso não quer dizer literalmente matar pessoas, destroçá-las e correr com os seus pedaços em volta de um santuário, como na alegoria indicada na história, mas sim se desfazer da forma-homem que pesa sobre os homens. Mas como liberar essas forças aprisionadas sob a carcaça da ‘forma aprisionadora’ na Ilha das mulheres? Talvez seja preciso dizer que aí, também, se requer muita violência. Como imaginar que se possa desfazer da forma-homem e das políticas de subjetivação que aí ressoam com menos violência do que foi preciso para estabelecer a forma-homem? Tal- 29 6 2004 vez alguns indícios nos possam ser dados pelo escritor judeu-polonês Bruno Schulz quando refere: “Nenhum mal existe em reduzir a vida a formas novas. O assassinato não é um pecado. Muitas vezes não passa de violência necessária perante entorpecidas e refratárias formas que deixaram de ser interessantes. Pode até ser um mérito quando cometido em benefício de uma experiência interessante e vital. E este é o ponto de partida para uma nova apologia do sadismo. O meu pai não cansava de glorificar este elemento extraordinário. Não há matéria morta — ensinava ele. A morte não passa de aparência onde se ocultam desconhecidas formas de vida”13. Assim, haveria por um lado uma forma-homem que a nossa modernidade cristalizou e, por outro, haveria as múltiplas forças que essa forma-homem moldou, aprisionou. Essas forças, essas afecções Dionisíacas da Ilha das mulheres separadas de tudo o que é humano demasiado humano, poderiam ser chamadas de forças inumanas. De um lado, temos esse formato, mantido por este estranho Dioniso, no qual nós nos reconhecemos como humanos, pelo menos por um certo tempo (período de um ano na história em questão). De outro lado, temos essas forças que nos atravessam, colocando em xeque constantemente essa forma humana a qual nós nos aferramos cada vez mais14. Quanto mais as forças colocam em xeque essa forma, mais nós fazemos questão dessa forma para nos proteger dessas forças; quanto mais nós sentimos essas forças ameaçando desmanchar essa forma, mais nós nos agarramos a essa forma e cristalizamos coisas. Perigo de uma dilaceração, estouro de um corpo na Ilha das mulheres, deformação da forma-homem. 30 verve História anômala e políticas de subjetivação Apresentarei a seguir, algumas questões entre as configurações trágicas da Ilha das mulheres e uma política de subjetivação na perspectiva do indivíduo. A noção de indivíduo pressupõe o mínimo de interioridade, contorno, autocentramento. Seria possível afirmar que essa noção pressupõe uma identidade, uma identidade consigo, mas com uma reapropriação daquilo que difere de si mesmo. O indivíduo reapropria-se do que é diferente dele nessa estrutura autocentrada de contorno delimitado e uma idéia de identidade referencia isso tudo. Na Ilha das mulheres temos algo mais complexo e que está menos referido à identidade própria do que a uma certa relação com a exterioridade. Este si na história em questão está mais relacionado com a exterioridade, com as forças presentes nessa exterioridade. É algo menos individual, menos privado 15 e menos reapropriador, como uma das Duas noites nesse fragmento de Maurice Blanchot: “A primeira noite é acolhedora. Novalis endereça-lhe seus hinos. Pode-se dizer dela: na noite, como se ela tivesse uma intimidade. Entra-se na noite e nela se repousa pelo sono e pela morte. Mas a outra noite não acolhe, não se abre. Nela, está-se sempre do lado de fora. Tampouco se fecha, não é o grande castelo, próximo mas inaproximável, onde não se pode penetrar porque a saída estaria guardada. A noite é inacessível, porque ter acesso a ela é ter acesso ao exterior, é ficar fora dela e perder para sempre a possibilidade de sair dela. Essa noite nunca é a noite pura. É essencialmente impura. Não é esse belo diamante do vazio que Mallarmé contempla, para além do céu poético. Mas é a verdadeira noite, é noite sem verdade, a qual, entretanto, não mente, não é falsa não é a confusão onde o sentido se desorienta, que não engana mas da qual não se pode corrigir os enganos. Na noite encontra-se a morte, atinge-se 31 6 2004 o esquecimento. Mas essa outra noite é a morte que não se encontra, é o esquecimento que se esquece, que é, no seio do esquecimento, a lembrança sem repouso”16. Para nos avizinhar da outra noite anunciada por Blanchot (nela, está-se sempre de fora) é interessante pensarmos em uma representação gráfica, o desenho de uma dobra, feita por G. Deleuze em seu livro Foucault17 que refere o modo como ele leu a questão da subjetividade. O desenho nos fala também da linha do fora. O que existe no fora? O fora possui forças, singularidades, velocidade selvagem. Deleuze apresenta-nos, entre outras questões, os planos do saber, do poder e, como último ponto do seu gráfico, da subjetividade. A subjetividade é uma inflexão da linha do fora, é uma desaceleração do fora. A subjetividade é o fora recurvado, encurvado, infletido. A subjetividade possui uma relação estreitíssima com a outra noite, mas, ao mesmo tempo, no desenho de Deleuze, é apresentado um gargalo, um telhado do santuário da Ilha das mulheres, mais ou menos obstruído porque precisamos de uma pequena obstrução em relação a ele, senão seria uma permeabilidade absoluta à noite que nos tornaria inviáveis como seres operativos. A outra noite, o fora, o céu aberto de Dioniso durante a noite, o que são? Não são articulações, são as diferenças. São as diferenças ou as singularidades na sua velocidade selvagem. Então, a noite me habita ou me atravessa, eu sou apenas uma inflexão dela. Nesse sentido, a noite não está necessariamente exterior. Para Deleuze, a subjetividade é uma dobra do fora. O que é o fora? Um campo pré-pessoal, inumano (talvez de um outro modo ainda povoado pelos deuses intra-mundanos da tragédia grega)18. É uma multiplicidade de for- 32 verve História anômala e políticas de subjetivação ças, sua velocidade infinita, sua invisibilidade. É esse campo de potências é a verdadeira noite, é noite sem verdade, a qual, entretanto, não mente. E a dobra que referi inicialmente, que é? A dobra é como uma dobra de tecido. Uma prega de tecido. A dobra não é diferente do tecido, ela acontece no tecido. Não tem, de um lado, a dobra, de outro lado, o tecido. Ela dobra do tecido, é uma curvatura, é uma certa curvatura do fora, é uma certa inflexão do fora, é uma maneira, por exemplo, de ver que essa velocidade das forças talvez se tornem um pouco mais lentas. Essas partículas se desaceleram da sua velocidade infinita quando sofrem essa inflexão subjetiva. Essa inflexão do fora, essa desaceleração, cria uma certa interioridade, um certo campo interno de ressonância. Mas isso aí não é uma interioridade fechada em si, mesmo porque é justamente uma dobra do fora. É uma espécie de envergamento do fora. Claro, tem aí um ‘certo’ si, mas esse si não tem nada a ver com aquele que é totalmente individuado, centrado em si mesmo, contraposto ao mundo e idêntico a si mesmo. O que aproxima a outra noite, o fora, o céu aberto da Ilha das mulheres, do universo dos gregos anteriores a Sócrates valorizado por Nietzsche, é esse mundo povoado por deuses intra-mundanos em que há a ordem humana e a ordem religiosa, dos deuses, embora já em algum nível discriminadas mas, indissoluvelmente, imbricadas uma na outra. Um mundo ainda repleto de mistérios e um mundo ao qual o homem não controla, um mundo cujo sentido lhe escapa por todos os lados. O trágico de Nietzsche aproxima-se da Segunda noite de Blanchot porque se faz na ambivalência onde o sentido está sempre flutuando de um lugar para outro. Haverá sempre a ordem humana e a religiosa (com seus deuses de múltiplos matizes), uma certa configuração do dentro e do fora se confrontando como porta-vozes de 33 6 2004 dois discursos diferentes que produzirão flutuações de sentido de um lado para o outro. Os trabalhos de helenistas como Pierre Vidal Naquet e Jean Pierre Vernant, entre outros, indicam sobre a noção de “eu” individuado, que ele está sempre em individuação, tal e qual o frágil santuário aparentemente estável de Dioniso:“O eu não é nem delimitado nem unificado: é um campo aberto de forças múltiplas, diz H. Frankl. Sobretudo, essa experiência é orientada para o exterior, não para o interior. (...) O sujeito não constitui um mundo interior fechado, no qual deve penetrar para se encontrar, ou antes para se descobrir. (...) A sua consciência de si não é refletida, dobrada sobre si, encerramento interior(...)”19. Contemporaneamente, Deleuze acompanhou o trabalho de Foucault na descrição o mundo grego. Foucault mostra como os gregos desdobravam sua força em todos os seus hábitos, na cidade, na alimentação, na sexualidade, eles dobravam as forças de tal modo que criava-se um si, mas esse si não era uma redoma contraposta. Era uma certa maneira de fazer ressoar alguma coisa numa espécie de auto-afetação. Esse si é uma maneira de afetar-se. Isso se relaciona com toda a temática do Foucault20 que impregna os últimos livros voltados à questão das práticas de si. Os gregos preocupavam-se com um certo cuidado de si, na existência, nas práticas em relação à alimentação, à sexualidade ou à conduta na cidade. Era uma espécie de existência estética, como fazer de si mesmo uma obra, o que é tema constante nos trabalhos de Foucault. De qualquer maneira, esse cuidado de si que os gregos exercitaram muito, não tem nada a ver com a idéia que geralmente nós temos do si psicologizado, porque o que concebemos como o exercício do si, a introspecção, 34 verve História anômala e políticas de subjetivação é a promessa de nossa apelação conosco mesmo. Descobrir o que nos aliena de nós mesmos, a nossa maneira de nos relacionarmos (a nós mesmos) separados de nós mesmos, ou seja, nós tentamos na perspectiva do indivíduo descobrir nossa ‘verdade interna’. Contemporaneamente são comuns verbalizações como: “eu preciso encontrar o que eu tenho mais lá dentro no fundo que é eu mesmo, minha identidade que está recoberta por um monte de coisas, assim da minha história familiar e muitas outras então eu preciso de algum jeito remover e encontrar de novo o meu si verdadeiro”21. A experimentação dos gregos era totalmente diferente. Não se tratava de reencontrar o si verdadeiro, mas produzir uma forma de existência com essas forças do si, que fosse uma bela obra e uma bela dobra. Como dobrar a vida de um jeito bonito? Dobrá-la como obra de arte. Ainda no tensionamento com a referência identitária, a persistência da subjetividade em sua figura moderna, a ignorar as forças que a constituem e desestabilizam, nos indica Novalis em um de seus fragmentos:“o mundo interior é, por assim dizer, mais Meu do que o exterior. Ele é tão íntimo, tão secreto — quereríamos viver inteiramente nele — ele é tanto uma pátria. É pena que ele tal como os sonhos, seja tão incerto. Será necessário que precisamente o melhor, o mais verdadeiro, nos pareça tão aparente — e que o aparente nos pareça tão verdadeiro? O que é exterior a mim está precisamente, em mim, é meu — e inversamente”22. Vivemos ainda a brincadeira de descobrir a nossa verdade interna mais recôndita, ficando nesse jogo do mistério velado e desvelado, tentando descobrir, e quanto menos se descobre, mais interessante fica, e mais há gozo com esse insondável que é a nossa interioridade 35 6 2004 recôndita. É um jogo com si mesmo, baseado na idéia de que: a gente vai se reapropriar de si”, mesmo que reconheçamos essa reapropriação como impossível, não importa, o jogo está montado, é uma espécie de promessa de desalienação. Como estamos desalienados conosco mesmo, vamos reapropriar, e onde havia inconsciência haverá consciência, redescoberta de si mesmo. Essa matriz possui amplas relações com o que Nietzsche chamou de humano, demasiado humano, com a figura do indivíduo moderno porém, é absolutamente de um outro registro a outra noite, o fora e o que nos conta a Ilha das mulheres Assim retornando a Blanchot, algumas das perguntas trágicas da segunda noite serão: Que outras maneiras há de dobrar e desdobrar as forças, da morte que não se encontra, o esquecimento que se esquece, que é, no seio do esquecimento, a lembrança sem repouso de forças que nos espreitam? Que maneiras presentes e futuras de desacelerar essas forças que nos circundam e atravessam? Que outras maneiras de abrir-se a elas nos esperam? No dizer de Nietzsche, uma das mudanças de pergunta (segundo ele é preciso mudar o lugar da questão) da segunda noite e que problematiza o humano não seria como reconduzir uma dobra mal feita à dobra bem feita, como era a velha pergunta moralizadora do projeto moderno. Toda questão é: Que múltiplas maneiras de dobrar estão aí virtualmente presentes? Quais as outras possibilidades, quantas maneiras de dobrar desconhecidas? Quer dizer, essas inúmeras outras maneiras de dobrar não são uma questão de verdade, (que para um pensador trágico como Nietzsche não é uma boa questão). As dobras estão para ser experimentadas ou inventadas. Não é de estranhar que Deleuze tenha chamado os conceitos nietzschianos de categorias do in- 36 verve História anômala e políticas de subjetivação consciente e o próprio inconsciente de um protocolo de experimentação das outras tantas dobras por vir. Por conseguinte, a questão para a perspectiva do indivíduo não é descobrir a verdadeira dobra. É abrir-se para as possibilidades, as múltiplas dobras virtualmente presentes. A Ilha das mulheres e seu universo trágico tem uma relação íntima com uma exterioridade inumana, com uma multiplicidade pré-pessoal, com a linha do fora na relação com as diferenciações. O si não pensado em relação à segurança e a uma identidade que ele tem como centro, mas à luz das diferenciações, das metamorfoses multifacéticas que ela vive, com todas as estranhezas ali embutidas. Para Nietzsche, assim como na história apresentada por Detienne não existe uma vontade una da qual nós seríamos cada um expressão individualizada, o que existe são múltiplas forças em luta. O mundo, o si é uma pluralidade de forças em luta e essas forças se juntam, aglomeram-se, criam aglutinações de forças. O mundo, a Ilha das mulheres é uma pluralidade de forças em combate. E existem, fundamentalmente, dois qualias de força. O primeiro tipo de força apenas preserva o que possui. É um tipo de força conservadora, da qual todos nós temos traços: conservar o que temos, nossas relações, nossas lembranças, nossas casas. Porém, há um outro tipo de força que é totalmente diferente. Não é uma força de conservação. Esse outro tipo de força tem por direção não conservar, mas ir além, superar-se. Esse segundo tipo de força quer ampliar o que tem e não conservar. Ampliar a própria perspectiva, experimentar a própria potência, desfazer telhados. Experimentar, ir além daquilo que, atualmente, faz, pensa e pode. É um tipo de força ativa segundo Nietzsche. Sua característica é arriscar tudo. O fundamental da outra força é con- 37 6 2004 servar tudo, força reativa. Então, essa força que se arrisca, que vai além, não quer submeter-se a nada. É uma força mais agressiva, mais conquistadora, quer sempre novas direções. Esta força é uma força não de conservação, mas de metamorfose. É uma força plástica, mutante, quer a mudança e a transformação. Ela se apropria de tudo o que pode a sua volta, com esse vetor, ainda que no mais das vezes, onde e quando não esperamos. Se a força reativa quer se conservar e manter tudo como está, a força ativa é uma força criadora, inventa novas direções, sentidos, conexões de vida, novos valores, percepções, perspectivas de vida, novos sentimentos. A perspectiva em Nietzsche é a do criador. O artista diante da sua matéria prima, um pintor, um artista plástico domina sua matéria prima. Mas o sentido de dominar é precisamente o de dar uma nova forma. Dominar não significa dar ordens, mas construir uma nova forma, uma nova sensibilidade, uma nova perspectiva. Um artista se apropria da argila e, nesse sentido, ele a metamorfoseia, ele cria algo inédito. A isso se dá o nome de vontade de dominação, isto é, a força domina o seu entorno. Dominação tem esse sentido plástico em que um artista domina a sua matéria de trabalho. Segundo Nietzsche, a vida tem essa característica também, de uma força que se apropria do mundo para inventar novos sentidos, novas perspectivas e novas direções. As primeiras forças, chamadas forças de conservação, são muito importantes, se não conservássemos o que temos, seria muito difícil inventar qualquer coisa. Nós precisamos conservar os traços mnêmicos ligados à consciência do corpo, pois as forças de conservação são como patamares de estabilização necessários para a vida. Porém, isto é apenas sobrevivência porque para 38 verve História anômala e políticas de subjetivação Nietzsche a vida é também força ativa, inventiva, criadora de novas formas, o que vem a ser propriamente a potência segundo o autor. Obviamente tudo isso está distante da dominação como hierarquia, do Estado, pois potência significa ter a potência de criar, é ter a potência de inventar, apesar da força do rebanho. Há toda uma valorização desta força criadora e afirmativa, uma força que afirma a multiplicidade. Uma força que afirma a diferenciação de viver, de pensar, de sentir, há toda uma valorização em Nietzsche da afirmatividade não unificadora da vida, como refere em Além do bem e do mal: “Há uma ‘moral dos senhores’ e uma ‘moral de escravos’; acrescento de imediato que em todas as culturas superiores e mais misturadas aparecem também tentativas de mediação entre as duas morais, e, com ainda maior freqüência, confusão das mesmas e incompreensão mútua ,por vezes inclusive dura coexistência — até mesmo num homem, no interior de ‘uma’ só alma”23. Então, para Nietzsche convivem dois modos, até mesmo no interior de uma mesma pessoa. O modo senhor é o que vai ao limite do que pode e desdobra toda a sua potência. E o modo escravo de operar é aquele que está separado da sua força. Assim, a vontade de potência é sempre apresentada como diferença. Diferença do quê? Diferença de arriscar tudo o que tem, o que se é o que se conquistou, o que está muito estabilizado. Forças de abandonar esta forma já cristalizada para inventar uma outra forma? Em outras palavras a vontade para Nietzsche quer potência. Mas, a potência é a potência de criar. A vontade é totalmente arriscada, aventurosa, atirada, e sobretudo uma vontade expansiva. É um querer expansivo. É a 39 6 2004 potência de experimentar, experimentar o quê por exemplo? Todos aqueles “deuses trágicos” que me habitam e que eu nem sei que me habitam, todas as potencialidades que estão presentes na vontade de ultrapassagem, uma potência de experimentação em que eu me lanço para além desta forma humana. Ainda nesta perspectiva, Nietzsche vai utilizar o termo Super-Homem que não é a pregação de alguém semelhante ao herói estadunidense, mas uma experimentação criadora o suficiente a ponto de dilacerar esta forma humana, para experimentar uma potência desconhecida, afirmando a vida. A vida (compreendia como potência infinita de criação) repugna a perspectiva mesquinha e burguesa vivida, no limite apenas utilitário da adaptação comandada pela carência, para fins de conservação e reprodução da espécie. A vida, bem como o conjunto da natureza, não é o cenário pacífico da acomodação às necessidades. A vida ao contrário é agon, campo de luta e desiquilíbrio de forças, a vida não é avara de suas formas, mas ‘gastadeira’, perdulária e expansora. E é neste sentido que viver não é sobreviver, pois sobreviver é conservarse e viver para Nietzsche, é precisamente ultrapassarse, experimentar outras perspectivas, outras maneiras de ser, de sentir, de pensar, de se relacionar. A questão fundamental para Nietzsche é criação de novos valores, procurando saber se nós estamos querendo e em condições de criar novas direções; se estamos, muitas vezes, na proximidade da alteridade radical, escolhendo e em condições de criar, ou de conservar o mesmo. Como ter olhos para isso? O que está acabado? O que está nascendo hoje? Nós muitas vezes não temos olhos, porque está se gestando uma nova maneira de perceber, de sentir, de enxergar. 40 verve História anômala e políticas de subjetivação É necessário uma nova sensibilidade para enxergar o que está se desfazendo, o que está se gestando, não só para as formas acabadas , mas para as forças todas do campo que vão gestando novas formas. Claro que esse campo é muito mais invisível, é mais imperceptível. Às vezes, é mais molecular. É político antes de tudo. Há múltiplas coisas que nós não vemos, não tocamos. Mas por quê? Será que essas coisas não estavam ali? Se estavam ali é porque não houve abertura sensitiva, perceptiva? E, evidentemente, não são coisas para iluminados ou videntes. A pergunta é: como se aproximar do invisível? O invisível não é um segredo que se oculta por trás, é o que está aí o tempo todo, para o que nós não temos olhos, porque nós, como alguns personagens de tragédias24 percebemos as formas acabadas, temos muita dificuldade de perceber todas as fissuras, os movimentos, os desfazimentos. “O que muda para os pássaros, a época em que trocam de plumagem, é a adversidade ou a infelicidade, os tempos difíceis, para nós, seres humanos. Uma pessoa pode ficar nesse tempo de muda; também pode sair dele como que renovada”25. É preponderante uma política de subjetivação que no tempo de muda, evita sair dele, tentando reduzir tudo a modorras e mesmices. É importante colocar-se disponível a outras maneiras de operar, para além dos efeitos de ótica das identidades ficcionais, pôr-se, como a vida, generosamente em debandada, como uma debandada de pássaros. A versão insular de Dioniso (a Ilha das mulheres), a outra noite de Blanchot, o fora de Foucault-Deleuze lançam-nos em muitas perspectivas possíveis nos elementos de construção e corrupção, saúde e loucura, vida e morte, apontando a uma experimentação com histórias 41 6 2004 e fragmentos anômalos como prazer de assumir diferentes formas, prazer de ir se construindo e se destruindo ao longo da vida. Convidando-nos a políticas que se aventurem por dentro e por fora das necessidades pragmáticas e subjugadas de nossa inteligência e sensibilidade, rompendo com o que está acabado, visualizando o que vem vindo, desfazendo essa forma e produzindo outras formas, imprevisíveis, indeterminadas. Notas 1 M. Detienne. Dioniso a céu aberto. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1988, pp. 76 e 77. É interessante atentar para o fato de que o deus dos santuários e templos é tipicamente Apolo e que Dioniso “prefere” as florestas e cavernas. 2 3 William Blake apud G. Bataille. A literatura e o mal. Porto Alegre, LP&M, 1989, p.84. 4 O trabalho das mulheres deveria ser realizado antes do pôr do sol e o telhado refeito antes dos perigos de um santuário exposto ao fora, a uma noite sem telhado. 5 O acaso constitui na perspectiva de Nietzsche o princípio que rege o mundo. Sobre os telhados e uma política de subjetivação trágica ver: “A princesa, que morava num palácio com telhado de vidro, estava brincando de jogar pedras no telhado do vizinho. Fazia isso exatamente porque quem tem telhado de vidro não joga pedra no do vizinho”. As ressonâncias de Nietzsche na obra de Fernanda Lopes de Almeida. A princesa dos cabelos azuis e o horroroso homem dos pântanos. São Paulo, Editora Ática, 1993, p. 16. 6 7 F. Nietzsche. A genealogia da moral. São Paulo, Ed. Moraes, 1991, p. 35. 8 M. Detienne, op. cit., p. 92. Ver especialmente os trabalhos do historiador judeu-alemão Norbert Elias. O processo civilizador. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1994, 2 vols. 9 A respeito da ‘forma homem’, não como um dado natural mas sim produzida a ferro e fogo ao longo dos séculos como moldagem civilizatória, apequenamento, domesticação e por conseguinte criação da própria noção de ‘interioridade’; assim como a violência posta no estabelecimento destas formatações ver as descrições interessantes e terríveis em F. Nietzche, op. cit., especialmente I:41, II:3, III:14. 10 42 verve História anômala e políticas de subjetivação 11 Várias e fecundas questões sobre saúde e loucura na articulação com a epopéia e o trágico podem ser inferidas do capitulo III “As bençãos da loucura” in E. R. Dodds. Os gregos e o irracional. Lisboa, Portugal, Ed. Gradiva, 1988, pp. 75-113. 12 Jacques Rancière. “A máquina e o feto”, Folha de S. Paulo, 26/01/2003. 13 Bruno Schulz. As lojas de canela. Rio de Janeiro, Ed. Imago, 1996, pp. 48 e 49, e em especial o capítulo “O tratado dos manequins, ou o segundo Gênesis”. Esses temas são abordados por G. Deleuze. Foucault. São Paulo, Brasiliense, 1986. Bem como por M. Foucault em Vigiar e punir. Petrópolis, Vozes, 1977. 14 15 Sobre a esfera do privado e a ‘privação’ ver Hannah Arendt. A condição humana. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1997, assim como, Steven Lukes. El individualismo. Barcelona, Ed. Península, s/d; que tematizam de diferentes maneiras, a faceta de privação que tem a palavra ‘privado’ e que significa literalmente o estado de quem está privado de algo, inclusive da sua potência, daquilo que ele pode, segundo Nietzsche. Sabendo-se que entre os gregos quem levava uma vida exclusivamente privada, quem como o escravo não tinha acesso a esfera pública, ou quem, como o bárbaro, optava por não criar essa esfera, não era plenamente humano. Contemporaneamente não pensamos no significado de ‘privação’ quando utilizamos esta palavra, o que se deve em parte a enorme naturalização e fortalecimento da esfera privada a partir do final do século XVIII. 16 M. Blanchot. O espaço literário. Rio de Janeiro, Ed. Rocco, 1987, p. 164. 17 “Diagrama de Foucault” in G. Deleuze, op.cit., p. 128. Sobre esta questão ver “Ártemis ou as fronteiras do outro” in J. P. Vernant. A morte nos olhos - figuração do outro na Grécia antiga - Ártemis e Gorgó. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1991. 18 J. P. Vernant. “O Indivíduo na cidade” in P. Veyne et alli. Indivíduo e poder. Lisboa, Ediçôes 70, 1988, p. 38. 19 20 Ver especialmente M. Foucault. História da sexualidade: O uso dos prazeres, vol. II. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1984, e M. Foucault. História da sexualidade O cuidado de si, vol. III. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1985. 21 Fala ficcional de muitos e de ninguém não há referência a uma pessoa, o autor. 22 Novalis. Fragmentos de Novalis. Lisboa, Assírio e Alvim, 1992, p. 105. F. W. Nietzsche. Além do bem e do mal: Prelúdio a uma filosofia do futuro. São Paulo, Companhia das Letras, 1992, p. 172. 23 24 Sobre o trágico, a visão e a cegueira, o visível e o invisível ver Sófocles, “Édipo Rei” e “Édipo em Colono” in A trilogia Tebana. Rio de Janeiro. Jorge 43 6 2004 Zahar Editor, 1989, e R. M. Rilke “Notas marginales a F. Nietzsche, El Nacimiento de la Tragédia” in Er, Revista de Filosofia. Sevilha, Ed. Er, Revista de Filosofia, 1995. 25 V. van Gogh. Cartas a Théo - Antologia. Porto Alegre, L P&M, 1997, p. 21. RESUMO A partir de uma perspectiva deleuziana, analisar algumas políticas de subjetivação na contemporaneidade.Utilizam-se histórias anômalas como dispositivos de problematização. A anomalia pemite evocar um emaranhado de diferenças, ao invés de um fluxo. Permite igualmente um repensar radical da história do mundo e da história da subjetiviade. Palavras-chave: diferença, políticas de subjetivação, histórias anômalas ABSTRACT From a Deleuzian perspective, analyze some politics of subjectivization in the present. Anomalous histories are argued as devices of problematization. Anomaly allows to evoke a tangle of differences, in permanent transformation instead of a flux. It also allows a radical rethinking of the world´s history as well the history of subjectivity. Keywords: difference, politics of subjectivization, anomalous histories. 44 verve Do incômodo das imagens à inquietação do pensamento do incômodo das imagens à inquietação do pensamento márcio alves da fonseca* Em que medida o pensamento, para inquietar-se, precisa ser incomodado? Em relação a inúmeras filosofias talvez fosse possível afirmar, sem muito equívoco, que o pensamento, para inquietar-se, quase sempre precisa ser incomodado, ou ainda, que quanto mais o pensamento for incomodado, tanto mais poderá vir a inquietar-se. Neste sentido, uma interrogação acerca da relação entre a inquietação do pensamento e alguma forma de incômodo que estaria em sua causa ou origem pode ser interessante. Por uma razão bastante precisa, certamente pode-se referir à filosofia de Michel Foucault a fim de se explorar um pouco esta idéia. A razão não é outra senão o fato desta filosofia constituir-se em um esforço contínuo de “problematização”. Com efeito, a relação entre alguma forma de incômodo e a inquietação do pensa* Professor no Departamento de Filosofia da PUC/SP. Autor de Michel Foucault e a constituição do sujeito (EDUC, 1995) e Michel Foucault e o Direito (Max Limonad, 2002). verve, 6: 47-58, 2004 47 6 2004 mento pode ser percebida de modo singular nos trabalhos do filósofo. Não foram poucas as vezes em que Foucault referiuse a este “modo de ser” de seu pensamento. Em uma entrevista concedida a François Ewald, em 1984, publicada em Dits et Écrits com o título “O cuidado da verdade”1, dirá que a noção que serviu de forma comum aos estudos que realizou desde a História da loucura havia sido a noção de problematização: “problematização não quer dizer representação de um objeto preexistente, nem criação pelo discurso de um objeto que não existe. [Problematização] é o conjunto das práticas discursivas ou não-discursivas que faz com que algo entre no jogo do verdadeiro e do falso, jogo que o constitui [este algo] como objeto para o pensamento (seja sob a forma da reflexão moral, do conhecimento científico ou da análise política, etc.)”2. Neste sentido, problematizar é remeter algo — pensamento ou ato, noção ou situação, quer se refiram aos domínios da moral, do conhecimento científico ou da política — para o “jogo do verdadeiro e do falso”, é, portanto, desestabilizar, tirar do repouso, submeter a um movimento. Também em 1984, em um debate com Dreyfus e Rabinow3, Foucault afirma que o trabalho do pensamento seria um trabalho de problematização e de perpétua reproblematização. E este esforço de reproblematização partiria do reconhecimento do princípio de que o homem é um ser pensante, sendo o pensamento não aquilo que nos faz acreditar no que pensamos ou admitir o que fazemos, e sim o que nos faz problematizar aquilo mesmo que somos. O trabalho do pensamento não seria denunciar o mal que habitaria secretamente em tudo o que existe, mas pressentir o perigo que nos ameaça em tudo 48 verve Do incômodo das imagens à inquietação do pensamento o que é habitual, [o trabalho do pensamento] é tornar problemático tudo o que é sólido4. Assim, recusando as designações que normalmente lhe eram atribuídas (idealista ou niilista, anti-marxista ou neoconservador), Foucault identifica sua filosofia a uma certa atitude, “atitude que seria da ordem da problematização”5, entendida como a elaboração de domínios de fatos, práticas e pensamentos que permitem colocar problemas, questionar o que somos e pensamos, o modo como agimos e como nos entendemos, enfim, tudo aquilo que nos é habitual. Deste modo, a filosofia como problematização remete incessantemente à inquietação do pensamento. Ela é da ordem da provisoriedade das conclusões e não da estabilidade das certezas. Sua índole é arriscar-se, deslocar-se continuamente, tatear e experimentar, não admitindo descanso, não se ancorando em qualquer “porto-seguro”. É uma filosofia do pensamento inquieto. E como não tender ao descanso? Como não procurar repouso em alguma certeza? Como manter o pensamento continuamente inquieto? Ao configurar-se como problematização, ao pretender construir-se como uma filosofia do pensamento inquieto, ela deve, de algum modo, incomodar e deixar-se incomodar. Ela deve saber incomodar para poder inquietar continuamente o pensamento. Ora, a leitura atenta dos livros, dos cursos e dos outros escritos de Foucault revela um pensamento que, em não poucas vezes, incomoda. E o faz duplamente: incomoda tanto pelo conteúdo daquilo que diz, quanto pela forma segundo a qual diz o que diz. Talvez fosse até mais adequado afirmar que a filosofia de Foucault incomoda precisamente porque não comporta uma separa- 49 6 2004 ção rigorosa entre “o que diz” e o “como diz”, em outras palavras, entre “conteúdo” e “forma”. Ao referir-se ao “estilo” desta filosofia, Francesco Paolo Adorno6 faz menção a Paul Valéry, para quem a filosofia seria tanto um problema de conteúdos e de argumentações lógicas quanto um problema de forma, não havendo, assim, uma separação rigorosa entre estes dois aspectos do pensamento7. Ora, nos diversos escritos de Foucault explicita-se uma implicação interessante entre forma e conteúdo do pensamento. Nestes escritos, não se trata de encontrar uma determinada forma que seria tão somente o “modo de apresentação” de uma idéia ou um conteúdo. Em Foucault, a forma não deve ser entendida como um mero modo pelo qual determinado conteúdo é expresso. Diferente disto, forma e conteúdo determinam-se essencialmente, ou seja, o conteúdo não seria o mesmo — seria outro — se a forma não fosse a mesma — se fosse outra — e inversamente. É neste sentido que Michel de Certeau pode afirmar em seu texto A Invenção do cotidiano8, que um dos fundamentos da reflexão de Foucault está na forma tomada por seu pensamento, está na organização lingüística das imagens que o compõem. Certeau entende estar em jogo nos escritos de Foucault uma manipulação da linguagem que tem a tarefa estratégica de desestabilizar a posição lingüística do destinatário, seduzi-lo, fasciná-lo (...)9. Talvez fosse possível acrescentarmos, incomodálo. Considerando esta espécie de coincidência entre forma e conteúdo em Foucault e considerando a problematização — que supõe a permanente inquietação do pensamento — como o “modo de ser” de sua filosofia, pode-se pensar que uma das muitas possibilidades de 50 verve Do incômodo das imagens à inquietação do pensamento compreensão de seus escritos seja o estudo das imagens ali presentes e o incômodo que estas imagens pretendem provocar, incômodo que desestabiliza o pensamento, que o retira do repouso, que ameaça tudo que se lhe apresenta como certo. Se esta hipótese faz sentido, a compreensão de um pensamento que pretende realizar um trabalho de constante problematização talvez dependa, em certa medida, da compreensão desta interessante relação entre o incômodo das imagens que aparecem em seus textos e a inquietação do pensamento que estas imagens provocam. Portanto, a consideração da série “incômodo das imagens” — “inquietação do pensamento” — “filosofia como problematização”, parece ser uma das possibilidades de compreensão do modo peculiar de se implicarem, no pensamento de Foucault, forma e conteúdo. Se ao constituir-se como problematização, a filosofia supõe a inquietação permanente do pensamento e se, em grande medida, o caminho para esta inquietação é a construção de imagens que incomodam, então o esforço em acompanhar algumas destas imagens, o esforço para apreender esta “forma” do pensamento de Foucault não será, na realidade, diferente do esforço para se entender o que este pensamento tem a dizer, ou seja, não será diferente do esforço para se apreender seu “conteúdo”. Nesta medida, muitas destas imagens — imagens que desestabilizam e que provocam um deslocamento em relação àquilo que é habitual — podem ser lembradas. Retomemos, apenas a título de ilustração, algumas delas. Logo no início de História da loucura, por exemplo, Foucault faz a caracterização da Nau dos Loucos10. Reportando-se a composições literárias de naves romanescas e satíricas inspiradas no ciclo dos argonautas, Foucault descreve estas naus, que teriam conhecido 51 6 2004 uma existência real, como sendo embarcações que transportavam sua “carga insana” de uma cidade para outra. Esta figura da nau é explorada em todo seu significado simbólico e prático. Ela remete à posição do louco no limiar do mundo medieval e renascentista, ao seu estado de “prisioneiro-livre” — ele aparece ali como passageiro por excelência, como “prisioneiro da passagem” —, remete também à longa história das ligações entre loucura e falha moral, que terão na água um elemento de purificação ou de cura. Esta curiosa figuração reporta-nos a uma percepção em que loucura e razão, de certo modo, coexistem, dialogam, percepção da loucura bastante diferente da clássica e da moderna. Em História da loucura as imagens incômodas se multiplicam, inquietando continuamente o pensamento. No final do livro, a descrição da liberação dos acorrentados de Bicêtre por Pinel11, por exemplo, coloca o leitor diante da percepção moderna da loucura, em que esta (loucura) será aprisionada na estrutura objetivante da doença mental. Ali, o jogo criado entre a imagem da “libertação” dos loucos realizada por Pinel e o seu “aprisionamento” na categoria objetivante da doença mental é também um exemplo da relação peculiar entre o incômodo das imagens e a inquietação do pensamento em Foucault. O incômodo causado por estas imagens, e que se repete em relação a muitas outras — em textos como História da loucura, O Nascimento da clínica e As palavras e as coisas — conduz à inquietação de nosso pensamento, de modo particular, inquietação em relação aos domínios e formas de saber que falam sobre o homem, inquietação quanto às condições de aparecimento destes saberes, quanto ao seu modo de distribuição, quanto à sua pretensão de descrever o que somos. 52 verve Do incômodo das imagens à inquietação do pensamento Ao lado destas, muitas outras imagens criadas por Foucault incomodam, e por este incômodo conduzem a uma interrogação sobre os mecanismos e as estratégias de poder que atuam sobre os indivíduos e que os constituem. São imagens que incomodam porque revelam os diferentes modos de intervenção de poder que, ao lado das estratificações de saber, formam a rede de relações que constituem uma subjetividade normalizada. Vale lembrar, por exemplo, as dezenas de imagens que compõem as análises de Foucault acerca do cruzamento dos discursos psiquiátricos e das práticas judiciárias presentes nos cursos do Collège de France de 1971 a 1975. Em Os anormais12 (1975), os laudos psiquiátricos em matéria penal — e as imagens criadas em torno de sua narração — são o fundo sobre o qual Foucault procurará construir uma genealogia das noções de “normal” e “anormal” a partir das figuras do monstro humano, do onanista e do incorrigível. É assim com a narrativa dos casos da mulher de Sélestat, que mata a filha e come a coxa da menina cozida com repolho; com o caso de Henriette Cornier, mulher que corta a cabeça de um bebê, filha de sua vizinha, sem nenhuma explicação; assim também com a caracterização do casal monstruoso formado por Luis XVI e Maria Antonieta, expressões da figura do monstro político, marcada pelos temas do incesto e da antropofagia; do mesmo modo com a descrição do caso do soldado Bertrand, utilizado por Foucault para discutir o problema da interpretação dada pela psiquiatria do século XIX sobre a mecânica do instinto sexual em face de outros instintos; da mesma forma com a referência à figura de Ubu, que serve para caracterizar a expansão do que Foucault chama de “poder psiquiátrico”. 53 6 2004 Outras imagens incômodas, que também conduzem uma interrogação acerca dos mecanismos de poder, aparecem nos escritos dos anos 70. Em Vigiar e punir13, por exemplo, como não considerar a descrição do suplício de Damiens, narração do ritual punitivo que em oposição à descrição dos mecanismos disciplinares constitutivos de uma anátomo-política dos corpos — cuja expressão mais evidente aparece na descrição dos dispositivos panópticos — serve para denotar as diferenças essenciais entre a forma poder soberano e os mecanismos do poder normalizador? Nesta mesma direção, estão as inúmeras apropriações literárias, como por exemplo, a do texto As jóias indiscretas, de Diderot, que em A Vontade de saber14 ilustra a injunção no Ocidente moderno de “tudo se falar” acerca do sexo. Estão também as descrições de espaços e ambientes, como aquela da sala de julgamento do Imperador Romano Sétimo Severo, realizada por Foucault no curso de 1980 (Du gouvernement des vivants), para apresentar a implicação entre os elementos poder/direito/verdade, implicação que seria definida naquele momento como fundamental para a compreensão de grande parte de seus escritos. São todas imagens que, num certo sentido, incomodam. Isto pela estranheza ou desconforto que causam, pela força ou gravidade das situações a que remetem, ou ainda pela sutileza e simplicidade com que expressam idéias muitas vezes difíceis de se conceituar. Por vezes são imagens que suscitam mais diretamente interrogações acerca dos saberes que nos definem, por vezes são interrogações acerca dos mecanismos e dos modos de intervenção de poder que nos constituem. Mas há também, em Foucault, imagens que conduzem a um tipo de interrogação um pouco diferente das 54 verve Do incômodo das imagens à inquietação do pensamento anteriores. Elas se referem, por sua vez, a formas de constituição de si apoiadas em práticas que, de algum modo, permitem o exercício da liberdade. Neste novo domínio de preocupações, a que se convencionou chamar de “domínio da ética”, as figuras também são numerosas em textos como O Uso dos prazeres e O Cuidado de si, bem como nos últimos anos de cursos do Collège de France. Assim, no curso de 1982, intitulado A Hermenêutica do sujeito15, por exemplo, aparecem imagens como a da “metáfora da navegação”, trazida por Foucault a fim de ilustrar uma categoria discutida naquele momento do curso, a categoria do “retorno a si” ou da “conversão a si”16 que, segundo suas análises, teriam fornecido um novo conteúdo, no pensamento helenístico, ao velho imperativo “cuidar de si mesmo”. Assim como a navegação, o movimento do “retorno a si” comportaria, portanto, a idéia de um trajeto, de um deslocamento efetivo de um ponto a outro; comportaria a idéia de um deslocamento marcado por um objetivo, uma meta, um alvo; comportaria ainda a idéia de um retorno a um lugar de partida; bem como a idéia de uma trajetória repleta de riscos e de perigos; comportaria também a idéia de que esta trajetória, para ser concluída, implica um saber, uma técnica, uma arte. Estas rápidas referências a algumas das imagens que compõem os escritos de Foucault têm apenas a intenção de ilustrar a hipótese de que a filosofia como problematização, neste filósofo, constrói-se, em grande medida, apoiada na relação entre o incômodo das imagens presentes em seus escritos e a inquietação do pensamento que provocam, de tal forma que o primeiro destes elementos — o incômodo das imagens — não se esgota no que poderia ser entendido como a mera “forma” do seu pensamento, nem o segundo — a inquietação do pensamento — seria, por assim dizer, o seu “conteúdo”. 55 6 2004 Em Foucault, ao contrário, incômodo das imagens e inquietação do pensamento são, a um só tempo, “forma” e “conteúdo” de uma filosofia que pretende ser uma atitude contínua de problematização. Por meio deste jogo entre incômodo das imagens e inquietação do pensamento somos confrontados a uma filosofia que pode ser dita “uma empresa de problematização”. Esta é a expressão utilizada por Foucault, numa entrevista de 198417, para definir o programa do GIP (Grupo de Informação sobre as Prisões). Nesta entrevista, seu interlocutor pergunta por que as questões que aquele movimento havia colocado não tinham sido retomadas da mesma forma mais tarde, em relação a outros domínios de experiência da vida social. Foucault responde a esta questão afirmando que o GIP havia sido “uma empresa de problematização”, (...) “um esforço para tornar problemáticas e para se duvidar das evidências, das práticas, das regras, das instituições e dos hábitos que tinham se sedimentado há muitas décadas; e isso a propósito da prisão, mas, através dela, a propósito também da justiça penal, da lei e, mais genericamente, da punição”18. Neste sentido, pode-se compreender a experiência do GIP como uma espécie de “ação incômoda”, uma vez que seu esforço se constituiu em tornar duvidosos e problemáticos os hábitos, as evidências, as práticas, as regras sedimentadas. Em Foucault, é possível então falarmos em imagens incômodas, que de algum modo provocam pensamentos inquietos e que, por sua vez, são capazes de produzir ações incômodas. E através desta idéia, talvez possamos compreender um pouco melhor o sentido de uma filosofia cujo conteúdo e forma reportam-se à problematização. 56 verve Do incômodo das imagens à inquietação do pensamento Notas M. Foucault. “Le souci de la vérité”, in Dits et Écrits, IV, Paris, Gallimard, 1994, pp. 668-678. 1 2 M. Foucault. Idem, p. 670. M. Foucault. “À propos de la généalogie de l’éthique: un aperçu du travail en cours”, in Dits et Écrits, IV, op. cit., pp. 609-631. 3 4 Cf. M. Foucault. Idem, p. 612. Cf. M. Foucault. “Polémique, politique et problématique”, in Dits et Écrits, IV, op. cit., pp. 591-598. 5 F. P. Adorno. Le style du philosophe. Foucault et le dire-vrai. Paris, Éditions Kimé, 1996. 6 Cf. P. Valéry. Oeuvres complètes, vol. I. Paris, Gallimard, 1960, apud F. P. Adorno. Le style du philosophe, op. cit., p. 13. 7 Cf. M. de Certeau. de L’invention du quotidien, Paris, Gallimard, 1990, apud F. P. Adorno. Le style du philosophe, op. cit., p. 16. 8 9 Cf. M. de Certeau. L’invention du quotidien, apud F. P. Adorno. Idem, p. 16. M. Foucault. História da loucura na Idade Clássica. São Paulo, Ed. Perspectiva, 1987. 2a ed., pp. 9s. 10 11 M. Foucault. Idem, pp. 463s. M. Foucault. Os Anormais. Curso no Collège de France (1974-1975). Trad. de Eduardo Brandão. São Paulo, Martins Fontes, 2001. 12 13 M. Foucault. Vigiar e punir. Tradução de Ligia M. P. Vassallo. Petrópolis, Vozes, 1999, 21a edição. 14 M. Foucault. A Vontade de saber. Trad. de Maria Theresa C. Albuquerque e J. A. G. de Albuquerque. Rio de Janeiro, Graal, 1997, 12a ed., pp. 75s. M. Foucault. A Hermenêutica do sujeito. Curso no Collège de France (1982). Trad. de Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail. São Paulo, Martins Fontes, 2004. 15 16 M. Foucault. Idem, pp. 302-303. 17 M. Foucault. “Interview de Michel Foucault”, in Dits et Écrits, IV, op. cit., pp. 688-696. 18 M. Foucault. Idem, pp. 688-689. 57 6 2004 RESUMO Os recursos utilizados por Michel Foucault em seus trabalhos (livros, conferências, cursos, etc) para sugerir os temas que quer abordar são inúmeros. Dentre eles, a construção de imagens através de descrições, narrativas e análises ocupa um lugar importante. Quer no início quer no decurso de muitos de seus textos, tais imagens não apenas ilustram as idéias tratadas, mas se integram em uma rede discursiva que terá o efeito de prender o leitor em sua trama. Pensar no sentido de algumas dessas imagens incômodas, bem como refletir sobre sua relação com a inquietação de nosso pensamento é o objeto do artigo. Palavras-chave: Michel Foucault, imagens, inquietação. ABSTRACT There are several resources used by Michel Foucault in his works (books, conferences, lessons, etc) to suggest the subjects of his approaches. Among them, the construction of images through descriptions, narratives and analyses plays an important role. Either in the beginning or in the extent of many of his texts, such images not only illustrate his ideas, but also integrate a discursive network, which intends to capture the reader in its tissue. The aim of this article is to discuss the meaning of some of these images and their relation with the inquietude of our thought. Keywords: Michel Foucault, images, unrest. 58 verve Intensidades abolicionistas e a cruel exposição da peste intensidades abolicionistas e a cruel exposição da peste salete oliveira* A peste em estilhaços A peste. Há pestes. A peste empesteia a peste. Empesteia o ar. O homem teme a peste. O homem combate a peste. A peste empesteia o homem. A peste empesteia a atmosfera. Há peste e pressão na atmosfera. Pressão atmosférica. Na pressão atmosférica há gravidade e peste. Na órbita da atmosfera o homem combate a peste com gravidade. O homem grave, a peste aguda. Há a peste. Há o corpo. O corpo em peste por Antonin Artaud: “Antes de caracterizar qualquer mal-estar físico ou psicológico, manchas vermelhas espalham-se pelo corpo, manchas que o doente só percebe, de repente, quando tornam-se pretas. Ele nem tem tempo de se assustar, * Doutora e pesquisadora no Nu-Sol, professora na Faculdade Santa Marcelina e professora-pesquisadora no Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC/SP pelo PRODOC-CAPES. verve, 6: 61-78, 2004 61 6 2004 sua cabeça começa a ferver, a tornar-se gigantesca pelo peso, e ele cai. Então apodera-se dele uma fadiga atroz, a fadiga de uma aspiração magnética central, de suas moléculas cindidas em dois e atraídas para sua aniquilação. Seus humores descontrolados, comprimidos, em desordem, parecem galopar através de seu corpo. Seu estômago sobressai, o interior de seu ventre parece querer sair pelo orifício dos dentes. Seu pulso, que ora diminui até tornar-se uma sombra, uma virtualidade de pulso, ora galopa, segue a efervescência de sua febre interior, o borbulhante desnorteamento de seu espírito. Este pulso que bate através de golpes precipitados como seu coração, que se torna intenso, pleno barulhento; este olho vermelho, incendiado e a seguir vítreo; esta língua que arqueja, enorme e grossa, primeiro branca e depois vermelha, a seguir preta, como se fosse de carvão e toda rachada, tudo isto anuncia uma tempestade orgânica sem precedentes. E logo os humores sulcados pela terra pelo relâmpago, como um vulcão trabalhado pelas tempestades subterrâneas, procuram a saída para o exterior. No meio das manchas, aparecem pontos mais ardentes, ao redor desses pontos a pele se ergue em pelotas como se fossem bolhas de ar sob a epiderme da lava, e essas bolhas são cercadas por círculos o último dos quais, como um anel de Saturno ao redor do astro em plena incandescência, indica o limite extremo de um bubão. O corpo fica sulcado por bubões. Mas assim como os vulcões têm seus lugares prediletos para aquecer a terra, os bubões também têm lugares especiais no corpo humano. A dois ou três dedos da virilha, sob as axilas, naqueles locais preciosos onde glândulas ativas realizam fielmente suas funções, aparecem os bubões através dos quais o organismo se livra ou de sua podridão interior ou, conforme o caso de sua vida. Uma conflagração violenta e localizada num ponto indica na maioria das vezes que a vida central nada perdeu de suas forças e que 62 verve Intensidades abolicionistas e a cruel exposição da peste uma diminuição do mal ou mesmo sua cura é possível. Assim como o cólera branco, a peste mais terrível é a que não divulga suas feições”1. Explorar a peste em estilhaços é apenas um jeito específico de tocar na exterioridade do corpo, sem pretender desvendar profundidades de qualquer ordem, pois o desvendamento e a profundidade fazem parte de um discurso de vontade de verdade pautado, ora na soberania do significado, ora na soberania do significante2. Situarse na exterioridade da peste, ou ainda, genealogicamente, na exterioridade do acidente é um arremesso da vontade envolvida com a história marcada no corpo3. Não é preciso mais do que um corpo metido no espaço para se conhecer a história, pontual, pequena, um detalhe precioso, o acaso no disparate. E conhecer deste modo é saber apenas aquilo e daquilo que o corpo experimenta. Trata-se de um conhecimento cruel, interessado em expor, expondo-se. Não há outra maneira. E esta exposição em nada se confunde com o procedimento de se deixar apanhar, de permitir a construção de uma identidade para melhor caber na ordem das coisas, possibilitando, simultaneamente, ser identificado para assemelhar-se ao inocente, otário, mártir ou herói. Não. Esta exposição específica diz respeito a algo próximo daquilo que Artaud explicita na crueza de Heliogabalo, um jovem de 14 anos, um insurreto, pois, sua inssurreição ele pratica, antes de mais nada contra si próprio. “(...) Espreme a ordem estabelecida, as idéias, as noções comuns das coisas. Pratica a anarquia minuciosa e perigosa, pois expõe-se aos olhos de todos. E isso é de um anarquista corajoso”4. A política treme. Apavora-se diante da ameaça de ruína de seu significado e seu significante, eternamente remetidos a variações de grau entre quantidade e quali- 63 6 2004 dade, regimes de governo, hierarquias de poder, formas de soberania, confinamentos justos e injustos, julgamentos propícios e inconvenientes. O insuportável para a política diz respeito ao espaço das intensidades. Diante delas é o abalo, o sobressalto da respiração de um corpo incidido pela peste. O descompasso sôfrego de um pulsar na fissura. De um corpo que diz na superfície de sua própria fratura. O contratempo da dança na ruína da linguagem. A intensidade cruel de um corpo que dança na exterioridade de sua devastação. Uma tempestade sem precedentes. A morte de Heliogabalo por Antonin Artaud: “É então que a guarda em armas se volta contra Heliogabalo. Procura-o por todo o palácio. Júlia Soémia acorre. Encontra Heliogabalo. Grita-lhe que fuja. Acompanha-o na fuga. Os gritos dos perseguidores vêm de todos os lados, as suas pesadas correrias fazem estremecer as paredes, um pânico indescritível apodera-se de Heliogabalo e da sua mãe. Aonde quer que estejam vêem a morte. Fogem pelos jardins que dão para o Tibre, pela linha de sombra dos grandes pinheiros. Num recanto afastado, depois de espessas filas de buxo odorante e de carvalho verde, abrem-se ao vento as latrinas da tropa, escavadas como sulcos que arassem a terra. O Tibre está demasiado longe. Os soldados, a um passo. Doido de medo, Heliogabalo salta para as latrinas, mergulha no excremento. É o fim. A tropa, que o viu, cerca-o. E a sua própria guarda o agarra pelos cabelos. É uma cena de magarefe, uma carnificina repugnante, uma velha imagem de matadouro. Os excrementos misturam-se com o sangue no gume das espadas que devastam as carnes de Heliogabalo e da sua mãe. Depois, içam os corpos, carreiam-nos à luz de archotes, arrastam-nos pela cidade diante da populacho aterrorizada, diante das fachadas das casas patrícias que abrem as janelas para aplaudir. 64 verve Intensidades abolicionistas e a cruel exposição da peste Uma multidão imensa marcha agora para o cais, sobre o Tibre, no rasto daquela pobre massa de carne exangue e suja. ‘Atirem-nos ao esgoto’ clama agora a populacho que aproveitou a liberalidade de Heliogabalo, que a digeriu velozmente. ‘Para o esgoto os dois cadáveres, Heliogabalo ao esgoto!’ Farta do sangue e da visão obscena dos dois corpos nus que mostram destruídos todos os seus órgãos, mesmo os mais secretos, a tropa tenta agora introduzir o corpo de Heliogabalo na primeira boca de esgoto que encontra. Mas, embora delgado, ainda é muito largo. Há que solucionar. A Elagabalus Bassianus Avitus, dito Heliogabalo, já fora acrescentado o nome de Varius, porque provindo de múltiplos sêmens nascera de uma prostituída; deram-lhe ainda o nome de Tiberiano e Arrastado, porque foi arrastado e atirado ao Tibre depois de tentarem metê-lo por uma boca de esgoto; mas a boca de esgoto não lhe deu passagem, ainda tinha as espáduas muito largas, e então decidiram limá-lo. Assim, partiram-lhe a pele, pondo à mostra o esqueleto que queriam intacto; com o que ainda poderiam ter-lhe posto nome de Limado e Polido. Mas uma vez limado, continua largo, e atiram-no ao Tibre, que o arrasta para o mar, seguido, a alguns redemoinhos de distância, pelo cadáver de Júlia Soémia. Assim acaba Heliogabalo (...) mas em rebelião declarada”5. Interessa experimentar lidar na mistura imprevisível — pois a peste não se aparta da mistura —, num certo tipo de amálgama heterogêneo da peste devastando um corpo e dos efeitos de contenção da política sobre o corpo de Heliogabalo que ousou instaurar a anarquia, que atravessa seu corpo, no corpo da cidade. O corpo em peste e o corpo anárquico de Heliogabalo enunciam o transtorno proveniente da vida tomada em suas intensidades irredutíveis. 65 6 2004 E se por acaso, há uma imensidão daqueles que rogam pela segurança na política e vêem nas políticas de segurança o refúgio mediano para a salvação diante da peste, vale lembrar que não cessam de existir os intensos insubordináveis que fazem de suas vidas e seus corpos instrumentos cruéis que sabem, tal qual Artaud, que “morrer de peste não é pior do que morrer de mediocridade”6. Estilhaços sobre a cidade Foucault, ao resenhar o livro Diferença e repetição, de Gilles Deleuze, enfatiza, com muito humor, como a intensidade é o insuportável para a filosofia tradicional e sublinha, de forma apaixonada, a subversão provocada por uma filosofia intensa. A intensidade por Michel Foucault: “Chega então o momento de errar. Não como Édipo, pobre rei sem cetro, cego interiormente iluminado; mas vagar na festa sombria da anarquia coroada. Pode-se então a partir daí pensar a diferença e a repetição. Ou seja — em vez de representá-las — fazê-las e jogar com elas. O pensamento no ápice de sua intensidade será ele próprio diferença e repetição; permitirá distinguir o que a representação buscava reunir, ele atuará a perpétua repetição da qual a metafísica obstinada buscava a origem. Não mais se perguntar: diferença entre o que e o quê? Diferença delimitando que espécies e repartindo que grande unidade inicial? Não mais se perguntar: repetição do que, de qual acontecimento ou de que modelo primário? Mas pensar a semelhança, a analogia ou a identidade como tantos meios de velar a diferença e a diferença das diferenças; pensar a repetição, sem origem do que quer que seja e sem o reaparecimento da mesma coisa. Pensar antes as intensidades (e mais cedo) do que 66 verve Intensidades abolicionistas e a cruel exposição da peste as qualidades e as quantidades; (...) mil pequenos sujeitos larvários, mil pequenos eus dissociados, mil passividades e pululações lá onde, ontem, reinava o sujeito soberano. Sempre se recusou, no Ocidente, a pensar a intensidade. (...) Não devemos nos enganar quanto a isso. Pensar a intensidade — suas diferenças livres e suas repetições — não é uma insignificante revolução em filosofia. (...) É recusar, enfim, a grande figura do Mesmo que, de Platão a Heidegger, não parou de aprisionar em seu círculo a metafísica ocidental. É tornar-se livre para pensar e amar o que, em nosso universo ruge desde Nietzsche; diferenças insubmissas e repetições sem origem que sacodem nosso velho vulcão extinto” 7. O que Foucault aponta como o insuportável para a filosofia tradicional é possível ser estendido para a política. No entanto, a intensidade está associada à crueldade. A peste instaurada na cidade esboroa a ordem soberana da política. Ela extrapola as fronteiras do território soberano. A peste se converte em risco incomparável pois ela é um perigo à moral. É isto que a diferencia de uma epidemia. A peste não poupa nem a política nem a moral. A peste não poupa ninguém. Nem a si própria. Ela se faz em corpos, fogo, ar, água e lugar. A peste na cidade por Antonin Artaud: “Uma vez estabelecida a peste em uma cidade seus quadros regulares desmoronam, não há mais lixeiros, nem exército, nem polícia, nem prefeitura; surgem fogueiras para a queima dos mortos, conforme a disponibilidade de braços. Cada família quer ter sua fogueira. A seguir, a madeira, o lugar e o fogo escasseiam, há lutas entre famílias ao redor das fogueiras, logo seguidas por uma fuga geral, pois os cadáveres já são em números excessivo. Os mortos atravancam as ruas, em pirâmides instáveis que os animais roem aos poucos. O fedor sobe 67 6 2004 pelo ar como uma labareda. Ruas inteiras são fechadas pelo amontoamento dos mortos. Nesse ponto, as casas começam a se abrir e pelas ruas espalham-se, gritando pestilentos delirantes, com o espírito tomado por pavorosas imagens. (...) Outros empestados que, sem bubões, sem dores observam-se orgulhosamente em espelhos, e sentem-se estourando de saúde, caem mortos, as mãos na bacia, cheios de desprezo pelos outros pestilentos. Sobre os regatos sangrentos, espessos, nauseabundos, cor de angústia e de ópio que brotam dos cadáveres, passam estranhas personagens vestidas de cera, com enormes narizes, olhos de vidro e calçadas com uma espécie de sandália japonesa feita com uma dupla camada de madeira, uma horizontal na forma de sola e a outra vertical, e que as isola dos humores infectos; elas passam e psalmodiam litanias absurdas, cuja virtude não as impede de por sua vez tombarem nos braseiros. Esses médicos ignaros com isso mostram apenas o medo e a puerilidade que os acometem. Nas casas abertas, a ralé imunizada, ao que parece, por sua frenética cupidez penetra e se apodera de riquezas que, ela sabe, não lhe serão de nenhum proveito”8. O alarido interminável e o silêncio estancado. Eis o descompasso irremediável instalado na política. A peste sacode as demarcações arbitrárias entre geografia, território e política, provocando uma mistura de contrários. Não se trata de sobrepor construções abstratas da cidade-organismo e do organismo-corpo, pois corpo e cidade são tomados no mesmo tom. E o que lhes inscreve uma forma aguda repleta de marcas definitivas faz parte de um certo tipo de furor incontrolável. Há de se construir politicamente o medo do contágio por contato direto. O medo deve ser erigido como a face mais benevolente capaz de partilhar seu tempo indissoluto com a esperança na política apaziguadora. A 68 verve Intensidades abolicionistas e a cruel exposição da peste peste atingiu a política, e está a um passo de atingir a moral, sua irmã predileta. Mas é inútil. A peste não tem origem nem fim. Ela não parte de um fora, entendido sempre como o Outro, para atingir o interior na sua verdade soberana, compreendido como o Mesmo a ser preservado. A peste se insinua sub-repticiamente e demole o regime da representação. Há muito, a peste já havia corroído a moral. A peste não vem de lugar nenhum, ela já estava aqui. Habita em intensidades. A intensidade é o insuportável para a política. Intensidade em cisalhas O teatro e seus gestos por Antonin Artaud: “E nesse momento instala-se o teatro, isto é, a gratuidade imediata que leva a atos inúteis e sem proveito para o momento presente. Os últimos que ainda vivem se exasperam: o filho, até ali submisso e virtuoso, mata o pai; o recatado sodomiza seus próximos. O libertino torna-se puro. O avarento joga seu ouro pela janela. O guerreiro heróico incendeia a cidade que ele outrora salvou. O elegante se enfeita e vai passear nos ossários. Nem a idéia da ausência das sanções, nem a da morte próxima bastam para motivar atos tão gratuitamente absurdos por parte das pessoas que não acreditavam que a morte pudesse pôr um termo a tudo. E como explicar esse aumento da febre erótica entre pestilentos curados que, ao invés de fugir, ficam onde estão tentando conseguir uma volúpia condenável com moribundos ou mesmo mortos semi-esmagados pela montanha de cadáveres onde o acaso os alojou”9. O teatro da crueldade é o duplo da peste. Tessitura tramada em gestos duplos. Não há direito, não há avesso. Apenas o redobrar e o esgarçar de cada gesto. O 69 6 2004 estancamento e o agitar de contrários, que jamais vão caber na dicotomia da moral normalizadora. São os duplos gestos da peste instalados por Artaud. O filho mata o pai; o recatado sodomiza o vizinho; o libertino torna-se puro; o avarento joga fora o ouro; o guerreiro incendeia a cidade que salvou; o elegante passeia nos ossários. Não se trata do furor assassino que se esgota, mas de uma diferença sutil, que provém do furor do ator trágico, que não cessa e atravessa o espaço incendiando-o e abrindo feridas, fazendo-se ferida e fissura. Não caber em si mesmo. Os duplos que aponta Foucault ao afirmar a dissonância da intensidade num embate de forças incidindo na demolição da representação. Livrar-se do mensurável no jogo das igualdades, do qualitativo e o contínuo; recusar o negativo que implica rejeitar de um só golpe as filosofias da identidade e da contradição; complementos recíprocos dos metafísicos e dos dialéticos; escarnecer de uma só vez as filosofias da evidência e da consciência. Tornar-se livre. Não é fortuito que Foucault chame a filosofia intensa de teatro atual e ao reavivar vulcões extintos, pois eles não estavam extintos, precise este gesto como o vagar na festa sombria da anarquia coroada, fazendo uma referência explícita ao sub-título de Heliogabalo de Artaud. Os duplos gestos de Heliogabalo, que imprimem o ritmo de sua crueldade e anarquia. “Um estranho ritmo intervém na sua crueldade: este iniciado faz tudo com arte e a dobrar. Quero dizer: sobre dois planos. Todos os seus gestos têm duas caras. Ordem, Desordem Unidade, Anarquia Poesia, Dissonância 70 verve Intensidades abolicionistas e a cruel exposição da peste Ritmo, Discordância Grandeza, Puerilidade Generosidade, Crueldade”10 Onde se apregoa a cura sob a forma de salvação a intensidade cruel instaura o descompasso inacessível daquilo que não pode ser agarrado. Que se faz vários, fugidios. Esgarça seu próprio nome. Afronta estabilidades remetidas a diversos arranjos de centralidade de poder. Solapa o sossego da vida confortada nas migalhas de gestão da morte em nome da preservação da espécie. Crueldade generosa no espaço do excesso, da desmesura que esparrama o jamais contível. Fartura. Fratura. Fissura. Movimentos da peste duplo da crueldade, suscitados pela vida de gestos trágicos. Não caber em si mesmo. Tornar-se livre. Arrebatamento dissonante. Voracidade de vida. Apetite. Entrelaçamento fatal de vida e morte. Fertilidade. Secreções, suores, excrementos, odor de sexo, pele, mucosa, sangue, saliva, muco da vagina, sêmen do pau, febres eróticas, lágrimas de dor e alegria, banquetes entre amigos, aromas de iguarias, risos escancarados, sem subterfúgios, sons inaudíveis, gestos largos e imperceptíveis, contundências, delicadezas, leveza, dança. O elegante se enfeita e passeia sobre os ossários. O aprisionamento da intensidade, a órbita de gravidade do direito penal e sua dissolução A construção da prisão moderna foi a resposta disciplinar que a moral do confinamento deu para a peste. “A peste (pelo menos aquela que permanece no estado de previsão) é a prova durante a qual se pode definir idealmente o exercício do poder disciplinar. Para fazer 71 6 2004 funcionar segundo a pura teoria dos direitos e as leis, os juristas se punham imaginariamente no estado de natureza; para ver funcionar suas disciplinas perfeitas, os governos sonhavam com o estado de peste. No fundo dos esquemas disciplinares, a imagem da peste vale por todas as confusões e desordens; assim como a lepra, do contato a ser cortado, está no fundo do esquema de exclusão”11. Vale lembrar, a partir de Foucault, que os efeitos morais e políticos de combate à peste resultaram em um modelo de organização médica baseada na ordem militar que estabeleceu os contornos do confinamento. Diferente do modelo anterior implementado a partir da lepra com base religiosa, delineada por mecanismos de expulsão. Este modelo oriundo da peste calca-se em uma interceptação do corpo pelo tríptico, lei, contenção da transgressão e castigo decodificado sob a forma de prevenção, cujos desdobramentos têm por meta a defesa da sociedade. Trata-se neste caso do expurgo intra-muros, não mais como exclusão e sim como agrupamento interior, envolvendo uma análise minuciosa da cidade, caracterizada pelo registro permanente. Situa-se neste ponto preciso a emergência do conceito de segurança frente ao conceito de periculosidade. Deflagra-se o grande tribunal inventariador de desvios, tudo o que for considerado pestilento, perigoso ganha estatuto de anormal. A dissonância polivalente introduzida por Antonin Artaud: “Numa vida [a de Heliogabalo] cuja cronologia é impossível e onde os historiadores, que lhe assinalam toda uma série de crueldades não datadas, vêem um monstro, vejo eu, uma natureza de uma plasticidade prodigio- 72 verve Intensidades abolicionistas e a cruel exposição da peste sa, que sente a anarquia das coisas e se rebela contra as coisas” (Artaud, 1991: 100). Diante da dissonância trazida por Artaud é possível apresentar outras a partir da perspectiva abolicionista penal. Louk Hulsman destaca a atenção que o abolicionismo deve dedicar à própria linguagem, quando traça estratégias fora da lógica penal. Isto implica contestar a natureza ontológica do crime — que, segundo Hulsman, é o pressuposto básico para a legitimidade da política criminal e do sistema penal —, levando a discussão para um campo distinto, no qual importa formular respostas para o que passa a ser designado por ele de situação-problema, sendo que esta permite assumir uma postura de exterioridade que tece a perspectiva abolicionista. A órbita de gravidade do sistema penal e sua ruptura por Louk Hulsman: “Do mesmo modo que foi preciso vencer a força da gravidade para explorar o mundo exterior à Terra, é preciso sair da lógica do sistema penal para poder conceber uma sociedade em que este tenha desaparecido. Os conceitos e a linguagem do sistema penal nos retém em seu território o que faz ser necessário um esforço mental bastante considerável para conseguir desfazer-se deste campo de gravitação. Queira-se ou não, quando se fala de ‘crime’ ou de ‘delito’ surge imediatamente uma imagem: a de um sujeito culpado. Se, pelo contrário, utiliza-se o termo ‘evento’, a expressão ‘situação problema’ ou qualquer outra de significação neutra, então se abre um espaço no qual podem coexistir interpretações diversificadas. Se substituímos os termos ‘delinqüente’ e ‘vítima’ pela expressão ‘pessoas implicadas em um problema’, evitamos que se imputem mentalmente a estas pessoas etiquetas pré-fabricadas (...) e as convertam ipso facto em adversá- 73 6 2004 rios. Deste modo se abre um âmbito no qual se podem encontrar respostas muito distintas daquelas do modelo punitivo. Apenas quando se sai da dialética penal se pode romper com o ciclo ‘delinqüência-prisão-reincidênciaprisão’ que se apresenta como invencível na lógica penal”12. Este detalhe sutil que Hulsman aponta e problematiza em torno da linguagem se mostra como um elemento de intensa potência no abolicionismo, pois possibilita o investimento em um combate que estabelece ressonâncias com a prática genealógica de estancamento das palavras como exercício de mapeamento de uma determinada lógica e sua conseqüente demolição, se a escolha for realmente trafegar a partir de outros referenciais distintos daqueles arrumados e dispostos na sintaxe da sujeição. A armadilha da gravidade do sistema penal por Louk Hulsman: “Sem dúvida isto se explica pela própria gênese do sistema penal, que foi idealizado em uma época de transição entre a sociedade religiosa e a sociedade civil e que segue sendo devedor do modelo escolástico, por isso mesmo aparece também impregnado da cosmologia medieval. Uma verdade definida de uma vez por todas e imposta verticalmente, juízes encarregados de distribuir uma justiça tão absoluta quanto serena, um determinado sofrimento imposto como réplica aos atos considerados maus que há de ‘purificar’, uma filosofia maniqueísta que divide os homens entre bons e maus, em inocentes e culpados, tal como tem sido sempre e é, todavia hoje a lógica do sistema penal vigente em nossas sociedades, que não é senão a lógica do Juízo Final na qual o Deus onipotente, onisciente e justiceiro dos escolásticos foi substituído pelo Código Penal e o tribunal de cassação”13. 74 verve Intensidades abolicionistas e a cruel exposição da peste A proposta de Hulsman não é um mero jogo de retórica. Evidencia a trama da sintaxe que faz parte da grande armadilha tecida pelo discurso da reforma, que ao transitar perpetuamente no interior da lógica do sistema penal, perpetua-se através do eterno rearranjo de seus elementos, cultivando a infindável troca de sinais entre a providência divina e a providência da razão. Resposta-percurso, a crueldade abolicionista, o abolicionismo também é a peste A armadilha da gravidade da justiça e a crueldade abolicionista por Edson Passetti: “O homem é finito e inexiste a grandeza na suposta infinitude iluminista. Ele ficou refém da administração, o procedimento que tomou o lugar de deus, de um deus que ao ser morto foi transformado em um fato religioso. As respostas trazidas pela filosofia e pela ciência foram novas, mas as perguntas permaneceram teológicas. Agora quem ordena a ordem é um procedimento sigiloso, burocrático e jesuítico. Deus teve de ceder lugar à onipotência da ciência. Trocamos de providencialismo e foram instituídos dois universais rivalizando para ser a única centralidade dos seres vivos, quando são o duplo da mesma unidade. A ciência e a religião responderam que somos iguais na cova, aumentando os vermes dos cemitérios, e nos fazem crer iguais no paraíso celestial ou na utopia terrena. Querem nos legar um lugar seguro, unificando procedimentos (...) O abolicionismo é uma unidade da série liberdade que não encontra o absoluto, mas se dirige ao infinito com conciliações. Ele não pode ser encontrado em todos os lugares, nem provém de todos os lugares; ele promove acontecimentos”14. Acontecimentos cruéis. A peste-acontecimento. Não há modelos, anteparos, tribunais, redes de segurança. 75 6 2004 As intensidades abolicionistas desafinam, reverberam tons cruéis. Resposta-percurso em Heliogabalo por Antonin Artaud: “E a anarquia levada ao ponto em que Heliogabalo a leva, é poesia realizada. (...) A poesia é multiplicidade triturada e incendiada. E a poesia que estabelece a ordem, suscita primeiro a desordem, a desordem dos aspectos incendiados; provoca o choque dos aspectos que leva a um ponto único: fogo, gesto, sangue, grito. Trazer a poesia e a ordem a um mundo cuja simples existência já é um desafio à ordem, é levar à guerra e à permanência da guerra, é fundar um estado de crueldade incidida, é suscitar uma anarquia sem nome, a anarquia das coisas e dos aspectos que acordam antes de soçobrarem de novo e se fundirem na unidade. mas aquele que acorda esta anarquia perigosa é sempre sua primeira vítima”15. O abolicionismo exige estar disponível para ele. Ele provém de cada pessoa. Incide, antes de mais nada, no si que não cabe em si. Diferente da posição do devoto que se coloca à disposição de uma receita, de um código, de uma bula, seja ela qual for, para virar o Outro ou o Mesmo. A resposta-percurso abolicionista se tece em sua própria superfície. Não há começo, meio e fim. A noção de resposta-percurso é deliberadamente inacabada em duas dimensões, já que por um lado não é começo nem fim, mas um instrumento capaz de construir outras respostas, e por outro lado não traz em si uma saída definitiva passível de ser universalizada como modelo exemplar. A resposta-percurso propicia a demolição da órbita da gravidade da prática de modelo de diversas ordens. Não interessa mais escutar, escutar e repetir. Interessam gritos precisos lá onde eles vibram, gritos imprecisos em silêncios inundantes, cores e movimentos. 76 verve Intensidades abolicionistas e a cruel exposição da peste Para o abolicionismo os sins neste tipo de resposta compõem com experiências libertárias que arruínam teorias e centralidades e, ao passar ao largo do ideal de felicidade, proporcionam experiências estéticas capazes de valorizar vidas e obras, não no que lhes falta, mas no que lhes excede e escapa. Interessa afirmar o fim do encarceramento de jovens no Brasil. Para um abolicionista cruel, intenso e em peste este é um incômodo inominável. Só interessa viver o que precisa ser vivido. Não há nada para ser salvo. O elegante se enfeita e passeia sobre os ossários. No mais, só há o vazio. O cu do vazio ecoando os gestos de Heliogabalo, este jovem anarquista que acorda a ferida e a faz fissura, interessado em ouvir e dizer: Contemporizar, submeter-se é consagrar a derrota sem defender a vida. Notas 1 A. Artaud. O teatro e seu duplo. São Paulo, Max Limonad, 1984, pp. 30-31. A este respeito ver M. Foucault. A ordem do discurso. São Paulo, Edições Loyola, 1996. 2 3 Esta concepção de história é tratada com vigor por M. Foucault em “Nietzsche, a genealogia e a história” in Microfísica do poder. Rio de Janeiro, Graal, 1979. A. Artaud. Heliogabalo, ou o anarquista coroado. Lisboa, Assírio e Alvim, 1991, p. 97. 4 5 Idem, pp.129-131. 6 A. Artaud. Eu, Antonin Artaud. Lisboa, Hiena, 1988. M. Foucault. “Ariadne enforcou-se” in Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamentos, Col. Ditos e escritos. vol. II. Rio de Janeiro, Forense, 2000, pp. 143-144. 7 8 A. Artaud. op.cit, 1984, pp. 34-35. 77 6 2004 9 Idem, pp. 35-36. 10 Op. cit., 1991, pp.121-122. 11 M. Foucault. Vigiar e punir. Petrópolis, Vozes, 1987, p. 176. L. Hulsman & J.B. de Celis “Argumentos para uma sociedad sin penas” in C. Ferrer (org.) El lenguage libertário. Montevideo, Nordan Comunidad, 1993, pp. 189-190, grifos do autor. 12 13 Idem, p. 187. E. Passetti. “Kafka e a sociedade punitiva” in E. Passetti et al. (orgs.) Conversações abolicionistas: uma crítica do sistema penal e da sociedade punitiva. São Paulo, IBCCrim, PEPG-Ciências Sociais PUC-SP, 1997, pp. 177-185. 14 15 A. Artaud, op. cit., 1991, p. 100. RESUMO A crueldade artaudiana interessa ao abolicionismo penal, cuja uma das exigências é estar atento à linguagem e seus gestos. As atitudes abolicionistas são heterogêneas e promovem misturas; tal qual a peste, suas diferentes intensidades arruínam a ordem da política e da moral. Palavras-chave: abolicionismo penal, crueldade, peste. ABSTRACT The Artaudian cruelty is subject of interest to penal abolitionism, which one of its demands is to be alert to language and its gestures. Abolitionist attitudes are heterogeneous and promote mixtures; alike the pest, its diverse intensities destroy the order of politics and moral. Keywords: penal abolitionism, cruelty, pest. 78 verve A beleza terrível a beleza terrível contador borges* A imagem é um enigma, diz Maurice Blanchot. Ela treme, oscila, mas de algum modo nos serve de acesso à “realidade do irreal”, pois captura nosso olhar em sua tela e o faz errar sobre ela, o olhar e sua exigência: ver, mas não simplesmente ver; olhar, mas na medida extrema em que, olhando, ele se perde, e, por assim dizer, se desrealiza. Se a imagem é um enigma, o que dizer da beleza de um rosto, de um corpo? Ela certamente não é natural: está, há muito, afastada da natureza. Ou talvez sempre esteve, porque sua percepção já implica uma certa sensibilidade codificada, uma tentação simbólica. E se não é * Poeta, ensaísta e tradutor. Publicou os livros de poesia Angelolatria (1997) e O reino da pele (2003); traduziu Aurélia, de Gérard de Nerval, (1991), O nu perdido e outros poemas, de René Char (1995), e A filosofia na alcova, de Marquês de Sade (1999), entre outros, todos pela editora Iluminuras. Tem colaborado com artigos, poemas e traduções em várias revistas e jornais no Brasil e no exterior. verve, 6: 81-100, 2004 81 6 2004 natural, até que ponto seria real? Sua “realidade”, no fundo, não se sustenta, já que não se pode tocá-la, quando muito apreendê-la. O que é tocar um rosto, um corpo, a nudez que deles emana, essa luminosidade oscilante que ainda persiste apesar de toda banalização, de toda fabricação do nu como produto de consumo, esse nu retalhado em pedaços ou fetiches cuja topografia desoladora lembra a figura mapeada de um boi na porta das churrascarias? Não se trata, afinal, do mesmo gesto de incitar o apetite à devoração compulsiva? Mas este “nu perdido”, exilado de si mesmo, certamente não possui a nudez essencial que aqui se visa, e cujo sentido milagrosamente resguarda uma relação profunda com o erotismo, com o sagrado. O que vem a ser, enfim, a beleza de um corpo quando se admite atingir com os dedos tão somente sua carne, sua materialidade, se o que lhe confere sentido permanece intocável? Não seria um pouco isso o que entendemos por “beleza”? A despeito de todo aparato conceitual erguido à sua volta, seu significado, este objeto que foge, a beleza, talvez seja, por isso mesmo, a mais enigmática das imagens. Por imagem, a imago, entenda-se o simulacro, todo prolongamento de algo, seu duplo, e que de algum modo o imita, ou seja: representação, retrato, fantasma, aparência, reflexo. Mas, principalmente, em sua acepção primeira: imagem, forma, aspecto. A imagem de um rosto, de certo modo, está colada nele, é o véu de sua pele, a ponto de o rememorarmos pela imaginação caprichosa. Quantos rostos jamais esquecemos? Quantos não cintilam no panteão de nossas imagens recônditas? Um rosto, para nós, talvez seja aquilo de que se esqueceu a nudez. O rosto, a parte mais emblemática do humano, parece jamais desapegar-se de sua própria imagem. 82 verve A beleza terrível Um rosto raramente é banal porque nos parece sempre carregado de sentido. É a esfera escópica por onde comunicamos com o outro nossas impressões recíprocas, nossos pertences simbólicos, nossos desejos e fantasmas. Cada rosto, nesse sentido, encerra um segredo e compreende, não apenas uma única imagem, mas várias, pois diversos são os olhares que recaem sobre ele. A subjetividade, o desejo, determinam por sua vez o modo pelo qual o olhar fabrica as imagens de um rosto. Estará de fato a beleza, como reza o ditado, “nos olhos de quem a vê”? O que a modernidade parece ter ressaltado sobre a beleza em cores fortes na literatura e nas artes, é que o enigma de que falamos se deve fundamentalmente ao seu caráter ambivalente. Autores como Poe e Baudelaire ressaltam um aspecto ligado à beleza, tão essencial quanto ela, e que aos poucos vem à tona do fundo de seu segredo como um devir ao mesmo tempo maligno e imperioso que a corrompe tenazmente e a excede, abrindo seu sentido para o horror e para a morte. *** Durante as filmagens de Sauve qui peut (la vie), JeanLuc Godard comenta esta frase de Rilke com a atriz Isabelle Huppert: “a beleza é o começo do terror que somos capazes de suportar”, dizendo-lhe em seguida que “sua beleza tem algo a ver com o seu medo”. A atriz confessa que nem sempre se sente bela e que se angustia quando a filmam de seu lado menos atraente, mas que também se assusta quando se vê muito bonita. O cineasta então responde: “Ah, você sempre sente medo...”1 No extremo, por que haveria esta sensação de terror diante da beleza? E qual seria o ponto, a fronteira além da qual a beleza tornar-se-ia insuportável, perdendo com isso seu sentido? 83 6 2004 Que sentido é este que se pode apreender do que é belo, senão o de que ele está ligado inexoravelmente a um destino maligno? Sem dúvida, a idéia de belo aí implícita e que repercute modernamente, nada tem a ver com o sentido platônico ou metafísico em que a beleza é uma idéia ligada ao Bem, e que, entre todas as substâncias perfeitas, reserva-se o privilégio de ser a mais evidente e a mais amável. Com efeito, em Plotino, o “Bem” ou as essências ideais, unificadas em Deus, imantam todas as coisas no sentido da beleza. Muito diversa é certa significação da beleza que contamina o espaço artístico e literário da modernidade, tão bem definida nessa fórmula de Baudelaire: “o belo no horrível”, e que repercute no poema de Rilke. Assim, a beleza, desde a antigüidade (e mesmo constituindo-se em sentido corrente entre os modernos), entendida como algo “agradável à vista”, transforma-se num monstro ambivalente, uma espécie de Janus de duas faces, a divindade romana que presidia a passagem do tempo e das estações, simbolizando o começo e o fim. Na literatura e nas artes esta ambivalência parece justamente assinalar o trânsito entre estes dois aspectos, o terror e a beleza, abrindo-os a uma significação maior e mais profunda em que jogam os elementos sombrios do erotismo e da morte. Em um texto célebre, “O pintor da vida moderna”, Baudelaire apresenta uma teoria do belo contrariando a visão única e absoluta da beleza. Para o poeta, a beleza produz uma impressão única mas constitui-se essencialmente de um duplo aspecto: o belo é feito de um elemento eterno, invariável, e de um elemento relativo, circunstancial, conforme as manifestações da própria época no que possam significar a moda, a moral, a paixão2. E assim, retomando as duas faces de Janus, pacificação para dentro e a ameaça para fora. 84 verve A beleza terrível Tal dualidade na arte, acrescenta o poeta, é uma conseqüência fatal da dualidade do homem3. Haverá, portanto, um aspecto ideal e permanente da beleza e outro sujeito às intempéries do tempo, bem como agente disseminador de seus efeitos. Se o significado do belo depende do equilíbrio entre ambos, é possível identificar na produção literária e artística moderna, em Baudelaire sobretudo, certa preponderância do último, entendida nesta percepção de que o elemento relativo introduz um movimento incontrolável, que parece assim antecipado pela sensação do terror. O que este tipo de arte parece elucidar é justamente o trânsito entre um elemento e o outro, criando um efeito de dissonância no sentido da beleza que acaba revelando, não somente a temporalidade e seus signos, mas principalmente seus efeitos de corrupção e degenerescência. Daí o sentido de “beleza terrível”, que comunica algo que a potencializa, mas também que a ultrapassa. Ela é, pois, o signo de um excesso, sendo que neste excesso reside a força de sua imagem e o incômodo de seu enigma. Não é à toa que em Bataille, a beleza é um objeto que invariavelmente pede para ser profanado. A máscara ideal da beleza se mostra com isso tênue e diáfana, falsamente perene, retórica e moralizante, pois rapidamente deixa transparecer o movimento irrefreável da corrupção e da morte. O elemento eterno da beleza se revela portanto ilusório, e o elemento circunstancial passa a ser propriamente o que fundamenta o sentido da beleza moderna. Deixemos afluir outro olhar sobre a teoria baudelairiana do belo, refletido no Espelho da tauromaquia, de Michel Leiris. No duplo sentido da beleza baudelairiana, Leiris aponta a erupção de uma ferida ou fenda (fêlure). Esta fenda, tanto em Leiris quanto em Bataille, é aberta pelo erotismo. 85 6 2004 Reencontramos aqui o viés pelo qual o erotismo e as representações da sexualidade se manifestam na história da literatura e da arte. Em Bataille, a fenda, em princípio, é desordem, desequilíbrio, mas também permite um acesso a uma ordem soberana. Não é esse o ponto máximo que a beleza atinge? Quando sua evidência é tamanha e sua afirmação tão vigorosa que ela se vê ameaçada? Tal movimento, por entropia da imagem e sobretudo pela intencionalidade do olhar moderno, faz proliferar o sentido da beleza ligada ao terror, o qual, para além de toda ameaça, pode deformá-la em horror e morte. Mas é a modernidade, sobretudo na leitura de Leiris, que interfere no equilíbrio da beleza e acelera as forças degenerativas do elemento temporal. Este é relativo, transitório, exatamente porque introduz na beleza o fator corrupção. Por outro lado, esse processo acionado pelo olhar moderno é o que impede que se caia numa “beleza abstrata e indefinível” e se perpetue indefinidamente a situação da “mulher antes de seu primeiro pecado”, nas palavras de Leiris4. Ou seja, é o erotismo (e no extremo, a libertinagem) que corrompe a beleza ao mesmo tempo em que a transgride e a completa. À beleza é inevitável tanto a degradação quanto o pecado, e o horror mais abjeto. Belo, nesse sentido, é tudo aquilo que sugere degradação. Nesta concepção de beleza, modernidade e erotismo são sinônimos de corrupção e degenerescência. O porquê dessa associação talvez se deva ao fato de que, segundo Foucault, nossa sexualidade, depois de Sade e da morte de Deus, foi absorvida no universo da linguagem5. Isso fez com que se introduzissem com ela outros elementos como a abjeção e os poderes do horror e da violência. Entenda-se aqui, portanto, corrupção e degenerescência enquanto elementos conjugados num movimento que faz da beleza, de seu sentido, uma experiência de transgressão. Em outras palavras: é a consciência da transgressão e da violência, do terror e da ação 86 verve A beleza terrível devastadora do tempo, que parece ter motivado o olhar moderno a produzir obras em que o elemento terrível se sobrepõe ao da estabilidade ideal. Se a corrupção é inevitável, exigida até pela erupção do novo, do desconhecido (“no fundo do desconhecido encontrar o novo”, como diz o poema de Baudelaire), o uso do artifício é necessário e se torna um fator determinante para que se restabeleça o equilíbrio da beleza e seu encanto, mas cujo sentido parece agora assumir certo artificialismo, certa precariedade, apresentando a dualidade como “questão de estilo”. A beleza com isso se torna “cínica” e ciosa de seu cinismo estetizado. Ela é uma máscara que o portador se orgulha em ostentar, porque embora represente o elemento ideal e estático do belo, se sujeita ao gosto do tempo, suas frivolidades, seus “maneirismos”, apelos típicos da expressão de uma época, sintomas da inflexão de Cronos sobre os homens. Eis o sentido da maquiagem em Baudelaire. A maquiagem aproxima a mulher da estátua e, conseqüentemente, de um ser divino e superior 6. O que é a maquiagem e todo o esforço da cosmética senão uma tentativa de simulação? Seu mister é disfarçar o trânsito da beleza à degenerescência. A maquiagem é um artifício pelo qual a beleza se conserva idêntica a si mesma. A alteridade é um valor temerário ao elemento estático da beleza. Toda indústria do cosmético age nesse sentido, como se a corrupção pudesse ser detida, evitada. Embora atue sob o signo do momento, a cosmética visa a manutenção do elemento eterno e abstrato da beleza. Nesse aspecto, a maquiagem é irreal. Em Baudelaire, no entanto, ela é muito mais que um disfarce da degenerescência da vida, é um modo de o artista travestir-se para ironizar a morte. E assim fazendo, quem sabe, eternizarse como um emblema radiante no fundo dos corações decadentes. 87 6 2004 Entretanto, por mais que o elemento ideal e invariável da beleza produza seu efeito nos corpos belos e jovens, o elemento circunstancial encarrega-se perversamente de deteriorar este corpo e revesti-lo com seu manto de ironia dolorosa, mas que ao mesmo tempo é uma espécie de gozo. Assim sendo, nenhuma beleza é possível sem a intervenção de um elemento acidental ou de infelicidade, já que a infelicidade é gerada pela reação do sujeito diante dessa contingência: um sujeito marcado pelo vazio ou fenda aberta pelo erotismo. De modo algum o olhar moderno, sobretudo no século XIX, deixará de levar em conta o fator temporal como influente em todas as coisas. Há que se retirar “o belo de sua estagnação glacial”, na expressão de Leiris. Eis porque, para Baudelaire, a infelicidade (malheur) talvez seja uma condição fundamental para a beleza. Como se vê, Baudelaire elogia o artifício, faz apologia da roupa, dos acessórios, dos cosméticos, da moda, porque são signos de transitoriedade. Os fenômenos transitórios, ao contrário do elemento ideal e estático da beleza, revelam-se extáticos, exuberantes, embora decadentes e indicadores de degenerescência. A beleza com isso se torna um signo saturado, corroído em seu âmago, produzindo o infortúnio. A infelicidade é essa consciência do trágico na arte, consciência de que a beleza está condenada ao horror e à morte, assim como o sujeito à mais completa indiferença. Daí o efeito de “dissonância” do caráter dúbio da beleza, ao mesmo tempo “ardente e triste”, voluptuosa e amarga. A gênese dessa idéia baudelairiana talvez esteja em Edgar Allan Poe. Num ensaio clássico, A filosofia da composição, o autor norte-americano declara ser a beleza “sua província”, isto é, seu campo de ação e conhecimento. Para Poe, a tonalidade (tone) essencial da beleza é a melancolia, a tristeza (sadness). A melancolia, portanto, “é o 88 verve A beleza terrível mais legítimo dos tons poéticos”7. O que determina aqui o sentido exterior da beleza é a expressão, ou melhor: a natureza melancólica do sujeito poético, angustiado com o horror e a morte. O fundamento da beleza se mostra assim vinculado a esta subjetividade. É o poeta e/ou artista que, refratários ao aspecto ideal, imutável da beleza, imprimem na sua carne o valor degenerante do transitório. Em conseqüência, a queda do indivíduo no mal é tão inevitável quando a da “casa de Usher”, no célebre relato do autor norte-americano. Em Baudelaire, ainda se faz sentir o poder corrosivo do mal em comprometimento com a moralidade cristã. Seus escritos confirmam-no: o pecado “ocupa nossos espíritos e trabalha nossos corpos”, no poema introdutório das Flores do mal8 Tal exigência irá determinar sua relação com a beleza em cujos “objetos repugnantes encontramos atrativos”9. O lugar da beleza se revela, portanto, o mesmo do horror. No poema “Le lecteur”, o pior “monstro”, no entanto, não são os horrores bestiais e hediondos, mas aquele estado de alma associado à melancolia, ao tédio (ennui), conhecido do leitor, este “hipócrita” reflexo do poeta, e por isso mesmo seu “semelhante e irmão” na dor, na melancolia e na decadência da vida. Eis o verdadeiro terror para o sentimento do poeta e seus contemporâneos cujo espírito traduz em seus poemas, na apreensão de que o sujeito está em crise e em vias de desaparecimento. Na aparência, para esta sensibilidade, a ameaça de algo insuportável talvez seja pior do que o insuportável em si mesmo, como o horror e a morte, porque neles o sujeito já está perdido para sempre. O horror e a aversão que ele inspira, por sua vez, são elementos valorizados nessa estética justamente porque, tematizados, permitem criar o vazio necessário para o culto da melancolia, do tédio e da infelicidade. Assim, em “Hino à beleza”, esta surge do abismo e 89 6 2004 tem um olhar “infernal e divino” que derrama “confusamente o benefício e o crime”10. Na seqüência, a “beleza” do poema “caminha sobre os mortos”, beleza de cujas jóias o “horror não é a menos encantadora”11. Toda a ação da beleza in persona, se faz no poema sob o signo da corrupção e da morte. Diante dela, enfim, “o amoroso ofegante” (....) “tem o ar de um moribundo acariciando sua tumba”. O século XIX, afinal, foi aquele que redescobriu os “monstros”12. Mas por que razão esta literatura se apraz tanto em conspurcar a beleza associando-a ao crime, misturando-a com a realidade abjeta da morte? Isso tanto ocorre que, no limite, é o horror e a violência do erotismo que lhe conferem sentido. Quem ao ler os poemas de Baudelaire, ou de Augusto dos Anjos, poderia pensar diferente? São estes os elementos valorizados pelo texto, já que a beleza, “monstro enorme, aterrorizante, ingênuo, abre “a porta / de um infinito que eu amo e que jamais conheci”13. Caberia então nos perguntar qual a natureza desse infinito? Seria a mesma que, segundo Bataille, nos comunica a nudez, e nos angustia com a experiência do erotismo e da morte? A propósito, é freqüente em Baudelaire a ligação do erotismo com a morte. No poema “Uma carcaça”, este despojo encontrado pelo sujeito poético, “num leito semeado de seixos”, é visto em analogia a uma figura “de pernas para o ar, como uma mulher lúbrica”14. Tal achado poético poderia servir de ilustração para uma frase lapidar de Sade: “Não há melhor meio de se familiarizar com a morte do que o de ligá-la a uma idéia libertina”. Assim, neste sentido de beleza expresso pela literatura e pela arte, o que conta, não é propriamente a estabilidade do equilíbrio entre elementos antagônicos, o que poderia apontar para uma estagnação da beleza em função de seu aspecto ideal, mas, ao contrário, o movimen- 90 verve A beleza terrível to terrível do devir na medida em que desencadeia e promove o fator de corrupção e o sentido da morte, trazendo à tona o conteúdo do horror e da abjeção recalcados pela cultura ocidental. “Beleza é exuberância”, diz William Blake. A beleza está do lado do luxo, do excesso; é da ordem dos gastos inúteis como o riso, as lágrimas, o erotismo e a poesia. Em Bataille, o proibido é o domínio do trabalho, da produção e do consumo. Mas os homens não se limitam a produzir. Eles são dominados por um princípio de perda que os leva ao excesso, no luxo, nas guerras, nos espetáculos, nas artes, na atividade sexual perversa. Tal energia constitui-se na “parte maldita”. A transgressão é o que libera esta reserva, este excedente. Assim também a morte, que para Bataille segue uma outra economia, mais além da economia, pois é excessiva e inesgotável. A morte excede sempre. Nesse aspecto, se pode dizer que existe um elo estreito entre a beleza e a morte. Se no dizer de Baudelaire, “o belo é sempre o efeito de um cálculo difícil e terrível”, o horror é quando este cálculo deixou de fazer sentido ou foi além de seus limites. No extremo, o horror e a beleza são dois lados opostos de um mesmo movimento excessivo, para além de todo limite. Em sendo a beleza o objeto irresistível de uma imagem excessiva, parte de seu enigma talvez se deva ao fato de que ela parece conter em si mesma algo que por sua própria natureza não pode ser contido: a fluência pura do excesso. Daí o medo, o terror que ela evoca, ainda que suportável num primeiro momento. Falar da beleza de um corpo é falar de erotismo. E o erotismo inevitavelmente representa para o sujeito uma experiência de limites, uma experiência de morte. O erotismo é o movimento que leva o sujeito a cindir-se, a perder-se. Por isso, o erotismo corrompe a beleza. Ele faz 91 6 2004 aflorar o horror pela fenda aberta no sujeito em gesto radical e violento. Segundo uma intuição de Bataille, o erotismo é a saída infame do horror15. Em se tratando de erotismo, o aspecto do horror já está implícito no belo. Seria o horror também uma forma deteriorada do belo, a beleza levada ao extremo? Assim, a beleza de um corpo carrega em si mesma o germe de sua transgressão ou profanação. O gesto transgressor é o devir da beleza. Quanto maior é a beleza, afirma Bataille, mais vigorosa é a experiência da profanação. Isto porque um excesso só responde a outro, para fundir-se nele e realizar este imperativo do homem: exceder-se por uma força cega que se potencializa ainda mais quando ele transgride. O sentido da beleza, para Bataille, nasce de uma ambivalência, já que a beleza é um objeto que se afasta da animalidade, do aspecto sagrado oculto sob as vestes e que, no fundo, a própria beleza denuncia. A beleza exige profanação, para que este movimento, excedendo os limites, produza um sentido último: a violação do sagrado. E profanar a beleza, sujá-la, é tocar a região sagrada dos genitais simbolicamente carregada de morte. O erotismo é uma tensão entre a beleza e a morte. Seu ponto máximo é a experiência da transgressão, na qual o sujeito se desloca de um pólo a outro num movimento de fusão e continuidade. Na prancha de Manuel Deutsche, “A morte em frangalhos abraça uma jovem”, temos uma ilustração precisa dessa experiência transgressora. Não é um mero esqueleto que aí representa a morte, mas um corpo em adiantado processo decomposição. Enquanto beija a jovem na boca, ele toca em seu sexo. Aqui se encontram todos os elementos da profanação da beleza e sua passagem ao horror e à morte, assim como também jogam na imagem o terror insuportável e o desejo desnudado do sujeito. Nada inspira tanto horror quanto um cadáver. Diante de sua presença, diz Bataille, ninguém fica indiferente. Mas se os ossos de 92 verve A beleza terrível um cadáver são suportáveis e assimiláveis culturalmente, dado sua limpeza, seu aspecto “solene”, a podridão, o corpo em decomposição, são insuportáveis. A visão dos ossos angustia, mas tais objetos estão longe do excesso de virulência ativa da podridão16. Como se sabe, o mais execrável, por vezes, é o mais desejável. Eis o sentido do horror. Uma incorporação desses elementos pode ser vista na poesia de Artaud, onde, de acordo com Julia Kristeva, um “eu” é invadido pelo cadáver. Com efeito, é o cadáver humano que permite a máxima concentração de abjeção e fascinação17. O movimento da transgressão do erotismo e da morte é bem evidenciado por Georges Bataille em seus poemas e relatos repletos de angústia, apontando sempre para o vazio absoluto. Neles sobejam imagens excessivas onde estão presentes a dor, o êxtase, a morte e outros elementos da experiência erótica. Estes textos sombrios guardam algo de trágico, de um tempo obscuro, condenado ao abismo, sem qualquer esperança. “Eu te encontro na estrela eu te encontro na morte és gelo em minha boca tens o odor de uma morta Teus seios se abrem como a cova e riem para mim do além tuas longas coxas deliram teu ventre é nu como um ralo és bela como o medo és louca como uma morta” 18 93 6 2004 Neste poema lúbrico da experiência erótica, no qual a beleza só existe em comparação com a morte, o sublime também se faz presente. Nele, ao mesmo tempo em que a morte mimetiza os elementos do texto, a linguagem poética erotiza a morte. O erotismo com isso “enlouquece” a linguagem, esvazia o sujeito e suspende a reflexão. A imagem “teu ventre é nu como um ralo” mostra bem a função da nudez em Bataille. A nudez é esse objeto inapreensível que ao mesmo tempo nos abre para a experiência do erotismo e nos comunica com a morte. A nudez pede fusão, continuidade, assim como a poesia e a morte. A transgressão do horror recusa a neutralização da morte e reabre o vazio que o discurso da proibição tenta encobrir. Trata-se de reabrir a ferida, a fenda, retornar à linha de falha que permite e exige a comunicação19. Daí esta frase de Bataille: “Posso dizer que a repugnância, que o horror é o princípio de meu desejo (...):”20 E tal desejo é o que “abre em mim um vazio não menos profundo que a morte”21. O horror é o que perturba e ameaça a ordem da beleza. Ele a invade, como a morte invade a vida, infectandoa, infestando-a. A sujeira é, assim, uma espécie de preparação para a morte. Ela nega o sujeito, e segundo Julia Kristeva, nos coloca nos limites de nossa condição de humanos”22. Em seu artigo “a linguagem das flores”, Bataille comenta que a verdade destes seres vegetais é ocultada por aquilo que eles exibem de mais superficial, como o perfume e as cores das pétalas, resultando disso toda simbologia ligada ao amor e à vida. No entanto, “a flor trai rapidamente as exigências humanas, quando sua maravilhosa corola apodrece e a flor se revela frágil e fétida como o corpo humano”23. 94 verve A beleza terrível Por analogia com as flores, a pele é uma fronteira que separa o exterior harmonioso e belo do interior repugnante, constituído de uma maçaroca de nervos, vísceras, vasos linfáticos, órgãos, sangue, secreções, e outros componentes do organismo. O interior do corpo é tido como horrível e repelente. Para Freud, a visão da carne interior é uma visão de angústia, o inverso da forma humana, a essência do disforme. O “abjeto é uma fronteira”, diz Julia Kristeva24; o abjeto está por baixo da superfície da pele. A pele nos defende, nos resguarda do horror dessa parte que não interessa ser vista. A nós, basta que funcione. Revirá-la significa ameaçar o corpo de alguma forma. Por sinal, ele só se expõe desse modo em casos de cirurgia, acidente ou de morte na mesa de autópsia. Paradoxalmente, no entanto, é dentro do útero materno que a vida começa. O rebento vem do horror das entranhas, em meio a outros fluxos interinos como a urina, o excremento, o sangue. Ele também é “expulso” do organismo à maneira destes líquidos e do sangue menstrual. O filho, eliminado pelo organismo da mãe, vem do mesmo lugar imundo (e por isso mesmo sagrado) e é da mesma natureza do sangue, e do esperma. O nosso horror diante da sujeira e da abjeção, de acordo com Julia Kristeva, revela no fundo o recalcamento de um desejo ligado ao corpo materno. De modo que tocar a sujeira é o mesmo que tocar este corpo proibido e sagrado. Como vemos, o corpo, por dentro e por fora, está sempre em constante relação com a sujeira e o horror. O horror pleno é um dos devires da beleza. “O belo é o que nos desespera”, diz Paul Válery. Este momento é quando a beleza atinge provavelmente o máximo de si. Quando ela se torna insuportável é porque já deixou de ser beleza e se tornou outra coisa. *** 95 6 2004 Se a beleza é o começo do terror que podemos suportar, o horror pleno, seu devir imediato, é insuportável; ele é o limite onde nenhuma beleza é mais possível, a não ser, é claro, como forma de arte. Isto, provavelmente, porque a arte é o terreno próprio da transgressão. Em tese, tudo nela é possível, os maiores horrores e aberrações. A arte tudo incorpora, criando as condições formais de sua materialização. Mas num território onde tudo é possível, o poder transgressor tende a esvaziar-se, a perder a força na medida em que não encontra mais obstáculo, lei a ser transgredida. Neste aspecto, todas as fronteiras já foram tombadas pela arte. Suas vias de excesso já foram por demais exploradas. O surrealismo, por sinal, realizou uma dessas últimas operações abrindo-se ao manancial do sonho, do inconsciente. De modo geral, o século XX, segundo Foucault teria descoberto e posto em evidência os “gastos que consumam e consomem”, e assim forjado categorias “análogas ao gasto, ao excesso, ao limite, à transgressão...”25 A literatura (Artaud, Céline, Bataille), a arte (Picasso, os expressionistas), teriam se utilizado desses procedimentos em sua estética. O século XX parece ter radicalizado também essa tendência já assinalada pelos românticos e por Baudelaire em especial, segundo a qual o horror é o sentido imanente da beleza. O “belo no horrível”. Desse gesto transgressor nascem muitas obras da modernidade. Não se tratou, é claro, de se opor simplesmente beleza e horror ou belo e feio como duas faces antagônicas e excludentes do bem e do mal. Em não havendo feiúra (laideur) nem mal, comenta Bataille, a verdade da arte Moderna faz da ordem “espiritual” um sentido primeiro. Esta arte não é nem demoníaca, nem algo que se oponha a isso, mas religiosa no sentido que entendia Apollinaire: para além do bem e do 96 verve A beleza terrível mal, na ingenuidade onde se acha arruinada a oposição do belo e do horrível26. O sentido do belo na arte moderna reencontra, portanto, o domínio religioso do sagrado, do sacrifício. Isso explicaria o forte elo entre certa corrente da arte moderna com a arte e as religiões primitivas. Veja-se o impacto obtido com as máscaras africanas na obra de Picasso, no início do século XX. Nesse ponto, já estamos num mundo aberto pelo vazio deixado pela morte de Deus, pela emergência da sexualidade, a qual, segundo Foucault nos deixou nos limites do nosso pensamento27. Eis o mundo retratado pela literatura e pela arte, onde a experiência da violência excessiva das imagens, da transgressão e da morte são a tônica, onde o erotismo e a dimensão sagrada arcaica encontram sua via de expressão e se inserem na experiência moderna. O horror, as deformações promovidas pelo expressionismo representam a desenvoltura de um procedimento que leva o aspecto circunstancial e impuro da beleza às últimas consequências, se pensamos sempre no fator desencadeante de corrupção e degenerescência que ele introduz nas imagens. Esta arte traz à tona os conteúdos recalcados da abjeção e do horror. É comum nas telas de Kokoschka, por exemplo, a transfiguração da figura humana, rostos que parecem cobertos de pústulas. Lá fervilham elementos que, à maneira de uma lepra, corrompem e arruinam o sentido de um bem ideal e abstrato ligado à beleza. Eis o procedimento mediante o qual a arte engaja suas formas no dilaceramento do humano no sentido do horror e da morte, muito explorado no século XX, anunciando inclusive os horrores reais das duas Grandes Guerras. No limite, a arte moderna exacerba as formas do horror elevando-as à condição máxima de sua estética porque elas provavelmente encarnaram o sentido mais profundo de sua época, marcada como vimos, 97 6 2004 pelo vazio de Deus e pela emergência violenta da sexualidade. As formas do horror erótico que de um modo ou de outro evidenciam-se na arte ocidental desde o maneirismo, pelo menos, passando depois pela valorização do corpo interno explorado pelos anatomistas e barrocos do século XVII, na modernidade apoderam-se violentamente da figura humana, para desfigurá-la a ponto de tornar este corpo estranho a si mesmo. Mas esta estranheza, que de alguma forma revela uma dimensão profunda do humano, a arte traz à tona. É certo, porém, que o horror e a violência mais crua, resistindo à representação da arte, acabando sendo neutralizados, estetizados. Ao viabilizar o movimento de transgressão em solo neutro, a arte ao mesmo tempo nos reaproxima da dimensão profunda da abjeção, do horror e de outras formas de erotismo, a arte diminui seu impacto sobre nós, suavizando seu sentido essencial. É certo que a arte derruba fronteiras, mas também parece evidente que a dimensão profunda e arcaica do homem, a despeito de tantos apelos, não abandona completamente seu subsolo. Se a beleza mostrou definitivamente sua outra face com a experiência moderna, é porque se tornou insuportável para o homem ignorá-la. Ele sentiu de perto o poder dessa imagem e sua ameaça terrível. Talvez por isso mesmo, a partir de então, tenha passado a olhar de frente justamente aquilo que no fundo não queria ver. Notas 1 J-L. Douin. Jean-Luc Godard. Paris, Rivages, 1989, p. 83. C. Baudelaire. “Le peintre de la vie moderne” in Oeuvres complètes. Vol. II. Paris, Gallimard, Bibliothèque de la Pléiade, 1976, p. 685. 2 3 Idem, p. 686. 4 M. Leiris. Miroir de la tauromachie. Paris, Fata Morgana, 1981, p. 36. 98 verve A beleza terrível M. Foucault. “Prefácio à transgressão” in Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. Col. Ditos & Escritos III. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2001, p. 45. 5 C. Baudelaire, op. cit., p. 717. 6 E. Allan Poe. “The philosophy of composition” in The complete works, vol. V. Boston and New York, Colonial Press Company, p. 163. 7 8 C. Baudelaire. “Les fleurs du mal” in Oeuvres completes, Vol. I. Paris, Gallimard, Bibliothèque de la Pléiade, 1976, p. 5. 9 Idem. 10 Ibidem, p. 24. 11 Ibidem. 12 Sobre esta afirmação ver Victor Brombert. Flaubert. Paris, Seuil, p. 122. 13 C. Baudelaire, op. cit., 1976, p. 24. 14 Idem, p. 31. 15 G. Bataille. “Les larmes d’Éros” in Oeuvres completes, vol. X. Paris, Gallimard, 1987, p. 618. 16 G. Bataille. “L’érotisme”, op. cit., p. 65. 17 J. Kristeva. Pouvoirs de l’horreur. Paris, Seuil, 1980, p. 175. G. Bataille. “L’archangélique” in Oeuvres complètes, vol. III. Paris, Gallimard, 1987, p. 85. 18 A. Arnaud e G. Excoffon-Lafarge. Bataille. Paris, Seuil, Écrivains de toujours, 1978, p. 112. 19 20 G. Bataille, op. cit., p. 65. 21 Idem. 22 J. Kristeva, op. cit., p. 11. G. Bataille. “Le langage des fleurs” in Oeuvres complètes, vol. I. Paris, Gallimard, 1987, p. 176. 23 24 Idem, p. 18. 25 M. Foucault, op. cit., p. 44. 26 G. Bataille, “La laideur belle ou la beauté laide dans l’art et la littérature” in Oeuvres complètes, vol. XI. Paris, Gallimard, 1987, p. 421. 27 M. Foucault, op. cit, p. 45. 99 6 2004 RESUMO Análise de imagens na literatura e arte modernas nas quais a beleza estabelece conexões com o horror, a transgressão e o erotismo. Palavras-chave: erotismo, beleza, transgressão. ABSTRACT Analysis of images in modern literature and art in which beauty establishes connections with horror, transgression and erotism. Keywords: erotism, beauty, transgression. 100 verve Canibal canibal dorothea voegeli passetti* Havia uma mulher que sempre comia o próprio filho recém-nascido. Quando a criança nascia, ela mesma lavava, cortava a barriguinha do nenê, preparava como caça e assava. Lambia os beiços. Dizia: — Que gostosa essa comida, que criança gostosa! Engravidou muitas vezes, sempre comia o filho. Seus parentes a viam comer o filho, jamais criava o bebê. — Por que essa mulher vive comendo criança? Era assim, a mulher só vivia comendo seus filhos. O nome dela era Iñ-ga-kãi. Índios Gavião-Ikolen de Rondônia * Professora no Departamento de Antropologia e no Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, pesquisadora do NEAMP (Núcleo de Estudos Arte, Mídia e Política) e do Núcleo de Estudos de Etnologia Indígena, Meio Ambiente e Populações Tradicionais, PUC/SP. verve, 6: 103-126, 2004 103 6 2004 A palavra canibalismo direciona a atenção para uma animalidade supostamente superada e quase extinta pela nossa auto-domesticação. A ocidentalização do planeta e o crescente domínio sobre a natureza que a acompanha produziu a sensação de que a espécie humana cada vez mais parece querer prescindir do sangue em suas veias e substituí-lo por algo mais limpo, mais civilizado e descartável. Mas, mesmo nos distanciando idealmente da natureza, é impossível esquecer que somos, apesar de tudo, seres de carne e osso. Não foi o acaso que fez com que a palavra comer significasse, além de ingerir comida para alimentar-se, transar, copular, comer alguém. Mas comer alguém pode significar, além de tudo, degluti-lo, ingerir sua carne feito canibal num festim antropofágico. O fato é que alimentar-se e manter relações sexuais tem a ver com a vida. Além de se traduzirem nos prazeres da carne, são atos indispensáveis à reprodução da espécie e se, no imaginário asséptico, seriam atos superáveis por formas artificiais de reprodução — dos alimentos sintéticos à clonagem —, a prática vegetariana seria um progresso civilizatório. A assepsia portanto seria, nessa maneira de ver as coisas, o que mais nos distanciaria de nossa natureza carnal e animal. Ser mais civilizado exigiria afastamentos da carne: de nossa própria e, principalmente, da dos outros. Contudo, a palavra comer tem esse duplo sentido não só no português, mas em muitas outras línguas, inclusive em diversas indígenas. Claude Lévi-Strauss alerta para o fato que “entre as regras de casamento e as proibições alimentares existe, em primeiro lugar, uma ligação de fato”1. Ele exemplifica a afirmação com o caso dos maridos entre os Tikopia e os Nuer (povos que vivem em locais bem distantes um do outro) não comerem os animais e as plantas proibidas às suas mulheres, pois o ali- 104 verve Canibal mento ingerido contribuiria para a formação do esperma e, agindo assim, evitariam introduzir o alimento proibido no corpo da mulher durante o coito. Conclui que “essas aproximações nada mais fazem que ilustrar, em casos particulares, a analogia profunda que, em todo o mundo, o pensamento humano parece fazer entre o ato de copular e o de comer, a tal ponto que um grande número de línguas os denominam com a mesma palavra”2. Os exemplos se multiplicam, mas bastam mais dois: em yoruba, conta Lévi-Strauss, um mesmo verbo refere-se a comer e copular e, “na língua dos Koko Yao, da península do Cabo Iorque, a palavra kuta kuta tem o duplo sentido de incesto e canibalismo, que são as formas hiperbólicas da união sexual e do consumo alimentar”3. A presença da animalidade amedronta pela sua proximidade à antropofagia e ao incesto, as duas grandes transgressões da cultura, os excessos da carne, a forma mais íntima que poderia existir entre dois que se unem em atos de deglutição, seja pela forma do alimento, seja pelo sexo: comer um igual — outro humano —, unir-se sexualmente ao mais próximo — pai/filha, mãe/filho, irmão/irmã. O binômio canibalismo-incesto pode ser desdobrado em mais uma transgressão relacionada à comida sexual que, em muitas sociedades e em alguns setores da nossa, mesmo hoje, é qualificada como desvio por não se relacionar à reprodução: o homossexualismo. O perigo não está, nesse caso, associado à proximidade do animalesco, uma vez que o argumento lança mão de lógica contrária: o homossexualismo é “anormal” porque se desvia da “natureza” e, natureza, aqui, obviamente significa reprodução através do ato sexual entre um macho e uma fêmea, ou seja, o casal hetero. Naturaliza-se a cultura reduzindo as relações amorosas à reprodução. O mesmo pode ser dito sobre as justificativas para o casamento monogâmico, ou sobre os limites de idade con- 105 6 2004 siderados por nossos padrões como aceitáveis para alguém manter uma vida sexual ativa, aquele no qual homens e mulheres são férteis: nem antes, nem depois. Mas nem sempre é assim. A substância visível mais evidente e significativa dessa animalidade carnal é o sangue e, em especial, o sangue humano. Inúmeros tabus cercam a aproximação ao sangue, substância perigosa da vida. A maior contaminação, obviamente, estaria diretamente relacionada à reprodução: o sangue menstrual e, pior, o do parto4. Mitos, tabus e proibições de toda espécie abundam em todas as sociedades, pois parece que a concentração de energia vital contida nesse sangue poderia ser nefasta aos que se aproximassem dele, como se o contato tirasse um pouco da vida de quem ousasse fazê-lo. A mulher menstruada torna-se, assim, perigosa. Há pouco tempo atrás, na nossa sociedade, estar menstruada — incomodada — a impedia de realizar diversas atividades corriqueiras, de tomar banho a cozinhar, pois seu estado vulnerável poderia contaminar os outros. Imagine-se, então, o que poderia acontecer se ela ousasse ter relações sexuais com um homem..., a animalidade estaria evidente: sexo com sangue é coisa de bicho no cio. Mas esses perigos, agora, se foram; e não foram. A praga que assola homens e mulheres dos anos 1970 em diante, a AIDS, tornou a vida sexual higienizada. A camisinha evita a contaminação do vírus e, de qualquer modo, toda a contaminação, até aquela de um sangue menstrual. Acostumamo-nos tanto a esses intermediários assépticos entre um corpo humano e outro, ou entre o corpo e a comida, que nem mais nos questionamos a quem deve proteger. No supermercado, o açougueiro usa uma luva para preparar a carne que compramos no balcão. Usa a mesma luva para embalar, pesar, etiquetar, operar os botões da máquina-balança, pegar uma carne 106 verve Canibal na geladeira, tirar o suor ou o cabelo da testa, cortar, jogar pedaços de sebo num recipiente, e assim vai de pedido em pedido. Estaria se protegendo do sangue ou protegendo a carne de contaminações do meio? E a mulher que escolhe frutas, ali ao lado, usando um saco plástico como luva? O que ela pensa estar protegendo? Estaria menstruada, ou só com nojo daqueles produtos da natureza, talvez ainda com um pouquinho de terra, e que foram manuseados por tantas outras pessoas antes dela? Ela certamente usa camisinha. *** As incontáveis sociedades, objeto de pesquisa e reflexão antropológicas atestam que a regulação dos prazeres da carne é assunto que envolve bem mais que formas variadas de satisfação de desejos individuais. Qualquer que seja a regra, ela institui o parentesco e possibilita a passagem da consangüinidade à aliança, como sabemos desde que Lévi-Strauss5 evidenciou o papel fundamental da proibição do incesto — a única proibição universal — na consolidação da cultura. Grupos de parentes consangüíneos associam-se através da circulação de suas mulheres, criando possibilidades de trocas econômicas e relações políticas. No domínio da cultura — das trocas e dos sistemas simbólicos — as regras ampliam e moldam as relações para com o Outro. A grande regra, isto é, a proibição do incesto, instaura a cultura porque a partir dela se delimita grupos de parentesco que necessariamente devem interagir. Muito mais que obrigação de não mais se fechar, ela cria possibilidades para que os grupos encontrem formas de troca e aliança. O extremo complementar dos prazeres da carne, o canibalismo, não escapa às regras e, para tal, realiza-se segundo rituais que estabelecem quem é comido, como, quando e por quem. Entre incesto e canibalismo há, por- 107 6 2004 tanto, nesse plano, uma diferença fundamental: o incesto é e sempre foi universalmente proibido, mas o canibalismo não. O fato da proibição do incesto instituir a cultura o faz universal, e não será necessário comprovar empiricamente que as sociedades o proibiram desde sempre por saberem que não é possível haver sociedade sem tal proibição. Ela possibilita a passagem da Natureza para a Cultura. O canibalismo, contudo, é divisor de outras águas: de um lado os selvagens e de outro aqueles que se convencionou identificar por civilizados. A proibição do canibalismo seria, portanto, a passagem do Selvagem ao Civilizado? Assim como ao se criar a cultura a natureza não é abolida, a civilização também não consegue extinguir o que há de selvagem em cada um. Se lembrarmos da noção de pensamento selvagem de Lévi-Strauss, talvez fique mais fácil entendermos que, como o pensamento selvagem é o pensamento em estado selvagem, mesmo em sociedades ocidentais ou globalizadas nas quais domina o pensamento domesticado, o estado selvagem é uma forma de experiência mesmo na civilização. Não há, portanto, uma linha divisória, dois domínios separados, mas sim predisposições. Foi pensando nessas duas formas que Lévi-Strauss propôs uma outra oposição: “[...] Ficaríamos tentados a contrapor dois tipos de sociedades: as que praticam a antropofagia, isto é, que enxergam na absorção de certos indivíduos detentores de forças tremendas o único meio de neutralizá-las; e as que, como a nossa, adotam o que se poderia chamar de antropoemia (do grego eimen, ‘vomitar’). Colocadas diante do mesmo problema, elas escolheram a solução inversa, que consiste em expulsar esses seres tremendos para fora do corpo social, mantendo-os temporária ou definitivamente isolados, sem contato com a humanidade, em estabelecimentos destinados a este fim. Na maioria das sociedades que chama- 108 verve Canibal mos de primitivas, tal costume inspiraria um profundo horror; em seu entender, isso nos marcaria com a mesma barbárie que seríamos tentados a imputar-lhes por causa de seus costumes simétricos” 6. Bárbaros somos nós, portanto. Ou selvagens. Mas, selvagens ou civilizados, antropofágicos ou antropoêmicos, isso não significa que, em qualquer uma das modalidades, tanto o incesto quanto o canibalismo não sejam praticados, transgredindo as limitações ou proibições impostas pelas diversas culturas e constituindo-se como dois grandes incômodos. Os Guayaki, caçadores pesquisados por Pierre Clastres7, na década de 1960, no Paraguai, temerosos em parecer ao etnólogo como um povo mais próximo da natureza que da cultura, selvagens comedores de gente, custaram a revelar seu segredo. Não que eles mesmos se sentissem como homens de segunda, mas como muitos outros povos indígenas, aprenderam a recusar certas classificações, uma vez que a partir de meados do século XVI, reconhecer a prática antropofágica era assinar a sua própria sentença de morte. A guerra aos índios passou a ser proibida, a não ser que fossem acusados de canibalismo. Aí, podiam ser caçados, mortos ou escravizados, e assim se resolvia o problema da mão de obra barata nas colônias. Eduardo Viveiros de Castro analisa a história da proibição do canibalismo no Brasil, evidenciando acontecimentos semelhantes a partir dos discursos jesuítas que se preocupavam com a inconstância da alma selvagem. Para os missionários, era quase impossível moldar a alma indígena de uma parte dos povos com os quais mantinham contato e que deveriam tornar cristãos. Segundo a concepção de Antonio Vieira, alguns eram duros de converter, mas quando isso ocorria não havia mais perigo de volta ao paganismo. Outros, como os Tupinambá, eram inconstan- 109 6 2004 tes, uma vez que mostravam indiferença ao dogma cristão: nada havia para ser substituído, nenhum dogma ocupava o lugar daquele que os padres queriam ensinar. O obstáculo seria, para o padre Vieira, o que identificava como maus costumes: “canibalismo, guerra de vingança, bebedeiras, poligamia, nudez, ausência de autoridade centralizada e de implementação territorial estável”8. Esses dois povos — os Guayaki da década de 1960 e os Tupinambá do século XVI — podem exemplificar o que se costuma chamar por endo e exocanibalismo, dois pólos cuja distinção, como também já alertou Lévi-Strauss, pode ser enganadora. “Entre essas duas formas extremas surgem inúmeros tipos intermediários, e o contraste inicial é abolido”9. Num dos pólos, no endocanibalismo, come-se os membros da própria sociedade ou de seu grupo e no outro, no exocanibalismo, ocorre o contrário: comese apenas os estrangeiros. Os Tupinambá, canibais que fizeram a fama dos povos do Brasil no século XVI, aguçaram o interesse de pensadores e escritores sobre a antropofagia desde então. Missionários e viajantes, os cronistas os conheceram e os descreveram com um requinte de detalhe que não permite dúvidas sobre como era a antropofagia que atraía sentimentos dos mais variados, desde a repulsa até a atração pelo indomável e honrado guerreiro exótico. Michel de Montaigne que, com seu ensaio “Dos Canibais” inaugurou, em 1580, a reflexão sobre o Outro e, a partir dela, o estranhamento em relação a sua própria cultura, foi um dos entusiastas desses guerreiros: “não vejo nada de bárbaro ou selvagem no que dizem desses povos e, na verdade, cada qual considera bárbaro o que não se pratica em sua terra”10. Mas os cronistas dos séculos XVI e XVII não partilhavam dessas idéias. Em missão religiosa ou não, os relatos se referem ao canibalismo e aos povos que o praticavam com horror e descre- 110 verve Canibal vem os rituais antropofágicos de maneira muito exata e coincidente. Ao menos, quanto aos Tupinambá, com os quais os colonizadores tiveram inicialmente contato mais próximo, marcado por intensas relações guerreiras, não há dúvidas: eles executavam e comiam seus inimigos num ritual que era realizado seguindo-se uma rígida etiqueta, motivados pela vingança. Menos que a manutenção do canibalismo, o que os Tupinambá não abriam mão perante as pressões portuguesas era da vingança, a partir da qual alimentavam sua rede de relações. “Afinidade relacional, portanto, não identidade substancial, era o valor a ser afirmado”11. Os cronistas Jean de Léry, André Thevet, Hans Staden12, entre outros, descrevem o ritual do qual todos da aldeia participavam, bem como convidados de outras localidades. A vítima podia passar um bom tempo como hóspede cativo, bem alimentado e com uma mulher como companhia, e muitas vezes presenteado pelo seu captor a um outro homem (chefe, sogro, aliado). A festa era regada de bebida especialmente preparada pelas mulheres e consumida já desde o dia anterior. Pintado para a ocasião, era levado ao centro do terreiro e amarrado, onde travava o célebre diálogo com seu executor: “ ‘Sim, aqui estou eu, quero matar-te, pois tua gente também matou e comeu muitos dos meus amigos’. Responde-lhe o prisioneiro: ‘Quando estiver morto, terei ainda muitos amigos que saberão vingar-me’ ”13. Era assado num moquém, depois de ter sido cortado em pedaços e esfolado. A gordura que escorria durante esse processo era recolhida pelas velhas, que a consumiam com especial prazer. Das vísceras faziam um mingau, comido por mulheres e crianças, e estas últimas também recebiam toda a carne da cabeça. O único a não comer a carne era o executor, que compensava sua abstinência com a honra de, a partir da sua pancada com o ibirapema (o tacape) no crânio 111 6 2004 da vítima, incorporar seu nome e, com isso, aumentar seu prestígio, sabendo que futuramente seria também vingado por um inimigo. Se a antropofagia tupinambá passou a ser conhecida como aquela em que se devorava o inimigo pela vingança, não devemos confundi-la com um ódio pelo outro que apenas se resolvia aniquilando-o através da ingestão. A alteridade capturada e ingerida recriava constantemente a cadeia de relações que mantinha a sociedade viva. O canibalismo foi, portanto, a forma peculiar que essa sociedade encontrou para manter-se através do intercâmbio com os outros. A versão complementar de canibalismo, na qual se come os de dentro da própria sociedade, pode ser exemplificado pelos Guayaki. Eles comiam todos os seus mortos e, em caso de morte de um inimigo, ele também não escapava. Mas, ao contrário do que muitas vezes se pensa, a antropofagia não é o motivo da morte: nem aqui, nem entre os Tupinambá, e provavelmente em povo indígena algum; não se mata com o fim exclusivo de comer a vítima. A carne humana não é o equivalente a uma carne de caça, em busca da qual o guerreiro ou caçador empreende sua expedição. Conforme relata Clastres, entre os Guayaki também comia-se toda a carne e a gordura era igualmente apreciada, sugada nos pincéis com os quais era apanhada quando escorria pelas ripas do moquém. A exceção era o órgão sexual feminino, que era enterrado. A cabeça, cozida, era comida por velhos e velhas e proibida aos jovens caçadores, e o pênis, igualmente cozido, era dado às mulheres grávidas, para que seus bebês nascessem do sexo masculino, futuros caçadores. Os ossos eram quebrados para se extrair o tutano, delícia das velhas. Ao final de tudo, o crânio ainda devia ser quebrado e quei- 112 verve Canibal mado. O restante do moquém era deixado no local, a não ser no caso de criança, quando seria destruído. Os únicos que não ingeriam a carne moqueada (ou cozida em panela de barro, quando era de criança muito pequena) e sempre neutralizada com palmito, eram os parentes mais próximos — pai, mãe, filhos e irmãos — especialmente do sexo oposto. “As mais severas proibições não são jamais transgredidas: não se verá jamais um irmão comer uma irmã, um pai comer a filha, uma mãe comer seu filho e reciprocamente. Os membros da família do sexo oposto não se comem entre si. Por que? Porque comer alguém é, de uma certa maneira, fazer amor com ele. [...] Proibição do incesto e tabu alimentar se recobrem exatamente no espaço unitário da exogamia e da exocozinha”14 . Os Guayaki comiam seus mortos porque temiam suas almas. Se isso não for feito, a alma separada do corpo morto busca um novo corpo, vivo. Mas, com o canibalismo, a alma que busca o novo corpo encontraria seu antigo, despedaçado e comido, transformado em restos de comida. Sem espaço próprio para ficar, a alma seria obrigada a assumir que é apenas um fantasma, e tomar seu rumo para o país dos mortos, seguindo a fumaça do crânio que queima. Um dado suplementar que une os canibalismos Tupinambá e Guayaki é que em ambos os casos comer carne humana é, sem dúvida, uma delícia. Dos Tupinambá resta um diálogo travado entre Hans Staden, artilheiro alemão cativo e constantemente ameaçado de ser devorado, e o chefe Cunhambebe, que ameaçava executar uns prisioneiros e em favor dos quais Staden estava intercedendo. “Cunhambebe tinha à sua frente um grande cesto cheio de carne humana. Comia de uma perna, segurou-m’a diante da boca e perguntou-me se também queria comer. Respondi: ‘um animal irracional 113 6 2004 não come um outro parceiro, e um homem deve devorar um outro homem?’ Mordeu-a então e disse: [...]‘Sou um jaguar. Está gostoso’”15. Entre os Guayaki não há quem não goste. “Seria pouco dizer que apreciavam a carne humana, eles eram doidos por ela. Por quê? ‘Ee gatu’, explicavam, ‘é muito doce’, melhor ainda que carne de porco selvagem. O que mais se aproxima dela, do ponto de vista do sabor, é a carne de porco doméstico dos brancos. Mas, acima de tudo, há gordura. Um homem é mais gordo que qualquer animal da floresta; entre a pele e a massa muscular, há sempre uma camada espessa de ‘kyra’, e isso é realmente bom. ‘Kyra gatu! Gordura boa!’, comentavam meus informantes brincalhões beliscando-me o bíceps. ‘Gaiparã! Jypi pute! Está magro! Bem seco!’, eu respondia, e todo mundo caía na gargalhada”16. Essa exaltação dos prazeres da carne aparece também na literatura do argentino Juan José Saer, autor que afirma não reconstruir o passado, mas construir uma visão do passado, uma imagem ou idéia que não diz respeito a nenhum fato preciso. Investiga, no romance O Enteado17, a memória ocidental sobre o convívio com os povos indígenas de um passado colonial e o imaginário criado a respeito de alguns aspectos fundamentais de suas existências remotas. Esses aspectos são condensados na descrição de festins desmesurados de uma tribo fictícia do rio da Prata nos quais todos, salvo as usuais exceções, atiravam-se ao canibalismo e a relações sexuais fora de qualquer regra obedecida em dias de vida social normal. As vítimas do moquém são estrangeiros brancos, devorados uma vez por ano, ao mesmo tempo em que relações sexuais de todas as formas imagináveis ocorrem entre os índios. Depois de dois ou três dias, tudo volta à ordem e a inversão dá lugar a uma vida pacata. São festanças de prazer, orgias da carne. Ali, matava-se 114 verve Canibal gente para comer a carne humana, nada além. É isso que o senso comum ocidental afirma e, parece, é dessa exacerbação do prazer que se ressente, numa vaga lembrança de um passado ancestral da humanidade no qual haveria uma suposta ausência de regras: aquelas que fundam a cultura e as civilizações. Essa parece ser, de fato, a diferença entre o canibalismo selvagem e os outros, civilizados. Para os ocidentais, mata-se para comer a carne, ou mata-se e depois acrescenta-se mais um componente de violência extrema, a ingestão da carne da vítima assassinada, num gesto criminoso. Michel Foucault analisa a caracterização desse ato como praticado por um monstro moral e o associa ao incesto. “O par antropofagia-incesto, as duas grandes consumações proibidas, parece-me característico dessa primeira apresentação do monstro no horizonte da prática, do pensamento e da imaginação jurídicos do fim do século XVIII”18. O monstro é o do abuso do poder, personificado pelo casal Luis XVI e Maria Antonieta, como aparecem nos livros e panfletos revolucionários da época: ávidos de sangue, o chacal e a hiena. Ela, estrangeira que suga o sangue do povo francês, além de mulher escandalosa, depravada e libertina. Ele, o déspota. Personificam o “lado canibal, antropofágico do soberano ávido do sangue de seu povo”19, que rompe o pacto social e afirma seu interesse pessoal. A outra apresentação do monstro aparece na literatura contra-revolucionária, monarquista: é aquele que rompe o pacto pela revolta, a partir de baixo, do povo que violenta, dilacera, corta, sangra, assa corpos humanos em praça pública, faz patês, obriga filhos beberem o sangue para salvar a vida de seus pais. De um lado a depravação e a libertinagem dos reis, de outro a violência do povo. São eles, os monstros antropofágicos do povo revoltado e os monstros incestuosos do déspota, os formadores da temática jurídico-médica do monstro e da economia do 115 6 2004 poder de punir no século XIX. Hoje, abundam casos reais e criados pela ficção sobre essas fomes populares e esses apetites despóticos. O livro Hungry Ghosts – Mao’s Secret Fanmine (Fantasmas Famintos – A Escassez Secreta da Era de Mao) do jornalista britânico Jasper Becker relata a morte de cerca de 30 milhões de chineses entre 1958 e 1962 em função da campanha “Um salto para a frente” do Estado chinês, que lançou a população a uma fome tamanha que, “no noroeste da China, ‘crianças eram abandonadas ao longo da estrada, em valas cavadas no solo’, como última esperança de que algum viajante as descobrisse e delas se apiedasse. O canibalismo, de acordo com entrevistados, tornou-se uma prática alastrada”20. Lembrando o terror durante a Revolução Francesa, notícias de jornal afirmam que grupos armados do Movimento pela Libertação do Congo (MLC) e outros menores, apoiados por Uganda, são responsáveis por “canibalismo, estupros em massa, tortura e seqüestros, [...] usados como armas por rebeldes em regiões remotas do Congo (ex-Zaire) habitados sobretudo por pigmeus. [...] Eles picam o coração e outros órgãos de suas vítimas e forçam as famílias a comê-los”21. Aqui, no Brasil, lê-se a seguinte notícia sobre um acerto de contas entre grupos de prisioneiros durante uma rebelião, em março de 2001, na Penitenciária de Ribeirão Preto: “uma das vítimas do motim teve o coração retirado, assado e, segundo informações de agentes, teria sido servido aos detentos, enquanto eles bebiam pinga”22. Hilda Hilst relata, na crônica “Presidente, abre o olho: tão comendo gente!”23, o caso de uma teta achada num lixo hospitalar em Olinda e devorada por famélicos. Polígono das Secas, de Diogo Mainardi24, começa com a história de Manoel Vitorino que cai numa vala profunda com o cadáver de seu filho e se alimenta de sua carne para não morrer de fome. No teatro pudemos assistir, em 116 verve Canibal 2002, à montagem da peça “Os Solitários”25 com o texto Pterodátilos, de Nicky Silver, na qual uma mãe e um filho sobrevivem a um acidente aéreo numa ilha deserta graças ao canibalismo, prática que continuam exercendo após retornarem para casa, onde devoram o macho do lar, marido e pai. Antropofagias, todas, produzidas pela fome. Mas há algo além de fome. Atualmente o canibalismo reaparece também no universo indígena, mas dessa vez invertido: na mitologia do Norte da Amazônia contemporânea, o antropófago é o branco, monstro do terror. Michael Taussig já havia mostrado isto em Xamanismo, colonialismo e o homem selvagem26, ao descrever a forma do terror implantada na exploração de borracha no Putamayo, da qual o canibalismo foi um componente importante, constante ameaça nas vidas dos índios escravizados. A mitologia do contato pesquisada atualmente fornece diversos exemplos. Os Macuxi, povo que vive em Roraima e na Guiana, contam uma história narrada para Paulo Santilli, em 1990, pelo ancião macuxi Leonardo. Ele diz lembrar ouvir o velho pajé Jasmim contar a história ao seu pai, quando ele ainda era menino pequeno, que foi pego por soldados para trabalhar, juntamente com seu cunhado. Chegando ao local foram colocados numa casa na qual não havia nada e ali esperaram, trancados, recebendo comida diariamente. Não faziam nada, só engordavam. Depois de uma semana levaram o cunhado, dizendo que iria trabalhar, mas ele não voltou. Quando perguntou, responderam “ta lá trabalhando ainda, ta trabalhando. Mas mentira deles, eles tinham matado ele, já comeram ele. Daí ele conheceu, porque ele é pajé, né! Ele conheceu, ele pensou muito”27. Passados mais uns dias, quando perguntou do cunhado, avisaram que viria no dia seguinte e que aí seria a vez dele. “Mas ele, ele tá sabendo. Anoiteceu, ele pediu tabaco pra fumar, deram tabaco pra ele, e tem água pra ele 117 6 2004 beber aí também dentro da casa. Anoiteceu. Aí ele pensou muito: Não, eu vou-me embora hoje. — Ele disse, o pajé disse: Embora hoje, eu vou escapar desses aí, eles já comeram meu cunhado. Daí ele aguou o tabaco, no copo, ele tomou... ele trabalhava batendo a folha aqui, quando ele faz pajé, né, com a folha batendo assim para ele subir. Lá ele tirou a roupa dele, agora com aquele ele bateu, com roupa dele foi batendo, foi cantando ali, ele cantou, cantou, cantou. Não sei como pajé fica para ele subir. Aí ele subiu, ele subiu e saiu lá pra cima. Ele saiu, quando ele saiu ele virou aquele Wataima (estrela cadente), ele subiu, virou Wataima e veio embora por cima, de lá ele veio, veio [...] Eu caí aí meu filho, ele disse pra finado meu pai. Sentou ali, atrás daquela serrota ali: — Daí eu vim a pé, cheguei aqui de pé, aqui em casa, cheguei, eu escapei desse branco. Quase que me comia. Assim eu vi ele contar pro finado meu pai. E comeram cunhado dele. Ele não fora pajé, eles tinha comido ele também”28. Conforme Santilli, os Macuxi pensam o universo dividido em três planos: o terrestre, no qual vivemos, o subterrâneo, onde vivem os Wanabaricon, pequenos seres semelhantes aos humanos, e o céu, no qual há diversos seres. Tanto os subterrâneos quanto os celestes vivem à semelhança dos Macuxi — plantam, caçam, pescam e constroem aldeias — e não mantém nenhum tipo de relação com os humanos. O problema está mesmo na terra: aqui, além dos humanos e animais, existem os omá:kon, seres selvagens que habitam as serras, áreas rochosas e matas, têm unhas e cabelos longos e fala inarticulada, manifestando-se como animais de caça, e os makoi, seres aquáticos que se manifestam como diversos tipos de cobras. Esses seres antropófagos atraem os humanos com sexo e comida, os caçam para aprisionar suas almas e assim os fazem adoecer e morrer, e apenas os xamãs podem vê-los e neutralizá-los com suas 118 verve Canibal armas sobrenaturais, resgatando as almas aprisionadas dos humanos e evitando que morram. Para realizar essas operações baseadas em cantos, o xamã vive e se locomove em espaços intermediários, entre a terra e o céu ou entre a terra e as profundezas da água. Santilli conclui que entre os Macuxi as relações sociais são mantidas equilibradas a partir da reciprocidade interna. Fora do domínio da sociedade reina a predação e apenas o xamã tem condições de movimentar-se nesse terreno perigoso. Quando essa predação não é atribuída aos seres sobrenaturais ou até à natureza, os agentes da economia extrativista desempenham simbolicamente a função, na qualidade de brancos predadores fora de limites da sociedade e, desta forma, de canibais. Esse canibalismo praticado pelo outro, o branco, invadindo e dividindo o lugar ocupado pelos seres canibais exteriores ao mundo social macuxi, pode ser visto como complemento das categorias clássicas do canibalismo criadas pela antropologia. Obviamente, do ponto de vista do branco, esse canibalismo seria uma forma de exocanibalismo — comer o outro — e certamente da classe do canibalismo europeu dos poderosos, como apontou Foucault em Os Anormais. Real ou simbólico, é um canibalismo do terror que provoca o efeito do imobilismo estarrecedor perante o perigo mortal e inevitável: não fosse a prevenção pela fuga dos soldados, todos seriam comidos, apesar do esforço dos xamãs que só sabem salvar-se a si mesmos, no caso de canibais humanos. Se a proibição ao canibalismo indígena do século XVI resultou na morte dos canibais ou na escravidão deles, a escravidão recente de grupos indígenas é interpretada, por eles, como morte por canibalismo branco. Inversamente do que ocorria entre os antigos Tupinambá, não parece haver entre os Macuxi alguma 119 6 2004 forma de positivação do canibalismo. Se ali o canibalismo foi uma forma necessária de existência da sociedade que se afirma no intercâmbio antropofágico com as outras sociedades — inclusive aquelas dos brancos — assim provocando seu (quase) extermínio, os Macuxi expulsam a prática canibal para fora da vida. Ela é, apenas, a responsável por todas as mortes: aquelas provocadas pelas doenças adquiridas em função do rapto das almas humanas pelos seres sobrenaturais e as provocadas pela antropofagia do branco, a antropofagia do trabalho escravo, do terror. A positividade da antropofagia tupinambá era a vida social e o prazer inerente à vida. Não só adoravam comer a carne humana como ensinavam a alguns brancos, menos preconceituosos, a compartilhar desses prazeres. O testemunho de Staden recusando o manjar oferecido por Cunhambebe é um indício dessa possibilidade29. Os brancos não foram imunes a essas tentações no passado e esse prazer parece estar presente até hoje, ao menos, como vaga lembrança de uma transgressão saborosa às vezes revivida na ficção como monstruosidade criminosa. Ruben Fonseca cria, no conto “A natureza em oposição à graça”, a situação em que o tímido Raimundo relata ao policial como assassinou Sérgio, um grandalhão esportista que o chama de raquítico à beira da piscina do condomínio, enquanto envia olhares comprometedores para a sua namorada, Alessandra, que finalmente consegue conquistar, fato que ele começa a adivinhar a partir do momento em que a namorada comenta a beleza dos cílios do brutamontes. Numa noite Raimundo é abordado por um misterioso velho, um bruxo, que lhe diz que seu medo para enfrentar o admirador de Alessandra advém de sua alimentação de legumes e verduras. Falta-lhe sangue: 120 verve Canibal “Ouça, jovem ignorante, o homem é um animal que só adquiriu coragem quando deixou de comer raízes e outras porcarias arrancadas da terra e começou a ingerir carne vermelha. Dize-me o que comes e dir-te-ei quem és, até os cozinheiros sabem disso. Uma gazela come verduras — e o leão? O leão come a gazela, você tem que decidir se quer ser zebra ou tigre, há quanto tempo você não come carne? [...] Se você quer resultados a curto prazo, ele disse, tem de beber o sangue do inimigo e se precisar matar o inimigo para beber o sangue dele, mata o inimigo, o melhor é isso mesmo, matar o inimigo e beber o sangue dele, e depois comer a carne dele, era assim que se fazia antigamente, muito antigamente. E não se mata o inimigo e bebe-se-lhe o sangue apenas para deixar de ter medo dele, é para não se ter mais medo de ninguém e de nada.” Raimundo convida Sérgio para pescar, numa noite, no alto de um precipício. Uma pedra grande o ajuda. “Peguei a pedra e bati com força na cabeça de Sérgio. Ele caiu, sangrando muito, e despencaria no precipício, se eu não o segurasse, colocando o meu corpo sobre o dele. Colei a boca no ferimento da cabeça de Sérgio, para sugar o sangue que escorria. Não senti nenhum nojo, era como se fosse suco de tomate. Sorvi o sangue dele durante uns dez minutos, enquanto sentia, com a ponta dos dedos, a sedosidade dos seus longos cílios. Depois eu o empurrei e ele rolou pela escarpa. Ouvi o ruído do corpo batendo na água, ao afundar. Ele escorregou? perguntou o tira. Escorregou, eu não podia fazer nada, a não ser pedir socorro, esperar os bombeiros. O laudo do legista registra que as pálpebras do morto foram arrancadas, disse o tira. 121 6 2004 Deve ter sido um peixe, eu disse. O tira olhou para mim, viu à sua frente um homem seguro e tranqüilo. Muito obrigado pela sua cooperação, ele disse. Saí da delegacia e a polícia nunca mais me incomodou.” 30 Nessa versão do assassino canibal ou em outras, nas quais o monstro é apresentado de forma mais violenta e requintada, como na série dos filmes sobre Hanibal the Canibal, iniciada pelo filme O silêncio dos inocentes, a carne, o sangue, são apreciados como iguarias. Lembram os casos de amor incestuoso entre irmãos que não se sabiam irmãos pois, ao menos em algumas vezes, são situações nas quais comensais se deliciam sem saber que aquela carne, na realidade, é de gente. Uma variação dessa situação está no pequeno conto “Alegrias da carne” de Rubens Figueiredo31: um churrasco familiar no qual uma garota sempre é encarregada de cuidar da grelha e das carnes e um tio, solidário, bom churrasqueiro, mas bêbado, tenta consolá-la, uma vez que ela prefere fazer outras coisas. Com o avançar da hora e das cervejas ele perde o equilíbrio e se apóia justamente na grelha encandescente. É levado ao pronto-socorro, e a menina volta à sua tarefa, vira bifes e acrescenta carnes, sem deixar de observar que entre elas ficou um pedaço, não muito grande, da mão do tio. Sua vingança pela tarefa de churrasqueira, que a deixa engordurada e esfumaçada, é guardar o segredo para si. Agora, um pedacinho do conto “Os Canibais”, do cubano Pedro Juan Gutiérrez32: “— Companheiros, prestem atenção. Este cidadão foi surpreendido por uma patrulha hoje de tarde, no momen- 122 verve Canibal to em que saía do necrotério com este saco de fígados humanos... O murmúrio dos vizinhos interrompeu o policial. — Deixem eu terminar. Este cidadão é funcionário do necrotério faz dois meses e desconfiamos que ele subtraiu fígados de cadáveres em outras ocasiões, para vender no mercado negro como se fosse fígado de porco. Precisamos de testemunhas... Outra vez o murmúrio do povo. Uma velha foi a primeira a falar: — Ai, filho da puta! Que desgraça! É verdade, seu guarda, é verdade que ele vendia fígado para a gente! Esse filho da puta não tem mãe! Isabel e eu nos olhamos. Me pus a rir às gargalhadas. Isabel fazia caretas de nojo. — Olhe, Isabel, já está comido e cagado. Esqueça. Além disso estava uma delícia. Muito saboroso. — Não seja animal, Pedro Juan!” Selvagens ou civilizados, não poderemos deixar de ser animal pelo sangue que corre nas veias e abre apetites. Moldados pela cultura, somos natureza nessas experiências e vivências carnais, inegáveis, fundamentais para a vida, mesmo se aparecem como simbolismo, imaginário, recriando memórias de tempos em que homens e animais conviviam em outros patamares e que nos comíamos, sem hesitação. Por mais que a higienização tire o gosto do sangue e da vida, o canibal vive, pulsando, minúsculo e incomensurável. 123 6 2004 Notas 1 C. Lévi-Strauss. O pensamento selvagem. Campinas, Papirus, 1989, p. 121. 2 Idem, p. 122. 3 Ibidem. 4 A antropologia debruçou-se sobre esse simbolismo do sangue produzindo estudos hoje clássicos como o de G. Balandier. Antropo-Lógicas. São Paulo, Cultrix / Edusp, 1976, especialmente seu primeiro capítulo “Homens e mulheres ou a metade perigosa”. Da produção brasileira, destaca-se o livro de J. C. Rodrigues.Tabu do corpo. Rio de Janeiro, Achiamé, 1975. 5 C. Lévi-Strauss. As estruturas elementares do parentesco. Petrópolis, Vozes, 1976. C. Lévi-Strauss. Tristes Trópicos. São Paulo, Companhia das Letras, 1996, pp. 366-367. 6 7 P. Clastres. Crônica dos índios Guayaki: o que sabem os Aché, caçadores nômades do Paraguai. Rio de Janeiro, Ed. 34, 1995. E. Viveiros de Castros. “O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma selvagem” in A inconstância da alma selvagem – e outros ensaios de antropologia. São Paulo, Cosac & Naify, 2002, pp. 188-189. 8 C. Lévi-Strauss. “Canibalismo e disfarce ritual” in Minhas palavras. São Paulo, Brasiliense, 1986, p. 140. 9 M. Montaigne. “Dos canibais” in Ensaios, col. Os Pensadores. São Paulo, Nova Cultural, p. 101. 10 11 E. Viveiros de Castro, op. cit., p. 206. Para evitar dúvidas, todos os relatos foram acompanhados de farta ilustração. Os filmes Como era gostoso meu francês de Nelson Pereira dos Santos (1971) e Hans Staden de Luis Alberto Pereira (1999), podem ser entendidos como a contrapartida contemporânea dessa iconografia. 12 13 H. Staden. Duas viagens ao Brasil – arrojadas aventuras no século XVI entre os antropófagos do Novo Mundo. São Paulo, Sociedade Hans Staden, 1942, p. 182. 14 P. Clastres, op. cit., pp. 234-235. H. Staden, op. cit., p. 132. Viveiros de Castro, em seu ensaio, apresenta diversos relatos sobre as virtudes da carne humana registrados, entre outros, por Anchieta, Azpicuelta, Blázquez, o próprio Staden, mas também encontra manifestações de repugnância. 15 16 P. Clastres, op. cit., pp. 229-230. 17 J. J. Saer. O Enteado. São Paulo, Iluminuras, 2002. 124 verve Canibal M. Foulcault. Os Anormais. São Paulo, Martins Fontes, 2001, p. 122. Esse tema do binômio antropofagia-incesto foi curiosamente retomado por Lévi-Strauss e Foucault ao mesmo tempo. Foi o assunto da aula no Collège de France de Foucault em 29 de janeiro de 1975 (publicada em Os Anormais) e do curso de Lévi-Strauss no mesmo Collège, no ano letivo de 1974-75, intitulado “Canibalismo e disfarce ritual” (publicado em Minhas palavras). O livro de Balandier, Antropo-Lógicas, que trata em seu primeiro capítulo das mulheres, foi originalmente publicado em 1974. 18 19 Idem. N. Eberstadt. “Canibalismo do grande salto para trás”, Folha de S. Paulo, 29/06/ 1997. 20 21 “Guerra no Congo teve canibalismo, diz ONU”, Folha de S. Paulo, 16/01/2003. “Selvageria marca motim em Ribeirão Preto”, O Estado de S. Paulo, 30/03/ 2001. 22 H. Hilst. “Presidente, abre o olho: tão comendo gente!” in Cacos e Carícias: crônicas reunidas (1992-1995). São Paulo, Nankin, 1998. 23 24 D. Mainardi. Polígono das Secas. São Paulo, Companhia das Letras, 1995. Os Solitários, com Marieta Severo, Marco Nannini e outros, direção de Felipe Hirsch, é composto pelos textos Pterodátilos e Homens Gordos de Saia do norteamericano Nicky Silver, e foi apresentado no teatro Alfa e depois no Teatro Sérgio Cardoso, em São Paulo, em 2002. 25 M. Taussig. Xamanismo, colonialismo e o homem selvagem – um estudo sobre o terror e a cura. São Paulo, Paz e Terra, 1993. 26 P. Santilli. “Trabalho escravo e brancos canibais” in B. Albert & R.Ramos (orgs.) Pacificando o branco – cosmologias do contato no Norte-Amazônico. São Paulo, Ed. UNESP / Imprensa Oficial do Estado, 2002, p.498. 27 28 Idem, p. 498-499. Viveiros de Castro fornece informações na mesma direção: “As cartas jesuíticas abundam em queixas sobre os maus cristãos que estariam going native, casando poligamicamente com índias, matando inimigos em terreiro, tomando nomes cerimonialmente, e mesmo comendo gente” (op. cit., p. 207, nota 20). 29 30 R. Fonseca. “A natureza em oposição à graça” in Secreções, excreções e desatinos. São Paulo, Companhia das Letras, 2001, pp. 37-48. 31 R. Figueiredo. “Alegrias da carne”, Folha de S. Paulo, 25/08/2002. P. J. Gutierrez. “Os Canibais” in Trilogía suja de Havana. São Paulo, Companhia das Letras, 2001, pp. 325-332. 32 125 6 2004 RESUMO Canibalismo e incesto formam um par, dois grandes incômodos que se confundem no verbo comer: alimento e sexo, prazeres da carne. O canibalismo, praticado ritualmente por muitas sociedades indígenas, transforma-se em prática criminosa quando é expulso para o domínio da natureza, da animalidade e da anormalidade, produzindo a divisão selvagem-civilizado. O incesto, sempre proibido, é a marca da cultura sobre a natureza. Ambos atraem nossa atenção, alimentando imaginários baseados em apetites ancestrais. O canibalismo (o principal tema abordado aqui) reaparece em noticiários policiais-psiquiátricos e de crimes de guerra como terror, assim como fascina em expressões de literatura, teatro, cinema e das artes, talvez por conseguir lembrar que — apesar de tudo — jamais deixará de correr sangue em nossas veias. Palavras-chave: canibalismo, incesto, arte ABSTRACT Canibalism and incest compose a duo, two great annoyances that become indistinct in the verb “to eat”: food and sex, pleasures of the flesh. Canibalism, undertaken ritualistically by several indigenous societies, is transformed into criminal action when it is expelled to natures’s domain, of animality and anormality, creating the division between savage and civilized. The incest, always forbidden, is the trace of culture over nature. They both catch our attention, feeding imaginaries based on ancestral apettites. Canibalism (the main subject addressed here) reappears in policepsychiatric and war crimes news as terror. It also facinates us in expressions of literature, theatre, cinema and arts, perhaps by remembering that, despite everything else, the blood will never cease to run within our veins. Keywords: canibalism, incest, art. 126 verve Drogas e liberação: enunciadores insuportáveis drogas e liberação: enunciadores insuportáveis thiago rodrigues* Persegui demais o mal Busquei demais ter um corpo limpo Antonin Artaud Êxtase & medo Fala-se em legalização, descriminalização, flexibilização das leis antidrogas. Os protestos contra a proibição das substâncias psicoativas se fazem por meio da apresentação de visões alternativas, novos receituários, projetos outros para enfrentar o que não foi possível pelo banimento e pelo expurgo. O presente regime internacional sobre psicoativos é o da política de guerra às drogas, na qual a produção, circulação, venda e consumo de um significativo rol de compostos que agem sobre o sistema nervoso central estão sob forte controle legal. * Cientista político, poeta, pesquisador no Nu-Sol. Publicou Política e drogas nas Américas (Educ/FAPESP, 2004); Narcotráfico, uma guerra na guerra (Editora Desatino, 2003). verve, 6: 129-156, 2004 129 6 2004 As regras desse controle estão cristalizadas na Convenção Única sobre Drogas Narcóticas da ONU, celebrada em 1961, e que é o documento-síntese de todos os tratados antipsicoativos acordados desde a primeira década do século XX. A pretensão dos Estados que se reuniram em Nova Iorque para discutir a Convenção Única era o de construir pautas rígidas que classificassem todas as drogas psicoativas segundo um critério elementar: potencial para uso médico. O tratado estabeleceu, assim, listas que instituíam a legalidade ou não de um composto pelo seu pretenso “uso médico”. Os alucinógenos, como o LSD, a mescalina e a maconha, foram completamente vedados. Como também o fôra a heroína. Para a morfina e cocaína, certa liberdade para aplicações médicas. Barbitúricos e anfetaminas, sintetizadas por grandes indústrias farmacêuticas transnacionais, foram brindados com mais tolerância por serem tidos como importantes para o tratamento de certos males. O argumento do “uso médico”, enfim, aplicado como determinante na proibição ou legalidade de psicoativos, gerara acirradas polêmicas ao longo dos anos de preparo para o encontro, pois não havia consenso entre os especialistas da Organização Mundial da Saúde sobre quais substâncias deveriam ser consideradas benéficas ou maléficas à saúde1. Talvez os técnicos da ONU tenham sido assolados pelo princípio médico da Antigüidade Clássica que atribuía a uma droga propriedades curativas ou venenosas dependendo da quantidade aplicada2. Como justificar a proibição completa do LSD, droga de baixa toxicidade, e amparar a legalidade do álcool? Havia, contudo, um a priori. Algumas substâncias deviam ser banidas e a justificativa científica para tanto necessitava ser construída. Os argumentos médicos, sempre solicitados como produtores de provas para o direito penal, foram convocados uma vez mais para legiti- 130 verve Drogas e liberação: enunciadores insuportáveis mar uma decisão; um veredicto com intencionalidades políticas. Não se desenhava a proibição às drogas naquele 1961. O proibicionismo vinha sendo erguido em códigos nacionais e em tratados internacionais desde a passagem do século XIX para o XX. A costura das normas antidrogas não tem um princípio demarcável, único. Ela tem origens pequenas, descentralizadas no espaço, distribuídas nos anos. A proibição tem começos ínfimos. As leis restritivas não foram meras obras de burocratas, mas antes, responderam a demandas sociais precisas. Clamores por repressão que foram sendo alçados ao patamar de políticas de governo, tomando a forma de leis que instituíam, por sua vez, meios para sua aplicação. Os Estados Unidos foram o país no qual essas procedências da ilegalidade podem ser mais claramente identificadas por intermédio de um rastreamento interessado nos brados proibicionistas e na história da sua amplificação aos mecanismos de governo. Quando a Harrison Narcotic Act, primeira lei proibicionista estadunidense, foi editada em 1914, o percurso que conduzira à norma era então um longo trajeto. Para investigá-lo seria preciso retornar, ao menos, às pressões políticas exercidas pelas ligas de temperança, organizações não-governamentais avant la lettre que cresceram pelas redes de igrejas e associações protestantes. Grupos religiosos, como a Antisaloon League ou a Sociedade para a Supressão do Vício, foram constituídos na segunda metade do século XIX e levaram adiante a bandeira da abstinência, tão cara aos puritanos. O alvo primordial das ligas era o extermínio dos hábitos considerados nocivos para o corpo e para a alma. A Antisaloon League, em especial, esforçava-se para que o governo do país ordenasse o fechamento dos bares, “antros” que conjugavam jogo, prostituição e álcool. Com o 131 6 2004 passar dos anos, as ligas passaram a contar com representação política, com deputados, senadores e titulares de cargos executivos comprometidos com essa base eleitoral. No mercado de votos da democracia estadunidense, as organizações puritanas foram bem sucedidas porque representavam os valores e anseios de grande parte dos eleitores. Ao ser lançada na esfera política de discussões, a questão das drogas evidenciou um dos mais poderosos embates entre linhas de pensamento e ética nos EUA. Formado sobre o solo movediço das tradições puritana e liberal, o país viu com o debate sobre a proibição ou não dos psicoativos, mais um episódio do choque entre tais perspectivas. De um lado, o puritanismo abstêmio, de outro, o princípio liberal da autonomia para as decisões de cunho privado. No entanto, o primado liberal da liberdade confinada ao espaço privado não foi resistente às investidas proibicionistas. Ao contrário, a concepção liberal de que um ato privado que resulte em prejuízo a outrem deve ser coibido foi uma passagem larga para que as petições antidrogas ganhassem relevo. Isso porque, para os proibicionistas, o uso de drogas era, a um só tempo, fonte de degradação pessoal e social. Um indivíduo intoxicado era ameaça considerável a toda ordem social, pela propagação “do crime”, dos “atos desvairados”, dos “maus exemplos”, da “degenerescência dos valores” resultante de seu hábito. A condenação moral à prática de se embriagar tomava contornos mais amplos, cristalizandose em leis. E o código legal estadunidense universalizava mais um conjunto de valores morais parcamente laicizados na forma da Lei. A construção de normas restritivas ao ciclo produção/venda/uso de substâncias psicoativas se deu por intermédio dos argumentos médico-sanitários que identificavam no consumo de drogas um grave perigo 132 verve Drogas e liberação: enunciadores insuportáveis epidemiológico3. Os esforços deveriam ser feitos para impedir que compostos até então pouco regulamentados, como a cocaína e a heroína, se disseminassem pela sociedade. O único modo legítimo para intoxicar-se era aquele com a chancela médica. A relação entre médicos e seus pacientes passou a ser mediada pelo Estado, num movimento que limitou de um lado a liberdade do profissional em receitar psicoativos, mas que, de outro, consolidou o monopólio da classe médica sobre as práticas curativas. No entanto, a roupagem científica camuflava mal o impulso puritano a fomentar as iniciativas proibicionistas. A mais antiga exigência dos grupos abstêmios — a proibição do álcool — venceu as últimas resistências na Suprema Corte, em 1918, sendo aprovada, em 1919, por meio do Volstead Act. A Lei Seca contemplou a força social proibicionista ao banir todas as etapas da comercialização de bebidas alcoólicas em território estadunidense. Durante sua vigência, a Lei Seca não erradicou o hábito de beber álcool e, em conseqüência, fomentou um poderoso negócio ilegal que alimentou máfias e motivou o agigantamento burocrático-repressivo do Estado norte-americano. Ao ser abolida, em 1933, a Lei Seca deixa como rastro organizações ilegais bem sedimentadas e escritórios antidrogas, como o Federal Bureau of Narcotics (FBN), dotados de grandes orçamentos. O relaxamento com relação ao álcool não significou uma postura similar com as demais drogas psicoativas; maconha, cocaína e os opiáceos receberam leis específicas ainda mais rígidas que seguiam os passos das iniciativas internacionais dos EUA. Fora de suas fronteiras, a diplomacia estadunidense promovia encontros destinados à elaboração de normas que envolvessem mais Estados no diapasão proibicionista. Num jogo complementar entre as iniciativas domésticas e externas, 133 6 2004 o campo das demandas sociais puritanas foi sendo absorvido pelas estratégias governamentais sem perder, contudo, seu lastro. A legislação antidrogas nos Estados Unidos foi instigada por uma cruzada moral que acabou por ser encampada pelo governo devido às potencialidades políticas que o proibicionismo apresentava. O espaço de clandestinidade produzido pelas leis de psicoativos tornouse um profícuo ambiente para a captura de grupos sociais indesejados ou tidos pela ordem como “perigosos”. Nos EUA, o uso de drogas esteve vinculado a comunidades específicas por meio de estereótipos alimentados pela parcela branca e protestante do país4. Os mexicanos eram considerados consumidores ávidos de maconha; os negros eram vistos como adeptos da cocaína; os chineses, habituados ao ópio e os irlandeses, devotos do álcool. Em todos os casos, e a despeito dos efeitos distintos provocados por estes psicoativos, os usuários eram percebidos como violentos e selvagens. A lassidão sexual e a agressividade criminosa atribuídas às drogas psicoativas eram imediatamente relacionadas ao “comportamento social” dos estratos mais pobres e minoritários dos Estados Unidos5. Com o lançamento do mercado destes compostos na ilegalidade, os braços desta economia passaram a ser largamente convocados entre as classes menos privilegiadas. As leis antidrogas, assim, inauguraram o tráfico de drogas e, por extensão, uma nova categoria de criminoso: o traficante. Um inédito campo de combate na perpétua guerra que o Estado sustenta contra os indivíduos e grupos dissonantes e, portanto, perigosos à ordem ampliou-se com a proibição às drogas. O Estado Moderno deve manter estratégias amplas de controle social que, como mostrou Michel Foucault6, preocupam-se a um só tempo em atentar para o indivíduo e para a população, com- 134 verve Drogas e liberação: enunciadores insuportáveis preendendo a dinâmica de ambos dentro de uma governamentalidade. A estatística, ciência do Estado por excelência, passa a contabilizar viventes e mortos para uma prática de governo que não se limita a reprimir seus súditos, mas que investe no controle pelo oferecimento de vida. Na Europa Ocidental, a passagem do século XVIII para o XIX será marcada pela confecção de aparatos de Estado interessados na ordenação e no esquadrinhamento das cidades e espaços públicos em nome da salubridade e do bem-estar geral7. Com isso, o controle social não sobrevive apenas em atitudes negativas (perseguição, aprisionamento), mas também, em ações positivas (vacinações, em massa, campanhas de alfabetização, leis assistencialistas). À vigilância policial agregou-se a vigilância sanitária reguladora do corpo e dos espaços. Essa tática de governo, de olhar particular e totalizante, foi chamada por Foucault de biopolítica. Segundo o filósofo, a biopolítica foi “a maneira pela qual se tentou, desde o século XVIII, racionalizar os problemas postos à prática governamental, pelos fenômenos próprios a um conjunto de seres vivos constituídos em população: saúde, higiene, natalidade, raças”8. O Estado e a teoria da soberania que o sustenta não implodem com a biopolítica, mas são instrumentalizadas em seu interior novas técnicas pautadas pela lógica de um poder disciplinar. Não cabia mais punir o agressor à ordem com um suplício público, mas produzir indivíduos docilizados politicamente e ativos economicamente. Trabalhar sem contestar. Para Foucault, o discurso da disciplina não será o “da regra jurídica derivada da soberania, mas o da regra ‘natural’, quer dizer, da ‘norma’”9. A malha tecida pelas ciências humanas conferirá aos homens e situações, novas categorias: normais ou anormais. A aferição da normalidade põe em marcha saberes clínicos operando em consonância com as de- 135 6 2004 mais técnicas de gestão dos corpos. A sociedade é medicalizada e o Estado é colonizado por dispositivos de governamentalidade. Na passagem do século XIX para o XX, o controle de drogas psicoativas — tendo como epicentro os Estados Unidos — passa a fazer parte do espectro mais amplo das técnicas de controle e gestão dos indivíduos e da população. A Proibição emerge como um recurso potente acionado no quadro maior das estratégias de governamentalidade. De um lado, milhares de usuários são localizados como anormais, situação que os torna excrescências morais e antígenos à segurança sanitária geral. De outro, os indivíduos responsáveis pelo gerenciamento da economia ilegal das drogas, se transformam em agentes do vício e da degradação pessoal e social. Consumidores e traficantes formam, desse modo, um par indissolúvel, ambos visados pelos aparatos de segurança e pela ojeriza social. A Proibição interessou ao Estado norte-americano, pois os grupos que ocuparam as posições do lado da oferta de psicoativos eram justamente segmentos considerados perigosos: negros e imigrantes de diversas procedências. A perseguição a tais populações sob a chancela da guerra às drogas configurou um recurso adicional de controle social que não passou desapercebido pelo governo. Pelo prisma dos consumidores, a vedação do uso contentou a moralidade puritana que pôde ver, assim, a incontinência pecaminosa tornada crime. O Estado assumiu, nesse momento, o papel de agente moralizador a purificar a sociedade dos vícios e da degradação, reprimindo negociantes e usuários de substâncias proibidas. Pelo lado governamental, a possibilidade de investir em hábitos privados significou a expansão do raio de vigilância sobre os indivíduos e suas existências. 136 verve Drogas e liberação: enunciadores insuportáveis A construção do proibicionismo não foi, portanto, uma imposição estatal, tampouco se restringiu aos Estados Unidos. A regulamentação ampliada dos psicoativos internacionalizou-se na esteira dos encontros diplomáticos convocados pelos Estados Unidos10. A participação em tais encontros não indicou a mera submissão dos países participantes às determinações estadunidenses. Em diversos deles, um ritmo próprio de repressão ao consumo de drogas psicoativas caminhava em paralelo à cristalização da Proibição nos Estados Unidos. No Brasil, até que a primeira lei proibicionista fosse promulgada em 1921, muito havia ocorrido nas relações entre usuários de drogas e partidários de uma sociedade “livre de vícios”. Em centros cosmopolitas, como a São Paulo dos anos 1910, o consumo de drogas importadas, como a cocaína e a heroína, foi tolerado pelo Estado e pelas sentinelas morais enquanto se restringiram aos jovens filhos da oligarquia cafeeira. Quando o hábito disseminou-se entre prostitutas, pequenos fora-da-lei, cafetões e cafetinas, os brados antidrogas começaram a ser ouvidos na imprensa paulistana e nos círculos conservadores, como a Loja Cruzeiro do Sul, espécie de maçonaria nacionalista instalada na capital do estado11. Junto à recriminação aos “vícios elegantes” havia a condenação do uso de maconha associado a negros, caboclos e seus cultos sincréticos. Assim, o momento no qual inúmeras substâncias passaram à ilegalidade no país significou uma versão brasileira do impulso moralista sendo colonizado e colonizando o Estado na forma de estratégias de controle social. A partir da proibição às drogas, estratos que já recebiam atenção especial das forças policiais passaram a ser alvos potencializados das técnicas de governo e vigilância. A questão do controle de drogas nas décadas iniciais do século XX emerge como um grande tema de saúde e 137 6 2004 segurança públicas. O uso desmedido de psicoativos passou a ser coibido para evitar epidemias ou degenerescências físicas e mentais nos usuários e, também, para reprimir os negociantes de tais “venenos” pelo crime de os disponibilizar à sociedade. O consumidor foi encampado pelos códigos penais como uma figura mista entre o doente e o criminoso, ao passo que o traficante recebia a clara definição de delinqüente. As âncoras dessa ampla penalização repousam, no entanto, nas práticas moralistas que, tanto nos EUA como no Brasil, deram impulso para a Proibição e foram, com a adoção de leis restritivas, incorporadas pelos Estados em seus esforços para governar os vivos. A sociedade sã insurgiuse contra a “degradação moral e cívica” por meio de determinações proibicionistas prenhes de positividades enquanto garras para capturar indesejáveis, dissonantes e “perigosos”. Os gestos toleráveis A partir dos anos 1980, a política de guerra frontal à economia ilegal das drogas, disseminada pelo globo em moldes estadunidenses, passou a enfrentar resistências localizadas. Alguns Estados, como a Holanda e a Suíça, flexibilizaram suas leis antidrogas, identificando a implausibilidade de se erradicar o uso, e por extensão, o consumo de psicoativos12. A motivação para tais reformas legais foi proveniente de grupos de usuários organizados (como o Junkiebond holandês) e de especialistas (cientistas sociais, psicólogos, médicos) que passaram a pregar medidas alternativas à penalização dos usuários de substâncias ilícitas. Mesmo nos Estados Unidos, comissões e conselhos de estudiosos iniciaram um processo de reavaliação das diretrizes governamentais sobre combate ao narcotráfico e ao consumo de dro- 138 verve Drogas e liberação: enunciadores insuportáveis gas proibidas. Em 1996, o Council on Foreign Relations (Conselho de Relações Exteriores), centro de pesquisa sediado em Nova Iorque, organiza um encontro com a participação de profissionais e acadêmicos das mais diversas procedências para criticar os rumos tomados pelos governos estadunidenses desde a declaração de “guerra às drogas” proferida pelo governo de Richard Nixon, em 1972. A síntese dos ítens discutidos veio a público no ano seguinte13, trazendo como principal mensagem a necessidade de uma reforma sutil no proibicionismo. O mote que incitou a discussão foi a constatação de que a “guerra às drogas”, como política deliberada de ataque à oferta e à interceptação dos carregamentos de psicoativos, fracassara em seu intento: o tráfico continuava a crescer, assim como o número de usuários no Estados Unidos. Para os especialistas reunidos pelo Council, a tônica das iniciativas governamentais deveria ser direcionada para a demanda por drogas psicoativas, por meio de campanhas de orientação a jovens e apoio ao tratamento daqueles que desejassem se “desintoxicar”. Em outras palavras, os milhões de dólares anuais dispensados pelo governo estadunidense para combater organizações narcotraficantes no país e fora dele, seriam mais bem empregados se destinados ao cuidado com os usuários e com os possíveis futuros consumidores. O proibicionismo não é, de forma alguma, contestado em seus princípios. As drogas ilícitas deveriam assim permanecer e o consumo desses compostos teria de ser desencorajado ainda com mais determinação. A crítica era destinada à ênfase militarista da “guerra às drogas” e não à Proibição. Na lógica dos participantes do foro, o único caminho consistente para eliminar o uso de psicoativos era impedir a constituição de novos consumidores. A permanência do narcotráfico, segundo essa 139 6 2004 avaliação, decorria da desatenção governamental ao usuário, já que lhes parecia evidente que sem procura não há oferta. As ações preventivas, no entanto, não eram uma completa novidade nos Estados Unidos; ao menos, desde 1983, programas educativos em escolas públicas foram elaborados para expor os perigos das drogas. Naquele ano, o departamento de política de Los Angeles pôs em prática um projeto de orientação sobre drogas para colégios chamado Drug Abuse Resistence Education – D.A.R.E. (Educação para a Resistência ao Abuso de Drogas)14. Disseminado posteriormente pelo país, o D.A.R.E. levou às classes de 5a e 6a séries policiais uniformizados que se propuseram a explicar aos alunos os efeitos maléficos dos psicoativos e as táticas para evitar a armadilha das drogas15. A experiência dos educadores fardados foi exportada para outros países, como o Brasil, onde policiais militares vêm, desde o final da década de 1990, participando de projetos similares16. No discreto reformismo proibicionista, as críticas se direcionam ao modo de manutenção do combate às drogas, mas não ao combate em si. As substâncias permanecem banidas pelas avaliações de cunho médico-psicosocial que ocultam mal os veios moralistas nelas identificáveis. Formas mais contestadoras ao proibicionismo podem ser encontradas no heterogêneo conjunto de iniciativas conhecido como redução de danos. Aplicadas em alguns países, principalmente europeus, desde os anos 1980, as políticas de redução de danos partem de um princípio oposto ao da proibição no que concerne ao uso de drogas psicoativas. Para seus partidários, a meta proibicionista de banir o uso de drogas das sociedades é um objetivo inalcançável. A demanda sempre existirá, pois “não há na história uma sociedade que não tenha usado substâncias psicoativas”17. Frente à impossível 140 verve Drogas e liberação: enunciadores insuportáveis redução do uso, a realizável redução de prejuízos ao usuário. O primeiro alvo das políticas de minimização dos danos foi os usuários de drogas injetáveis. A expansão dos casos de AIDS, em meados da década de 1980, motivou a defesa por parte de médicos e ativistas holandeses e ingleses, a adoção de programas estatais de troca de agulhas. Os usuários poderiam encontrar ajuda em estabelecimentos ou unidades móveis oficiais que forneceriam novas agulhas e seringas e poderiam prestar apoio psicológico, testes de pureza da heroína adquirida ilegalmente, exames para detectar o HIV, além de eventuais indicações para tratamentos de desintoxicação. Montados nas malhas assistenciais do welfare state, as iniciativas de troca de agulhas justificavam-se a partir do pragmatismo redutor de danos: frente à impossibilidade em impedir que usuários injetem heroína, que ao menos passem a injetar com maior segurança. As políticas de redução de danos foram concebidas como uma estratégia para atrair o usuário de drogas injetáveis por meio de uma abordagem que não o considerasse um criminoso, mas alguém que inspirava cuidados. Os consumidores usuais destas substâncias passam a ser tidos como indivíduos “com hábitos de mal adaptação que precisam de tratamento”18. Desse modo, é possível notar a migração que houve de uma visão estritamente penalizadora para outra que investe na terapeutização de comportamentos. Pequeno deslocamento, as propostas redutoras de danos não se apresentaram como ruptura ou afronta direta ao regime legal da Proibição. Encarada como uma alternativa para a política de drogas, as indicações para minimizar prejuízos do uso de psicoativos não são, necessariamente, posturas fa- 141 6 2004 voráveis ao consumo destes compostos. Ao contrário, autores como Marlatt19 e Lurie20 fazem questão de frisar que as políticas de redução de danos não formam um corpo de idéias favoráveis ao uso de drogas, tampouco à flexibilização demasiada das leis antipsicoativos. Segundo esses especialistas, a Proibição é nociva porque desconsidera o usuário em sua dimensão pessoal, considerando-o um mero infrator. A atenção que uma perspectiva redutora de danos assume para com o usuário teria a grande vantagem de romper com a estigmatização do consumidor que o lança em circuitos marginais e em padrões “pouco saudáveis” de intoxicação. Nesse sentido, as leis antidrogas devem ser transformadas, principalmente, no que diz respeito à sua aplicação sobre os usuários. Assim, as políticas de redução de danos não têm dificuldades em defender a descriminalização das substâncias psicoativas ilícitas. A reforma legal que implemente a descriminalização de psicoativos proibidos abranda o modo como os indivíduos flagrados com drogas ilícitas são tratados juridicamente. A legislação estabelece quotas consideradas para “uso pessoal” que identificam o usuário; qualquer indivíduo que leve consigo quantidade acima do permitido pela lei, são considerados traficantes. Flagrado por um policial, o indivíduo classificado como “usuário” pode ser obrigado a prestar serviços comunitários, pagar multas administrativas, comparecer a grupos de educação sobre drogas ou, se avaliado como “adicto” pela Justiça, ser internado para tratamento compulsório de desintoxicação. Países como a Inglaterra e a Holanda têm leis abrandadas no sentido da descriminalização para a maconha, mas mantém o proibicionismo para outras substâncias como a heroína, a cocaína e as drogas sintéticas como o LSD e o ecstasy. Em Portugal vigora, desde 2002, uma nova lei que descriminalizou o uso de to- 142 verve Drogas e liberação: enunciadores insuportáveis das as drogas ilícitas instituindo sanções alternativas ao encarceramento. A tendência das leis proibicionistas reformadas vem sendo o relaxamento das leis que penalizam o usuário acompanhado do endurecimento nas leis contra o narcotráfico. A manutenção da produção e da comercialização de psicoativos como crime propicia cenários nos quais o mercado negro permanece intocado e os consumidores não deixam de ser assediados, ainda que de modo distinto21. Para os negociadores de drogas ilegais, continuam cabendo as mesmas medidas de repressão policial que movimentam as engrenagens governamentais e a busca de alvos entre os segmentos “perigosos” da população; para os usuários, não há mais o encaminhamento para o sistema prisional, mas o controle se dá em novos termos, por meio de uma vigilância médico-jurídica que o lança em outros campos de regulamentação. O deslocamento realizado pela descriminalização de psicoativos é perfeitamente assimilável dentro de um ambiente legal proibicionista; pois institui padrões modificados e novas gradações de controle sobre todos os envolvidos com substâncias ilícitas. Os defensores das políticas de redução de danos podem se satisfazer com a descriminalização porque não há uma defesa explícita do uso de drogas em tal postura. O uso de drogas é notado como uma fatalidade, não como desejável ou, simplesmente, como um dado social. Situação alguma seria mais ideal que a total abstinência: dano algum ocorreria, medida alguma para minimizar sofrimentos seria necessária. No entanto, a abstinência é uma utopia; a utopia das políticas de redução de danos. Inalcançável, a redução do uso deve ser substituída como objetivo pela melhoria nas condições de consumo. O proibicionismo visa um impossível “mundo livre das drogas”, portanto, 143 6 2004 há que se encarar a inevitabilidade do uso de drogas e trabalhar para minorar prejuízos ao indivíduo e à sociedade. Desse modo, apenas um proibicionista ortodoxo pode encontrar alarme nas propostas de redução de danos. Análises mais críticas aos efeitos da Proibição chegam a pleitear a urgência da legalização das drogas, reforma legal mais profunda que colocaria os psicoativos, hoje banidos, em uma situação similar aos dos legais álcool e tabaco. Em linhas gerais, os argumentos prólegalização giram em torno da avaliação de que “a proibição e a aplicação da proibição impõem custos sociais que superam o valor das metas que ambiciona a proibição [os custo sociais do uso de drogas]”, além de “criar um mercado negro ameaçador (...) sem diminuir consideravelmente a quantidade de drogas consumidas”22. A percepção preliminar é muito próxima daquela que fazem os proibicionistas do Council on Foreign Relations e os partidários da redução de danos, pois se fia na noção de que a política de tolerância zero contra o uso e o mercado de drogas ilícitas não produziu o resultado esperado da queda do consumo e fim do narcotráfico. Defensores mais ousados das políticas de redução de danos, como Marks23, chegam a pleitear a legalização das drogas como meio para a consecução das metas de diminuição de prejuízos sociais e individuais. Essa legalização deveria ser, no entanto, conduzida com firmeza pelo Estado, por intermédio de mecanismos de controle eficazes de fiscalização da produção e da comercialização de psicoativos. A modalidade de legalização estatizante, como a defendida pelo autor, prevê um mercado lícito para as substâncias psicoativas hoje ilegais sob total controle do Estado: da produção à venda ao consumidor, o processo seria comandado por agências estatais criadas para esse fim. A garantia do acesso a dro- 144 verve Drogas e liberação: enunciadores insuportáveis gas de boa qualidade aliada aos preços acessíveis e à ausência de punição ao hábito de se intoxicar, levaria os usuários à esfera legal do consumo de drogas, matando o narcotráfico por inanição. A desarticulação do mercado clandestino traria um considerável ganho em termos de segurança social, pois vedaria a principal fonte de lucros de incontáveis organizações ilegais, ao mesmo tempo em que poria fim à violência dos combates entre polícia e narcotraficantes. Além disso, a legalização estatizante faria de todo ponto de venda oficial de psicoativos um centro de educação visando “conscientizar” sobre o uso destes compostos. Em um caminho mais radical, há aqueles que, como os economistas neoliberais da Escola de Chicago, pregam a legalização sem controle estrito do Estado. Dessa perspectiva, as substâncias psicoativas são vistas como uma mercadoria amplamente desejada e que deve ser regulada pelas forças de mercado, sem intromissão estatal. Lastreia essa premissa o princípio liberal que reconhece o indivíduo como unidade racional que tem o direito de eleger as práticas que lhes digam respeito, sem prestar contas disso a outrem ou ao Estado. Qualquer hábito privado, ainda que nocivo ao indivíduo, é válido desde que assim permaneça. Nesse sentido, toda gestão externa à vida privada é intolerável. Cabe ao Estado intervir quando o exercício da liberdade de um sujeito afrontar o espaço de liberdade de outro sujeito. Em uma palavra, os danos que alguém causa a si estão no soberano plano das escolhas individuais, campo vedado à normatização exterior. Os prejuízos àqueles que vivem com o usuário de psicoativos podem existir, mas por si só não justificam uma proibição ampla e universal que avilte a supremacia do indivíduo em eleger os caminhos para si. A legalização liberal responde às preocupações dos entusiastas da redução de danos com uma 145 6 2004 lógica menos humanitária e aos defensores da legalização estatizante, com argumentos anti-autoritários. Em todos os casos mencionados — proibicionismo com enfoque na demanda, políticas de redução de danos, descriminalização, legalização estatizante ou liberal — percebe-se um ímpeto que contesta em graus variados o proibicionismo. No entanto, nenhuma das propostas foge à mesma lógica em que repousa a Proibição; todos estão no campo da normatização. As indicações para reforma da repressão total ao narcotráfico e ao consumo de drogas psicoativas transitam ainda no campo da legalidade, sugerindo alterações também universais. O inconteste avanço com relação à Proibição esbarra na vontade de produzir outras estruturas e padrões que não se pode perceber como necessariamente favoráveis ao consumo de drogas. Nas medidas de redução de danos, o fatalismo referente ao uso de drogas norteia as ações; nas reformas de descriminalização, o usuário é enredado por redes mais sutis que as grades do sistema prisional, mas não deixa de sê-lo; na defesa da legalização pela via do monopólio estatal, há a possibilidade de um controle potencializado dos usuários e na legalização liberal, uma redução do uso de psicoativos em termos utilitários e individualistas. O direito, terreno onde se cristalizam as demandas morais, segue sendo o agenciador a mediar a relação entre os indivíduos e as drogas psicoativas; razão pela qual se pode pressupor o porquê da grande difusão destas visões alternativas como legítimos vetores críticos ao proibicionismo. Éticas & incômodos O psicanalista estadunidense Thomas Szasz, ao questionar a proibição das drogas psicoativas, enfatizou a 146 verve Drogas e liberação: enunciadores insuportáveis necessidade de que se fosse além da mera reformulação em termos legais do controle de drogas. Para Szasz há pouca diferença entre os proibicionistas e os defensores da legalização, pois estes últimos se arvorariam a regulamentar o que já é extremamente restrito, como se algo já “legal pudesse ser legalizado”24. O autor chama a atenção para o fato de que as políticas de legalização criariam uma espécie de “socialismo químico”25, com o Estado monopolizando todo o circuito de produção e venda de psicoativos; situação que instauraria outras modalidades de vigilância sobre os consumidores. Filiado ao que se poderia chamar de liberalismo radical, Szasz nutre profunda ojeriza pela substituição de uma legislação negativa por outra positiva: muitas semelhanças existiriam entre uma situação legal em que o Estado interfere nas condutas individuais e nos grupos sociais tidos como ameaçadores com a justificativa de aplicar a Proibição e um ambiente no qual o consumo fosse permitido sob determinadas circunstâncias ditadas por um Estado agigantado. A planificação química levaria adiante a apropriação que os Estados ocidentais realizaram da medicina como recurso fundamental para o esquadrinhamento social, formando o que Szasz chama de “Estados Terapêuticos”26. Em termos foucaultianos, o proibicionismo agrega à marcha da governamentalização do Estado, técnicas de disciplinarização ampliadas que reforçam as positividades de um aparato de governo que se coloca como fornecedor de saúde e bem-estar, ganhando livre passagem nas mais sutis táticas de vigilância e condicionamento dos sujeitos sujeitados27. A legalização, por seu turno, não levantaria as guardas deste Estado provedor de vida, mas, em sentido oposto, tornaria mais sofisticada a normalização dos corpos ao produzir novos lugares, circuitos e identidades. 147 6 2004 Uma reforma progressista destinada a descriminalizar um leque de substâncias psicoativas sem abdicar da reprovação médico-jurídica, não produziria mais que uma outra modalidade de encarceramento: o usuário identificado como um doente não deixa de ser enquadrado como um anômalo social; não mais o criminoso, mas o empestado, que deve ser isolado para que não cause mal a si e à sociedade. Confinado não na prisão, mas no hospital psiquiátrico, o paciente da sociedade deve sofrer intervenções saneadoras que o restabeleçam para sua ótima reinserção entre os corpos saudáveis e produtivos. A lógica, como se nota, é a mesma dos reformadores das prisões que pregaram, nos séculos XVIII e XIX, a urgência em transformar as masmorras em humanitárias fábricas de novos cidadãos. Nesse sentido, a construção de novas leis não desmonta, mas, ao contrário, reforça e legitima padrões outros de controle e confinamento. As novas modalidades de intervenção podem se dar por meio de leis abrandadas se for levado em conta, como afirma Gilles Deleuze, que à sociedade disciplinar descrita por Foucault — aquela em que a produção de subjetividades se dá em mecanismos como a prisão, a escola, a família e o exército — sobrepõe-se uma sociedade de controle que “funciona não mais por confinamento, mas por controle contínuo e comunicação instantânea”28. Numa sociedade de controle os sujeitos não são conformados em definitivo; são submetidos e vigiados por intermédio da formação permanente, num processo que os transforma em uma cifra a transitar por fluxos cibernéticos. Não mais o operário da fábrica, mas o gerente da empresa; não mais o estudante graduado, mas o aluno eterno que necessita reciclar-se; não mais somente um número na cédula de identidade, mas também as senhas sem as quais nada se acessa. Nesse 148 verve Drogas e liberação: enunciadores insuportáveis ambiente do controle perpétuo, o regime das prisões — forma mais bem acabada da ortopedia disciplinar — pode ceder espaço para “penas ‘substitutivas’, ao menos para a pequena delinqüência, e [à] utilização de coleiras eletrônicas que obrigam o condenado a ficar em casa em certas horas”29. Não é preciso manter o indivíduo sob os olhos de um outro, na posição de vigia. Os recursos tecnológicos presentificam o big brother de George Orwell ou a versão eletrônica do panóptico de Jeremy Bentham e, desse modo, aquele que deve ser controlado não deixa de sê-lo por não estar atrás dos muros da prisão. A partir dessa perspectiva, tem-se que as drogas entendidas pelos especialistas do Estado como leves não levariam a nada mais grave do que crimes brandos. Os mais ousados progressistas defendem, até mesmo, a flexibilização para as drogas ditas pesadas, como a heroína e a cocaína, desde que haja uma supervisão estrita do aparato médico estatal. Assim, o ajuste penal pode transcorrer sem causar surpresas, uma vez que estão em movimento novos recursos para rastrear e mesmo confinar temporariamente (os tratamentos de desintoxicação compulsórios). As críticas ao proibicionismo impressas nos discursos pela descriminalização e pela legalização (estatizante ou liberal) são assimiláveis porque transitam num repertório que não é estranho ao que sustenta a Proibição. Vibrando no mesmo diapasão, defensores da descriminalização, da redução de danos e das modalidades de legalização jogam com o mesmo recurso do regime contra o qual se opõe, pois exigem o soerguimento de um corpo jurídico de novas formas e cores, mas ainda um código normativo amplo e regulador. As forças sociais progressistas pregam a necessidade imperiosa em regulamentar em outros termos as relações entre usuários e os psicoativos hoje banidos; o que significa novas leis que permitam o acesso às dro- 149 6 2004 gas. Tais leis, no entanto, teriam o mesmo perfil das leis proibicionistas, já que seriam universais e impositivas. Os partidários das leis reformadas poderiam contra-argumentar afirmando que a flexibilização das leis é menos autoritária que a Proibição, pois deixariam a cargo do indivíduo a eleição sobre usar ou não substâncias psicoativas. De fato, há poucas atitudes mais impositivas do que o proibicionismo, entretanto, a economia das penas, ponto de apoio do direito, não se abala, mas antes, reafirma-se como foro legítimo para a deliberação das questões sociais e dos desejos individuais. O que se questiona aqui, portanto, é a validade em se construir leis universais no lugar de uma já preexistente. Ao se perguntar como seria possível legalizar algo já legalizado, Szasz provocava a reflexão exatamente deste ponto. A Proibição foi, em si, um grande movimento que trouxe para o âmbito das regulamentações legais temas que antes do início do século XX passavam ao largo das preocupações jurídicas. Relações não previstas em lei, mas existentes e difundidas socialmente, foram encampadas pelas normas e, por conseguinte, pelo Estado. O campo do uso de psicoativos foi, talvez, um dos últimos a ser colonizado pela medicalização da sociedade, pela intervenção ampliada dos mecanismos de controle governamentais sobre os indivíduos e sobre os grupos sociais. Estratégia prenhe de possibilidades para o reforço da necessidade do Estado em garantir a ordem pública, a disciplina das coisas, a pacificação dos descontentamentos e a manutenção da propriedade. Se, como afirma Foucault, “a classe no poder se serve da ameaça da criminalidade como álibi para endurecer o controle da sociedade”30, a Proibição produziu delinqüentes do lado dos consumidores e dos negociadores de psicoativos, fato que ativa um filão fértil para a repres- 150 verve Drogas e liberação: enunciadores insuportáveis são e o policiamento das populações. Diante do impasse colocado pelas propostas de reforma legal que não abdicam da vigilância — nem a desarticulam —, Szasz defende o caminho da deslegalização: a legalização é até tolerada pelo estadunidense como uma estratégia, se a meta for a abolição das leis sobre drogas31. Nem proibir, tampouco permitir; simplesmente desregulamentar. O argumento histórico levantado pelos entusiastas da redução de danos e da legalização, de que não há sociedade humana que não tenha estabelecido relações com alguma droga psicoativa, ressurge com outro potencial. O uso de psicoativos é e foi parte dos repertórios culturais de diversos povos, fato que desencoraja a consecução de qualquer proposta que vise a supressão definitiva da ebriedade química entre os homens. Esse fato, no entanto, não significou o desmembramento das comunidades, a desestruturação da vida social. No entanto, uma mesma mirada histórica que se interesse também pelas relações de poder que perpassam os controles sobre drogas psicoativas, traz à vista incríveis potencialidades para a gestão de vidas individuais e de grupos sociais. Não é hermético ou de difícil assimilação notar a Proibição como técnica de governo dos vivos; entretanto, é preciso rastrear suas procedências e tal ímpeto leva invariavelmente ao campo da moral. A defesa da legalização ou de transformações legais intermediárias é plausível não só porque se propagam no mesmo espaço e lógica do proibicionismo, mas também porque não afrontam o rechaço moral à intoxicação. Sob as camadas de discursos médicos e jurídicos jaz a reprovação moral aos psicoativos; sob a articulação entre a necessidade em salvaguardar a salubridade e a segurança públicas, encontra-se a vontade de proteger a moralidade pública. A batalha contra as drogas psicoativas é uma luta aparentada àquela contra o sexo, 151 6 2004 na medida em que o alvo, o grande incômodo é o prazer em vida. As “desintegrações de lares”, as “destruições de vidas” e tragédias similares soam no diapasão da reprovação ao gozo de si. A satisfação que provém do dispor de si parece intolerável a qualquer campo de moralidade, já que a moral exige padrões de comportamento universais. A emergência de condutas criadas na localidade que prescindam de normas globais — e, portanto, normalizações — é insuportável para as moralidades, pois rompe com o padrão, com a previsibilidade de comportamentos. A liberação das drogas significa a deslegalização, a desnormatização, mas não a inevitabilidade do desregramento. A desmesura e a continência são ambos comportamentos possíveis no campo das opções particulares. Indivíduos abstinentes, usuários comedidos e aqueles sem controle existem em tempos de Proibição Universal e não desapareceriam num mundo sem regulamentação legal. As escolhas sobre si, apesar das conformações que visam disciplinar o corpo e apaziguar os instintos, seguem vivas e irrepresáveis. A relação de alguém com uma substância psicoativa pode ter incontáveis motivações; pode ser um contato religioso ou ritual, um signo de identidade grupal ou simples hedonismo. Os usos não são passíveis de catalogação, nem são necessariamente libertários ou autoritários. Entretanto, é possível conceber que as regras a nortear o consumo destes compostos possam se dar na localidade, sendo formuladas pelos interessados diretos. As regras locais, diferente das leis proibicionistas ou progressistas, são flexíveis, maleáveis, forjadas pelos indivíduos que vivenciam concretamente a situação sobre a qual pensam e regulamentam. Não há, portanto, a transcendentalidade da norma, a metafísica do direito. 152 verve Drogas e liberação: enunciadores insuportáveis A noção de bem-comum desvanece na medida em que éticas locais32 estabelecem seus parâmetros, suas linhas de condução. A ausência de receituário quando se pensa em liberação ou abolição das leis anti ou pródrogas transtorna tanto como ouvir uma língua da qual se compreende pouco. É um transtorno de linguagem, um abalo a noções cristalizadas, um rasgo profundo e quase ininteligível. Todavia, a escolha sobre o que fazer de si independe de rupturas legais. Aliás, esse trabalho de agir sobre sua própria existência compondo um trajeto que se subleve contra as formatações externas começa com uma decisão. Decidir sobre si é uma atitude, não uma modificação legal, não um novo cânone moral. Não é, desse modo, uma utopia, uma projeção para um mundo vindo após um ato heróico ou redentor. As práticas de si são dadas no particular de cada existência33, são confeccionadas por poucos e para poucos. Dependem das ações e das posturas inventadas por cada um, não de uma criação proveniente de cima e destinada a todos. O que fazer com a desmesura, com a incontinência? É o mesmo que se questionar sobre o que fazer com a morte. Na contramão, poder-se-ia perguntar: o que fazer com a vida? O você faz de si? A eliminação do sofrimento é uma das utopias humanistas mais fortes e presentes. A dor do outro é insuportável para a sensibilidade ocidental e, como conseqüência, o incontornável compadecimento. Quando Antonin Artaud vociferava contra a proibição do ópio afirmando que “os perdidos estão por natureza perdidos” e que, por isso, “todas as idéias de regeneração moral nada farão por eles”34, afirma que a ânsia de salvação vibra na mesma freqüência da preocupação humanista com as mazelas sociais e que não há proibição que barre os intuitos daqueles que querem destruir-se. Pode-se sus- 153 6 2004 tentar, em adição, que a ilegalidade leva a um obscurantismo que pode, ele sim, levar à destruição não voluntária: numa bala que atinge um soldado do tráfico, na overdose que mata um usuário de heroína. A reprovação moral às drogas é um episódio da ojeriza à gestão de si. Agir para a produção de uma ética de si, em termos foucaultianos, é mais e menos do que defender o uso de psicoativos. Num mundo em que a norma é abolida em cada um de nós, não há espaço para preconizar o uso ou o não uso. O padrão cede lugar às condutas e às relações que são estabelecidas entre aqueles que decidiram não ser o que se espera, mas o que se quer ser. Não num futuro, mas no incômodo que se dá no presente, ao lado, dentro, fora, pelas minhas frestas. Notas W. McAllister. Drug diplomacy in the XXh century. Londres, Routledge, 2000. 1 2 A. Escohotado. Historia elemental de las drogas. Barcelona, Anagrama, 1997. 3 T. Szasz. Nuestro derecho a las drogas. Barcelona, Anagrama, 1993. E. Passetti. Das ‘fumeries’ ao narcotráfico. São Paulo, EDUC, 1991; e A. Escohotado. Historia de las drogas, vol. 2., Madrid, Alianza, 1998. 4 5 T. Szasz. op. cit. M. Foucault. Vigiar e punir. Petrópolis, Vozes, 1997; e “A governamentalidade” in Microfísica do poder. Rio de Janeiro, Graal, 1998. 6 7 M. Foucault. “ O nascimento da medicina social” in Microfísica do poder. Rio de Janeiro, Graal, 1998. M. Foucault. “Nascimento da biopolítica” in Resumo dos cursos do Collège de France. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1997, p. 89. 8 9 10 Idem. “Soberania e disciplina” in op. cit., 1998, p. 189. W. McAllister. op. cit. B. Carneiro. A vertigem dos venenos elegantes. São Paulo, Dissertação de mestrado, PUC-SP, 1993. 11 154 verve Drogas e liberação: enunciadores insuportáveis G. A. Marlatt. “Redução de danos: uma breve história” in G. A. Marlatt et all.. Redução de dano. Porto Alegre, Artmed, 1999. 12 M. Falco. Reflexiones sobre el control internacional de las drogas. México, Fondo de Cultura Económica, 1997. 13 É importante notar que a sigla D.A.R.E. significa, em inglês, “desafio” ou “ousadia” e seus verbos correspondentes. 14 G. A Marlatt. “Princípios e estratégias de redução de danos” in G. Allan Marlatt et all. op. cit. 15 16 G. Corrêa. “Escola-droga” in Verve, n 1. São Paulo, Nu-Sol, abril 2002. J. Marks. “Dosagem de manutenção de heroína e cocaína” in M. Ribeiro & D. Seibel (orgs.). Drogas: hegemonia do cinismo. São Paulo, Memorial da América Latina, 1997. 17 K.Wingardt & G. A. Marlatt. “Redução de danos e políticas públicas” in G. A. Marlatt et all. op. cit., p 254. 18 G. A. Marlatt. “Princípios e estratégias de redução de danos” in G. A. Marlatt et all., op. cit. 19 P. Lurie. “Redução de danos: a experiência norte-americana” in M. Ribeiro & D. Seibel (orgs.), op. cit. 20 M. Kleiman & A. Saiger. “Impuesto, regulaciones y prohibiciones: vuelve a formularse el debate por la legalización” in P. Smith (org.). El combate a las drogas en América. México, Fondo de Culura Económica, 1993. 21 22 M. Kleiman & A. Saiger. op. cit., p. 292. 23 Idem. 24 T. Szasz, op. cit., p. 152. 25 Idem, p. 148. 26 Ibidem. 27 M. Foucault. “O nascimento da medicina social”, op. cit. G. Deleuze. “Controle e devir” in Conversações. São Paulo, Editora 34, p. 216. 28 Idem. “Post-scriptum: sobre a sociedade de controle” in Conversações, op. cit., p. 225. 29 30 M. Foucault. “A prisão vista por um filósofo” in Estratégia, Poder-saber, col. Ditos & Escritos IV. Rio de Janeiro, Forense, 2003, p. 157. 31 T. Szasz, op. cit., p. 206. 155 6 2004 E. Passetti. Éticas dos amigos: invenções libertárias da vida. São Paulo, Imaginário, 2003. 32 M. Foucault. História da sexualidad2: o uso dos prazeres,vol. 2. Rio de Janeiro, Graal, 2001, p. 30. 33 A. Artaud. “Seguridad general: la liquidación del opio” in Textos. Buenos Aires, Aquarius, 1971, p. 79. 34 RESUMO Análise da gestação e cristalização do proibicionismo de substâncias psicoativas; os desdobramentos de sua lógica presentes nas políticas de redução de danos, descriminalização e legalização. O incômodo provém da liberação de si. Palavras-chave: drogas, proibicionismo, liberações. ABSTRACT Analysis of the construction and establishment of the psicoactives substances’ prohibitionism; the continuity of its logics in harm reduction, discriminalization and legalization policies. The annoyance comes from the liberation of the self. Keywords: drugs, prohibitionism, liberations. 156 verve Incomodando incomodando silvio ferraz* O que faz com que a gente comece a escrever uma música? Quando é que se começa a escrever qualquer coisa? O que faz com que a gente queira sair da cama de manhã? Seria isso o incômodo? Talvez. Como entender incômodo? Prefiro talvez pensar em inquietação. Algo me inquieta. Alguma coisa me tira da cama, alguma coisa me leva a não ficar parado, a me mexer, e logo. Mas e se essa alguma coisa for grande demais? Daí eu fico parado e não faço nada. Enrolo na cama o que posso. Deixo o dia passar entre os dedos e nem quero pensar nisso. Olho e olho pro papel de música e não escrevo nada. * Compositor e professor no Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da PUC/SP. verve, 6: 159-168, 2004 159 6 2004 Sento-me ao piano e começo a tocar qualquer coisa. Como se aquilo fosse aplacar essa inquietação, essa coisa que quer existir, mas fica pesada demais pra existir. Fazer música é viver o tempo todo este incômodo. O que é esse incômodo, essa inquietação? Ela é a diferença, ela é o movimento, a condição de realizar potências, a condição da idéia. Essa inquietação é a linha de fuga que emerge em meio à ciranda diária de demarcar lugares, de deixar rastros e rastros expressivos de um território demarcado. A inquietação é uma das manifestações desse desenho constante, incessante, mas descontínuo, de ritmo irregular e insistentemente passageiro. Ser afetado por uma inquietação é notar, é ver a tal da linha de fuga, da linha que traça o percurso centrífugo: deixar de ficar aqui parado e me sentar ao piano e começar a tocar algo e escrever uma linha ou outra, depois atender ao telefone e daí escrever uma carta pra alguém, ler um trabalho infernal, ler outro trabalho infernal e ir a uma reunião imaginária, terminar um projeto e daí escrever mais uma linha de música e tocar mais um pouco, enfiar a mão nos bolsos e dar um dinheiro à empregada pra comprar alguma coisa imensamente necessária para o almoço, acender uma lâmpada porque ficou escuro, apagar a lâmpada por que não é tão necessário assim e sair de casa pra tomar um café ou quem sabe dar uma volta no parque encontrar com alguém, ter mil idéias e compor muitas muitas músicas andando pelo parque querer voltar pra casa pra registrar tudo, voltar e tomar um banho, terminar o banho e dar um cochilo e daí lembrar que é hora de ir jantar, ou que é hora de ir dar aula, ou que é preciso sair? pra uma nova reunião infernal com algum estudioso sério das comunicações e ouvir no rádio do carro algum cantor fingindo que é moderno e manifestando suas vontades de ter dinheiro, vontade de ter sucesso, vontade de vender muitos discos e deixar o pai, a mãe, o ir- 160 verve Incomodando mão satisfeito e poder convencer algumas meninas de que aquilo sim é que é música, aquilo sim é que é cantar e você ali desligando o rádio infernal do carro e parando porque finalmente chegou onde tinha que chegar e chegando lá ter mais e mais idéias de uma música que talvez seja escrita um dia sabe-se lá quando, mas é claro que será escrita quando você tiver tempo e vai ter tempo depois que ler todas as teses que tem que ler, depois de ler as dissertações e aprovar e desaprovar alunos em cerimoniais de qualificação e de defesa e em comissões de bolsistas e logo lembrar que tudo aquilo não pode ser feito porque tem um projeto importante a ser levado adiante. Essa é a linha de fuga, isso é o sair do centro e entrar a todo tempo em uma nova ciranda, em uma nova cantiga de roda, em um novo ritmo circular que crava um centro, que se vale de uns movimentos e de algumas coisas que estão ali por perto (jogar a mochila na poltrona da sala depois largar uma calça amarrotada na maçaneta do banheiro e sair por aí deixando marcas e marcas) tudo de modo a contracenar o centro, o giro e os outros centros e outros giros que nos levam a um novo centro, um novo giro. Mas tem uma hora em que a gente pára. Tem um momento em que sentar ao piano não é só sentar-se ao piano e não rapidamente sair dali como se algo estivesse incomodando mais ainda. É ficar quase que imóvel, escolher umas notas, tamborilar um pouco, ouvir um som, rodar em volta dele, rodar um pouco mais e daí começar a desenhar alguma coisa. Uma nova brincadeira. Ao invés de correr de um lado para o outro é como se tudo se fechasse em um único plano: o piano, os dedos, a madeira do piano, o cheiro da poeira que assentou com os dias sem tocar, um pouco do barulho que vem de fora. Mas é só um pouco deste barulho e se o barulho aumenta vem uma força que faz com que a janela seja fechada, com que haja forças 161 6 2004 para se levantar, ir até a varanda, dar uma olhada para fora, fechar a porta de correr e voltar para o piano. O movimento é outro. Não é mais de abrir é de fechar, é de viajar sem sair do lugar. Visto de longe parece que o barato é fazer um lugar, desenhar um cantinho. É assim que a criança parece fazer quando canta uma cantiga pra si mesma. Mas se para a criança aquilo era o suficiente para fazer um muro, para desenhar um entorno, não é sempre assim que as coisas acontecem. Eu desenho um muro, um muro feito de notas que soam ao piano, ou mesmo que soam em minha cabeça, ou que ressoam junto com a maquina de fazer bolhas do aquário, ou por que não um carro que passa na rua. Mas desenhado o muro a viagem pede para continuar. É toda uma potência que encontra lugar para acontecer. Acontecer logo antes que alguém tenha o poder de interromper tudo: um telefonema de alguém que pede dinheiro, o computador anunciando que mais um email acaba de chegar, a porta… a campainha da porta, para alguns o interfone… pode ser que comece a soar em breve. O tempo é pouco se visto assim. O tempo é pouco e é preciso enfiar em meio disto um pouco de tempo puro, de um tempo sem medida, de um tempo sem espera, de um tempo sem expectativa, sem previsão de um fim. Um infinito, como um deserto que se desenha na superfície do pedaço de papel que olho de relance e me deixo levar, ou as dunas e altas montanhas do brim da calça redobrado. Preciso deste tempo puro, deste pouco de duração. Antes que alguém traga de volta o tempo cheio de estrias do relógio, o tempo cheio de marcações e marcações, e nomes, e estratégias, e vícios e caminhos já percorridos que se impõem para serem percorridos de novo. O muro pode jogar tudo pra fora, mas o muro não tem força suficiente para ficar de pé. Preciso fortalecer o muro. Volto para o piano. Volto a tocar as notas que desenhavam melodias circulares, fazendo pequenas marcas no espaço e eu ouço cada marca. Elas não são mais dedos no teclado, não são 162 verve Incomodando mais relações tão simples. Elas são marcas, são marcas que de quando em quando se afastam e se tornam de uma força irreconhecível, eu até posso contar com elas e elas são tão grandes que nem sequer consigo saber do que se trata. São muito grandes. E nessa grandeza sinto-me fora de casa, me sinto com aquela vontade estranha de sair dali, de dormir, de deixar tudo viajar, mas de outro jeito. E nessas eu mesmo vou e pego no telefone, ligo para alguém depois abro todos os e-mails que ficaram suspensos e respondo tudo com pressa. Queria poder voltar para o piano, mas tem muita coisa me impedindo. Volto… se a força é grande eu volto. Volto e vejo tudo aquilo que está ali no papel. Aquilo é claro, que consegui anotar de tudo aquilo que se perdeu enquanto tocava meio desapercebido viajando nas linhas curvas que desenhavam a melodia. Não é mais um jogo de dedos, não é mais um jogo de sons. Eu então toco tudo de novo e fico ali esperando compreender tudo que fizeram antes. Um peso. Colocar um pouco de peso, dar uma pequena, mesmo que passageira consistência para tudo aquilo. Lembro dos pássaros e de como sua plumagem colorida pelas forças dos hormônios se torna uma qualidade específica daquele indivíduo pássaro, qualidade que o permitirá acasalar-se, que o permitirá espantar seus inimigos e garantir assim sua sobrevida, mesmo que transitória. Nada disso que faço me pertence, assim como a cor não pertence ao pássaro, ela é uma placa, um cartaz que anuncia o pássaro. Mas não resisto, vou dormir. Desenha-se um ritmo quando passo de um lugar a outro, quando saio do piano, me deito um pouco, volto ao piano, desenho uma melodia, reescrevo tudo no papel, apago tudo que escrevi, resolvo ler umas partituras de Beethoven, depois Chopin, depois Jobim, e assim vai até que retomo uma linha do que vinha escrevendo e desisto de tudo. Por hoje chega. Cheguei no ponto final, é a fadiga. Tudo isso é 163 6 2004 um ritmo, a membrana de um movimento roçando na membrana do outro movimento, os dois pulsantes, os dois em movimentos constantes de sístole e diástole, vai e vem, irregular. O ritmo não é o ritmo do movimento em que estou, mas o ritmo entre os movimentos, o pulsar das membranas. E se estou escrevendo sobre incômodo, e prefiro falar em inquietação. Falo do incômodo que todo mundo tem, e não do incômodo que a gente causa. Um fala de uma potência que se realiza o outro fala de um poder que se impõe. Mas não quero falar do poder que se impõe. O poder de interromper uma potência que se atualiza. O poder de impedir que algo venha a aparecer. Diferente da potência que é sempre voltada para frente, sempre voltada para o futuro. A potência de atualizar. Mas nada se atualiza sozinho. Não vem uma música sozinha, do nada. Ela pode vir de uma técnica, sobretudo de uma técnica que não tenho. Não tenho a técnica e umas notas soam em minha cabeça. A inquietação me parece vir a todo tempo. Estar inquieto e em movimento, estar o tempo todo sobre uma linha de fuga, saltando com cavalos no precipício, saltando com cavalos a fina camada que me segura em um lugar. As notas todas jogadas no papel, os sons todos circulando em minha cabeça, e de repente a sensação de que tudo está solto, de que todo aquele movimento está solto, que nada se segura por ali. Então noto um outro movimento, noto um ritmo que se desprendia das paredes dos movimentos contíguos. As notas todas confusas no papel, para que mesmo? Passo então à mesa, desenho alguma coisa que as ordene, vejo-me frente a uma longa fileira de verdades e estratégias históricas, e do outro lado uma fileira de experimentalismos que pedem por uma história. Como é que faço pra jogar tudo isto fora? Nem a história nem o modismo, nem a determinação do passado nem a do presente. Como ficar aberto no futuro? Mas tudo que está junto 164 verve Incomodando se relaciona, queiramos ou não. Sempre há relação. Deixo tudo ali, marca da imperfeição, marca da falta de técnica, marca de um trabalho abandonado no meio e mil vezes retomado sem que a lógica da unidade ou da explicação viesse participar. Deixar tudo em aberto como em um rascunho de Rembrandt, como em uma carta mal redigida, como em um livro abandonado. É preciso organizar? Não. Simplesmente passo direto e faço daquela confusão o meu território, faço do amontoado de notas uma linha por onde passear e ser aprendida. E tanto o organizado quanto o disperso, de súbito, pedem que eu fuja dali. Tudo perde sua função, tudo se torna expressivo. E eu apenas reúno as forças, reúno as linhas, ponho umas ao lado das outras, faço com que elas se visitem, se conheçam, se toquem, troquem de idéias, e depois voltem ou não aos seus lugares. Deleuze diz que a arte não espera o homem para começar. O que quer dizer isso? Ela começa sempre, ou ela simplesmente começa sem que saibamos onde, quando, por que, e no meio de quem. Seus ciclos não são os do homem. Não há acordar pela manhã, alimentar-se e voltar a dormir pela noite. Não é o mesmo ciclo. É outro, outro em que o homem não participa com os seus ciclos. O personagem deste ritmo não é um eu que vive, quase que um relógio solto, é o próprio movimento que é o personagem, é o próprio ritmo que é um personagem. E nesses ciclos, nesses começares e recomeçares faço minha opção. Deixo a marca do tempo, consigo escrever apenas curtas anotações, pequenas cirandas, pequenas cantigas rodando rapidamente e por muito pouco tempo em torno de algum lugar. Uma assinatura? Não, não chega a ser nem assinatura. Deleuze fala de assinatura, fala de estilo e fala de dar uma consistência. Fujo até mesmo da consistência, tamanha a inquietação. É como se todo um monte de vidas, um monte de tempos, um monte de coisas estra- 165 6 2004 nhas quisesse passar por mim naquele pequeno momento, naquela pequena dobra de tempo em que escolhi justamente pra me esconder. E até mesmo enquanto escrevo este texto fico pensando em quanta coisa deixei pelo meio do caminho, em quantas coisas foram largadas. Tudo sem consistência, tudo quase que sem nexo, tudo em uma escrita rápida e que não tem sequer estilo, não deixa sequer marcas, não serve nem como cartaz, nem como placa: aqui está uma escrita! Nem isso. Agindo rápido assim não dou tempo para que nenhuma coisa se associe ao que estou escrevendo em minha música, nem ao que estou tocando, nem ao que estou ouvindo, nem ao que estou tentando pensar e muitas vezes anotar na margem de uma partitura, num pedaço de papel velho, num monte de pequenos papeizinhos espalhados pela casa, espalhados pelo tempo. Você percebe que aqui não tem código nenhum, que nada quer dizer nada. “Logo pela manhã ela chegou em casa tirou o casaco e jogou no sofá da sala, pegou da mochila e largou na cadeira da cozinha, olhou para suas coisas, foi até o banheiro e deixou marcas e marcas. Tudo sem nenhum propósito, ela só foi andando e marcando, andando e largando pequenas coisas, pequenos pertences. Não tardou muito a fazer com que os outros que ali estavam se enfezassem, reclamando da falta de espaço, da desorganização. Ela mesma se deu conta e passou a recolher tudo até que se viu fora dali. Já havia saído dali. Foi embora com todas suas coisas sem conseguir nunca mais largá-las onde quer que fosse. Significados! Significados! Largar era criar significados e isso não lhe fazia bem”. Mas uma coisa é certa, quando toco eu crio uma distância, crio uma distância… tudo que possuo: distâncias. O brinquedo de girar das notas em torno de um eixo fez distância, de direção fez-se dimensão, abriu um espaço naquele vinco de tempo e de lugar, um vinco em meio ao 166 verve Incomodando descontínuo que tem uma dimensão. Que dimensão é essa? Uma dimensão sem medida, um tempo sem medida; tempo puro, duração, espaço puro, dimensão. E isto é abrir um espaço para o que gostaria de sentir como diferença: não difere de nada, difere em si, é pura diferença, um dia quem sabe descubra-se do que difere, e daí em diante não será mais diferença, será a velha semelhança disfarçada em seu negativo. E neste jogo de achar a diferença vem uma idéia: quem é que junta tudo isso? Quem é que junta todas as partes aparentemente soltas? A diferença em si, a própria diferença que retorna enquanto condição de trazer mais e mais diferença. É o abrir-se do jogo para fora dele que faz com que exista uma consistência em tudo que estava sendo feito assim, como um movimento de largar os casacos por aí. Quem deu uma consistência ao movimento foi justamente aquele curto espaço de tempo, aquela pequena reentrância na qual um movimento puro e simples, movimento com a função de se livrar do peso das coisas que trazia, de livrar-se do peso da inquietação, de se livrar de um incômodo… foi nesse pequeno ponto sem medida que aquilo que não tinha forma, que não tinha permanência tornou-se expressivo, marcou um lugar, tornou-se um cartaz. E criou um outro tipo de distância. O que junta não é a unidade, não é o jogo de diferenciar algo de algo e dar permanência a um ciclo que já se fechou. Preciso da permanência do ciclo aberto. O que junta, consolida alguma coisa, um movimento, é um pedaço de lugar. Pedaço de lugar em que as coisas se ligam sem que precisem ter uma coerência, sem que precisem falar a mesma língua, significar uma coisa só. Sem que precisem ter uma função naquele conjunto. Fazer uma casa, espaços vazios, espaços cheios, coisas sobrepostas, articuladas umas às outras. Uma porta; um quadro; uma mesa; alguém que passa correndo; uma pequena imagem de santo; o barulho do gorgulhador do aquário; as pedras da calçada; a janela aberta e depois fechada, aberta e depois 167 6 2004 só fechada pela metade; uma garrafa de água solta, largada na mesa. As coisas sobrepostas e intercaladas, intercaladas e criando intervalos: o tempo de ir da cozinha até a sala, o giro que é preciso se fazer em torno do sofá; a cor da parede que divide uma sala da outra. RESUMO Música narrativa em sua fugidia criação. Palavras-chave: música, diferença, inquietação. ABSTRACT Narrative music in its scaping creation. Keywords: music, difference, unrest. 168 verve Incomodando 169 6 2004 170 verve Revolta, ética e subjetividade anarquista revolta, ética e subjetividade anarquista nildo avelino* Há em nossa sociedade uma demanda constante de adesões e de mobilizações massivas tornadas “midiáticas” e “burocratizadas”, demanda que tem por finalidade sensibilizar a opinião, emocionar, indignar, apelar à solidariedade de todos e cada um. A exposição espetacular da exclusão social, de pessoas devastadas pela miséria, pela fome, pela guerra, pelas epidemias, enfim, há uma massa de sofrimentos que alimenta campanhas e solicita adesões, exige lágrimas, reclama indignações e nos pretende tornar doadores compulsivos. Verdadeira laiscização da caridade, os jogos televisivos suscitam a compaixão e o desejo de ajudar. Porém, o objeto desta solidariedade não é mais o sofrimento do próximo como ocorria outrora, mas o sofrimento geral de toda gente; não se trata mais “... de dar a alguém que se conhece e menos ainda de esperar algo de um reconhecimento que nunca será recebido pessoalmente. O dom tornou-se um ato que liga sujeitos abstratos, * Mestre em Ciências Sociais pela PUC-SP, pesquisador no Nu-Sol e secretário do Centro,de Cultura Social de São Paulo. verve, 6: 171-196, 2004 171 6 2004 um doador que ama a humanidade e um donatário que encarna por alguns meses, o tempo de uma campanha de donativos, a miséria do mundo”1. Há também nessas mobilizações algo que beira totalitarismo. É que elas reclamam um conformismo prévio em relação às verdades que veiculam e provocam adesões irrefletidas que pressupõem o apagamento de todo registro ético. Trata-se de ver, portanto, um outro aspecto dessas adesões massivas e involuntárias que diz respeito à dominação ou, em todo caso, a uma forma de dominação. É preciso ver nelas a legitimação de uma realidade histórica e conceitual com efeitos de poder, legitimação de verdades que estão sempre ligadas às instâncias de poder; e legitimação, enfim, que, longe de ser ocasional, está no cerne da nossa tradição ocidental da constituição do sujeito moderno e que, finalmente, encontra nessas adesões apenas um dos seus efeitos sociais mais imediatos. Quero mencionar aqui alguns dos aspectos dessa tradição para que possamos inserir nessa discussão um questionamento postulado por Michel Foucault no qual consiste em saber: “de que maneira e até onde seria possível pensar diferentemente em vez de legitimar o que já se sabe?”2. A pergunta liga-se diretamente às formas de subjetivação, as maneiras pelas quais os indivíduos se tornam sujeitos de uma conduta. Na genealogia do sujeito moderno Foucault distinguirá dois registros em nossa tradição ocidental. O primeiro é relativo à antiguidade clássica e alcança os primeiros séculos do paganismo romano. Nele a constituição do sujeito é marcada pela existência de práticas refletidas e voluntárias destinadas a fundar um estilo de existência que fosse mais próximo possível das proposições da filosofia entendida como sabedoria 172 verve Revolta, ética e subjetividade anarquista prática. Foucault chamou essas formas de subjetivação de “artes de existência”, por que elas diziam respeito a um sujeito auto-constituinte, quer dizer, estavam na ordem do “pensar diferentemente”. O outro registro diz respeito à concepção constituída pelo cristianismo, de uma subjetividade cujo fundamento estaria na renúncia, deslocando o eixo da experiência ética do cuidado de si para o mundo da transcendência como busca da verdade por meio da revelação divina. Um dos efeitos da renúncia cristã será a subjetividade concebida como interioridade e consciência de si, como prática de purificação da alma traduzida pelo desprendimento da individualidade de suas referências terrenas. A noção de verdade será, doravante, permeada pelo dispositivo da culpa e da penitência, e o desdobramento ético e filosófico desse registro subjetivo será não apenas uma modalidade reflexiva da subjetividade com Descartes, no século XVII, como a formulação da categoria de lei moral em Kant no século XVIII, sendo possível afirmar que “... essa concepção original de subjetividade e de experiência ética, construída pelo cristianismo, seria a condição de possibilidade para a constituição da filosofia do sujeito que marcou o Ocidente de Descartes a Hegel”3. Nesse registro o sujeito ocupa a posição de objeto de um domínio de saberes que lhe é exterior e que funda sobre ele uma relação de dominação; por conseguinte, esse registro se inscreve na ordem do “legitimar o que já se sabe”. Esse último registro é o que teve pertinência histórica, tendo as suas técnicas de produção do sujeito se reelaborado e se aprimorado ao longo dos tempos. Essas técnicas, por sua vez, provocaram práticas culturais de classificação, exclusão, disciplinarização e controle que nos deram não apenas a nossa visão de mundo sobre as coisas como também os corpos que 173 6 2004 possuímos; em outras palavras, essas técnicas inscreveram em nosso corpo e em nossa alma as verdades pelas quais zelam; verdades que, por exemplo, instituíram a loucura como experiência negativa privando-a de uma positividade existencial. A importância que possui o estudo desse procedimento é percebida ao se ler que o objetivo dos trabalhos de Foucault foi o de “criar uma história dos diferentes modos pelos quais, em nossa cultura, os seres humanos tornaram-se sujeitos”4. Não é, portanto, o poder, mas o sujeito que constitui o tema geral de suas pesquisas, ainda que a questão do sujeito envolva complexas relações de poder e verdade, o foco de suas preocupações intelectuais e políticas está na constituição do sujeito “naquilo que ele considera a maior ameaça, esta estranha, de certo modo improvável, mistura de ciências e práticas sociais desenvolvidas ao redor da subjetividade”5. Com efeito, dessa estranha mistura resultou historicamente um tipo de poder que se aplicou à vida cotidiana das pessoas, um poder que colocou como problema do governo a correta disposição dos homens visando conduzi-los a um fim conveniente; enfim, um poder que após estabelecer-se sobre o território, adotou como objeto de seu saber um conjunto mais imprevidente, de qualquer forma, mais inopinado e descuidado: os indivíduos. De algum modo o governo passou a cuidar da sua correta disposição, estabelecendo saberes que tiveram em vista categorizá-lo, marcá-lo na sua individualidade, prendê-lo a uma identidade, na qual lhe foi imposta uma lei reconhecível por ele e pelos outros: “É uma forma de poder que faz dos indivíduos sujeitos. Há dois significados para a palavra sujeito: sujeito a alguém pelo controle e dependência, e preso à sua própria identidade por uma consciência ou autoconhecimento. 174 verve Revolta, ética e subjetividade anarquista Ambos sugerem uma forma de poder que subjuga e torna sujeito a”6. Na atualidade, a luta contra as formas de sujeição, contra as formas de submissão da subjetividade, tem se tornado cada vez mais importantes. Se por um lado essas lutas sempre ocuparam um lugar importante ao longo da história, por outro é em nossa atualidade onde elas estão na iminência de desempenhar um papel preponderante. Para isso Guattari chamou atenção. O grande movimento desencadeado pelos estudantes chineses não fôra acompanhado por apenas palavras de ordem de democratização, mas foi também “... todo um estilo de vida, toda uma concepção das relações (a partir das imagens vinculadas pelo Oeste), uma ética coletiva, que ai é posta em questão”. Assim como no Leste Europeu, “... a queda da cortina de ferro não ocorreu pela pressão de insurreições armadas, mas pela cristalização de um imenso desejo coletivo aniquilando o substrato mental do sistema totalitário pós-estalinista”7. Esses acontecimentos, pelas formas que assumiram, por suas estratégias e modos de expressão, autorizam afirmar que a história contemporânea está imersa em lutas por “reivindicações subjetivas”: movimentos antipsiquiátricos, de liberação sexual, ecologistas, autonomistas, feministas, etc, que provocaram uma verdadeira renovação das lutas sociais a partir dos anos 1960. Muitas vezes ambíguas e conservadoras, em todo caso são lutas contra aquilo que liga o indivíduo a si mesmo submetendo-o aos outros, lutas contra as diversas sujeições, contra as formas de subjetivação e submissão que governam a individualidade; potencialmente políticas, essas lutas possuem a originalidade de afirmar o direito de ser diferente e de enfatizar “tudo 175 6 2004 aquilo que torna os indivíduos verdadeiramente individuais”. Elas são a recusa daquelas abstrações que ignoram quem somos individualmente, assim como daquelas investigações científicas e administrativas que pretendem determinar o que somos. Em suma, são lutas anárquicas e minoritárias que têm como desdobramento a emergência de saberes sujeitados; que provocam a redescoberta de críticas descontínuas e locais, de saberes não-conceituais, e por isso historicamente sujeitados e hierarquicamente menores, mas conteúdos históricos que foram sepultados e que vêm à tona naquilo que Foucault chamou de “insurreição dos saberes sujeitados”8. O reaparecimento desses saberes provoca, por sua vez, um tipo de crítica que faz suspender os efeitos das teorias totalizantes e globais, permitindo recolocar essa crítica numa perspectiva singular e local: na perspectiva do delinqüente, do doente, etc. Essa crítica reaviva aquilo que estava em jogo nesses saberes, reaviva o saber histórico de suas lutas, a memória dos combates e combatentes, o “saber das pessoas”; nestas batalhas subjetivas “Trata-se, na verdade, de fazer que intervenham saberes locais, descontínuos, desqualificados, não legitimados, contra a instância teórica unitária que pretenderia filtrá-los, hierarquizálos, ordená-los em nome de um conhecimento verdadeiro, em nome dos direitos de uma ciência que seria possuída por alguns”9. Frente a uma atualidade que postula o apagamento ético em constantes adesões irrefletidas, o importante não é descobrir o que somos, mas recusar o que somos, provocar a reviravolta desses saberes que pretendem, a partir do exterior, impor-nos sua verdade e sua lei. É preciso “imaginar e construir o que poderíamos ser para nos livrarmos deste “duplo constrangimento” político, 176 verve Revolta, ética e subjetividade anarquista que é a simultânea individualização e totalização própria às estruturas do poder moderno. A conclusão seria que o problema político, ético, social e filosófico de nossos dias não consiste em tentar liberar o indivíduo do Estado nem das instituições do Estado, porém nos liberarmos tanto do Estado quanto do tipo de individualização que a ele se liga. Temos que promover novas formas de subjetividade através da recusa deste tipo de individualidade que nos foi imposta há vários séculos”10. Novas formas de subjetividade que provoquem rupturas contra as identidades secularizadas do nosso presente: eis um tipo de pesquisa que provoca incômodos. Com efeito, a genealogia do sujeito moderno empreendida por Foucault fere de morte a leitura transcendente da verdade contida na tradição do pensamento ocidental; a filosofia que se restringia ao trabalho da exegese dos diversos sistemas, passa a ter uma incidência sobre a atualidade, e a atividade filosófica pode atuar como “trabalho crítico do pensamento sobre o próprio pensamento”11. Birman12 faz lembrar que, quando Foucault formula a existência de tecnologias de si, enuncia também que a subjetividade não constitui um dado ou origem, mas uma produção e um devir. A subjetividade sendo múltipla e plural e não possuindo qualquer fixidez, encontra nos modos de subjetivação uma dimensão onde a produção de sujeitos é da ordem do devir-produção. A análise assim formulada revela, de outro lado, a inconsistência ontológica do sujeito, já que as subjetividades antes de possuírem uma substância que as torna invariante e universal, são forjadas a partir de registros éticos e estéticos com desdobramentos políticos e sociais. 177 6 2004 Sob essa perspectiva veremos no anarquismo a produção de uma ampla problemática a respeito da autoformação do indivíduo e sobre o governo que o indivíduo deve exercer sobre si mesmo; problemática que envolve relações entre revolta e ética anarquista, provoca práticas culturais e constitui formas de subjetividades cujo valor está no afastamento em relação às instâncias de poder. O desenrolar da problemática da constituição de uma ética e uma estética de si no anarquismo devemos buscar na própria atitude que o anarquista mantém consigo mesmo e com os outros. Uma das primeiras conseqüências que se pode tirar dessa atitude anarquista é que nela a persuasão é insuficiente. Não basta estar convencido do ideal, é preciso querê-lo e desejá-lo a ponto de transformar a própria existência pessoal através de critérios de estilo, através de uma estilização do pensamento. Opera-se, nesse sentido, uma efetuação da lógica e do pensamento anarquista em vontade: a morte daquilo que é da ordem do ideal e que diz respeito ao dever; e o nascimento do que é da ordem do vital e que diz respeito ao querer. Essa efetuação do pensamento em vontade possui como operador ético a revolta. Com efeito, é na revolta que se dá um estado de tensão que exclui o indivíduo de toda autoridade que lhe é exterior, provocando a ruptura necessária entre a moral e suas instituições, e deixando livre curso para a emergência de novas experiências subjetivas. A revolta pressupõe o afastamento dos “objetivos dominantes” e dos “padrões vigentes” que passam a ser considerados arbitrários, fazendo-os perder com isso seu poder de sujeição e sua legitimidade. É desta forma que a revolta evolve uma “transvaloração”: na sua sociologia do comportamento desviante, Merton colocou a revolta 178 verve Revolta, ética e subjetividade anarquista num plano distinto dos outros tipos de reações por tratar-se do rompimento com o sistema normativo vigente13. Assim também, como na definição de Camus, o homem revoltado é, primeiramente, aquele que diz “não!”. Onde a revolta, nascida também do espetáculo da des-razão diante de uma condição injusta e incompreensível, se efetuará no indivíduo sujeitado de uma maneira solitária como o grito: “A revolta clama, ela exige, ela quer que o escândalo termine e que se fixe finalmente aquilo que até então se escrevia sem trégua sobre o mar. Sua preocupação é transformar”14. Porém, sendo uma característica da revolta a recusa do intolerável, ela não se abstém, ela não renuncia, trazendo consigo um certo valor em cujo movimento há sempre uma adesão integral do revoltado a uma certa parte dele mesmo, fazendo-o contrapor o que é preferível ao que não é. Um certo ímpeto que retira o indivíduo de um estado de impotência para um estado de potência e que se inicia sob a forma de uma resistência irredutível, para tornar-se valor pessoal preferível a tudo, e que acaba por fazer o revoltado colocar “... esta parte de si próprio, que ele queria fazer respeitar, acima do resto”15. Neste sentido a revolta não pode sustentar nenhum ideal abstrato, já que ela exige que seja levado em conta aquilo que no revoltado não pode ficar limitado ao plano das idéias, por tratar-se daquela “parte ardorosa que não serve para nada a não ser para existir”. Esta dimensão imanente da revolta situa o indivíduo fora do sagrado. Mais do que isso; Camus vai distinguir dois universos possíveis e ao mesmo tempo opostos: o do sagrado e o da revolta; e perguntará: “Longe do sagrado e de seus valores absolutos, pode-se encontrar uma regra de conduta?” A questão assume 179 6 2004 grandes proporções, pois a revolta vai provocar uma reviravolta no cogito cartesiano: para existir é preciso revoltar-se e colocar-se fora do sagrado e da transcendência que a revolta repele pelo sentimento do intolerável causado pela experiência do sofrimento e do escândalo. Podemos afirmar, em primeiríssima aproximação, que a revolta é um ato de conhecer na experiência do insuportável, como na metáfora nietzschiana da borboleta: “Compreender tudo isso pode causar dores profundas, mas depois há um consolo: elas são as dores do parto. A borboleta quer romper seu casulo, ela o golpeia, ela o despedaça: então é cegada e confundida pela luz desconhecida, pelo reino da liberdade. Nos homens que são capazes dessa tristeza — poucos o serão! — será feita a primeira experiência para saber se a humanidade pode se transformar, de moral em sábia”16. É assim que a revolta se constitui em uma porta aberta para experiências subjetivas dessujeitadas. Essa “estranha ascese da revolta” devemos buscar nas relações com a ética anarquista. Há sobre isso uma primeira reflexão na obra de Augustín Hamon, que coloca entre os caracteres constitutivos da personalidade anarquista, o espírito da revolta: “O anarquista socialista é um indivíduo revoltado”17. Na problemática da constituição de uma ética do sujeito anarquista, a revolta cumpre a função de liberar o indivíduo dele mesmo, de desligá-lo de uma identidade subjetiva que o mantinha sob um estado de dominação e que, doravante, tratar-se-á de negá-la em toda sua dimensão existencial. Por essa razão, a revolta não deve ser confundida com insurreição ou revolução,18 que trazem em si uma conotação política ou social: a revolta é “uma transformação nas circunstâncias que 180 verve Revolta, ética e subjetividade anarquista entretanto não são provocadas por ela mas pela própria insatisfação dos homens. A [revolta] não é um levante armado mas um levante de indivíduos” que, ao contrário da Revolução, “nos leva a não aceitar mais a idéia de que alguém pode determinar por nós mesmos [as condições de vida]”19. Dessa forma, a revolta acarreta a derrubada da ordem vigente sem, no entanto, ter isso em vista; ela não conduz a um “novo regime” social ou político como faz a revolução, daí a crítica de Stirner: “A revolução não se dirige contra a ordem em geral, mas contra a ordem estabelecida, contra um estado de coisas determinado. Ela derrubou certo Governo, não o Governo [...]. Na revolução não foi o indivíduo quem lutou e cuja ação teve valor histórico, e sim um povo: a nação soberana fez tudo”20. Na revolta a ordem é derrubada pelo seu abandono, elevando-se o indivíduo revoltado acima de seus princípios e fazendo-o desapegarse de tudo o que o tornava escravo a esse princípio. No anarquismo, essa reflexão vai encontrar um lugar especial nos escritos de Proudhon e Malatesta, o primeiro pensará a imanência anarquista que encontra grande repercussão na concepção malatestiana da anarquia. Com efeito, Malatesta não apenas irá explicar o nascimento da anarquia pelo que chamou de “rebelião moral”, negando o vínculo de seu surgimento a qualquer sistema filosófico, como também vai declarar a auto-suficiência do anarquismo do ponto de vista moral, desvinculando-o de quaisquer aportes científicos ou ideológicos; essa perspectiva autárquica permitirá a Malatesta conceber a “anarquia como uma forma de convivência social” e o “anarquismo como o método para realizar a anarquia mediante a liberdade, sem governo, ou seja, sem órgãos autoritários”21. 181 6 2004 Nessa concepção da anarquia como arte de viver é que se dão mais intensamente as relações entre revolta e ética. Ao liberar-se, pela revolta, do sistema conceitual que o prende a uma identidade, o indivíduo é levado a chamar para si o governo e a responsabilidade de seus atos. Isso tem por efeito uma faculdade ética como conteúdo moral, que Proudhon denominou moral imanente; assim, em oposição à tradição ocidental que remonta a Platão e que derroga o conteúdo moral na transcendência, no anarquismo ele é imanente ao indivíduo. A formulação do plano de imanência proudhoniano está na base de sua crítica ao cristianismo que se estende à filosofia e à moral, à essa “multidão de reformadores que, mesmo separados da Igreja e do próprio teísmo, permanecem fiéis aos princípios de subordinação externa, colocando no lugar de Deus a Sociedade, a Humanidade, ou qualquer outra Soberania, mais ou menos visível e respeitável”22. Para Proudhon, a religião fornece uma razão, uma autoridade e uma base à Justiça, sem a qual a sociedade não subsistiria. Ela habita todos os conceitos fundamentais, as primeiras hipóteses da razão, ainda formuladas em lendas poéticas e narrações maravilhosas que, sustentada pela fraqueza de espírito dos filósofos, instalou-se na consciência dos homens: “Sabe-se por qual salto de peixe (saut de carpe) o incomparável Kant, após ter derrubado na sua Crítica da razão pura todas as pretensas demonstrações da existência de Deus, a reencontrou na razão prática. Descartes, antes dele, chegara ao mesmo resultado; e é maravilhoso ver os últimos discípulos desses metafísicos acrobatas rejeitarem a autoridade da Igreja, a revelação de Jesus, de Moisés, dos patriarcas, de Zoroastro, dos Brahms, dos Druidas, todos os sistemas religiosos, e afirmarem em seguida, como fato de 182 verve Revolta, ética e subjetividade anarquista psicologia positiva, a revelação imediata de Deus nos espíritos. Segundo esses senhores, Deus se manifesta diretamente a nós pela consciência; isto que se chama senso moral é a impressão mesma da Divindade. Somente por ela eu reconheço a obrigação de obedecer à Justiça, eu sou, segundo eles, ‘crente apesar dos meus dentes’, adorador do Ser-Supremo, e partidário da religião natural. O Dever! É suficiente que eu pronuncie esta palavra para atestar, contra meu desejo, que eu sou duplo: Eu, incontinente, ligado ao dever; e o Outro, quer dizer Deus, que formou essa relação, que se estabeleceu no meu espírito, que possui todo meu interior, que, no momento em que me imagino acima da lei moral fazendo ato de autonomia, me conduz, sem que eu me aperceba, para sua imperiosa sugestão”23. É dessa forma que sem a noção de Deus ou de providência não haveria lugar nem para a lei nem para obrigação moral propriamente dita, e é por meio dessa noção, por analogia a ela, que chamamos leis a vontade de homens que possuem autoridade de nos recompensar e de nos punir. Por isso, para Proudhon, a transcendência não lhe aparece apenas como um conjunto de teorias, mas como um modo de ser e atuar, uma prática social que justifica uma política, provoca uma ação e incide diretamente na orientação de uma sociedade. A transcendência consolida a subordinação social ao lhe dar um princípio superior a ela na forma do Estado, e assim como a igreja sustentava que a verdade e a justiça emanavam de Deus, os legisladores sustentam que emanam do Estado: o crente ontem subordinado ao sacerdote é hoje o cidadão subordinado aos legisladores. Ao afirmar a transcendência do sagrado a religião instauraria uma relação de autoridade e obediência entre deus e homem, entre saber e não-saber; é também o princípio que fundamenta a política e do qual 183 6 2004 resulta a separação entre governo e governados; com isso a religião não apenas postula a necessidade do governo, como também a sujeição do indivíduo por intermédio da disciplina. Ao contrário, Proudhon caracteriza a imanência como a faculdade de reconhecer a lei e de fazê-la sua, a lei serve à imanência como a instrução do mestre serve ao aluno; o conhecimento do justo e do injusto resulta dessa faculdade. Portanto, “cada um se encontra juiz, em última análise, do bem e do mal, e se constitui em autoridade frente a ele mesmo e dos outros. Se julgo por mim mesmo que tal coisa é justa, é em vão que o príncipe e o padre me afirmarão a justiça e me ordenarão segui-la: ela segue injusta e imoral, e o poder que pretende me obrigar é tirânico”24. Na imanência, a justiça é definida como a faculdade de sentir e de afirmar nossa dignidade, e por conseqüência de querê-la e defendê-la, tanto na pessoa alheia como em nossa própria pessoa. Duas hipóteses, portanto, que sob a ciência da moral se partilha o mundo: da transcendência ou Revelação que porta a subordinação do indivíduo ao governo; e da imanência ou Revolução que porta o indivíduo ao governo de si por si mesmo. No plano moral a imanência anarquista resulta em conteúdo ético expresso na atitude que tem por efeito a coerência entre pensamento e vida. Trata-se, portanto, de um tipo de atitude cujo pensamento postula e acompanha uma verificação existencial, na qual a formação de um saber parte de um imediato sentimento da vida: com efeito, a anarquia apenas se realiza na sua dimensão existencial, em que os princípios adquirem valores que são atestados no comportamento, do 184 verve Revolta, ética e subjetividade anarquista contrário o anarquismo se anularia num verbalismo, tornando-se prisioneiro da palavra. Essa é uma forma de subjetividade na qual o indivíduo é levado a intensificar as relações que ele tem consigo mesmo e que vai postular o “exemplo como sendo a melhor das propagandas”, porque é no exemplo que está a “vida vivida” do anarquista como sendo a mais eficaz expressão em detrimento do mais completo sistema ou programa de idéias. É a “atitude anarquista” que transpõe o que é meramente eidético, aquilo que diz respeito às essências, e inaugura sua existência, seu uso e disposição ética. Aqui situamos a vida e a obra de Errico Malatesta, que delineou em seus escritos e na sua trajetória existencial o que ficou conhecido como voluntarismo anárquico: a dimensão ética na qual é valorizada a atitude anarquista, o comportamento antiautoritário e de solidariedade. Para Malatesta, antes de mais nada, os anarquistas devem estar convencidos da prioridade absoluta do valor desempenhado pela vontade, em seguida, que este valor é condicionado por eventos exteriores nem sempre controláveis; dessa forma, saberiam que meios autoritários realizam processos autoritários. Prenunciase o que se tornará o núcleo de todo o seu pensamento, esboçado, inicialmente, no Agitazione em plena crise de fim de século. A partir de 1897 Malatesta definirá a validade da idéia anárquica como derivação da universalidade dos seus valores propositivos, isto é, como um conjunto de motivações que correspondem a uma aspiração; derivando disso que o anarquismo não é fundado sobre um ser, mas sobre um querer ser, para ele: “O anarquismo, em suma, é antes de tudo uma ética e como tal se realiza sobre a base de uma vontade positi- 185 6 2004 va de ação voltada para a transformação da realidade. Daí a necessidade de colocar em primeiro plano a questão moral como critério discriminador para definir a idéia anárquica como idéia ética por excelência; uma definição, ao mesmo tempo, que quer ser também uma distinção a respeito de outras possíveis identificações do anarquismo”25. Anarquia se torna ética que se expressa no comportamento anarquista. Uma ética que julga imprescindível a negação de todo fanatismo e sectarismo causadores de exageros e alimentadores da tendência, sempre presente nos homens, de tomar os meios pelos fins; tendência que, no calor da batalha, faz com que os indivíduos percam o controle sobre si mesmo. Controlar a si mesmo, sustentar o comportamento anárquico frente a toda vicissitude é, portanto, manter-se no caminho que leva a anarquia. Isso fica claro quando Berti sublinha a crítica malatestiana feita, simultaneamente, aos terroristas e tolstoianos, precisando que ambos, partindo de princípios antagônicos, chegam a conseqüências práticas iguais: “Uns não hesitariam em destruir meia humanidade para fazer triunfar a idéia; outros deixariam que toda humanidade padecesse sob o peso dos maiores sofrimentos para não violarem um princípio”26. Com essa reflexão Malatesta abandonaria definitivamente todo determinismo histórico e naturalístico, negando não apenas a herança do catastrofismo marxista como também as concepções de fundo positivistas, incluindo aquela kropotkiniana, que terminavam por colocar em segundo plano o fator ativo da vontade enquanto elemento resoluto para realização positiva e criativa do socialismo; o problema social se lhe apresentava agora como “problema de vontades contrapostas”. Um querer revolucionário, uma vontade que possui como motor a revolta. Em 1900 Luigi Fabbri escreve no 186 verve Revolta, ética e subjetividade anarquista L’Agitazione um artigo reprovando e julgando politicamente contraproducente o atentado que matou o presidente dos EUA, William Mc Kinley, dizendo que a ele sucedeu Roosevelt, permanecendo tudo como antes, exceto para os anarquistas, sobre os quais desabou a represália. Escreve Malatesta: “Pode ser que L’Agitazione tenha razão. Mas não se trata de uma questão de tática. Trata-se agora de uma questão maior: do espírito revolucionário, daquele sentimento quase instintivo de ódio contra a opressão, sem o qual nada significa a letra morta dos programas, por mais libertárias que sejam as afirmações propostas; daquele espírito de combatividade, sem o qual também os anarquistas se domesticam. É estultice, para salvar a vida, destruir as razões do viver. Para que servem as organizações revolucionárias, se deixase morrer o espírito revolucionário?”27. Por fim, é possível localizar essa problemática nas práticas culturais ocorridas nos anos pós-1930 em São Paulo, quando o refluxo do movimento operário provocado pela tríplice conjugação repressão-trabalhismo-comunismo, fariam com que as energias libertárias fossem direcionadas para outros focos de militância que não o sindicato propriamente dito. Sem dúvida, esses focos sempre existiram como invenções culturais libertárias tendo o sindicato como grande baluarte de suas lutas, o que ocorrerá neste período será a retomada destas práticas mais ou menos à margem do sindicato e, mais particularmente, a partir de uma problematização do sindicalismo revolucionário como forma de resistência anarquista. Dentro da problematização do sindicalismo durante a década de 1930, os anarquistas atribuíram o processo de “degeneração” dos sindicatos em órgãos de colaboração entre as classes a dois motivos fundamentais: de um lado, a investida comunista da “frente única” 187 6 2004 inspirada no bolchevismo russo, esforçava-se pela organização centralista e disciplinada dos sindicados subordinados à sua seção central (a CGT); de outro, a implementação das regulamentações trabalhistas nos moldes do governo fascista, com a criação do MTIC e da Lei de Sindicalização, vão consolidar as investidas governamentais ocorridas após as jornadas de julho de 1917, encontrando no trabalhismo e no chamado sindicalismo amarelo contrapontos aos princípios de ação direta e de autonomia do sindicalismo revolucionário. A partir da formação do PCB, em 1922, os anarquistas tiveram que enfrentar as forças capitalistas e católicas cujo principal concorrente eram os comunistas, que pregavam o caminho único dirigido pelo partido, com delegação de poderes e viam na colaboração de classes circunstâncias úteis de luta, assim como na legislação trabalhista um instrumento válido para o conflito de classes. Juntando-se a isso, o golpe de 1930 será acompanhado de grandes mudanças implementadas por Getúlio Vargas; com ele se dá a criação do Ministério do Trabalho em 26 de Novembro e em 19 de março de 1931 é decretada a Lei de Sindicalização, instituindo o sindicato único e tornando o desejo comunista do bloco sindical uma realidade. Apesar da sua persistência em manter os sindicatos livres de toda e qualquer influência ideológica, os anarquistas assistem a uma crescente adesão à via oficial que era, sobretudo, consentida e apoiada pela concorrência comunista, trotskista e católica. Esse estado de coisas vai provocar uma reação dentro do próprio movimento que será levado a redimensionar sua luta devido ao refluxo do movimento operário. 188 verve Revolta, ética e subjetividade anarquista Isso é claro quando Florentino de Carvalho lança o seguinte questionamento divulgado pela A Plebe, afirmando que havia chegado, “(...) cada vez mais, a conclusão de que o sindicato operário é uma agremiação insipiente, de funções muito restritas, e a luta, e bem assim, as aspirações sindicais estão longe de preencher as necessidades requeridas pelas reivindicações capitais e decisivas do proletariado. E muito mais longe ficam como forças propulsoras, se marcham a esmo, movidas pelos insignificantes valores específicos”28. As palavras de Florentino contrastam com as “idades do ouro” do sindicalismo: não obstante seu engajamento no meio sindical, o “balanço” de seu entendimento revela uma mudança que estaria operando nos meios e táticas do movimento anarquista. Inicia-se então, pelas páginas de A Plebe, uma problematização do sindicalismo revolucionário como forma de resistência anarquista. Em 29/04/1933 A Plebe anuncia a realização de mais uma reunião “preparatória para a formação de grupos de Ação e Cultura Proletária, que, à margem dos sindicatos organizados, atuarão na obra de propaganda, procurando influir com a palavra, com a pena e com a ação revolucionária nos movimentos de organização proletária”. Esses grupos têm como finalidade, preparar militantes, educar e esclarecer o proletariado na sua finalidade revolucionária, fazendo, por meio das pequenas agrupações, o que o sindicato, pela sua base de lutas econômicas não pode fazer, isto é: “o preparo dos trabalhadores para a conquista da riqueza social, a sua habilitação técnica para a posse das fábricas, dos campos e das oficinas, o seu preparo revolucionário para a obra de expropriação da burguesia. O seu fim não é absorver a luta do sindicato, mas completar a sua missão revolucionária. [...] Na última reunião ficou resolvido que os grupos serão 189 6 2004 constituídos com o máximo de 15 pessoas, constituindo-se depois a Federação de Grupos, que terá representação junto à Federação Operária de São Paulo”29. Em outro artigo A Plebe dizia que era preciso dar “algumas palavras de incentivo com o fim de procurar orientar aqueles que, mesmo estando filiados em qualquer sindicato queiram fazer obra de propaganda de modo a animá-los para a luta indicando-lhes o caminho a seguir. [...] Os grupos de afinidade devem ser agrupações de indivíduos afins mais ou menos conscientes de penetrar na alma da dor universal”30. Associação de indivíduos afins que, à margem dos sindicatos, atuarão como seu complemento no objetivo de “preparar militantes, esclarecer e educar o proletariado na sua finalidade revolucionária”: essa será uma constante preocupação dessa época. O apelo já não é aos “operários em geral” para que se associem por categoria profissional, mas ao indivíduo consciente e afim para que, por meio de suas pequenas agrupações, possam fazer aquilo que os sindicatos estão impedidos de fazerem. Não se trata apenas de “conclamar as massas”. Certamente se irá apelar a elas em circunstâncias determinadas, porém é preciso perceber que essa também foi uma época de adesões massivas e involuntárias31. E tais fatos questionavam as possibilidades efetivamente revolucionárias do sindicato como órgão transformador da sociedade e, frente ao desânimo da luta sindical, uma recorrida forma de resistência anarquista foram os chamados “grupos por afinidade”. Por ora, o termo que os denomina não possui importância, mas o fato desses grupos serem fundados dentro de interesses peculiares e do relacionamento entre seus associados ser muito intenso; esses grupos tinham em vista buscar que cada um descubra o ambi- 190 verve Revolta, ética e subjetividade anarquista ente que lhe convenha, que cada um possa trabalhar segundo suas idéias e seu temperamento, e encontre na associação, não um limite a sua liberdade, se não o modo de fazer mais eficaz sua atuação, mais verdadeira sua liberdade. Foram essas associações que permitiram a intensificação das relações que o indivíduo é levado a manter consigo mesmo e com os outros, exercendo-as num movimento recíproco. O grupo foi o meio pelo qual essa “cultura de si” tornou-se prática social. Tudo indica que aquelas funções de militância pública estejam longe de esgotarem as reais possibilidades desses grupos. Que eles tinham um papel importante dentro do próprio âmbito de instâncias particulares e estratégicas de formação individuais, é o que se percebe quando Malatesta lamenta “que haja, ainda entre nós, quem não pense com a própria cabeça e espere a opinião de fulano ou beltrano, quando a lógica das idéias professadas deveria bastar para decidi-lo; e reconhecemos o perigo sempre presente dos maus pastores. [...] quanto mais há companheiros desorganizados e isolados, mais prepondera a influência do orador e do periodista e, não achando resistência nem observação eficaz na coletividade, pode degenerar em autoridade efetiva e nefasta. No fim de contas, a base de tudo é sempre a consciência do indivíduo, de cada indivíduo; e esta consciência tanto mais se desenvolve e se eleva quanto mais são os contatos, as discussões, as coisas feitas em comum”32. Em relação a isso, é curioso ver na trajetória do militante anarquista Oresti Ristori um desenvolvimento pessoal que, no curto espaço de oito anos, o retira de uma qualificação precedente de “discreta inteligência”, “cultura muito limitada” e alfabetização de “apenas ler e escrever”, para uma outra qualificação de “engenho não comum, vivo, e, em especial modo, assimilador”, que se apreendia 191 6 2004 em seus artigos escritos em italiano, espanhol e francês33. Não é possível pensar uma tal transformação sem práticas e técnicas de si, sem o desenvolvimento de uma cultura de si. E, mais uma vez, é preciso insistir que essas associações ganharam uma maior realidade a partir da problematização do sindicalismo revolucionário, apontando que: “O sindicato, (...) agindo nos limites do sistema de salários e, ao mesmo tempo, colaborando com os capitalistas na vida e desenvolvimento das respectivas indústrias, não é suscetível de transformação no sentido da subversão do regime econômico (...) [e que a obra das agrupações anarquistas deveria ser feita] de forma que, em lugar de reproduzir mentalidades de pobres, crie homens de pensamento esclarecido com princípios definidos e convicções profundas, senhores da filosofia e da ética anarquista”34. E que, ainda, apenas por meio dessas associações é que se garantiria a efetuação daqueles trabalhos de exposição tendo “em vista formar consciências, que se multipliquem, e não formar rebanhos que obedeçam ao mando de qualquer palavra de ordem”35. É preciso apreender nessas associações que elas funcionaram como o locus privilegiado para aqueles exercícios cujo objetivo é reativar os saberes do anarquismo, fazê-los presente, refletir sobre eles, assimilá-los, enfim, estar preparado para enfrentar a realidade. Essas associações possibilitaram e incentivaram modos de subjetivação dos saberes anarquistas; elas reuniriam práticas discursivas, de leituras, de escrita, e tudo o mais que se fazia sob a insígnia do autodidatismo, e neste sentido cumpriram uma função assinalada por Foucault de etopoiética: elas foram os operadores da transformação do discurso anarquista em ethos, reunindo e captando aquilo que se pôde ouvir, ler ou avis- 192 verve Revolta, ética e subjetividade anarquista tar, com a finalidade de constituir a si mesmo como sujeito portador de saberes e condutas singulares. Elas também constituíram uma resposta às formas de sujeição do indivíduo em determinada época, uma estratégia que tentou neutralizar os efeitos de um poder que pretendeu manter o indivíduo preso a uma individualidade sujeitada. Seu aparecimento está conectado a um momento histórico em que o anarquismo no Brasil, suas preocupações e táticas, tornou-se fundamentalmente ético, contrariamente ao tipo de luta sindicalista precedente, que se ligava a uma base de massas por questões essencialmente econômicas. Notas M. Godelier. O enigma do Dom. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001, p. 12. 1 2 M. Foucault. História da sexualidade: o uso dos prazeres. Vol. II. Rio de Janeiro, Graal, 1994, p. 13, grifos meus. J. Birman. Entre cuidado e saber de si – sobre Foucault e a psicanálise. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2000, p. 85. 3 M.Foucault. “O Sujeito e o Poder” in H. L. Dreyfus & P. Rabinow. Michel Foucault, uma trajetória filosófica - Para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1995, p. 231. 4 P. Rabinow. Antropologia da Razão. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1999, p. 31. 5 M. Foucault. “O Sujeito e o Poder”, op. cit., p. 235. 6 F. Guattari. Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo, Ed. 34, 1992, p. 12. 7 F. Ewald e A. Fontana in M. Foucault. Em defesa da sociedade. São Paulo, Martins Fontes, 1999, p. 11. 8 9 Idem, p. 13. 10 M. Foucault, “O Sujeito e o Poder”, op. cit., p. 239. 11 Idem., op. cit., 1994, p. 13. 193 6 2004 12 J. Birman, op. cit., pp. 80-82. R. K. Merton. Sociologia – teoria e estrutura. São Paulo, Ed. Mestre Jou, 1970, p. 267. 13 14 A. Camus. O homem revoltado. Rio de Janeiro, Record, 1999, p. 21. 15 Idem, p. 27. 16 F. Nietzsche. Humano, demasiado humano – um livro para espíritos livres. São Paulo, Cia. Das Letras, 2001, p. 82. A. Hamon. Psicolojia do anarquista-socialista. Lisboa, Guimarães & Cia. Editores, 1915, pp. 57-58. 17 18 Na transcrição feita por G. Woodcock, Os grandes escritos anarquistas. Porto Alegre, L&PM Editores, 1998, pp. 156-157, “Revolução e Insurreição”, Max Stirner coloca em oposição essas duas noções. Entretanto, Thiago S. Santos, “Ode à petulância” in Verve, 2004, nº5, pp. 301-305, chamou atenção dizendo que “Barrué se mostra um atento leitor ao dar a devida importância aos sentidos etimológicos. Atenção presente quando Stirner trata da questão da revolução-insurreição. Segundo Barrué, ele empresta a palavra francesa révolution, de origem latina. À “palavra Revolução Stirner opõe Emporung, cujo sentido habitual é revolta, rebelião”. Desse modo, enquanto a revolução vem colocar uma nova ordem nas coisas, seja por meio de um novo Estado ou da manutenção da idéia de sociedade, a insurreição pretende que o indivíduo se eleve, e não seja dominado por qualquer ordem”. 19 M. Stirner. “Revolução e Insurreição” in G. Woodcock, op. cit. M. Stirner. El único y su propriedad. Valência, F. Sempere y Cia. Editores, s/ d, pp. 152-153. 20 E. Malatesta. “Pensiero e volontà”, 01/09/1925 in V. Richards. Malatesta, vida e ideas. Barcelona, Tusquets Editor, 1977, p. 24. 21 P.-J. Proudhon. De la justice dans la révolution et dans l’Église: études de philosophie pratique. Tome I. Paris, Fayard, 1988, p. 169. 22 23 Idem, pp. 176-177. 24 Ibidem, p. 181. G. Berti. Errico Malatesta e il movimento anarchico italiano e internazionale (1872-1932). Milão, Franco Angeli, 2003, p. 235. 25 26 E. Malatesta. “Errori e rimedi” in G. Berti, op. cit., p. 237. Idem, “Arrestiamoci sulla china: a proposito dell’attentato di Buffalo” in G. Berti, op. cit., p. 330, grifos nossos. 27 28 F. Carvalho. “Carta aberta”, A Plebe, nº 11, 28/01/1933, grifos meus. 194 verve Revolta, ética e subjetividade anarquista 29 “Núcleos de ação e cultura libertária”, A Plebe, nº 22, 29/04/1933. 30 “Pela formação de agrupações libertárias”, A Plebe, nº 23, 06/05/1933. “A atitude dos anarquistas frente à Revolução de 30, de modo semelhante ao que ocorrera diante da rebelião tenentista em 1924 e também da Revolução Constitucionalista de 1932, apresentava-se inicialmente como uma reação de indiferença. Devido ao caráter político-partidário desses acontecimentos, os anarquistas, que se firmavam como apolíticos, viam simples troca de governantes que não afetaria a condição operária”, R. de Azevedo. A resistência anarquista: uma questão de identidade (1927-1937). São Paulo, Arquivo do Estado/Imprensa Oficial, 2002, p. 58. 31 E. Malatesta apud L. Fabbri. Malatesta. Buenos Aires, Americalee, [194-], p. 321. 32 Cf. C. Romani. Oreste Ristori – uma aventura anarquista. São Paulo, Annablume/Fapesp, 2002. 33 “Do comitê de relações dos grupos anarquistas”, A Plebe, nº 51, 23/12/ 1933. 34 “Como encarar a obra de organização dos grupos”, A Plebe, nº 49, 09/11/ 1933. 35 195 6 2004 RESUMO Aborda a constituição da subjetividade anarquista por meio da noção de estética da existência de Michel Foucault e da conexão revolta-ética, e a repercussão no anarquismo brasileiro. Palavras-chave: estética da existência, revolta, anarquismo no Brasil. ABSTRACT The author addresses the development of the anarchist subjectivity through the Michel Foucault’s concept of aesthetic of existence and the connection revolt-ethics, and the repercussion in Brazilian anarchism. Keywords: aesthetic of existence, revolt, anarchism in Brazil. 196 verve O corpo obsoleto e as tiranias do upgrade o corpo obsoleto e as tiranias do upgrade paula sibilia* Começando pela biotecnologia e avançando velozmente rumo à nanotecnologia, tratamos a matéria como informação. Essa redução ao nível molecular irá nos permitir digitar as moléculas no computador para criarmos o produto de consumo desejado. Este irá se apresentar, emulando o funcionamento do mundo biológico. R.U. Sirius A forma viva leva a sua atrevida existência na matéria, paradoxal, lábil, insegura, rodeada de perigos, finita, profundamente irmanada com a morte. Hans Jonas * Mestre em Comunicação, Imagem e Informação (UFF), e doutoranda em Comunicação e Cultura (ECO-UFRJ) e em Saúde Coletiva (IMS-UERJ). É autora do livro O homem pós-orgânico: corpo, subjetividade e tecnologias digitais (Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002). verve, 6: 199-226, 2004 199 6 2004 O ideário da tecnociência contemporânea — com a teleinformática e as biotecnologias balizando a rota — está se expandindo pelo tecido social, cada vez com mais veemência, atingindo as áreas mais diversas e turvando muitas definições que outrora pareciam claras. Durante milênios vigorou, na tradição ocidental, uma distinção radical entre physis e techne (em termos gregos) ou natura e ars (em termos latinos). Natural e artificial. De um lado, o ser que é princípio do seu próprio movimento; de outro lado, as operações humanas para utilizar, imitar e ampliar o escopo do natural. Dois mundos nitidamente diferenciados. Hoje, porém, a fronteira entre ambos está se dissipando, e os discursos das mídias, das artes e das ciências estão engendrando um novo personagem: o homem pós-orgânico. Do que se trata? Para começar a abordagem do assunto, o melhor talvez seja recorrer a alguns dos muitos fenômenos inquietantes que assinalam essa tendência e estão inundando o nosso cotidiano, permeando o imaginário contemporâneo e desestabilizando as velhas cosmovisões. Um exemplo é o caso da jovem eleita Miss Brasil em 2001, cujo título foi questionado quando veio a público que seu corpo fora submetido a uma longa série de cirurgias plásticas, revelando-se como uma construção da tecnociência — uma obra de arte talhada com bisturis e modelada em silicone — em vez de um autêntico expoente da “beleza natural feminina”. Estranheza semelhante é suscitada pelos projetos de clonagem animal e humana e pelas experiências transgênicas, que dão à luz a tomates com genes de salmão, milho com genes de vagalume e porcos com genes de galinha. E, também, pelas tendências virtualizantes da teleinformática: pessoas que se relacionam por meio da Internet, por exemplo, prescindindo do encontro físico dos corpos para criarem laços afetivos. Cabe refletir, também, so- 200 verve O corpo obsoleto e as tiranias do upgrade bre os chamados “produtos orgânicos”, que ocupam um espaço específico (e reduzido) nos supermercados, com uma aura sofisticada que justifica seu preço maior, insinuando de alguma maneira que todos os demais alimentos teriam algo de não(pós?)-orgânico. O que é essa organicidade, essa “natureza” originária da qual todos os casos acima mencionados estariam se distanciando? Em que consiste essa característica que parecia definir a vida e o propriamente humano, mas agora começa a perfilar-se como ultrapassada? Metáforas cosmológicas: impõe-se um upgrade Para responder às perguntas do parágrafo anterior, é necessário mergulhar brevemente no século XVII, a fim de resgatar um gesto fundamental na história das idéias que esculpiram a tradição ocidental. Naquela época longínqua, novas cosmologias brotaram da física e da astronomia, sacudindo a imagem do mundo vigente até o momento. Em seguida, tais idéias foram apropriadas pelos filósofos para re-explicar o homem, a vida e o universo em termos mecânicos. Desse processo resultou a fértil metáfora do homem-máquina, que procurava decifrar o ser humano com o instrumental da ciência da época, isto é: dissecando seus mecanismos e observando suas engrenagens em funcionamento. Assim, o Tratado sobre o homem de René Descartes, por exemplo, jamais poderia ter prescindido das inúmeras analogias de máquinas hidráulicas, relógios e autômatos na tentativa de definir o corpo humano. No final do século XX, de modo semelhante, a tecnociência de alcance molecular começou a estimular a revisão dos conceitos filosóficos herdados daquela antiga visão do mundo, disseminando suas propostas e ambições para fora dos laboratórios e tingindo o universo com 201 6 2004 suas novas idéias. Hoje, as ciências da vida se aliam à teleinformática de maneira cada vez mais intrincada, numa junção das duas vertentes mais significativas dos saberes hegemônicos contemporâneos. Com seu paradigma digital, sua tendência virtualizante e seu embasamento na informação imaterial, ambos os tipos de saberes e ambos os conjuntos de técnicas estão sendo aplicados aos corpos, às subjetividades e às populações humanas, contribuindo para a sua produção. Carne e microchips Em mais de um sentido, de fato, os computadores e as novas técnicas biológicas estão intimamente aparentados. No nível econômico, esses dois poderosos campos da tecnociência estão unindo esforços e investimentos, através da fusão de companhias de ambas as origens e da participação conjunta em diversos projetos de pesquisa. A área da biotecnologia, caracterizada por uma proliferação de empresas novas e pequenas porém muito pródigas no desenvolvimento de tecnologias inovadoras e descobertas surpreendentes, requer um poder de processamento computacional e uma capacidade de armazenamento em bancos de dados cada vez maiores. Os gigantes conglomerados da informática descobriram o nicho de mercado e começaram a se associar ou a adquirir as pequenas empresas já existentes, abrindo também novos departamentos dedicados às Ciências da Vida. Mas a fusão não está ocorrendo apenas no terreno dos negócios: os dispositivos em desenvolvimento são autênticos exemplos de uma hibridização profunda, que mistura matérias orgânicas e inorgânicas nos próprios aparelhos que estão sendo fabricados. Já existem, por exemplo, os chamados biochips ou wetchips (chips úmidos). Trata-se de uma nova classe de microprocessador, em cuja com- 202 verve O corpo obsoleto e as tiranias do upgrade posição intervêm circuitos eletrônicos e tecidos vivos. Os dois tipos de componentes se conectam logicamente e intercambiam dados, porque ambos operam de acordo com a mesma lógica: a da informação digital. Cientistas israelenses descobriram que uma molécula de DNA (a estrutura química que codifica os genes dos seres vivos) é capaz de armazenar bits e processar instruções lógicas, podendo integrar os circuitos de um computador. No sistema que foi assunto de capa da revista Nature no final de 2001, cada conjunto de seis pares de bases nitrogenadas da cadeia de DNA corresponde a um bit. Por outro lado, a tecnologia de “chave biológica” desenvolvida na Universidade de Boston permite comutar os genes entre as posições ligado (on) e desligado (off), através de produtos químicos ou alterações de temperatura. A partir daí é possível operar uma correspondência entre tais posições binárias dos genes, por um lado, e, por outro, os zeros e uns que constituem a linguagem básica dos computadores. “Embora a comutação seja bastante lenta em comparação com a dos computadores tradicionais, a descoberta é importante por demonstrar que as células também podem ser programadas de tal maneira que estarão aptas para conduzir a outras operações úteis”, conclui o artigo que anunciava a novidade no jornal The New York Times, em junho de 2000. Atualmente, os chips de DNA são fabricados por empresas como Motorola e Affymetrix, aliando vidro e silício a milhares de fragmentos de material genético humano. Tais dispositivos são utilizados para efetuar diagnósticos mais precisos de doenças como a diabetes e o câncer. No horizonte, a meta é detectar tumores e outros problemas de saúde antes de os sintomas aparecerem, inclusive antes mesmo de eles surgirem, bastando apenas ler as instruções inscritas no código do paciente. A tecnologia avança rapidamente neste campo, com fortes investimen- 203 6 2004 tos e certo furor na cotação das ações das companhias da área. As terapias genéticas, tanto as preventivas quanto as corretivas, a e-medicine e a “medicina personalizada” (que se propõe a criar drogas específicas a partir do genoma de cada indivíduo, contemplando a inserção de células programadas no DNA) figuram entre os frutos do recente matrimônio entre as empresas de teleinformática e as de ciências da vida. Daqui a pouco, como diz um livro de divulgação popular sobre a genética, “toda uma seqüência de DNA será tão fácil de ler como o código de barras nos produtos à venda nos supermercados”1. A analogia mercadológica não deve passar desapercebida, pois ela toca o âmago das novas configurações de saber e de poder. A desmaterialização do corpo A passagem da metáfora do homem-máquina — na qual se apoiava o arcabouço da ciência moderna — para o modelo do homem-informação parece dar conta de um materialismo levado até as últimas conseqüências. No entanto, a materialidade da substância com a qual são constituídos todos os seres vivos é ambígua: afinal, o DNA é um código, é pura informação. As instruções contidas nos genomas das diversas espécies, inclusive a humana, estão sendo decifradas nos laboratórios por meio de equipamentos específicos denominados “seqüenciadores automáticos de DNA”, e toda uma aparelhagem computacional capaz de processar uma enorme quantidade de dados. A informação obtida dessa forma é digital: meras cadeias de zeros e uns feitos de luz. E nelas reside o “segredo da vida”, de acordo com o paradigma hegemônico do saber contemporâneo. Nos laboratórios onde ocorrem as pesquisas e descobertas da biotecnologia, como já fora mencionado, os ma- 204 verve O corpo obsoleto e as tiranias do upgrade teriais genéticos estão se fundindo com os dispositivos informáticos. Logo, não são apenas “as coisas da mente” que estão sendo representadas cada vez mais por meio de bits e bytes, como lembra uma figura ícone da cibercultura, o norte-americano R.U Sirius2. As reflexões aqui esboçadas sugerem que “as coisas do corpo” também ingressaram nesse processo de digitalização universal. O materialismo da genética, portanto, pode ser enganador, pois para essa disciplina científica o fundamento da vida reside em uma série de instruções digitalizadas: longas seqüências de letras A, T, C e G, processadas por meio de uma parafernália informática que funciona sem cessar, 24 horas por dia. Os organismos não entram nos laboratórios da biotecnologia; eles ficam do lado de fora. Basta os pesquisadores contarem com um fragmento minúsculo do DNA extraído de uma célula qualquer do corpo e conservado numa geladeira. Uma vez seqüenciado o código, até mesmo essas moléculas tornam-se dispensáveis, pois o “segredo da vida” já passou para as mãos da tecnociência. De outro lado, as tendências virtualizantes da teleinformática parecem ancorar-se, igualmente, em bases “etéreas”. Elas privilegiam o pólo imaterial do velho dualismo cartesiano, potencializando a mente e descartando o corpo como um mero obstáculo demasiadamente material. É comum encontrar, entre os entusiastas desse ramo da tecnologia atual (tanto na área artística da cibercultura quanto na área acadêmica das pesquisas científicas), apelos em favor da hipertrofia da mente e do abandono do corpo. “Os seres humanos se tornarão um único e grande cérebro pelo qual as coisas voarão a toda velocidade”, pontifica o mencionado R. U. Sirius, e prossegue: “isso acontecerá, provavelmente, antes de abandonarmos os nossos corpos físicos”. No mundo volátil do software, da inteligência artificial e das comunicações 205 6 2004 via Internet, a carne parece incomodar. A materialidade do corpo é um entrave a ser superado para se poder mergulhar no ciberespaço e vivenciar o catálogo completo de suas potencialidades. Com sua vocação transcendentalista, os projetos da inteligência artificial que hoje estão em andamento em diversas instituições científicas do mundo se propõem a escanear o cérebro humano e fazer download da mente, a fim de conquistar a imortalidade encarnada em um computador, livre de todos os riscos e dos avatares suspeitos do corpo orgânico. Para vários pesquisadores dessa disciplina de candente atualidade, como Hans Moravec, Marvin Minsky e Raymond Kurzweil, a definição do ser humano se apóia em seu lado incorpóreo, a mente, desdenhando o corpo como um mero empecilho para a sua expansão ilimitada no tempo e no espaço. Para todos eles, contudo, a tecnologia informática logo irá superar tal limitação, concedendo imortalidade à mente na sua hibridização com o software — o tom profético e o estilo enfático, aliás, também são características compartilhadas por certos cientistas dessa área. Teimosamente orgânico, porém, o corpo humano resiste à digitalização, recusa a submissão total às modelagens das tecnologias da virtualidade. Contudo, persiste nesse imaginário o sonho de abandonar o corpo para adentrar um mundo de sensações digitais. Um universo “virtual”, que tem a luz elétrica como matéria-prima e pretende ignorar as limitações que constringem o corpo vivo. Surge assim, paradoxalmente, no cerne de uma sociedade em feroz corrida tecnológica, avidamente consumista e adoradora da “boa forma” física, um novo discurso da “impureza” ligado à materialidade corporal. É possível mergulhar mais fundo nessa direção. Na física contemporânea, que perscruta todos os elementos 206 verve O corpo obsoleto e as tiranias do upgrade do real em nível microscópico, a matéria deixa de ocupar um lugar no espaço e passa a ser estudada como uma forma de energia. E essa energia imaterial costuma adquirir, cada vez com maior freqüência, a face da informação, que se apresenta como uma metáfora todo-poderosa e de longo alcance. “A noção de informação hoje tende a se generalizar, em detrimento da de massa e da de energia”, constata Paul Virilio em A arte do motor3. As confirmações desse deslocamento estão por toda parte, por exemplo: “o principal acontecimento do século XX é a superação da matéria”, sentencia um dos tantos manifestos que a nova “era da informação” tem inspirado entre seus adeptos e que circulam agilmente pelos meandros virtuais da Internet4. Ultrapassar a condição humana Apesar de serem propostas bastante diversas, todos os casos aqui comentados fazem parte do mesmo paradigma tecnocientífico. Seu objetivo último coincide: ultrapassar os limites da matéria, transcender as restrições inerentes ao organismo humano à procura de uma essência virtualmente eterna. Essas ânsias de superar as limitações do corpo material denotam uma certa repugnância pelo orgânico, uma espécie de aversão pela viscosidade do corpo biológico. Apesar da crescente preponderância da cultura do fitness, do bodysm e do healthism — ou, talvez, como mais um ingrediente dessa tendência — o corpo recebe uma grave acusação: é limitado e perecível, demasiadamente orgânico, e portanto fatalmente condenado à obsolescência. Impõe-se, então, o imperativo do upgrade tecnocientífico. “Ultrapassar os parâmetros básicos da condição humana — a sua finitude, contingência, mortalidade, corporalidade, animalidade, limitação existencial — aparece como 207 6 2004 um móbil e até como uma das legitimações da tecnociência”, confirma o sociólogo português Hermínio Martins, autor de alguns ensaios bastante esclarecedores sobre a filosofia que alicerça a tecnociência contemporânea5. Tanto nas promessas quanto nas realizações dos programas biotecnológico e teleinformático aqui percorridos percebese claramente essa intenção de superar a condição humana ultrapassando as falências inerentes ao corpo orgânico. Assim, são desafiados os limites espaciais e temporais ligados à materialidade corporal, recorrendo ao arsenal de tecnologias da virtualidade (que prometem acabar com as distâncias, as fronteiras geográficas e outras restrições espaciais) e da imortalidade (declarando guerra ao envelhecimento, às doenças e à própria morte, todas restrições temporais). Já não basta, simplesmente, melhorar as condições de existência e lutar contra as forças hostis da natureza, como propunha o projeto científico moderno. O novo sonho aponta para bem mais longe: visa à transcendência da humanidade. À luz dessa meta, o corpo que interage intimamente com essas vertentes da tecnociência é conformado por informação. Deixando para trás o modelo mecânico do corpomáquina, as novas configurações corporais da era pós-industrial inspiram-se no modelo da informação digitalizada. Assim, anunciam e buscam uma possível dispensa dos suportes orgânicos e materiais, para poderem atravessar tempos e espaços sem qualquer restrição. Metafísica high-tech Esse embasamento do humano em um substrato puramente imaterial não é algo novo na história das idéias ocidentais. No século XVII, além do homem-máquina, o mundo viu emergir uma série muito poderosa de conceitos e metáforas: o dualismo corpo-mente, uma força que 208 verve O corpo obsoleto e as tiranias do upgrade vem constituindo as subjetividades ocidentais pelo menos ao longo dos últimos quatro séculos. Amalgamando antecedentes das filosofias platônica e cristã com as novidades científicas da época, foi precisamente René Descartes quem definiu o homem como um misto de duas substâncias completamente diferentes e separadas: por um lado, o corpo-máquina, um objeto da natureza como outro qualquer, que podia e devia ser examinado com o método científico (res extensae); por outro lado, a misteriosa mente humana, uma alma pensante cujas origens só podiam ser divinas (res cogitans). O filósofo notou que — diferentemente do corpo, com sua prosaica materialidade — o fluxo de idéias, sensações, desejos e reflexões que emanavam da alma não parecia ocupar espaço nenhum. Contudo, apesar da sua qualidade etérea e vagamente incompreensível, essa “substância imaterial” possuía uma importância fundamental para o ser humano: “penso, logo existo”. A essência do homem era, portanto, pura substância imaterial. De acordo com a perspectiva cartesiana, pelo menos em teoria a mente poderia sobreviver sem qualquer suporte físico, incluindo o cérebro humano. “Eu poderia supor não possuir um corpo”, raciocinava o filósofo; mas era impossível admitir a própria existência prescindindo do pensamento, fruto do “espírito incorpóreo”, a alma, a mente, a consciência. Para Descartes, portanto, o corpo não faz parte da essência do ser humano; é dispensável, na medida em que o pensamento dele independe: “sou realmente distinto do meu corpo e posso existir sem ele”, concluía na sexta e última das Meditações Metafísicas6. Essa idealização metafísica do ser humano parece ressurgir hoje em um cenário aparentemente inesperado: o das redes informáticas, em plena consonância com o novo paradigma tecnocientífico. Neste neo-cartesianismo high-tech, a velha oposição corpo-alma corresponderia ao 209 6 2004 par hardware-software. E a balança se inclina, também neste caso, para o pólo imaterial do software. Pois, com sua proposta de dissolução da matéria na luz, nos impulsos elétricos que constituem o cerne tanto das máquinas quanto dos organismos depurados e hibridizados pela tecnociência, a nova perspectiva parece estar levando às últimas conseqüências a transmutação dos átomos em bits anunciada pelo “guru digital” Nicholas Negroponte. Em seu best-seller Being Digital, publicado em 1995 e imediatamente traduzido para várias dezenas de línguas, o famoso diretor do MediaLab do MIT (Instituto Tecnológico de Massachusetts) explicava que os bits constituem “o DNA da informação”, e pressagiava a iminente conversão de todos os elementos constitutivos da realidade material nessa substância virtual7. Hoje se realiza um processo que foi sendo incubado nas últimas décadas: a informação perdeu seu corpo. Como constata Katherine Hayles em seu estudo sobre a construção do imaginário pós-humano na ciência e na literatura, foi operada uma cisão conceitual entre a informação e o seu suporte material, desqualificando este último e convertendo a primeira numa sorte de “fluido desencarnado” que é capaz de transitar entre diferentes substratos sem perder sua forma e seu sentido8. Dessa maneira, a informação adquiriu uma relevância universal como denominador comum a todas as coisas — tanto vivas quanto inertes — e uma supremacia sobre a matéria. Quando essa noção atingiu o domínio do ser humano, foi inevitável assumir que o corpo orgânico não faz parte da sua “essência”. Ao contrário, a encarnação biológica dos homens seria um mero acidente histórico em vez de uma característica inerente à vida. E mais: se a “essência” da humanidade for de fato informática, então não há diferenças radicais entre computadores e seres 210 verve O corpo obsoleto e as tiranias do upgrade humanos, pois ambos compartilham a mesma lógica de funcionamento. Tal operação conceitual desembocou na atual proliferação de metáforas ligadas ao universo digital que se espalham por todos os âmbitos, com a imaterialidade da informação como um ingrediente fundamental dessa retórica. Nos discursos publicitários, nas telas do cinema, na literatura e, inclusive, em alguns textos teóricos, subitamente a realidade inteira pode se revelar como um programa informático que está sendo executado em um computador cósmico. Assim, a tecnociência contemporânea estende em todas as direções seu horizonte de digitalização e de dissolução das matérias mais diversas em feixes de bits: nos sinais eletrônicos que se apresentam como um “fluido vital” universal, capaz de sustentar tanto as máquinas quanto os organismos virtualizados. Mas há uma certa resistência: o corpo biológico ainda se ergue. E a sua materialidade se rebela; por vezes, ele parece ser orgânico, demasiadamente orgânico. A teimosia do sensível persiste, o homem parece estar enraizado em sua estrutura de carne e osso. Ao menos — talvez caiba acrescentar — por enquanto. Digitalização do humano e pós-evolução De acordo com estimativas publicadas na revista Scientific American, a “evolução tecnológica” é dez milhões de vezes mais veloz do que a “evolução biológica”. E o futuro se anuncia ainda mais vertiginoso: neste século, segundo o especialista em inteligência artificial Raymond Kurzweil, os avanços tecnológicos da humanidade prometem dobrar a cada dez anos, de maneira exponencial. Nesse ritmo, os velhos mecanismos da Natureza não podiam senão se tornarem ultrapassados, obsoletos. No nascente século XXI, a atualização tecnocientífica dos 211 6 2004 organismos vivos já não obedecerá (ou, pelo menos, não exclusivamente) às ordens arcaicas e vagarosas da evolução natural descrita pelos biólogos do longínquo século XIX, seguindo a trilha aberta por Charles Darwin. Abrese, agora, um novo caminho, que aponta para a evolução pós-biológica ou pós-evolução de caráter informático e genético: o homem lança mão dos saberes tecnocientíficos para operar seu próprio upgrade. As terapias genéticas prometem revolucionar a medicina com a prevenção e até mesmo a “correção” dos “erros genéticos” detectados nos códigos dos pacientes. Tais técnicas poderão ser aplicadas tanto em nível somático (afetando somente o indivíduo em tratamento) quanto em nível germinativo (operando nas células sexuais e embrionárias, habilitando assim a transmissão do novo traço para toda a descendência do organismo alterado). Por outro lado, a engenharia genética oferece um catálogo de “tecnologias da alma”, surgidas de um campo de saber que hoje recebe atenção permanente da mídia: a genética comportamental. Esta disciplina se propõe a identificar as supostas relações existentes entre um determinado gene e um certo traço da subjetividade (inteligência, ansiedade, preguiça, desejo sexual, ambição, pessimismo, etc.), utilizando a estatística como método básico para estabelecer as correspondências. Seu objetivo final coincide com o da genética médica: diagnosticar, prevenir e eventualmente “ajustar” determinados “erros” inscritos nos códigos genéticos dos indivíduos. Assim, alterando a informação contida no DNA seria possível, por exemplo, transformar um criminoso — potencial ou real — em um “homem honesto”. O desafio está lançado: se a propensão à violência é controlada pelos genes, por que não intervir para corrigi-la? Do mesmo modo, se ela é transmitida geneticamente, por que não praticar logo uma terapia em nível germinativo, ao invés de limi- 212 verve O corpo obsoleto e as tiranias do upgrade tar-se à extirpação somática no indivíduo, para assim eliminar o “gene violento” de toda a descendência do sujeito e livrar-se para sempre desse grave problema social? Além das trocas e alterações na informação genética, que apontam para a modelagem dos corpos e das subjetividades, a tecnociência contemporânea também facilita a inserção subcutânea de componentes não-orgânicos, hibridizando os corpos com materiais inertes. Trata-se do processo que Paul Virilio denominou endocolonização e que caracteriza a conquista do interior do organismo humano por parte da tecnociência mais recente: da aparelhagem videoscópica utilizada para o diagnóstico e o tratamento de diversas doenças até as experiências mais inovadoras de cirurgias sem cortes por meio da inserção de dispositivos nanotecnológicos. Cada vez mais introjetados, transparentes e diluídos em trocas íntimas e fluidas, os agentes artificiais se misturam com os orgânicos, dissolvendo as fronteiras e tornando obsoleta a antiga diferenciação, visto que ambos os tipos de elementos compartilham a mesma lógica da informação digital. Assim, hoje são criados materiais inéditos, híbridos de ambos os mundos, representados pelos microchips com componentes orgânicos e pelos implantes biônicos. Estes últimos se apresentam como capazes de devolver a visão aos cegos e a possibilidade de andar aos paraplégicos, graças à implantação cirúrgica de microprocessadores no cérebro e outros dispositivos teleinformáticos ligados aos nervos, aos músculos ou a órgãos específicos. Soluções semelhantes estão sendo testadas para tratar de doenças como a epilepsia e os males de Parkinson e Alzheimer; e, inclusive, de distúrbios nervosos como a obsessão compulsiva, a síndrome do pânico e a depressão. Em seu livro mais recente, The Singularity is Next, o mencionado Kurzweil afirma que a evolução tecnológica 213 6 2004 logo será tão rápida e profunda que representará “uma ruptura no tecido da história humana”. Tal descontinuidade histórica ocorrerá, segundo o autor, por causa do apagamento da linha que costumava separar os seres humanos dos dispositivos informáticos: “ela ficará cada vez mais tênue, à medida que computadores do tamanho das células — os nanobots — permitam aos cientistas o desenvolvimento de modelos do cérebro humano baseados em computadores, além do aperfeiçoamento das mentes através de pequenos implantes digitais”. Assim, combinando as diversas habilidades dos homens com a velocidade, a precisão e a capacidade de processamento dos computadores, a inteligência humana poderá ser incrementada: “o cérebro humano não terá mais um limite estabelecido pela natureza”, conclui Kurzweil. Além dos implantes de memória artificial, o cientista destaca a possibilidade de introduzir dados no cérebro através de canais neurais diretos. Dessa forma, seria possível aumentar a própria capacidade de armazenar informações a velocidades inusitadas, deixando obsoletos os árduos processos de aprendizado tradicionais. Como resultado dessa fusão entre o órgão cerebral e os circuitos eletrônicos, é oferecida uma possibilidade sedutora: a de efetuar um upgrade sistemático da alma, a partir da variedade de menus oferecidos no mercado. A compatibilidade entre homens e computadores Se somente agora essa interação orgânico-eletrônica está se realizando nos laboratórios, há muito tempo que ela vive no imaginário da ficção-científica: na última década, a idéia foi recriada em filmes como eXistenZ, Johnny Mnemonic, Matrix, O vingador do futuro e Estranhos prazeres9. Ultrapassando os limites da ficção, todavia, o cientista britânico Kevin Warwick oferece um exemplo per- 214 verve O corpo obsoleto e as tiranias do upgrade feito dessa novíssima compatibilização entre homens e computadores. Ele próprio explica o objetivo das experiências em andamento na Universidade de Reading, baseadas na implantação de um microchip em seu braço para comunicar seus nervos com um computador: “Captaremos em meu sistema nervoso os sinais físicos produzidos por sensações como a dor, a raiva, o medo e a excitação sexual. Depois os devolveremos ao sistema nervoso e observaremos os resultados. Será possível recriar a dor, por exemplo? Cremos que sim. Poderemos enviar impulsos eletrônicos para inoculá-la, como uma espécie de anestesia local? Seria muito útil se pudéssemos inserir um chip nos corpos das pessoas que sofrem de dores constantes para eliminá-las de forma eletrônica e dispensar assim os calmantes químicos, com todos seus efeitos negativos. Procuraremos também enviar sinais de uma pessoa para outra, de um sistema nervoso para outro, através da Internet, a fim de conhecer os efeitos provocados pelos impulsos alheios. Eu tenho certeza de que a criação eletrônica de estados de ânimo será possível em um futuro muito próximo, talvez daqui a dez anos”10. Assim, utilizando um léxico e uma retórica comuns ao reino biológico e ao informático, o homem contemporâneo se torna compatível com os computadores. A lógica digital envolve a ambos e os interconecta. Se essa interconexão é viável, então também serão possíveis a interação, a troca de dados e a operação conjunta entre os dispositivos informáticos e os órgãos corporais. Na Universidade de Califórnia, por exemplo, foi desenvolvido um implante do tamanho de um grão de arroz: após a inserção subcutânea, ele é capaz de operar como intermediário na comunicação entre os nervos e as mais diversas peças eletrônicas implantadas no organismo, permitindo efetuar todos os processos computacionais no 215 6 2004 interior do corpo e dispensando a necessidade de fios e próteses externas. A integração de circuitos eletrônicos no corpo humano — por meio de próteses e implantes conectados ao organismo para restaurar funções danificadas — corresponde à biônica, um dos ramos da medicina que gera mais expectativas na atualidade por conta de alguns avanços surpreendentes registrados nos últimos anos e das promessas que reserva para o futuro próximo. A disciplina mereceu um dossiê completo da revista Science em fevereiro de 2002, no qual nove especialistas sintetizaram os projetos e as conquistas mais importantes da área. Uma equipe médica dos Estados Unidos, por exemplo, divulgou uma experiência de implantação de chips microscópicos no globo ocular de um homem com problemas na retina, na tentativa de reverter sua cegueira. Do mesmo modo, existem experiências tendentes a restaurar o sentido auditivo em pacientes surdos, também por meio de próteses biônicas e implantes eletrônicos embutidos no corpo. Confiantes no ritmo em que avançam a miniaturização dos componentes eletrônicos, a criação de materiais biocompatíveis e os conhecimentos sobre genética e engenharia de tecidos, os cientistas acreditam que as próteses informáticas para diversos fins abandonarão o terreno puramente experimental e estarão disponíveis no mercado já na próxima década. Por causa disso, atualmente, várias dezenas companhias biomédicas estão investindo centenas de milhões de dólares na pesquisa que conduzirá ao desenvolvimento de novas técnicas e próteses biônicas. Por enquanto, um dos acontecimentos mais festejados foi a criação da primeira mão artificial que permite ao portador utilizar os canais nervosos existentes para controlar cinco dedos protéticos comandados por um computador. A comunicação com o disposi- 216 verve O corpo obsoleto e as tiranias do upgrade tivo se efetua por meio de sinais elétricos emitidos pelos músculos e tendões do usuário, permitindo a realização de tarefas complexas como tocar piano e digitar no teclado. A prótese informática foi desenvolvida por uma equipe da Universidade de Rutgers (EUA) liderada por William Craelius, quem considera que “as tecnologias biônicas podem restaurar quase qualquer função perdida, pelo menos em algum grau”11. Nesse projeto de digitalização do humano, corpo e mente se tornam programáveis. Como resume Davi Geiger, pesquisador em inteligência artificial no MIT: “somos simplesmente uma máquina, um tipo muito especial de máquina similar a um computador, com programas desenvolvidos ao longo da evolução das espécies”. Extrapolando a metáfora até implodi-la, o cientista conclui que não existe nenhum tipo de informação que não possa ser processado no computador-homem; a única limitação residiria “no tamanho da memória, do processador e dos programas nele instalados”12. O único obstáculo para atingir a compatibilidade absoluta, portanto, nessa perspectiva de equivalência total entre computadores e homens, parece ser o estágio ainda insuficiente de desenvolvimento tecnológico. Sabe-se, entretanto, que a capacidade da aparelhagem informática aumenta de maneira exponencial e suas potencialidades não têm limites: elas são, por definição, infinitas. “O número de transistores que podemos incluir dentro de um circuito integrado se duplica a cada 18 meses”, confirma em depoimento à revista Science o cientista responsável pela invenção da primeira mão biônica. E prossegue William Craelius: “nesse ritmo, o processamento para a atividade biônica complexa poderá ser implantado no cérebro ou em qualquer outra parte do organismo daqui a dez anos”. Nesse horizonte de universalismo infinitista, pode-se dizer que tudo e todos — todas as coisas e todos os seres vivos — pode- 217 6 2004 rão ingressar na ordem digital. Tudo pode ser convertido em informação. Tudo pode ser processado, à medida que se estende o projeto de digitalização dos reinos orgânicos e inorgânicos. O imperativo da reciclagem Amparada na alquimia digital, enfim, a nova tecnociência parece ter condições de oferecer o instrumental necessário para realizar o tão desejado sonho de modelar os corpos e as almas, gerando os mais diversos resultados ao gosto do consumidor. Auto-produzir-se e viver eternamente: duas opções que hoje são oferecidas no mercado. Graças ao acúmulo de saberes e técnicas, os discursos da tecnociência expulsam a velhice e a morte do neoparaíso humano. Enfraquecidas as restrições impostas pela velha Natureza, com suas severas leis colocadas em xeque, o sujeito contemporâneo é incitado a gerir seu próprio destino, tanto em nível individual como da espécie. As derivações dessa proposta são, basicamente, duas. De um lado, abre-se o caminho rumo à realização do sonho individualista e narcisista por excelência: o da autocriação — a proposta, idealizada e perseguida com fervor pelos modernistas, de fazer de si mesmo uma “obra de arte”13. Contudo, os alcances e limites de tais sonhos hoje são demarcados, em grande parte, pelas diretrizes do mercado que impelem os sujeitos a se tornarem “gestores de si”, administrando suas potencialidades a partir das escolhas de produtos e serviços oferecidos pelas empresas. De outro lado, é inegável a importância desta questão em nível macro-social: o replanejamento da espécie humana, possibilitado pela pós-evolução auto-dirigida, é um tema extremamente problemático que carrega obscuras conotações éticas e políticas. A responsabilidade pela 218 verve O corpo obsoleto e as tiranias do upgrade produção de corpos e subjetividades da população global parece cair, hoje em dia, nas mãos de uma tecnociência que opera conforme a lógica cega do capital, minguando a capacidade de ação dos organismos públicos, das instâncias políticas tradicionais e dos Estados-Nação; instituições, todas elas, que costumavam orquestrar o biopoder característico das sociedades industriais. Nesse contexto, um espectro torna a assombrar o mundo: o da eugenia. Os projetos de aprimoramento da espécie humana com base no novo arsenal tecnocientífico despertam inquietantes ecos totalitários que pareciam já esquecidos; agora, porém, eles retornam numa nova versão: globalizada, sem referências nacionalistas ou raciais explícitas, e comandada com mão firme pelas tiranias e alegrias do mercado. Novas estratégias de biopoder configuram, hoje em dia, outras formas de dominação e de produção subjetiva, apontando para um novo modelo de humanidade: desprovido das profundezas do inconsciente, do compromisso social e do peso da história. A mutação envolve um forte apego aos valores associados ao mercado, como rentabilidade, eficiência, visibilidade e performance, no intuito de proporcionar soluções técnicas a todos os problemas (sejam eles da alma, do corpo ou da sociedade), na busca pragmática de resultados rápidos, tangíveis e mensuráveis. Assim, uma gama diversificada de serviços com boa relação custo-benefício é oferecida aos consumidores, acompanhando a decadência da força biopolítica das instituições estatais e a disseminação da lógica da empresa por todo o tecido social. Desse modo, os novos saberes colocam no mercado uma série de dispositivos de prevenção, que permitem a cada sujeito — ou obrigam-nos — a administrar os riscos inerentes à sua informação orgânica pessoal a partir do conhecimento de suas próprias tendências, propensões e probabilidades. Uma informação vital que é decifrada por meio de um complexo instru- 219 6 2004 mental tecnológico de tipo digital. Terapias preventivas, enfim, cujo objetivo biopolítico é o controle da vida. Detecta-se, portanto, uma transição para um novo regime de poder: uma passagem da vigilância disciplinar analisada por Michel Foucault para essa gestão privada dos riscos. Novas “terapias para os normais” se generalizam, dissolvendo o sujeito da sociedade industrial para conformar outros modos de subjetivação. Nesse movimento, os indivíduos são impelidos a se tornarem gestores de si, planejando as próprias vidas como os empresários delineiam as estratégias de seus negócios, avaliando os riscos e fazendo escolhas que visem maximizar sua “qualidade de vida”, otimizando seus recursos pessoais e privados, e gerenciando as opções de acordo com parâmetros de custo-benefício, performance e eficiência. Desse modo, os sujeitos contemporâneos procuram enfrentar a tragédia da própria obsolescência, assumindo as ferozes exigências da “competitividade”. A própria saúde é um capital que os indivíduos devem administrar, escolhendo consumos e hábitos de vida e calibrando os riscos que deles podem decorrer. Mais uma vez, é a lógica da empresa espalhando-se por todas as instituições e conquistando novos espaços. Pois, no mundo contemporâneo, só os paranóicos sobrevivem — parafraseando o famoso executivo da Intel, Andrew Grove14. Ou seja: aqueles sujeitos que demonstram uma capacidade de se adaptarem às mudanças constantemente exigidas pelo capitalismo pósindustrial dos fluxos globais, aqueles que conseguem se auto-programar a partir dos veredictos da tecnociência ligada ao mercado. Enfim: sujeitos eficazes, flexíveis e recicláveis. As medidas preventivas e a gestão dos riscos, portanto, canalizam das forças vitais conforme as exigências da nova formação política, econômica e social. Todos os membros da espécie humana têm probabilidades de adoecer e morrer, todos possuem erros nos có- 220 verve O corpo obsoleto e as tiranias do upgrade digos, todos são virtualmente doentes, todos estão condenados à obsolescência e, por causa disso, devem se submeter à economia dos riscos; assim como na sociedade industrial todos os sujeitos deviam ser vigiados e corrigidos, o tempo todo, para serem enquadrados na esteira da normalidade. Hoje é função de cada indivíduo conhecer suas tendências e administrar seus riscos, numa forma de auto-policiamento privado que implica o dever de lutar contra o próprio destino, ultrapassando os limites da própria configuração biológica com a ajuda da tecnociência. É assim que o biopoder propaga atualmente o imperativo da saúde e da vida eterna no campo de batalha pela produção de corpos e subjetividades, na tentativa de evitar que os erros inscritos como probabilidades nos códigos genéticos se efetivem — tanto nos organismos quanto no corpo social. Esse imperativo da saúde incita a obsessão pelo cuidado do corpo e à procura por “estilos de vida saudáveis”. Copiosamente alardeado nos mídia, tanto no jornalismo quanto na publicidade, tal imperativo chega a adquirir tons agressivos, em ocasiões, com um certo “terrorismo visual” que vai se intensificando nas propagandas. Um bom exemplo é fornecido, no Brasil, pela campanha de prevenção das doenças vinculadas ao fumo por meio da impressão de imagens explícitas sobre os malefícios do cigarro no verso das embalagens de todas as marcas comercializadas no país. Assim, o sujeito atingido pelas novas modalidades biopolíticas de formatação subjetiva metaboliza o imperativo da saúde: assumindo-se como gestor de si, minimiza ou maximiza os riscos provavelmente inscritos em sua predisposição genética, ao combiná-los com um estilo de vida saudável ou perigoso. Pois, em pleno processo de formatação do homem pósorgânico, a tecnociência adverte: quem não conseguir atingir a categoria de pós-humano, selando o pacto de 221 6 2004 transcendência com suas sedutoras promessas e seus árduos imperativos, pode estar condenado a virar subhumano. Dos “corpos dóceis” aos “corpos ligados” Quando Paul Virilio descreve o “homem superexcitado” como um tipo característico da subjetividade contemporânea, assinala a ênfase voltada para os nervos: um território privilegiado do estresse e de outros distúrbios típicos da contemporaneidade, tais como a depressão, a anorexia, a síndrome de pânico e os comportamentos compulsivos e obsessivos15. Compatível com os circuitos eletrônicos da aparelhagem digital — assim como o código genético cifrado no DNA —, o sistema nervoso estrutura os corpos informatizados da sociedade pós-industrial. Ele é o alvo fundamental dos psicofármacos e outras “tecnologias da alma” que se propõem a estimular e tranqüilizar os nervos superexcitados dos sujeitos do mundo atual, investidos pela figura do consumidor e impelidos à reciclagem acelerada contra a ameaça permanente de obsolescência. Nas configurações atuais dos corpos e subjetividades, em mais de um sentido, parece que os nervos alterados — assim como os genes alteráveis — venceram os músculos cansados da antiga sociedade industrial. Na mutação daquela formação social para a contemporânea, acompanhando o deslocamento do foco da produção para o consumo no capitalismo mais recente, os corpos dóceis (e úteis) inspirados no modelo mecânico do robô parecem cada vez mais se “digitalizar”. Perderam atualidade aqueles corpos-máquina cujo cenário por antonomásia era o interior das fábricas: organismos equipados com próteses de madeira ou de metal (ou a elas equiparáveis) que acentuavam seus movimentos rígidos e ritmados pela cadên- 222 verve O corpo obsoleto e as tiranias do upgrade cia mecânica. Figuras firmemente assentadas no imaginário ocidental, plasmadas em filmes clássicos como Metrópolis e Tempos modernos e em toda uma saga literária16. Assistidos pelas novíssimas próteses teleinformáticas e biotecnológicas, e por toda a retórica e o imaginário que as acompanha, os organismos contemporâneos transformaram-se em corpos ligados, ávidos, antenados, ansiosos, sintonizados — e, também, sem dúvida, úteis. Corpos acoplados à tecnologia digital, estimulados e aparelhados por um instrumental sempre atualizado de micro-dispositivos não-orgânicos. Corpos cuja “essência” é considerada imaterial: pura informação composta de luz elétrica que eventualmente poderia ser transferida para um arquivo de computador, ou alterada em sua base gênica como uma correção de um suposto erro no código, ou hibridizada com os bits de outros organismos ou dispositivos eletrônicos — à maneira de uma transmutação que aponta, sempre, para o upgrade em nome da performance e da eficiência. Não se trata mais, portanto, daqueles corpos laboriosamente convertidos em força de trabalho, esculpidos em longas e penosas sessões de treinamento e disciplina para saciar as demandas da produção industrial; aquelas almas dolorosamente submetidas às sondagens psicoanalíticas, impelidas ao auto-conhecimento profundo da sua intimidade. Em lugar dessas configurações, agora emergem outros tipos de corpos e subjetividades: autocontrolados, inspirados no modelo empresarial, imbuídos a administrarem seus riscos e seus prazeres de acordo com seu próprio capital genético, avaliando constantemente o menu de produtos e serviços oferecidos no mercado, com toda a responsabilidade individual necessária em um mundo onde impera a lógica automatizada do selfservice. Corpos permanentemente ameaçados pela som- 223 6 2004 bra da obsolescência — tanto do seu software mental como do seu hardware corporal — e lançados, por isso, no turbilhão do upgrade constante, intimados a maximizarem a sua flexibilidade e a sua capacidade de reciclagem. Enfim: corpos investidos pelo impulso de ultrapassagem de todos os limites, que marca os saberes e as ferramentas da nova tecnociência. Os debates em torno destes assuntos costumam exalar pretensões de “neutralidade” ou “naturalidade”. Cremos que se impõe, ao contrário, a necessidade de politizar a problemática aqui exposta. Em vez de nos acomodarmos, então, incomodar-nos. Quais são as implicações políticas destes processos? Os limites do possível expandem-se em novos desdobramentos, ou se esgotam no deserto de uma mesmice asfixiante? As potências da vida se enriquecem nestes movimentos, ou são fatalmente cerceadas? Abrem-se novas opções de resistência e de criação, ou fecham-se todos os caminhos que poderiam conduzir ao “outramento”? Crescem as possibilidades tecno-demiúrgicas de produção de si mesmo e de construção de novos mundos? Ou, pelo contrário, esfacelamse as dimensões pública e política, face à utopia do conforto e às tiranias do upgrade impostas pelas demandas do capital? Não há respostas simples e unívocas para tais questões. O mero fato de podermos formulá-las, entretanto, talvez esteja assinalando a possível emergência de algumas linhas de reflexão. E, é claro, um certo incômodo. Notas 1 D. Hamer & P. Copeland. El misterio de los genes. Buenos Aires, Ed. Vergara, 1998, p. 296. R. U. Sirius. “¿Hablas en serio?” in El paseante. Madrid, Ed. Siruela, v. 27-28, pp. 82-85, 2001. 2 224 verve O corpo obsoleto e as tiranias do upgrade 3 P. Virilio. A arte do motor. São Paulo, Estação Liberdade, 1996. A Magna Carta for the knowledge age, assinado por um grupo de figuras proeminentes na divulgação e teorização das novas tecnologias: Esther Dyson, George Gilder, George Keyworth e Alvin Toffler; disponível em www.pff.org/ position.html. 4 5 H. Martins. Hegel, Texas e outros ensaios de teoria social. Lisboa, Ed. Século XXI, 1996, p. 172. 6 R. Descartes. Meditaciones metafísicas. Navarra, Ed. Folio, 1999. 7 N. Negroponte. Ser digital. Buenos Aires, Editorial Atlántida, 1995. K. Hayles. How we became posthuman: virtual bodies in cybernetics, literature, and informatics. Chicago, The University of Chicago Press, 1999. 8 eXistenZ (David Cronenberg, EUA, 1999); Johnny Mnemonic (Robert Longo, EUA, 1995); Matrix (Andy e Larry Wachowski, EUA, 1999); O Vingador do Futuro (Paul Verhoeven, EUA, 1990); Estranhos Prazeres (Kathryn Bigelow, EUA, 1995). 9 K. Warwick. Entrevista pessoal via e-mail, 13 nov. 2001. Mais informações em www.kevinwarwick.org. 10 11 W. Craelius. “The Bionic Man: Restoring Mobility”. Science. 8 fev. 2002. 12 D. Geiger. “Inteligência artificial: máquina pode pensar?” in O homem máquina. Rio de Janeiro, Centro Cultural Banco do Brasil, 2001, pp. 18-19. Uma das representantes mais célebres da body-art de orientação tecnológica, a francesa Orlan, pratica cirurgias plásticas em seus próprios rosto e corpo, convertendo as salas de operações em cenários performáticos e veiculando as experiências em discursos sobre a “auto-produção estética”. A artista define os resultados das intervenções cirúrgicas como “arte carnal”, variantes radicais do “auto-retrato”. 13 14 A. Grove. Só os paranóicos sobrevivem. São Paulo, Editora Futura, 1997. P. Virilio. “Do super-homem ao homem superexcitado” in A arte do motor. São Paulo, Estação Liberdade, 1996. 15 Metrópolis (Fritz Lang, Alemanha, 1927); Tempos modernos (Charles Chaplin, EUA, 1936). 16 225 6 2004 RESUMO Paira sobre os homens uma incômoda ameaça: o risco de cair na obsolescência. Seduzidos e pressionados pelos ímpetos mercadológicos, os corpos contemporâneos devem se tornar compatíveis com os computadores e com uma miríade de dispositivos baseados na lógica digital – assim como os sujeitos da sociedade industrial sofreram um longo processo de ortopedização que acabou sincronizando seus ritmos com as engrenagens da paisagem mecânica. O novo contexto coloca em cena uma versão atualizada do velho dualismo cartesiano, que se projeta na cisão hardware/ software. Assim, impõe-se uma série infinita de upgrades tecnohumanos, que tornam obrigatória a reciclagem constante do software (mente/código) e do hardware (corpo/organismo). A força da organicidade, porém, ainda persiste. Mas onde reside o maior incômodo? Nessa teimosa persistência da carne, ou em seu trêmulo sucumbir às investidas da tecnociência aliada ao mercado? Palavras-chave: tecnologia, informação, upgrade ABSTRACT An annoying threat hovers mankind: the risk of falling into obsolescence. Seduced and pressured by marketing motivations, contemporary bodies should become compatible to computers and with a myriad of devices based on digital logic — in the same way as the subjects of industrial society have suffered a long process of formatting that ended up synchronizing their pace with the engines of mechanic landscape. The new context introduces an updated version of the old Cartesian dualism, which is projected in the division hardware/software. Therefore, an infinite series of technohuman updating is imposed, which makes it compulsory the constant recycling of software (mind/code) and of hardware (body/organism). Although, the power of organic still persists. But where does the greatest annoyance can be found? In this stubborn persistency of the flesh or in its feeble collapse before the attempts of technoscience and market? Keywords: technology, information, upgrade 226 verve Devires minoritários: um incômodo devires minoritários: um incômodo silvana tótora* Pensar e agir como minoria é tanto um ato de resistência como uma invenção-experimento. Trata-se, para usar um termo de Deleuze, de um “pensamento do Fora”, um pensamento “máquina de guerra” contra o “aparelho de Estado”. Pensamento da imanência, liberto do paradigma lógico da verdade, que suscita problemas fazendo da criação do conceito a condição de sua crítica e a construção de novas possibilidades de pensar e de existência. A “ciência nômade de máquina de guerra” é da ordem do devir, portanto não se deixa fixar em um modelo ou paradigma, tampouco se constitui em um saber. Seguir os fluxos imanentes à realidade sem aprisioná-los em qualquer representação transcendente impossibilita a essa ciência formatar-se em um saber-poder. Seu efeito no campo social, que as “ciências régias ou de Estado” tentam conter, é abalar as representações que se rotinizam em convenções formais promovendo a adaptação ao que é odioso. * Professora no Depto. de Política, Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais e Vice-Coordenadora do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC/SP. verve, 6: 229-246, 2004 229 6 2004 Deleuze cria o termo “noologia” para designar o estudo da imagem do pensamento1. O pensamento “máquina de guerra” não constitui outra imagem, mas sim uma potência na destruição da imagem e suas cópias. Construir um pensamento que não se firma em “uma imagem tranquilizadora da representação”2, em que a diferença é pensada sob uma quádrupla sujeição: ao que é idêntico, semelhante, análogo e oposto3, com a finalidade de controlar, domesticar as diferenças, prevenindo-se contra as distribuições nômades. O pensamento nômade não permite ser capturado pelo poder, porque, em vez de formar uma imagem, é desprovido de um centro ou de convergências globalizantes, é um pensamento-acontecimento que não se deixa fixar, “seguindo” o movimento imanente da realidade. Suscita problemas que remetem a soluções não científicas, a cargo das atividades coletivas. Pretende-se, neste texto, diferenciar a multiplicidade do pluralismo presente em uma tradição do pensamento liberal, que não abandona a forma-Estado, nem a representação. O pluralismo, no discurso liberal, não se desvincula da moral e da verdade, como parâmetro para exorcizar diferenças que não são totalizáveis. Remeter-se ao pensamento de Nietzsche, Deleuze e Foucault é olhar a política a partir de um outro plano que não a forma-Estado, criando novos problemas que passam por devires-minoritários, múltiplos, mutáveis e que escapam a toda forma de poder-saber constituído. Pluralismo: domesticação O discurso de Hobbes dirige-se àqueles que desejam a estabilidade sob a égide de um governo com poder para criar leis como critérios do que se deve ou não fazer. Viver 230 verve Devires minoritários: um incômodo sob a proteção de um Estado, “Deus terreno”, que estabelece o que é justo e injusto, ou seja, do que é conforme ou contrário à regra. Para Hobbes, uma vez que a natureza humana não muda e tampouco pode ser educável, é impossível firmar-se um pacto social baseado na dependência mútua de seus concidadãos. O contrato hobbesiano é político, fundando ao mesmo tempo súditos e soberano representante. O pensamento político moderno dirige-se aos homens capazes de maioria, ou seja, de acordos e consensos sob regras comuns válidas para todos, sejam estas regras estabelecidas por representantes ou diretamente. Rousseau, embora criticando a representação política, pois a “vontade geral” não se representa, afirma a impossibilidade da existência de uma sociedade sem um ponto comum em que todos os interesses concordem4. Rompendo com o caráter abstrato das teorias do direito natural anteriores às instituições governamentais, a teoria utilitarista de Stuart Mill concebe o homem como ser progressivo. Ao atribuir à natureza do homem a qualidade de se desenvolver, Mill dedica-se a demonstrar a utilidade das instituições livres na promoção do desenvolvimento humano. A democracia liberal representativa seria a forma de governo mais adequada para “desenvolver nos membros da comunidade as várias e desejáveis qualidades morais e intelectuais”5. Combinando a participação do homem comum nos governos locais e indiretamente na escolha dos representantes, Mill aposta nesta via para educar o cidadão, estimulando o interesse pelos negócios públicos, pelas ações dos governantes e, sobretudo, forjando a consciência de pertencer à grande comunidade política. O pensamento de Mill filia-se a uma tradição do pensamento liberal preocupada em frear a expansão da ingerência do poder governamental, impedindo que o indivíduo ou os grupos possam gozar da liberdade. O pluralismo de Mill visa assegurar não só a representação das minori- 231 6 2004 as na esfera central do poder político, propondo o escrutínio proporcional, mas também obstaculizar a tirania da opinião pública e dos valores dominantes. Só a liberdade política não é suficiente, é necessário combiná-la com a liberdade civil. Porém, o pluralismo de Mill não dispensa um princípio regulador da liberdade individual: o ajustamento do interesse individual ao coletivo. A interferência do poder sobre a ação de um indivíduo justifica-se somente para impedi-lo de causar danos a outrem. Segundo Mill, “a única liberdade que merece esse nome é procurar o próprio bem pelo seu próprio método sem causar danos a terceiros”6. A afirmação de um princípio geral, conforme enuncia Mill, visa não só reprimir os excessos, mas também dar à sociedade a justa medida. Daí ser necessário que “normas gerais” sejam observadas para dar a medida da conduta de uns para com os outros7. Na razão utilitária o critério para estabelecer-se uma ação é ou não conveniente ao ajuste da liberdade individual e o interesse coletivo reside em uma longa experiência de práticas sociais. “O que se procura tolher são coisas experimentadas e condenadas desde o começo do mundo, coisas que a prática mostrou não serem úteis ou convenientes à individualidade de ninguém”8. O longamente experimentado adquire caráter de uma verdade moral ou prudencial. O pluralismo, neste caso, limita e seleciona aqueles que estão de acordo com os valores firmados pela experiência. O cultivo da individualidade independente do costume e da tradição é um requisito para a liberdade, embora Mill não deixe de afirmar a observância das normas gerais impostas pela coletividade. Como conciliar obediência e liberdade? Mill não resolve essa contradição. O autor segue exaltando as iniciativas e autonomia de escolhas enquanto estímulo para o desenvolvimento das faculdades 232 verve Devires minoritários: um incômodo humanas. Fortalecer os talentos individuais, que distam da opinião das “massas mediocrizantes” aferradas ao costume, é o caminho para o avanço da humanidade e o progresso de um povo. Os impulsos e desejos não são prejudiciais às ações, desde que regrados pela consciência. São as consciências fracas que não são capazes de compatibilizar os impulsos pessoais com o amor à virtude e o domínio de si. O homem “como ser intelectual e moral”9, segundo Mill, “é capaz de retificar os seus enganos pela discussão e a experiência”10. Movido pela vontade de verdade, o “método racional” para alcançá-la é permitir a discussão e a refutação. A verdade é o prêmio para aqueles que se lançam ao choque das opiniões contrárias. O caminho para o “conhecimento completo”11 é ouvir os representantes de cada variedade de opinião. Depois de muito discutir e experimentar, a verdade se revela pela dificuldade em ser contestada. Multiplicar interpretações não significa ouvir todos os lados, ou, como diz Mill, “os representantes de todas as opiniões”, como se aumentar o número de pontos de vista fosse o caminho para se aproximar da verdade. O choque de opiniões contrárias não deixa de ser outra forma de totalização, pois as diferenças se desdobram em oposições reversíveis em um mesmo todo. É comum, nessa perspectiva, fazer-se síntese dos vários pontos de vista, o que denota seu caráter de variação do mesmo, a filiação a um centro comum, pois um fenômeno não é um mesmo que se expõe a diversos pontos de vista. Trata-se de perspectivas distintas que se configuram em histórias diferentes que se confrontam sem se deixar totalizar. Outra via se abre, diversa desse pluralismo liberal: a da multiplicidade. Trata-se de um modo diferencial de fazer emergir interpretações diferentes. A multiplicidade 233 6 2004 envolve relações de força e um terreno de luta em que as distintas interpretações se confrontam e não se somam, ou se ampliam, ou se esclarecem com vistas a um “conhecimento mais completo”. Distinguir conceitualmente multiplicidade e pluralismo objetiva diferenciar as relações de forças que não se deixam totalizar ou se referir a um centro, abertas aos fluxos moventes e mutáveis. Sem princípio ou finalidade, os acoplamentos das séries divergentes se dão pelo “meio”, por ressonância que se desdobram em outras diferenças. O pensamento liberal insiste no pluralismo de opiniões, do agir e de se associar, sem contudo deixar de delimitar o campo do tolerável e a recognição de valores validados pela experiência. O pluralismo reverte-se em um modelo de partilha de poderes que integram as partes ao todo. Princípios morais universalizantes definem a boa convivência em uma sociedade, sendo que o liberalismo demarca o cultivo da liberdade individual desde que se preservem os direitos e interesses alheios. As normas gerais são defendidas para que se possa garantir uma previsibilidade nas ações humanas. Princípios universais e normas gerais, traduzíveis ou não em leis, são indispensáveis ao caráter previdente de um modo de pensamento que domestica as diferenças, responsabilizando e punindo as transgressões. Multiplicidade: o combate Nietzsche lança um novo problema que permite outra via de interpretação dos valores. O autor insurge-se contra aqueles que justificam o que está posto, dirigindo sua crítica aos ingleses, particularmente aos utilitaristas. Como genealogista, ele remete ao elemento diferencial dos valores. Trata-se de um novo “método de interpretação e avaliação”, que faz incidir sobre os valores as rela- 234 verve Devires minoritários: um incômodo ções de forças e a vontade de potência. Fazer a história das lutas e não a descrição de fatos em nome de uma objetividade científica. Nietzsche investe contra o positivismo moderno que substituiu os valores transcendentes para os reencontrar como forças que sustentam o mundo atual. Pôr em questão os valores estabelecidos, destruí-los, referindo-se às próprias condições de sua criação. A genealogia diz respeito ao questionamento do “valor dos valores”12. Querer a verdade, seja como valor utilitário progressivo, seja pela fidelidade ao “fato”, situa-se no terreno da moral. Tomando a vida como critério de avaliação, a vontade de verdade, no sentido que se propõe a ciência, é afirmar outra coisa diferente da vida, da natureza e da história. Moral é toda forma de proceder em busca do verdadeiro, justificado pelo desejo de não se enganar ou querer enganar os outros13. O desejo de verdade traduz a crença na existência de uma essência, uma significação oculta a ser interpretada segundo seus fins últimos. Ora, uma aliança com a vida é dispor-se para o inesperado, o intempestivo, ao que extravia, o que ilude, o que muda de direção, sem uma finalidade última. Por isso, Nietzsche afirma: a vida é imoral, “nada é verdadeiro, tudo é permitido”14. Declara guerra contra toda a pretensão de se criar uma justa medida, liberandose para a experimentação. À fidelidade ao fato defendida pelos positivistas como estratégia de justificar os valores existentes, Nietzsche contrapõe-se afirmando que interpretar é “violentar, ajustar, abreviar, omitir, preencher, imaginar, falsear, ...” 15. Interpretar, nesse sentido, é transvalorar os valores estabelecidos e inventar novos valores que são os da vida; e a vida é vontade de potência, o querer expandir, diferenciar-se. O desejo de se conservar, ou a busca de estabilidade, traduz uma vontade fraca, nem por isso menos ambiciosa de poder. Aliás, diz Nietzsche, “quanto menos se sabe 235 6 2004 comandar mais se aspira a fazê-lo, e a fazê-lo severamente”16. A vontade de se conservar é a restrição do instinto vital, pois tudo que vive quer expandir-se, tornar-se mais forte. A natureza é transbordante, marcada pelo excesso e não pela escassez. Conhecer não é tornar as coisas familiares, submetidas ao “órgão mais frágil e falível”17 que é a consciência. É o instinto do medo que movimenta o desejo de tornar o estranho conhecido. Nessa direção, conhecimento e consciência são forças de contenção da vida. Os experimentadores e inventores deixam fluir a natureza indomesticável. Os artistas da vida — “inconscientes e involuntários”18 — são os que imprimem formas e inventam novas tábuas de valores que são os da vida. Foi contra essa liberdade que se ergueram o Estado e a consciência. Segue-se, daí, todo o cortejo de responsabilidade e punição. As forças estão sempre em relação, agindo ou resistindo. Os corpos, sejam político, social ou biológico, são o resultado de forças que os atravessam. Como a expansão é própria das forças, exprimindo sua vontade de potência, a relação entre elas é de combate. A genealogia faz entrar em cena as lutas e as relações de forças, confrontando com a vontade de verdade da ciência. A genealogia, longe de ser o estudo de uma essência originária, ou significação oculta, é o procedimento de fazer emergir as forças, bem como a vontade de potência que as impulsiona, produzindo formas singulares e diversas de submissão. A história, nesse sentido, é a “emergência de interpretações diferentes”19. Seguindo essa via, Foucault afirma ser as “genealogias anticiências”20, seu alvo é o combate aos efeitos de poder de um discurso que se declara científico. As genealogias, ao explicitarem as relações de forças, desafiam os sabe- 236 verve Devires minoritários: um incômodo res que se pretendem totalizadores, que hierarquizam, ordenam e filtram, subjugando a multiplicidade e a dispersão dos saberes em nome de um discurso verdadeiro e unitário. O problema para o genealogista é fazer emergir as lutas, os saberes que na batalha foram silenciados, desqualificados ou domesticados. “Dessujeitar os saberes históricos e torná-los livres, isto é, capazes de oposição e de luta contra a coerção de um discurso teórico unitário, formal e científico”21, eis um dos empreendimentos da genealogia para Foucault. Segundo Foucault, Nietzsche como genealogista “recusa a pesquisa da origem”22, ou seja, de uma essência originária das coisas, uma verdade que possibilite um parâmetro ideal para servir de medida/fundamento ao devir histórico. Essa forma de saber, através do recurso da construção de um veio comum que encapsula a diversidade em uma totalidade, permite deslocamentos em direção ao passado sem ferir uma continuidade no presente. Serve, também, aos temerosos, que só se sentem seguros naquilo que reconhecem como idêntico a si mesmos. A genealogia dirige-se aos “começos inumeráveis”, explodindo as sínteses, as referências que buscam traçar coordenadas e um sentido supra-histórico. Seguindo a dispersão, os acidentes e os pequenos desvios, o genealogista encontra-se com inúmeros acontecimentos. Nietzsche, de acordo com Foucault, diferencia o estudo da proveniência daquele da origem que marca um pensamento tradicional em busca de parâmetros ideais e unitários. Nessa direção, afirma Foucault, “a pesquisa da proveniência não funda, muito pelo contrário, ela agita o que se percebia imóvel, ela fragmenta o que se pensava unido; ela mostra a heterogeneidade do que se imaginava em conformidade consigo mesmo”23. Com esse procedimento, o genealogista reintroduz no devir tudo o que fora aprisionado em identidades fixas. 237 6 2004 Seja com os genealogistas, Nietzsche e Foucault, seja com os cartógrafos, Deleuze e Guattari, o que está em jogo é a dissolução das identidades, a abertura aos fluxos mutáveis, sem referências que tornem as coisas objetos de reconhecimento ou recognição por um sujeito do conhecimento. O que ressoa entre eles é uma forma nômade, experimental e minoritária de pensamento, que não se deixa totalizar. A emergência da multiplicidade confrontando-se com o pluralismo, tão em voga no discurso atual, configura-se como um pensamento de combate. As totalidades englobantes neutralizam a virulência da multiplicidade numa forma de pluralismo, ou seja, o que é múltiplo se afirma de uma unidade prévia, a partir da qual se hierarquizam os saberes, ou se selecionam os interlocutores. O pluralismo domesticado, diferentemente da multiplicidade, faz convergir os saberes às exigências da ordem estabelecida e seu ideal é a reprodução dos poderes existentes. No pluralismo predomina a defesa do consenso e/ou de divergências que se dicotomizam e unificam. Como as operações do bom senso, o pluralismo, presente no discurso da atualidade, opera segundo uma partilha de poder-saber entre vários componentes. Previdente, essa distribuição visa conjurar a diferença. As multiplicidades são diferenças que não pressupõem nenhuma identidade a priori. Mais do que isso, não convergem, mas divergem dos valores e dos poderes instituídos. Denominamos de pluralismo o que Deleuze e Guattari24 denunciam como “pseudomultiplicidades arborescentes”25, distinguindo-as das “multiplicidades rizomáticas”. As multiplicidades-acontecimentos são o modo de ser tanto do pensamento como da sociedade, da história e da vida. A representação “arborescente” como modelo de pensamento procura bloquear o livre desenvolvimento das multiplicidades reais, traçando eixos de ordenação que se afirmam de uma unidade prévia, faz representar uma re- 238 verve Devires minoritários: um incômodo lação do Uno como sujeito e como objeto, dicotomizando e unificando. Essa forma de pensamento hierarquiza, identifica e neutraliza as multiplicidades nômades, ou de devir, em sistemas sedentarizantes por pontos e filiações. Romper com o modelo dualista de pensamento, em que os termos — sejam dois ou mais — se organizam a partir de identidades dicotômicas e unificadas, é abrir-se para as multiplicidades-acontecimentos. Indivíduos ou coletividades, afirma Deleuze, são feitos de linhas diversas. A primeira espécie de linha é a de segmentaridade dura, ou molar, que fixa as identidades, o gênero, a classe, a profissão, as instituições, ou seja, caracteriza segmentos bem definidos. Uma segunda espécie de linha compreende a de segmentaridade flexível, ou molecular, que atravessa a sociedade, os indivíduos e os grupos. As linhas moleculares não são segmentos, mas sim fluxos, micro-devires. Infixas, mutantes, as linhas moleculares fluem em zonas limiares características dos processos de transformações, sendo que seu tempo-espaço é o do acontecimento. Uma terceira espécie de linha, é a linha de fuga ou linha de ruptura. As três linhas são imanentes, constitutivas da sociedade, grupos e indivíduos. O estudo dessas linhas é a cartografia26. Uma sociedade ou “agenciamento coletivo” se define por suas linhas de fuga27. “O agenciamento — afirmam Deleuze e Guattari — é todo conjunto de singularidades e de traços extraídos do fluxo”28. Agenciar é um processo de diferenciação que recorta os fluxos e efetua novas configurações e, nesse sentido, corresponde sempre a uma invenção. Deleuze confere primazia às linhas de fuga, como ele mesmo diz, para garantir o “direito do intempestivo”. As linhas de fuga conjugam todos os movimentos de desterritorialização, campo de intensidades infixas que 239 6 2004 configuram um “campo de consistência” ou “máquina mutante”. Nas linhas moleculares, as desterritorializações “são relativas, sempre compensadas por reterritorializações que lhes impõem voltas, desvios, equilíbrio e estabilidade”29. Nas linhas molares as reterritorializações se acumulam para constituir um “plano de organização” ou “máquina de sobrecodificação”. As linhas de segmentaridade dura, ou molar, são agenciamentos de “máquinas binárias” bem diversas, como classes sociais, homem-mulher, público-privado, raças, etc. Essas máquinas são dicotômicas e operam diacronicamente, funcionando com distintos dispositivos de poder. Foi a analítica desses dispositivos que permitiu a Foucault, segundo Deleuze, inovar a análise da política, revelando a heterogeneidade dos mecanismos de poder e suas estratégias e rompendo com as abstrações jurídicas de Estado, lei e contrato. “Sobre a linha de segmentaridade dura, afirma Deleuze, deve-se distinguir os dispositivos de poder que codificam os segmentos diversos, a máquina abstrata que os sobrecodifica e regula suas relações, o aparelho de Estado que efetua essa máquina”30. A máquina de sobrecodificação é a que confere a ordem de uma dada sociedade, seus enunciados e saberes dominantes e a organização de seus segmentos. O Estado, embora nem sempre se confunda com a máquina abstrata de sobrecodificação, é a sua forma de agenciamento concreto31. Diferentemente das segmentaridades duras, os segmentos moleculares procedem “por limiares constituindo devires, blocos de devir, marcando contínuos de intensidade, conjugações de fluxos”32. A máquina abstrata não é de sobrecodificação, mas sim mutante, “marcando suas mutações a cada conjugação”33. O plano de imanência, próprio das máquinas mutantes, difere do plano de organização das máquinas de sobrecodificação, sendo que o agenciamento se dá por individuações, por acon- 240 verve Devires minoritários: um incômodo tecimentos. Não se trata de um dualismo de máquinas e planos, mas de uma multiplicidade de dimensões que implicam várias direções no âmbito de um agenciamento. As máquinas coexistem e concorrem em um “campo perpétuo de interação”. O que é possível comparar em cada caso é o movimento de desterritorialização das linhas moleculares e de reterritorialização das molares34. A multiplicidade de máquinas e planos que coexistem, combatem e rivalizam se confirma na existência de dois gêneros de ciências: uma “ciência régia” ou do Estado, cujo procedimento consiste em “reproduzir”, isto é, “a permanência de um ponto de vista fixo exterior ao objeto”35; e uma “ciência nômade” que “segue” os fluxos abertos, singulares, mutáveis, inventando problemas. O Estado, afirmam Deleuze e Guattari, sempre esteve em relação com um Fora, sejam as “máquinas mundiais” sejam as minorias nômades, segmentárias ou moleculares. As fronteiras entre ambas são permanentemente móveis. Se o Estado não pára de capturar, sedentarizar e organizar os fluxos nômades — que se renovam em linhas de fuga —, também a “ciência régia” procede da mesma forma com a ciência nômade, apropriando-se do seu conteúdo que, por sua vez , “não pára de fazer fugir os conteúdos da ciência régia”36. O que rivaliza os dois modelos de ciência é que as ciências nômades suscitam problemas e não soluções, o que obstaculiza seus efeitos de poder, ou sua dificuldade em se fazer autônoma e se fixar no poder. “No campo de interação das duas ciências, afirmam Deleuze e Guattari, as ciências ambulantes [ou nômades] contentam em inventar problemas cuja solução remeteria a todo um conjunto de atividades coletivas e não científicas”37. Tendo em vista as linhas, suas múltiplas dimensões e direção, Deleuze afirma que “toda política é um campo de 241 6 2004 experimentação ativa”38. Todos os processos de invenção ou experimentação são devires, movimentos de fuga às condições existentes, à sua forma atualizada e territorializada. Os acontecimentos são devires que se concretizam em ocorrências históricas individuais ou coletivas sem, contudo, serem totalmente integráveis ou se confundir com elas, mantendo sua face trans-histórica de metamorfose, como puro devir. Se a política é uma experimentação é porque não se pode prever a direção que tomará uma linha, pois em uma sociedade tudo escapa e, portanto, é possível definir uma sociedade por suas linhas de fuga, contra-efetuação em acontecimentos-devires. Pensar a política por acontecimentos implica se livrar das formas fixas de identidade subjetivas, sejam partidos, indivíduos e raças, sejam oposições e dualismos. Pensar e agir por acontecimento força a um devir-outro, estar no “meio” trocar o É pelo E, fazer do múltiplo um substantivo. “Uma multiplicidade, diz Deleuze, está somente no E”39. O E não é a simples soma de elementos, mas dá às relações uma outra direção, que se instala em uma linha de fuga: fuga das identidades, lançar-se ao aberto, conexão por composição em um plano de imanência. Devir-minoria: multiplicidade de fuga Todo devir é um devir-minoritário, é traçar uma linha de fuga do padrão ou modelo estabelecido, ou seja, da maioria. Fugir, nesse sentido, não é se recusar à ação e tampouco se evadir da realidade, mas um ato de criação — um experimento-invenção. Criar é começar algo novo, um deslocamento em direção aos fluxos mutáveis. Por isso, uma minoria nunca se deixa sedentarizar e também não constitui um conjunto fechado sobre si; e porque não se deixa fixar, seu movimento está sempre em conexão com outros devires-minorias. 242 verve Devires minoritários: um incômodo O que distingue uma minoria de uma maioria não é o número, mas sim “fazer valer a potência do não numerável”40. Ora, numerar supõe fixação identitária; ser minoria, pelo contrário, é diferenciar, subtrair-se, promover desvios, é inumerável porque é um contínuo deviroutro. O inumerável é a conexão entre dois conjuntos sem se identificar com nenhum deles, é o que escapa traçando uma linha de fuga41. Um devir-outro não é imitar as formas estabelecidas ou reconhecer-se no outro, mas conjugar fluxos desterritorializados, encontrar-se pelo “meio”. “O devir-mulher, devir-negro, devir-índio, etc. não é tornar-se mulher, negro, índio, tampouco agir como se fosse o outro por imitação”, mas, nas palavras de Deleuze, “um encontro entre dois reinos, um curto-circuito, uma captura de código onde cada um se desterritorializa”42. Trata-se de atingir uma zona de vizinhança, fazendo valer a potência do indefinido, isto é, deixar-se determinar apenas pelo devir. Tornase um outro e não o outro, o indefinido que, longe de ser uma generalidade, constitui-se em potência singular. Só se conectam devires-minoritários, pois uma composição se faz a partir de fluxos que se desterritorializam. “Um fluxo [afirma Deleuze] é algo intensivo, instantâneo e mutante, entre uma criação e uma destruição. Somente quando um fluxo é desterritorializado ele consegue fazer sua conjugação com outros fluxos, que se desterritorializam e vice-versa” 43. As formas identitárias, dicotômicas, unificam-se sem dispensar mecanismos de centralização que articulem as partes ao todo. É identificando que o aparelho de Estado realiza a captura. Um devir-minoritário não é o mesmo que assegurar a identidade para as minorias — excluídas do Estado, dos direitos de cidadania. Movimentos de busca de identidade ou se fecham em grupos isolados, ou reivindicam o reco- 243 6 2004 nhecimento de direitos iguais, ou seja, fazer parte de uma maioria. Não se pode ignorar que grupos minoritários, tão logo se sentem fortalecidos em sua identidade, buscam fixá-la na forma Estado. Uma minoria nunca define um estado, conjunto numerável, identitário, mas um movimento, um devir. Trata-se de desfazer as formas fixas que identificam indivíduos ou grupos. Abrir-se às forças e linhas do devir que nos atravessam e que não têm princípio nem fim. Devir é estar “entre”, é nomadizar, é sempre uma multiplicidade de fuga e, como tal, é uma “experimentação vida”44. Como toda experimentação, ultrapassa a possibilidade de prever, ou seja, saber antes o que vai acontecer. Experimentar é uma forma singular, um novo começo. Notas 1 G. Deleuze e F. Guattari. Mil platôs. São Paulo, Editora 34, vol. 5, 1997, p. 46. 2 Deleuze G. Diferença e repetição. São Paulo, Graal, 1988. 3 Trata-se de uma filosofia da representação em que as diferenças se subordinam à identidade no conceito pelo sujeito pensante, à semelhança no objeto, à analogia no juízo, à oposição no predicado. São as quatro raízes do princípio da razão. Qualquer diferença que escape a esses princípios será considerada “desmesurada, incoordenada, inorgânica”. G. Deleuze, idem, p. 415. J. J. Rousseau. Do contrato social. São Paulo, Abril Cultural, 1973, p. 49 (Coleção Os Pensadores). 4 5 S. Mill. Considerações sobre o governo representativo. Brasília, UnB, 1980, p. 19. 6 S. Mill. Sobre a liberdade. Petrópolis, Vozes, 1991, p. 56. 7 Idem, p. 119. 8 Ibidem, p. 123. 9 Ibidem, p. 63. 10 Ibidem, p. 63. 11 Ibidem, p. 64. 244 verve Devires minoritários: um incômodo 12 F. Nietzsche. A genealogia da moral. São Paulo, Companhia das Letras, 1998, p. 12. 13 F. Nietzsche. Gaia ciência. Lisboa, Guimarães Editores, 1996, § 344. 14 F. Nietzsche, Genealogia da moral. Op. cit. p. 138. 15 Idem, p. 139. 16 F. Nietzsche. Gaia ciência. Op. cit., § 347. 17 F. Nietzsche. Genealogia da moral. Op. cit. p. 73. 18 Idem, p. 75. M. Foucault. “Nietzsche, a genealogia e a história” in Microfísica do poder. Rio de Janeiro, Graal, 1993, p. 26. 19 20 M. Foucault. Em defesa da sociedade. São Paulo, Martins Fontes, 1999, p. 14. 21 Idem, p. 15. 22 M. Foucault, “Nietzsche, a genealogia e a historiai”. Op. cit. p. 16. 23 Ibidem, p. 21. G. Deleuze e F. Guattari. “Introdução: Rizoma” in Mil platôs. Rio de Janeiro/ São Paulo, Editora 34, vol. 1, 1995. 24 25 Idem, p. 16. 26 G. Deleuze e C.Parnet. Diálogos. São Paulo, Escuta, 1998, pp. 145- 170. 27 Idem, p. 158. 28 G. Deleuze e F. Guattari. Mil platôs. Vol. 5. Op. cit. p. 88. 29 G. Deleuze e C. Parnet. Op. cit., p. 159. 30 Idem, p. 151. 31 Ibidem, p. 150. 32 Ibidem, p. 151. 33 Ibidem, p. 151. 34 Ibidem, p. 155. 35 G. Deleuze e F. Guattari. Mil platôs. Vol 5, Op. cit. p. 40. 36 Idem, p. 34. 37 Ibidem, p. 42. 38 G. Deleuze e C. Parnet. Op. cit., p. 159. 39 Idem, p. 71. 245 6 2004 40 G. Deleuze e F. Guattari. Mil platôs. Vol. 5. Op. cit. p. 174. 41 Idem, p. 173. 42 G. Deleuze e C. Parnet. Op. cit. p. 57. 43 Ibidem, p. 63. 44 Ibidem, p. 61. RESUMO Pensamento nômade como incômodo, diante dos saberes régios. Pensamento de combate. Máquina de guerra, que investe na multiplicidade, e não no pluralismo, pois evidencia neste a preservação da forma-Estado. Como investimento em liberdades, Nietzsche, Foucault, Deleuze e Guattari interrompem os desdobramentos totalizantes do pensamento liberal. Palavras-chave: devir, multiplicidade, pluralismo. ABSTRACT The nomad thought as an annoyance before regal knowledge. Combat thoughts. War machine that goes through multiplicity and not pluralism; showing how pluralism keeps the state-form working. By investing in liberties, Nietzsche, Foucault, Deleuze and Guattari stop the totalizing continuities of liberal thought. Key words: becoming, multiplicity, pluralism. 246 verve Um incômodo: a acomodação um incômodo: a acomodação guilherme castelo branco* Uma música infantil fala do incômodo, numa ordem de grandeza crescente: um elefante incomoda muita gente, dois elefantes incomodam muito mais, três elefantes incomodam muita gente, quatro elefantes muito mais, enfim, em ordem aritmética, muitos elefantes incomodam muita gente. A música que fala desse incômodo com os elefantes, por sinal bastante escassos aqui nos trópicos, se repetida à exaustão, incomoda e é um incentivo à irritação. Os grandes paquidermes, todavia, não poderiam ser os campeões na brava arte de incomodar. Imaginemos os ratos, nos esgotos e subterrâneos da cidade, pensemos também nos ratos de superfície, e toda a fauna de seres asquerosos da urbe e do campo, bem menores que elefantes, para nos lembrarmos de que muita coisa incomoda. Os animais, e por extensão, os vegetais e minerais, no fim das contas, podem causar incômodo, mas não causam tanto incômodo assim. O que incomoda são coisas variadas, de diferentes naturezas e gêneros: o mundo que nos cerca, as estruturas sociais, os aparelhos de Estado, a ordem familiar, as organizações políticas, as conjunturas econômicas (sempre pes* Professor no Departamento de Filosofia da UFRJ. verve, 6: 249-258, 2004 249 6 2004 simistas), o zumbido dos mosquitos, o cotidiano que plasma os sonhos e leva à perda de toda esperança no porvir, a dor de ver tanta gente sendo morta de modo estúpido e brutal, ver pessoas se desgastando e desperdiçando a si mesmas por nada ou por muito pouco, o congestionamento, a falta de dinheiro, etc; inúmeras são as motivações para que a gente se incomode. Os agentes do incômodo são inumeráveis; os incomodados, infinitos. Entretanto, os incomodados, na imensa maioria dos casos, não se retiram, não são exterminados, não realizam nenhuma operação estratégica especial para se livrarem do que os incomoda. Na maioria dos casos, quando o incômodo é alicerçado nas desigualdades sociais, políticas, jurídicas, institucionais, eles suportam. Chegam a suportar, como as bestas de carga, tal peso de incômodo, que tornam aturáveis situações absolutamente desnecessárias e evitáveis, tais como viver em campos de concentração, participar de guerras. Muitos bandeiam-se para o lado dos que incomodam, tal como ser agente voluntário de controle social, ser psiquiatra internador convicto, ser carcereiro orgulhoso de sua tarefa, etc. É a civilização. Demasiado civilizados nos tornamos. Freud não descobriu a pólvora. Civilização e mal-estar sempre estiveram imbricados. A vida civilizada traz paradoxos: leva ao empobrecimento pessoal e à auto-aniquilação tanto quanto pode trazer formas de vida inventivas. Tanto é que podemos viver em casas de acordo com nossos estilos e conforme nossos recursos. Tanto é que podemos viver segundo nossas regras próprias, nossas invenções, nossos comandos e mandamentos. Pois em toda capacidade de autodeterminação, de autonomia, quando existe tal potência nos nossos horizontes existenciais, estão investidos muitos prazeres, gozos, usufrutos da vida. Pena que tão poucos ajam e façam algo dessa ordem, devido à sua própria condição, pois a massa de ex- 250 verve Um incômodo: a acomodação cluídos e alijados é enorme. Todavia, o mais estranho é ver que muitas pessoas, com possibilidade real de levar uma vida mais livre e autônoma, descartam de suas vidas todo potencial contestatário e criativo. Em si mesmo, sentir incômodo é um sentimento que tem seu lado positivo. Urgiria, para o incomodado, fazer algo para eliminar a fonte de tal sentimento. Se temos diante de nós ou em nós coisas que nos incomodam, bastaria encontrar a saída, no prazer, na tranqüilidade, na serenidade, em grandes intensidades para fora dos padrões de comportamento corriqueiros, pouco importa. Assim seria, mas não é. Espantoso fato da vida, os tempos modernos criaram tecnologias, dispositivos, métodos de levar a viver o incômodo no incômodo, sem que o incômodo seja percebido como tal. Estranho nosso tempo; vive-se a administrar, isto é, tornar insípido, o tempo, o dinheiro, o dia-a-dia, o bom-gosto, a dor, o sexo, a palavra. Tudo comedido. Tudo dominado. No labirinto do desentendimento humano, o anjo rebelde se debate em busca de uma saída, mas no mundo administrável a saída é não sair; basta ficar o mais quieto possível e administrar tudo que é visto como demasiado e excessivo, de maneira a se gerir um estilo de vida conformado, acomodado. Desde o período heróico da arte contemporânea, que podemos definir, um pouco arbitrariamente, como sendo aquele que vai de Lautreamont a Bataille, passando por Breton e Artaud, ficou claro que o modo de vida moderno era insípido. Que poderia ser pior ainda no porvir, cronificando a chaga da insensatez da conformidade pequeno-burguesa. Rimbaud, ainda bem jovem, quando fala de seus amigos de escola e da pequena cidade em que vivia, afirma: “...deixo que me conversem; desenterrei velhos imbecis do colégio: tudo que posso inventar de estúpido, de sujo, de mal, em ação e em palavras, eu passo para eles: pagam-me com cerveja e vinho”1. Fala Rimbaud de algo bem conhecido de 251 6 2004 todos nós; dos ganhos e benefícios secundários da vida medíocre, da vida acomodada, obtidos devido a se andar no bom caminho, de fazer o que todos fazem, ainda que esse bom caminho seja um faz-de-conta, seja hipocrisia ou semblent. Todavia, quando Rimbaud faz essa crítica ao modo de vida pequeno-burguês, não permanece num lugar ressentido; na verdade, Rimbaud é arrebatado por um chamamento, que o leva para além do razoável: “Quero ser poeta e trabalho para me tornar Vidente: o senhor não compreenderá nada e eu não saberei como lhe explicar. Trata-se de chegar ao Infinito pelo desregramento de todos os sentidos. Os sofrimentos são enormes, mas é preciso ser forte, nascer poeta, e eu me reconheci poeta. Não é culpa minha, absolutamente”2. Os artistas contemporâneos perceberam a necessidade de irromper no desconhecido, de desbravar novos territórios da linguagem, ainda que às expensas do despedaçamento do Eu, cartesiano ou não, ainda que sondando abismos que fragmentam toda representação habitual, acima de todo compromisso com as ordens cognitivas e especializações. Arte e alta magia se imbricam, tornando pequenas a ciência, a filosofia, a religião instituída, a arte subjetiva e comportada. Ao se perceber como vidente, Rimbaud, tomado aqui como simples exemplo, sabe que é compelido a uma experimentação artística onde todo um universo de co-possibilidades e de coexistências de coisas, reais ou irreais, materiais e imateriais, comparecem através dele, apesar dele, e mesmo sem ele. Trata-se de um desvelamento arrebatador do Real, bem maior que a realidade limitada na qual os saberes convencionais se apoiam. Percebe, num mesmo golpe, que a experiência artística tem um componente existencial e social indiscutível: o artista é e tem que ser um estranho iluminado, que vivencia uma iluminação profana, bem entendido, que o destaca necessariamente das formas de viver instituídas. O artista é vidente, profanador, 252 verve Um incômodo: a acomodação mago, desbravador. O autêntico artista traz para o mundo um pedaço de fogo sagrado. Ele vive aqui e alhures, e, por isso mesmo, não poderia ter um modo de vida burguês ou assemelhado, com seus valores e normas. O artista é um ser diferente por ter uma relação com a linguagem totalmente diferente e, por extensão, por possuir uma outra vivência dos códigos sociais. Nem todos os artistas contemporâneos partilharam ou partilham desse espírito livre e independente. Mas sem dúvida, a maioria deles, ao menos os que deixaram para a posteridade marcas inequívocas, assumiu o espírito novo ou a vanguarda com um modo libertário de ser e de viver. Michel Foucault denomina esse estilo de vida libertário de “vida artista”, e entende que é um modo de resistência ao poder, especial e digno de nota, que faz parte da luta pela autonomia, com o objetivo de livrar o sujeito dos controles e técnicas de normalização postos em jogo pelo conjunto multiforme das instituições contemporâneas. O modo de vida artista se contrapõe ao estilo de vida burguês; vejamos: “o prazer por si pode assumir, perfeitamente, uma forma cultural, como o prazer pela música. E deve-se compreender que se trata, nesse caso, de alguma coisa muito diferente do que se considera interesse ou egoísmo. Seria interessante verificar como, nos séculos XVII e XIX, toda uma moral do ‘interesse’ foi proposta e inculcada na classe burguesa — por oposição, sem dúvida, a todas as artes de si mesmo que poder-se-iam encontrar nos meios artísticocríticos; a vida ‘artista’, o ‘dandismo’, constituíam outras estéticas da existência opostas às técnicas de si que eram características da cultura burguesa”3. Não seria descabido, dessa maneira, falar de uma real oposição entre vida assujeitada e vida livre, desde que tendo no horizonte as determinações históricas, políticas e sociais com as quais todo indivíduo tem que lidar. 253 6 2004 Dentre as características que fazem a burguesia e, por extensão, as classes sociais a ela vinculadas e dependentes, se pensarmos em valores e padrões de comportamento mais usuais, a acomodação tem se revelado a mais empedernida e persistente. Como caracterizá-la, de modo breve? Como uma escolha, estratégica e calculada, de viver de acordo a uma certa “ignorância”. Para tentar abordar essa escolha pelo “desconhecimento que evita problemas e dá muitos benefícios”, vou me utilizar, seguindo sugestão de Michel Foucault, de algumas considerações kantianas. Kant escreve sobre essa ignorância, com muita pertinência, no Was ist Alflkärung, texto de 1784, quando fala do estado de menoridade, e vale a pena seguir suas considerações. Cito: “A menoridade é a incapacidade de se servir de seu próprio entendimento sem ser dirigido por outra pessoa. Ela deve-se a nossa própria culpa quando resulta não de uma falta de entendimento, mas de uma falta de resolução e de coragem para se servir dele sem ser dirigido por um outro”4. É de se notar que Kant não afirma que a menoridade é mera expressão da falta de entendimento, mas que ela é produto de uma deliberação, de uma escolha estratégica, pela qual os indivíduos, de um só golpe, delegam poder e submetem-se a algum padrão de autoridade. O que caracteriza a menoridade é a escolha decidida de não se ousar ser livre, deixando toda decisão e responsabilidade nas mãos de outros. Todo menor é aquele que delega poder de deliberação, de decisão, de ação. E isso independe, claro, de idade. Kant continua: “a preguiça e a frouxidão são as causas que explicam porque um número tão grande de homens, enquanto que a natureza os libertou, há muito tempo, de toda direção externa (naturaliter maiorenes ), permaneçam, entretanto, por livre vontade, durante toda a sua vida, menores; e também porque seja tão fácil para outros de afirmarem como seus tutores. É muito cômodo ser menor”5. 254 verve Um incômodo: a acomodação O tom do texto kantiano é indignado, possui passagens muito irônicas ao falar dos menores, ou acomodados, como pacatas criaturas, tímidas, temerosas de pensar, decidir, até de andar. Esse recurso à autoridade, em todos os campos da vida, segundo Kant, livraria os indivíduos (menores) da fastidiosa tarefa de pensar e de se conduzir, fazendo com que eles vissem toda ousadia e autodeterminação como penosas e perigosas. Triste destino da máxima socrática, desde o século XVIII: “eu sei que nada sei” converteu-se no lema daqueles que nada querem saber além da conta bancária, das aparências, da propriedade, do direito de herança. Aí, não tem dúvida: os membros das camadas burguesas querem saber; todavia, como muitas vezes não sabem tanto como deveriam ou poderiam, acabam por engordar a conta bancária de outros, mais bem informados ou espertos, em certas passagens críticas da vida institucional ou em certas épocas da vida pessoal. Por outro lado, a “ignorância” dos membros da pequeno burguesia e da burguesia, tem alcance político inequívoco: todos evitam arriscar-se em tematizar e/ou em se envolver com assuntos e práticas considerados cabíveis ou a autoridades competentes ou a pessoas fora dos padrões da normalidade, que se arriscam para além do esperado. Nesse particular, a acomodação tem forte caráter estratégico: tem a deliberada intenção de deixar aos decisores, governantes, aos políticos, aos padrões, ou às “oposições isoladas”, a tarefa de levar a cabo e de discutir certas operações “delicadas”, necessárias para que o mundo siga como está, na ordem pedida e estabelecida. No caso dos assuntos delicados e práticas fora dos padrões de normalidade, os que se aventuram nesses campos numa posição de resistência sabem dos riscos que correm: práticas corretivas, punitivas, prisão, internamento psiquiátrico; em certos casos, a morte. O outro lado da moeda, seria se criar um silêncio sobre o que poderia incomodar, através de uma ignorância 255 6 2004 ‘real’ e constitutiva da própria subjetividade, é fazer do processo de acomodação um processo de normalização. Daí decorrem indivíduos que não andam fora da linha e não falam demais, que são os bons moços, os felizes assujeitados. Os normalizados não são nem loucos, esquerdistas, anarquistas, terroristas, bandidos, nem pesquisadores e defensores da sociabilidade libertária... Enfim, a boa gente acomodada apercebe-se de que sua sujeição aos padrões de normalização é condição necessária para a preservação do bemestar, linha mestra dos valores em curso no mundo social contemporâneo. O bom comportamento recebe, por sua vez uma boa paga, como uma vida sem vicissitudes e sem maiores ameaças ou riscos. Neste mundo dos assujeitados, feito em nome do bem-estar, em nome do bom comportamento, em nome do silêncio, a melhor coisa a fazer é culpar os elefantes pelo incômodo: são eles, sobretudo eles, que incomodam muita gente. Enganam-se os que pensam que a operação produtiva do poder, ao constituir subjetividades normalizadas, tem como efeito real a instalação de uma atmosfera familiar, íntima, centrada na preocupação com o mundo imediatamente próximo. O egoísmo, característico da moral do interesse burguesa, é de tal monta, que acaba por esfacelar o próprio mundo familiar, que vive das aparências de um mundo sem grandes conflitos; na prática, os conflitos são de grande escala, a ponto de serem muitos os saberes e profissionais que intervém constantemente na célula familiar, em especial médicos, psicólogos, religiosos e até mesmo livros de aconselhamento (o que é uma demonstração cabal da crítica kantiana: a família é incapaz de resolver até mesmo os seus problemas, e todos nela permanecem menores). Dados de pesquisa recente, realizada pelo LAPS/ FIOCRUZ, vem demonstrar que a família burguesa ou pequeno burguesa brasileira solicita internação de um de 256 verve Um incômodo: a acomodação seus membros, em especial quando dispõe de recursos, em três casos principais: quando tem comportamento sexual demasiado inusual, quando torna-se demasiado generoso com os outros, quando decide mudar o curso de sua vida e virar artista. O núcleo familiar, no caso do artista, somente se tranqüiliza quando surge reconhecimento público, com sucesso financeiro. Enquanto o sucesso não vem, ele é um candidato constante à indigência e ao internamento psiquiátrico. No outro caso, o do excesso de prodigalidade, cabe notar um antigo provérbio do nordeste, que afirma que o sujeito está verdadeiramente louco somente quando rasga dinheiro. No caso de sexo bizarro, excessivo, explicitado, dispensamos comentários: já se falou muito nesse assunto. A acomodação, assim cria uma lei do silêncio e impõe padrões de comportamento através dos quais se evita todo contato possível com parcelas significativas da realidade e das subjetividades. A autonomia e a liberdade são mercadorias de troca nesse negócio, cujo preço é se abrir mão da coragem de desejar e de pensar. Para finalizar, lembro a todos uma expressão, que sintetiza o modo de acomodação em curso no Brasil, que tem força de lei e afeta todas as classes sociais: “manda quem pode e obedece quem tem juízo”. Isso me faz lembrar Henfil, nas cartas que publicou quando da época em que morou nos Estados Unidos, e de sua constatação óbvia, e porque óbvia muito inteligente, sobre o regime político em vigor na América, que vale hoje para o mundo, quase trinta anos depois: “ditadura do capital”. Notas 1 A. Rimbaud. A correspondência de Arthur Rimbaud. Porto Alegre, L&PM, 1983, p. 33. 2 Idem, p. 34. 257 6 2004 3 M. Foucault. Dits et Écrits, vol. IV. Paris, Gallimard, 1994, p. 629. I. Kant. “Réponse à la question: que’ est-ce lês lumière?” in Critique de la faculte de juger. Paris, Gallimard, 1985, p. 497. 4 5 Idem. RESUMO Trata-se de perceber, a partir de uma perspectiva libertária — segundo o ponto de vista da autonomia, liberdade, e auto-governo — o que é incômodo, uma vez que trivial e esperável, no mundo das escolhas sociais e históricas. A acomodação torna-se uma escolha que se faz de chofre, adequada como é com o modo de ser contemporâneo, onde a sociedade de controle estabelece prêmios para os assujeitados, de todas as idades. O mundo das escolhas fáceis, oferecidas pelas ordens sociais, não se mostra tão evidente e cômodo, como qualquer pessoa, com um mínimo de perspicácia, pode entender. Palavras-chave: autonomia, liberdade, acomodação. ABSTRACT The article seeks to demonstrate, from a libertarian perspective — according to the point of view of autonomy, freedom and selfgovernment — what is annoyance, since trivial and expectable, in the context of social and historical choices. The accommodation becomes a choice that one immediately makes, appropriate as it is to the way of being contemporary, where the society of control establishes prizes for the subjected ones, of any ages. The world of the easy choices, given by the social orders, does not show itself so evident and comfortable, as any person, with a minimum of shrewdness, can understand. Keywords: autonomy, freedom, accommodation. 258 verve O inumano o inumano manuel da costa pinto* Procuramos o Bem através do Mal. De Baudelaire a Artaud, de Dostoiévski a Céline, de Mallarmé a Beckett, a modernidade nos acostumou conviver com anti-heróis que buscam a transcendência e o sublime através da abjeção e da auto-imolação. O grotesco, o estranho, o disforme, o onírico, o desviante e o perverso são modos de, a um só tempo, presentificar a experiência do choque que está no cerne da condição moderna e de abalar nosso sistema de representações, constituindo, pela enunciação do não-sentido, um sentido renovado, conseqüente com a perda de um fundamento único para o existente. Esta crise do fundamento único (político, moral, religioso, metafísico) se confunde com a própria modernidade e com sua progressiva guinada estética (a transição da representação da verdade para as verdades da representação). Como diz Jean Starobinski em Montaigne em Movimento, “o discurso da ciência moder- * Editor , ensaísta e crítico no jornal A Folha de S. Paulo, jornalista e mestre em Teoria Literária pela USP, autor de “Albert Camus - Um Elogio do Ensaio” (Ateliê Editorial). verve, 6: 261-276, 2004 261 6 2004 na se desenvolverá (...) em uma polêmica incessante contra as ilusões da percepção sensível e da imaginação indisciplinada (...); o progresso do saber dará origem a uma confiança cada vez mais segura em relação aos poderes da consciência, armada do instrumento matemático e do método experimental. (...) O sensível, todavia, não pode ser apagado: é a experiência primeira. Mesmo quando triunfava, no século XVIII, a ‘verdade lógica’, foi preciso que a linguagem filosófica constituísse uma nova categoria — a da ‘verdade estética’ — para atribuir uma legitimidade (certamente inferior) ao que a natureza ou a arte oferecem à percepção direta de nossos sentidos. (...) Precisamente no momento em que se impunha incontestavelmente a abordagem ‘copernicana’ da realidade física, a literatura recebeu o estatuto que a caracteriza na idade moderna: é o testemunho de uma ‘experiência interior’, de um poder da imaginação e do sentimento, sobre os quais o saber objetivo não tem poder”. Aquilo que Starobinski diz sobre Montaigne vale para toda a modernidade, para um tipo de escrita que — a despeito do gênero literário ao qual pertença — está impregnada pela tensão entre a desesperança filosófica de compreender a essência do mundo e representações literárias que circulam ao redor desse vazio ontológico (o caráter irredutível da experiência interior e, por extensão, a realidade fugidia do mundo exterior), nomeando-o, trabalhando-o estilisticamente e restaurando, na superfície da obra, uma precária unidade de sentido, cuja nostalgia e impossibilidade animam o movimento da própria escrita. Essa “conversão estética”, que Starobinski identificou em Montaigne, pode ser encontrada tanto no niilismo perspectivista ou na filosofia da não-identidade quanto na absolutização do fenômeno estético con- 262 verve O inumano tida nas idéias de Novalis (“A poesia é a religião original da humanidade”) e dos primeiros românticos (que são, literariamente, os precursores da crise da razão que atinge seu apogeu no fim do século XIX). Na verdade, ao sugerir que existe uma linhagem de escritores que dramatizam a busca dos fundamentos dos seres e das coisas e os abismos de sua impossibilidade, estou pensando nos escritores que abordaram — de maneira mais ou menos explícita — um tema recorrente na literatura ocidental: o tema da morte de Deus. Presente em diferentes autores de diferentes épocas, o tema da morte de Deus pode ter diferentes conotações. Há, por exemplo, o topos romântico — analisado por Octavio Paz em Os Filhos do Barro — pelo qual poetas como Jean Paul ou Nerval anunciam, numa clave paródica em relação à religião, o desaparecimento de Deus na cena espiritual, que passa a ser ocupada (ou criada) pela mitologia pessoal de autores como Blake, Coleridge, Hölderlin, etc. Matando ou satanizando a divindade, o poeta romântico diviniza a poesia: “O poeta desaloja o sacerdote e a poesia se converte numa revelação rival da escritura religiosa”, conclui Paz. Mas há também uma conotação que corresponde a um espectro mais amplo: aqueles autores que — desconfiando dos poderes do conhecimento para atingir as essências e recusando-se a substituir o saber inessencial da filosofia e da ciência pela “verdade” estética — depositam a última esperança de transcendência numa autoridade divina cuja morte, quando se anuncia, só pode ser contemplada com um frêmito de pavor metafísico. O sentimento de solidão perante um céu vazio e as paisagens abandonadas pela graça, a devoção a cosmologias imaginárias, a construção de catedrais invisíveis, o sofrimento sem remissão e o gozo 263 6 2004 sem porvir, as contrições da razão, o apego desesperado a um corpo que apodrece, a corrupção moral de um mundo sem salvação, o impulso irresistível em direção a um absoluto no qual não se crê — são sentimentos que estão no cerne de um certo tipo de literatura em que as aventuras da forma sempre traem as meditações da moral e em que, inversamente, as aflições espirituais se desencadeiam a partir do contexto ficcional que as encena. É no âmbito dessa aflição existencial que nasce a representação literária da morte de Deus como uma espécie de emblema de uma determinada condição moral e de uma determinada estrutura epistemológica do homem diante do mundo. O autores que mais explicitamente formularam esse tema foram Nietzsche (sobre quem falarei mais à frente) e Dostoiévski. No caso do escritor russo, pode-se dizer que a seqüência central de sua obra, a cena que articula retrospectivamente toda a evolução de seus romances e contos, está naqueles capítulos de Os Irmãos Karamazov que compreendem o encontro de Ivan e Aliocha no traktir “A Capital” e a parábola “O Grande Inquisidor”. Não cabe aqui esmiuçar as diferentes possibilidades de interpretação destes episódios, mas talvez seja suficiente dizer que a personagem de Dostoiévski postula ali a insuficiência do saber humano para resolver as mais importantes questões espirituais e, assim, faz com que todas as nossas ações dependam da existência de um Deus que não existe ou que, na hipótese de existir, deverá ser negado. Para Ivan Karamazov, a inteligência está submetida “inteiramente à geometria euclidiana” e, portanto, não pode compreender que o sofrimento sobre a Terra seja justificável por um mundo que está para além das leis espaciais que a regem. 264 verve O inumano Sua resposta é uma rejeição daquilo que se pretende feito à imagem e semelhança de Deus: “Houve um velho pecador no século XVIII que declarou: Si Dieu n’existait pas, il faudrait l’inventer. E com efeito, o homem inventou Deus. (...) Quanto a mim, já resolvi há muito tempo não perguntar mais a mim próprio se foi o homem que criou Deus ou se foi Deus que criou o homem. (...) Assim, pois, eu aceito Deus de boa vontade, e também Sua sabedoria e Seus desígnios, que nós não conhecemos absolutamente”. E, depois de citar as atrocidades que acometem os inocentes, Ivan conclui: “Recuso-me categoricamente a aceitar o mundo de Deus; sabendo que ele existe, não o admito entretanto”. Tal rejeição assume duas feições ao longo do romance. A primeira é a afirmação pura e simples de que Deus não existe e que, portanto, “tudo é lícito” (frase que Ivan dissera na reunião com o starets Zossima e que Aliocha relembra ao final do encontro entre ambos), lançando o homem no mais profundo abismo moral. A segunda é a afirmação de que, mesmo que admitamos a existência de Deus, seus desígnios permanecerão ocultos, de modo que nossa liberdade para hesitar entre o Bem e o Mal é a fonte da maior aflição — à qual os inquisidores reagem oferecendo-nos uma servidão feliz, uma utopia negativa que já estava prefigurada nos devaneios de personagens demoníacas como o “homem subterrâneo” de Memórias do Subsolo, o Raskólnikov de Crime e Castigo e o Stavroguin de Os Demônios. É claro que não se pode tomar a personagem pelo autor/narrador e que o apólogo de Ivan Karamazov não se confunde com a voz de Dostoiévski, mas o fato é que a representação mais geral de Os Irmãos Karamazov coloca como eixo central do romance um problema que percorre toda a obra do escritor: de um lado, colhe as 265 6 2004 conseqüências morais do ateísmo, explorando ao máximo esse cenário do qual Deus se retirou sem deixar substituto; de outro, convida à reação assassina contra uma divindade que — ainda que existente — aprofunda o sofrimento dos humilhados e ofendidos. Pelas mesmas razões, o maior romance de Dostoiévski é uma espécie de pedra angular de toda uma tradição de escritores “deicidas”. Os Irmãos Karamazov concentra, em maior ou menor grau, as principais variações do tema da morte de Deus que percorrem a história da literatura e do pensamento ocidentais. Estão ali, claramente, a sensualidade herética de Sade, a melancolia desesperada de Leopardi, a santidade laica de Camus e o misticismo niilista (ou seria um ceticismo místico?) de Cioran. Mas, assim como esses autores vivenciam a experiência da falta de fundamento e elaboram o luto da perda de Deus (às vezes ostentado sob um véu de luxúria, como no caso de Sade), há uma outra categoria de autores que, procurando restaurar a ordem perdida através da arte ou do exercício da razão, acabam aprofundando as fendas sobre as quais se erguem edifícios destinados a reconciliálos com o mundo. A justificação do Mal em Santo Agostinho, a cosmologia poética criada por Dante para mitigar num plano poético ideal a crise do modelo teológico de apreensão do mundo, a religião natural de Montaigne, o deísmo de Diderot e os paraísos subterrâneos do próprio Dostoiévski são expressões daquela nostalgia da identidade que vem sempre de par com a consciência de sua impossibilidade. As tentativas que eles fizeram de “salvar Deus” muitas vezes aprofundam sua perda — o que pode ser vivido com pavor e patetismo (casos de Agostinho, Dante e Dostoiévski), mas também pode revelar as intenções ocultas de uma “apologia deicida” (casos de Montaigne e Diderot). 266 verve O inumano Esse breve (e certamente impreciso) panorama mostra até que ponto a necessidade de um fundamento para o humano acompanha a reflexão filosófica e a representação literária. Obviamente, o tema da morte de Deus é um caso limite — que, no entanto, está no coração da obra de um autor central para a filosofia contemporânea como Nietzsche. De alguma forma, o “deicídio” de Nietzsche é complementar ao de Dostoiévski. Neste, Deus é inaceitável por razões morais, mas, ao mesmo tempo, sua desaparição é sentida como uma tragédia para o homem. No caso do pensador alemão, os ídolos religiosos foram banidos pelo homem moderno, pelo Iluminismo confiante no progresso da ciência e desconfiado das superstições, mas sobrevivem na forma de abstrações (Bem, Mal, Verdade, Falsidade, Justiça, Virtude) que impossibilitam a reconciliação trágica do homem consigo mesmo — algo que só poderá acontecer com a morte de Deus, que Nietzsche anuncia em A gaia ciência. Seja como for, estes casos paroxísticos de crise da metafísica ou de tentativa de superação da metafísica apontam para um projeto claro: a preservação ou instituição da autonomia do humano e de suas esferas morais e existenciais. Divinizar a poesia ou dessacralizar Deus, reivindicar o direito humano de substituir Deus, mesmo que ao preço da submissão a uma natureza corrompida e destrutiva (Sade), ou ao preço de uma refundação política violenta do mito de Prometeu (caso dos niilistas russos) — todas essas propostas estéticoliterárias oscilam entre o reles e o sublime, mas há nelas uma fidelidade ao humano, a fidelidade a um além do homem formulado pelo próprio homem (Nietzsche) ou a fidelidade a um homem que está aí, com sua face abjeta e contraditória. 267 6 2004 A insubmissão e a perversão mais radical são, paradoxalmente, formas de defender a criatura contra o criador — e, mesmo quando estamos num registro distante dessas reverberações metafísicas, sente-se que há uma sacralidade profana na subversão, como acontece, por exemplo, com um escritor como Céline. Seu elogio da abjeção e sua confissão de egoísmo estavam destinados a ridicularizar todo e qualquer programa estético-político — e, no entanto, há tanta verdade nesse reconhecimento da mesquinharia e da covardia universais que a obra de Céline consegue o milagre de atingir o sublime através da sordidez, preservando intactas as iluminações de seu bas fond existencial e os encantamentos de sua prosa talhada por espasmos de agonia. Dos dadaístas aos surrealistas, de Artaud a Bataille, de Kafka a Beckett, nosso século iconoclasta é pródigo de seres insubmissos e espíritos revoltados que reivindicam a verdade da transgressão: o estranho, o grotesco, o outro advogam uma ampliação dos limites daquilo que é tolerável pela razão, até o ponto em que a própria razão é forçada a recensear seus domínios e a assimilar essa “perversidade polimorfa” como sendo sua segunda natureza. Através do Mal, enfim, chegamos ao Bem. *** Há algo de incômodo — já que esse é o nosso mote — nessa epifania, nessa reconciliação com o mundo através da negatividade. Sartre notou isso em seu livro sobre Baudelaire. Afinal, por que se insurgir contra o mundo, por que fazer profissão de fé no anátema, por que celebrar missas negras, por que glosar esse espetáculo de silêncio, dor, opacidade e desrazão se, ao final, os objetivos dessas heresias e dessas litanias do 268 verve O inumano Mal não diferem muito dos objetivos da moral e da espiritualidade convencionais? Se o exercício do Mal pelo Mal nos conduz a uma forma secularizada de Bem, esse exercício não difere em essência e necessidade — mas apenas como acidente e contingência — da busca do Bem em sentido metafísico ou idealista. Tal incômodo, porém, logo se dissipa se pensarmos que esse Mal libertador e essa verdade da transgressão culminam não em uma restauração da ordem do espírito, de uma abstração que renega o humano, mas numa fidelidade ao homem e a suas representações, numa ética da escrita. Pois é pela experiência da escrita, pela poiesis, pelo fazer poético, pelo ato de fabricar algo a partir de nossa dimensão limitada e mortal, que alternamos à incompreensível ordem divina uma outra ordem, humana, demasiado humana — a ordem das palavras, que certamente comporta transcendência (um além do homem), mas sempre a partir da imanência da linguagem. É nessa direção, aliás, que aponta a resposta de Bataille a Sartre em A literatura e o mal. Há, porém, um incômodo que me parece mais radical, justamente porque é a negação não da metafísica, do idealismo ou dessa imagem idealizada que afasta o homem do homem (negação que, afinal, culmina numa positividade). A história da literatura apresenta alguns casos raros em que a linguagem afirma sua insuficiência absoluta, enuncia a inutilidade da arte e, por meio desta, a inviabilidade fundamental do homem. Essa dupla recusa da vida e de suas formas de representação encontra expressão paroxística em Pascal e Tolstói, na condenação jansenista de toda existência mundana e na condenação da arte como forma de perpetuação da inutilidade humana. 269 6 2004 Pascal e Tolstói — autores tão díspares entre si — esvaziam todo e qualquer projeto de superação das contingências pela práxis e de refundação do sentido pela linguagem. Eles são, respectivamente, referência obrigatória para a separação razão pura/razão prática e para a consumação e apoteose do romance (essa epopéia do espírito); ao mesmo tempo, são incômodas expressões de anti-modernidade no coração da modernidade: Pascal e Tolstói não ultrapassam a desrazão essencial da existência por meio da transcendência espiritual, da idéia de liberdade ou da estetização, mas pela aniquilação simbólica (e pessoal) de qualquer laço de sociabilidade ou linguagem que preserve a memória do humano. Bem entendido, a anti-modernidade de Pascal e Tolstói não é de forma alguma algo que esteja no centro de suas obras. Se eles são um incômodo para essa modernidade que, de alguma forma continua a nos seduzir e que é o ar que respiramos, é porque há neles, em germe, um projeto de negação da autonomia do humano, do caráter prometeico que reconhecemos como nossa arché, como aquilo que nos dá forma, função, matéria e finalidade. Admitamos, por um momento, que Pascal e Tolstói sejam essencialmente modernos. A leitura que se faz de Pascal à luz da filosofia e da lingüística contemporâneas, por exemplo, vai bem além do sentido apologético de seus Pensamentos. Como observa Gérard Lebrun, ao substituir a ordem do mundo por uma ordem sobrenatural (a “ordem da caridade”), Pascal não estava se curvando à ortodoxia cristã, mas revelando que nada estaria ao alcance do homem pela razão — a não ser as propriedades físicas e inessenciais dos objetos do mundo. “Esse antimetafísico permane- 270 verve O inumano ceu obcecado pelo ideal de uma segurança que a metafísica — ele foi o primeiro a vê-lo — não podia mais trazer ao homem ocidental. E não é de forma nenhuma desvalorizar a fé cristã de Pascal ligar essa necessidade à força do seu investimento religioso: ele chamou de ‘Jesus Cristo’ o único centro que permanecia possível. (...) Se Pascal se submete, é a uma religião que recriou na medida das suas necessidades; se ele se abandona a Deus, é que encontrou um referencial na antropologia agostiniana. A fé de Pascal foi para ele um meio de expressão e não uma ‘última instância’ que teria condicionado seu pensamento e sua vida. Foi a mutação que ele operou da metafísica em religião que fez dele um Moderno no coração da idade clássica”. As conseqüências da hermenêutica pascaliana para a filosofia são bastante conhecidas. Antecipando Kant, ele anuncia o fim da metafísica e circunscreve a razão à descrição dos fenômenos do mundo natural, conferindo a suas meditações um fundo moral que — como um reflexo invertido desse mundo físico e “homogêneo” — encontra em Deus um ponto fixo que organiza e traduz sua verdade ontológica. E se esta é uma ontologia negativa, apenas entrevista, à qual o homem se agarra como consolação e aprendizado de sua condição miserável, isso não oblitera o caráter moral e, portanto, a finalidade antropológica de sua apologia religiosa. Da mesma maneira, pode-se dizer que os principais livros de Tolstói reafirmam o primado do humano. A própria escolha do “romance” (esse gênero burguês, esse épico do indivíduo) denota a adesão do escritor à pluralidade e à irredutibilidade da alma. Encontramos em Tolstói temas presentes nas obras de Rousseau, Schiller ou Stendhal (o “bom selvagem”, a aspiração ao sublime, as verdades parciais da vida afetiva). Uma obra como Ana Karênina reúne em suas personagens — e 271 6 2004 muitas vezes em uma única personagem — todo o mosaico possível de acepções do humano: os abismos interiores de desejo e culpa, os determinismos materiais e a tentativa de transcendê-los social e espiritualmente, as utopias políticas e religiosas, a fronteira tênue entre sanidade e demência, renúncia e ciúmes. Tolstói é o remate perfeito da épica burguesa, da arte como percepção do drama humano em sua totalidade fraturada — e seu repúdio ao estilo “mal-acabado” dos romances de Dostoiévski, por exemplo, demonstra o quanto havia de preocupação estética, de l’art pour l’art, nessa obra que se propunha flagrar os conflitos políticos de seu tempo (como é o caso de Guerra e Paz). No entanto, também é preciso admitir que Pascal e Tolstói são essencialmente anti-modernos. “A conversão verdadeira consiste em aniquilar-se”, escreve Pascal em seus Pensamentos. Deus é a única certeza que poderia nos oferecer um alívio. Todas as demais certezas (das matemáticas, da física, da substância extensa) são ontologicamente mudas: “O silêncio eterno desses espaços infinitos me apavora.” E em nenhum momento ele admite perder a possibilidade dessa certeza: melhor seria perder o homem. É essa a ética inumana da aposta pascaliana. Existem apenas duas possibilidades razoáveis: 1) Deus existe e, se apostarmos nele, ganhamos tudo (a salvação); 2) Deus não existe e, mesmo que apostemos nele em vão, não perdemos nada. A alternativa não-razoável seria apostar na concupiscência, no amor pela criatura, e constatar no além-túmulo que Deus existe, ganhando a danação. Logicamente, portanto, o razoável é optar pela danação na terra, na renúncia da vida em vida: a aposta pascaliana é uma forma de terrorismo lógico que assimila a conversão à aniquilação. 272 verve O inumano Tudo o que é certo é nada, menos Deus, que é tudo, ainda que seja incerto. Por isso, no opúsculo intitulado Sobre a conversão do pecador, Pascal insiste em que uma alma está convertida no momento em que “considera as coisas perecíveis como (...) já perecidas”, no momento em que “começa a considerar como um nada tudo aquilo que deve retornar ao nada, o céu, a terra, seu espírito, seu corpo, seus parentes, seus amigos, seus inimigos, seus bens, a pobreza, a desgraça, a prosperidade, a honra, a ignomínia, a estima, o desprezo, a autoridade, a indigência, a saúde, a doença e a própria vida”. Numa reunião dos aforismos pascalianos sobre os costumes e os poderes, André Comte-Sponville escreveu esta frase admirável: “O extraordinário em Pascal (...) é que ele não crê em nada: nem na justiça, nem nas leis, nem na tradição, nem no progresso. A fé o protegia de nossa superstições: ele só acreditava em Deus; o resto lhe aparecia sob a luz mais impiedosa, desprovido, não certamente de razão (qual o efeito sem causa?), mas de toda justificação ou legitimidade absolutas” (Pensamentos sobre a Política; grifo meu). Haveria forma mais eloqüente de definir a recusa radical do humano que subjaz à antropologia de Pascal? Essa defesa da aniquilação parece de maneira muito mais nuançada em Tolstói. Não encontramos em Tolstói um programa de degradação sistemática da vida em sociedade. Pascal falava para os libertinos; Tolstói era um libertino arrependido (talvez um libertino aposentado...). O autor de Ressurreição estava preocupado com o desenraizamento do povo russo e pregava o retorno à simplicidade da igreja primitiva e aos valores da vida camponesa — uma fuga do mundo tematizada, por exemplo, em um livro como Padre Sérgio. Em Tolstói, as crises religiosa, política (sua renúncia aos privilé- 273 6 2004 gios de nobre latifundiário) e até mesmo estética (sua rejeição da arte ao final da vida) podem ser interpretadas como expressão das frustrações de uma utopia inspirada em Rousseau. A crítica ao “homem inútil” contida em A Morte de Ivan Ilitch deságua no vazio sem consolo do humanista confrontado com a morte e com um mundo que lhe escapa por entre os dedos. Enquanto escreveu, Tolstói jamais conseguiu se libertar de seu próprio talento literário, em nenhum momento ele consentiu em transgredir as regras da grande arte como forma de superação de suas limitações: quando a arte se demonstrou incapaz de transformar o mundo, abdicou dela. Mesmo Ana Karênina, que deveria ser uma condenação da vida “mundana”, se desdobra em dois enredos paralelos (a história da adúltera Ana Karênina e do camponês aristocrático Liévin) que resultam numa sinfonia perfeita, uma sinfonia como as de Beethoven. Mas é justamente esse gênio da música que se transforma em um dos alvos de sua catilinária contra a arte supérflua, a arte distanciada do povo, a arte que ele degrada no libelo O que é a arte?. E é justamente Beethoven que fornece o mote para A Sonata a Kreutzer, a novela sobre um episódio de traição e crime passional em que Tolstói proclama o caráter nocivo das relações “artificiais”, dos saberes que garantem as relações sexuais como um fim em si mesmas (a medicina e seus métodos contraceptivos) e das artes que encarecem esses jogos de salão, essa coreografia dos corpos. Há um moralismo tosco, “evangélico”, em A Sonata a Kreutzer. Mas há também um naturalismo ambíguo que percorre essa novela envolvente na trama e repulsiva no conteúdo. Para Tolstói, os encantamentos da vida em sociedade contrariam a natureza (a narrativa é pródiga em aproximações entre os atavismos humanos e a vida animal), mas, ao mesmo tempo, a nature- 274 verve O inumano za humana se divorcia da natureza tout court pelos seus objetivos (progresso, elevação espiritual, Bem, verdade). Ou seja, os objetivos “naturais” do homem são uma negação da própria idéia de sociabilidade e, no limite, da própria perpetuação do homem: “A Humanidade podia desaparecer”, sugere a Pozdnichev (personagem central de A Sonata a Kreutzer), ao condenar a procriação como um fim desnaturalizado pela concupiscência. *** A radicalidade do espírito moderno está na demolição de todo fundamento, cujo emblema mais forte é o da morte de Deus, que afirma o primado do humano, a verdade de nossas certezas provisórias, nossa positividade negativa. O que seria, então, o avesso do moderno? Seria talvez a morte do homem (não no sentido foucaultiano, mas no sentido jansenista), o primado de um Deus ressurrecto, a verdade indiferente de nossas certezas teológicas. Pascal e Tolstói: dois crentes contra o homem, dois apóstolos do inumano. 275 6 2004 RESUMO A necessidade do fundamento para o humano, na literatura ocidental, encontra em percursos de escritores “deicidas”, uma problematização no limite. De tal forma que Deus, no Ocidente, evidencia a grande encruzilhada filosófica que deverá ser confrontada para pensar o humano: se Deus é moralmente condenável, a sua inexistência está no cerne da moderna tragédia humana. Palavras-chave: literatura, humano, modernidade. ABSTRACT The necessity of a definition for the human condition, in Western literature, provokes radical questionings made by deicide writers. In the West, God is the philosophical measure that have to be faced in order to establish the “human”: if God is morally wrong, His inexistence is on the core of modern human tragedy. Key words: literature, philosophy, modernity. 276 verve A “mulher cordial”: feminismo e subjetividade a “mulher cordial”: feminismo e subjetividade margareth rago* Nós podemos ir a qualquer lugar, menos para casa Gloria Wekker Décadas depois da incorporação dos estudos feministas e das discussões sobre a categoria do gênero nos debates acadêmicos e nas disputas políticas, é possível referir-se ao momento atual das lutas e reivindicações feministas como “pós-feminismo”, entendendo o conceito não como um marco temporal que indicaria um tempo depois, implicando um momento pré e um pós, mas a partir da instauração de novas configurações nas problematizações e relações que se travam no interior deste movimento. Nessa proposta de falar em “pós-feminismo”, não pressuponho evidentemente o fim do feminismo, acreditando que estaríamos vivendo num período posterior das lutas sociais e políticas das mulheres, segundo um recorte temporal que operaria com a linha da continuida* Professora no Departamento de História da Unicamp. verve, 6: 279-296, 2004 279 6 2004 de histórica, como se as conquistas feministas já tivessem sido todas elas alcançadas e consagradas. Muito pelo contrário, recorro, nessa direção, a Rose Braidotti, para quem “as feministas estão em uma ótima posição para saber que a desconstrução do sexismo e do racismo não acarreta automaticamente sua ruína...”1 Entendo, assim, inspirando-me também em Michel Foucault, que é possível perceber no contexto atual das batalhas feministas, uma nova relação que o feminismo estabelece consigo e nas imagens de si que projeta para o mundo2. Na atitude de meta-crítica, esta relação se caracterizaria por um dobrar-se sobre si mesmo, isto é, pela reflexão crítica sobre o próprio feminismo e por sua historicização, num movimento de avaliação e balanço de suas conquistas, avanços, limites e impasses, seja no campo das práticas, seja no do pensamento. Portanto, essa relação diferenciada também pode ser vista como efeito das próprias árduas lutas travadas pelas mulheres, ao longo dos últimos trinta ou quarenta anos. Resulta de muitas conquistas, a partir das quais um determinado patamar foi atingido, o qual poderia ser caracterizado por alguns aspectos, dos quais destaco quatro: a transformação nacional e internacional da própria imagem do feminismo, hoje reconhecido como um dos maiores e mais bem sucedidos movimentos do século XX, a exemplo das referências feitas a esse propósito pelo historiador inglês Eric Hobsbawm, em seu famoso livro A Era dos Extremos3; o reconhecimento da importância do feminismo brasileiro, como movimento social relativamente avançado em relação ao dos outros países, não só da América Latina; a desestigmatização da imagem da “feminista”, outrora associada às figuras negativas da feiura e da velhice, ou taxadas de “sapatão” e “mal-amadas”, desde seus inícios no século XIX; a maneira pela qual o feminismo se reconfigura e 280 verve A “mulher cordial”: feminismo e subjetividade generaliza amplamente, atingindo setores muito jovens da população, como moças de 15 e 16 anos. Em relação a esse aspecto, vale notar que, hoje, não apenas as mais jovens entram de outro modo no mercado de trabalho e no mundo público e social, isto é, com muito mais autonomia do que as mulheres experimentaram nessa idade em décadas anteriores, como também se encontram em condições de estabelecer relações de gênero bastante relaxadas e bem menos hierarquizadas, se compararmos novamente com aquelas vivenciadas pelas que tinham vinte anos, na década de 1960. A juventude pós-feminista, em boa parte educada por pais anti-autoritários, sobretudo nas camadas médias e mais intelectualizadas da população, mantém relações mais libertárias com o corpo, o sexo, o outro, a natureza e a vida. De certo modo, o discurso feminista, tanto quanto o ecológico, o étnico, para não falar do anarquista e socialista em geral foi incorporado em muitas dimensões, produzindo importantes efeitos na sensibilidade e no imaginário social, tanto quanto na vida cotidiana. Portanto, é possível afirmar que há um reconhecimento social, na atualidade, de que as lutas feministas afetaram positivamente a maneira pela qual se deu a incorporação das mulheres no mundo do trabalho, num momento de ampla modernização sócio-econômica no Brasil, desde os anos setenta, e que contribuiu para que houvesse uma grande mudança nos códigos morais e jurídicos, nos valores, nos comportamentos, nas relações estabelecidas consigo e com os outros, nos sistemas de representações e no modo de pensar. Especialmente a partir da constituição de um novo olhar sobre si e sobre o outro — e, nesse sentido, penso num processo de feminização cultural em curso, o mundo temse tornado mais feminino e feminista, libertário e soli- 281 6 2004 dário ou, em outras palavras, filógino4, isto é, amigo das mulheres e do feminino, o que resulta decisivamente do aporte social e cultural das mulheres no mundo público. Certamente, não deixo de considerar as constantes denúncias de violência sexual e moral praticadas contra jovens, as inúmeras formas de desqualificação e de humilhação a que são submetidas as mulheres cotidianamente, permanências que revelam que as conquistas estão longe de terem sido esgotadas. Embora seja visível que um determinado patamar de aquisições foi estabelecido, as negociações de gênero ainda estão muito longe de se encerrarem. No entanto, quero aqui privilegiar um outro aspecto que me parece menos discutido e que adquire sentido quando se aceita que, com todas as suas dificuldades e limitações, o feminismo criou um modo específico de existência, — muito mais integrado e humanizado, já que desfaz oposições binárias como a que hierarquiza razão e emoção —, inventou éticamente e tem operado no sentido de renovar e reatualizar o imaginário político e cultural de nossa época. Gostaria de examinar, mesmo que brevemente, a questão da crítica do sujeito e a da produção de subjetividade, na contemporaneidade, perguntando pelos modos de constituição de si propostos pelo feminismo. Novas imagens do feminismo Dentre as suas inúmeras críticas, o feminismo investiu incisivamente contra o sujeito, não apenas tendo como alvo a figura do homem universal, mas visando a própria identidade da mulher. Desnaturalizando-a, mostrou o quanto a construção de um modelo feminino universalizante foi imposta historicamente pelo discur- 282 verve A “mulher cordial”: feminismo e subjetividade so médico vitoriano, pelo direito, pela família, pela igreja, enfim, pelo olhar masculino reforçado principalmente nos centros urbanos, pelos estímulos da indústria de consumo. Já são inúmeros os estudos, pesquisas, livros, publicações e revistas que desconstroem as muitas leituras sobre o corpo e a fisiologia da mulher, sobre seus sentimentos, desejos e funcionamentos físicos e psíquicos, subvertendo radicalmente a ordem masculina do mundo, especialmente ao desconectar a associação estabelecida entre origem e finalidade, que justificava a definição de uma suposta essência feminina a partir de sua missão para a maternidade. Contudo, ao criticar esse ideal de feminilidade, que vigorou até as décadas de 1950/60, que dessexualizava a mulher e que valorizava a associação romântica do feminino com a esfera do mundo privado, o feminismo também abriu mão do corpo, da beleza, da estética e da moda, considerados reificadores, apropriando-se paradoxalmente do modo masculino de existência que questionava e, ao mesmo tempo, desconstruía. A feminista apareceu, então, na figura da “oradora”, da mulher que rompe o espaço público e toma a palavra, denunciando e revolucionando como os homens. De Olympe de Gouges às sufragettes, socialistas e anarquistas, como Emma Goldman e Federica Montseny, chegando ainda à “queima de sutiãs” em praça pública, desde o final dos anos sessenta, elas se opuseram à figura conservadora e santificada da “mãe”, enaltecida pelo discurso rousseauísta, provando que poderiam igualar-se, no espaço público, aos seus opositores, com muita competência5. Refiro-me a um passado relativamente recente, mas agora já passado, em que a dimensão desconstrutivista prevalecia nas percepções do feminismo. Isto porque as próprias mulheres que se identificam como feministas têm criado, desde então, novos padrões de corporeidade, 283 6 2004 beleza, cuidados de si, propondo outros modos de constituição da subjetividade, ou o que bem poderíamos chamar de estéticas feministas da existência6. Embora — e felizmente — já não seja possível definir um sujeito único do feminismo, pode-se afirmar que as feministas, de modo geral, estão preocupadas tanto com o refinamento do espírito, quanto com a beleza coporal, a saúde, a agilidade, a elegância e a moda, na construção de si e de uma nova ordem social e sexual. Portanto, a feminista deixou de ser a “oradora” pública de outrora, avessa à maternidade, enquanto que ser mãe também deixou de implicar necessariamente a perda do desejo sexual. Mostrando que poderiam existir modos diferentes de organizar o espaço, outras “artes de fazer”7 no cotidiano, da produção científica e da formulação das políticas públicas às relações amorosas e sexuais, a crítica feminista evidenciou que múltiplas respostas são sempre possíveis para os problemas que enfrentamos e que outras perguntas deveriam ser colocadas femininamente, isto é, a partir de um pensamento que singulariza, subverte e diz de onde fala. A crítica feminista foi radical ao buscar a libertação das formas de sujeição impostas às mulheres pelo patriarcalismo e pela cultura de consumo da sociedade de massas e, se num primeiro momento, o corpo foi negado ou negligenciado, como estratégia mesma dessa recusa das normatizações burguesas, desde os anos oitenta, no Brasil principalmente, percebe-se uma mutação nessas atitudes e a busca de novos lugares para o feminino, o que implica a emergência de novas formas de feminilidade, de novas concepções de sexualização, beleza e sedução, inclusive corporais, que poderiam aproximar-se, como mencionamos acima, daquilo que Foucault definiu como “artes da existência”, isto é, técnicas de constituição estilizada da própria subjetivida- 284 verve A “mulher cordial”: feminismo e subjetividade de desenvolvidas a partir das práticas de liberdade. Para Joel Birman, aliás, essa década marca o retorno triunfal de Carmen, personagem sensual, sedutora, quente, erotizada, com seu vestido decotado e vermelho, radicalmente oposta à mulher assexuada e santificada do imaginário ocidental tradicional, seja da mãe abnegada, seja da feminista ressentida e masculinizada, ou a “oradora”, a que se refere Joan Scott8. Como diz esse autor:“(...) Carmen se apresenta agora também semcerimônia e resplandecente na sua sublime beleza, não apenas para assumir inteiramente como também para viver radicalmente as possibilidades entreabertas por suas paixões. O excesso é a marca fundamental da personagem, sem dúvida”9. É possível observar, pois, uma certa erotização também no feminismo. Nesse sentido, a mãe pós-moderna integrou a figura da “mulher independente”, pois além de emancipada e, muitas vezes, chefe de família, ela quer gozar sexualmente. Ademais, num outro polo, constata-se que até as prostitutas se tornaram feministas, recusando sua antiga identidade construída a partir de parâmetros estabelecidos pela medicina vitoriana e pela antropologia criminal, para se pensarem como “trabalhadoras do sexo”, sem a presença dos antigos gigolôs e cafetões. Se o feminismo não soube trabalhar a questão da prostituição, procurando muito mais contorná-la do que enfrentá-la diretamente, se o abismo que separou militantes feministas e prostitutas poucas vezes foi transposto, não há dúvida de que as “mulheres públicas”, como antigamente se chamavam, souberam muito bem incorporar várias das proposições e práticas experimentadas e defendidas por aquelas. Certamente esses não foram os únicos saldos, em termos da produção da subjetividade, trazidos pelo feminismo. Aqui, abordo o lado conservador desse processo, 285 6 2004 uma vez que esse movimento também produziu aquelas que copiaram e traduziram o modelo retrógrado do “coronel urbano”, dando vida à figura da “mulher cordial”, que até há pouco tempo não constava do repertório brasileiro das subjetividades femininas. O “homem cordial” era uma figura essencialmente masculina. A “mulher cordial” Antes de avançar a discussão e para evitar confusões, gostaria de fazer alguns esclarecimentos. Entendo a cordialidade definida por Sérgio Buarque de Holanda, em sua pioneiríssima obra Raízes do Brasil10, de 1936, como a expressão de uma maneira de ser que nada tem a ver com a bondade e a tradicional passividade atribuídas ao povo brasileiro, como explica seu autor: “Seria engano supor que essas virtudes (a lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade) possam significar “boas maneiras”, civilidade. São antes de tudo expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante”11. Trata-se, antes, de uma subjetividade privatista, que se manifesta através de comportamentos e práticas de apropriação privatizadora do mundo público, práticas de apossar-se do espaço, fazendo do público o “quintal da própria casa”, como observaram vários autores. Para Holanda, o pater poder inconteste e ilimitado, o predomínio da família e da casa-grande sobre o Estado e a vida pública, a ditadura do campo sobre as cidades, a extensão do poder da esfera privada impediram a formação do conceito de cidadania, no país. Foram sempre muito grandes os obstáculo para se mudar “a mentalidade criada ao contato de um meio patriarcal, tão oposto às exigências de homens livres e de inclinação cada vez mais igualitária”12. 286 verve A “mulher cordial”: feminismo e subjetividade Portanto, a subjetividade cordial opõe-se radicalmente àquela desejada e prometida pelo feminismo, que se constituiria a partir de uma intensificação dos cuidados de si, muito próxima à perspectiva desenvolvida por Foucault, e que se caracterizaria por uma abertura em relação ao outro e pela capacidade de estabelecer novos vínculos de sociabilidade, baseados no reconhecimento da diferença, na amizade e na solidariedade13. Para esse filósofo, esse trabalho de reinvenção de si implica uma dimensão intersubjetiva, pois o indivíduo se constitui na relação com o outro, e não isoladamente, e fundamentalmente comporta uma atitude ética, pois se trata do exercício da liberdade. Nessa direção, a feminista abrigaria uma subjetividade libertária, capaz de demarcar os limites entre os seus interesses pessoais e os do público, ao contrário da personalidade narcísica e egocêntrica, isto é, daquela que confunde e sobrepõe o privado no público, como alerta Richard Sennett, ao discutir a falência do “homem público” e a descrença no político, no mundo contemporâneo14. Na linha de raciocínio que estou desenvolvendo, portanto, a feminista teria uma função social especial no sentido de ajudar a refazer as sociabilidades públicas, cada vez mais desgastadas e destruídas pela privatização do cotidiano, isto é, pela desvalorização da política e pela sobreposição, no mundo público, do modelo da amizade constituído pela referência familiar, isto é, na esfera da vida privada. Esse modelo, como bem conhecemos, seleciona alguns pares para serem considerados “amigos”, a partir da referência dessexualizada da fraternidade, excluindo todo o resto como inimigos em potencial. Portanto, não pode servir de base para a constituição de novas redes de relações de amizade, como adverte o filósofo Francisco Ortega: 287 6 2004 “A amizade é um fenômeno público, precisa do mundo e da visibilidade dos negócios humanos para florescer. Nosso apego exacerbado à interioridade, a ‘tirania da intimidade’, não permite o cultivo de uma distância necessária para a amizade, já que o espaço da amizade é o espaço entre os indivíduos, do mundo compartilhado — espaço da liberdade e do risco — , das ruas, das praças, passeios, dos teatros, dos cafés (...)”15. É a partir dessas referências que me refiro, aqui, às mulheres que adotaram o modelo masculino do “homem cordial” e tornaram-se “coronelas” — palavra que ainda não consta de nossos dicionários, pois o fenômeno é recente —, em suas instituições, casas, escolas, escritórios, universidades, ongs, de uma maneira profundamente nociva às concepções formuladas pelo movimento feminista. Afinal, a “mulher cordial” é sedentária e reafirma o lar, ao invés de abandoná-lo. E como diz Rose Braidotti, na esteira de Deleuze, é preciso “abandonar o lar”, lugar privilegiado da constituição de identidades normatizadas, “porque o lar é freqüentemente local do sexismo e racismo — um local que nós precisamos retrabalhar política, construtiva e coletivamente. Ao que eu acrescentaria, com Deleuze e outros, identidades fixas devem ser abandonadas, como o local sedentário, que produz paixões reativas tais como ganância, paranóia, ciúme edipiano e outras formas de constipação simbólica”16. Essa questão é fundamental, a meu ver, pois o feminismo firmou um compromisso social, principalmente num país em que nasce pelo impulso e pela iniciativa de mulheres ativistas de esquerda, de presas políticas e de exiladas envolvidas com as lutas pela redemocratização e pela mudança social, ou seja, cercado por figuras que lutaram pela definição de uma identidade pública e ética da mulher prioritária à privada. 288 verve A “mulher cordial”: feminismo e subjetividade Assim, se no Brasil, o feminismo nasce e se caracteriza como um movimento de esquerda, independente do grupo político e partidário que apoie ou pelo qual seja apoiado, é de se perguntar como pode ter produzido e reproduzido figuras tão conservadoras e autoritárias, inspiradas na cordialidade da “casa-grande”, se já nos anos trinta, um historiador liberal como Sérgio Buarque acreditava que o “homem cordial” estava em vias de extinção, com a modernização dos costumes e a democratização cultural? Minha pergunta, nesse sentido, pode ser formulada nos seguintes termos: como foi e tem sido possível a existência dessa forma de subjetividade narcisista entre as feministas, se estas mesmas estiveram criticando incisivamente as relações de poder e as formas de sujeição de e entre homens e mulheres? Como o feminismo pôde acolher um modelo masculino de relação, baseado na exploração e opressão entre mulheres e fortalecer aquelas que se beneficiam de determinadas situações e status para afirmarem hierarquias entre as próprias mulheres? Hierarquia e feminismo deveriam ser termos antitéticos, como nos ensinou o feminismo libertário do passado, através das experiências de figuras como Emma Goldmann, Luce Fabbri, Maria Lacerda de Moura, as “Mujeres Libres” espanholas e tantas outras. Em se tratando da construção de novas formas de vida em sociedade, mais humanizadas e solidárias, já sabemos que não é suficiente um mundo feminista, se não for libertário. É claro que até recentemente a questão da produção de subjetividade não havia adquirido a visibilidade e importância que assume nos debates contemporâneos, no Brasil e no mundo. Contudo, isso não significa que não se criticassem as figuras autoritárias de nosso universo social e político, especialmente marcado pelo clientelismo, ou que não se buscassem novos modos de 289 6 2004 experiência. Negando as práticas e visões masculinas autoritárias, aquelas que abraçaram a causa da emancipação feminina lançaram críticas contundentes às formas hierárquicas e excludentes de organização social e cultural, insistindo e visando promover uma ampla transformação nas relações sociais e de gênero. Mas, desde que se tem falado nas “relações de gênero”, deslocando-se deste modo da “filosofia do sujeito” para a “pensamento da diferença”, fortemente marcado pelas teorias pós-coloniais, por filósofos pós-estruturalistas como Foucault, Deleuze e Derrida e por talentosas intelectuais feministas como Luce Irigaray e Julia Kristeva, como aceitar essas formas de sujeição que são impostas a outras e a si mesmas e que manifestam movimentos repetidos de uma reterritorialização profundamente indesejável? Afinal, em nossos tempos, já não é necessário masculinizar-se — e aliás a própria masculinidade deixa de definir-se pelo tão criticado “coronelato” — para adentrar na esfera pública, e nem as que se definem como lésbicas necessariamente valorizam exclusivamente o masculino. Vale notar como o próprio movimento gay se masculinizou, enquanto o feminismo se feminizou. Ou nos hibridizamos... Pergunto-me como se coloca para o feminismo brasileiro, entre teóricas e militantes, a questão da figuração de novas subjetividades, questão que certamente não afeta apenas o Primeiro Mundo, se não se visam apenas transformações das condições de exterioridade. Como pergunta a historiadora Tânia Swain, preocupada em desconstruir a suposta identidade-essência feminina: “Quem somos ‘nós’”, assim, encerrados em corpos sexuados, construídos enquanto natureza, passageiros de identidades fictícias, construídas em condutas mais ou menos ordenadas? Quem sou eu, marcada pelo feminino, representada enquanto mulher, cujas práti- 290 verve A “mulher cordial”: feminismo e subjetividade cas não cessam de apontar para as falhas, os abismos identitários contidos na própria dinâmica do ser?”17 Rose Braidotti, por sua vez, aproximando-se de Deleuze, em sua defesa das subjetividades nômades, propõe: “...figurações de subjetividade móveis, complexas e mutantes estão aqui para ficar. Falando como uma mulher feminista branca, anti-racista, pós-estruturalista, européia, eu apoio figurações de subjetividade nômade, para agir como uma desconstrução permanente do falologocentrismo eurocêntrico. Consciência nômade é o inimigo dentro desta lógica.” É nessa lógica, a meu ver, que as discussões sobre as relações de gênero têm sentido, como um modo de escapar da filosofia do sujeito e das armadilhas da afirmação das identidades, para entrar num novo campo epistemológico e político, capaz de se abrir para a formulação de novas perguntas e respostas, ou antes, para novos modos de existência. É, ainda, nesse sentido, que o diálogo com Foucault e Deleuze, entre outros filósofos contemporâneos, tem sido fundamental para o feminismo, pela profunda crítica que lançam ao pensamento cêntrico e à ciência ocidental, fundados na lógica da identidade, assim como pelas saídas que apontam. Perguntando “o que o feminismo tem a oferecer ao futuro do pensamento? O feminismo teria um futuro no pensamento?”, Elisabeth Grosz afirma a necessidade de reconceitualização do que o feminismo entende por subjetividade, já que discorda que se trata de libertar as mulheres, pois reconhecer identidades seria defender uma política servil: “O feminismo (...) é a luta para tornar mais móveis, fluidos e transformáveis, os meios pelos quais o sujeito feminino é produzido e representado. É a luta para se produzir um futuro, no qual as forças se alinham de 291 6 2004 maneiras fundamentalmente diferentes do passado e do presente. Essa luta não é uma luta de sujeitos para serem reconhecidos e valorizados, para serem ou serem vistos, para serem o que eles são, mas uma luta para mobilizar e transformar a posição das mulheres, o alinhamento das forças que constituem aquela ‘identidade’ e ‘posição’, aquela estratificação que se estabiliza como um lugar e uma identidade.” Muito próximo a Foucault e Deleuze, trata-se então de recusar o que somos, as subjetivações femininas ou masculinas que nos são impostas pelo Estado e, portanto, a identidade-mulher-santificada, tanto quanto a subjetividade cordial, retrógrada e autoritária. O feminismo tem uma dimensão política profundamente crítica e libertadora, que não pode ser negligenciada, afinal foram e têm sido imensas as suas contribuições, especialmente ao questionar as formas e as práticas masculinas de um mundo que, misógino, é opressivo para as mulheres e ao mostrar como a ciência fundamentou essas concepções, com seus conceitos sedentários, mascarando sua realidade de gênero. Portanto, o feminismo trouxe esperança, juntamente com novas imagens do pensamento, ao revelar que o mundo também poderia ser outro, isto é, feminino e filógino, e que as mulheres não são apenas sistemas reprodutivos passivos, nem natureza transbordante e incontrolável ameaçando destruir a cultura, com seu desejo ninfomaníaco e selvagem, como sugerem várias peças e filmes, a exemplo de Salomé e O Anjo Azul. O feminismo deixou claro, ainda, que as feministas são capazes de inventar novos mundos, organizar de modo não-elitista, dar respostas diferentes das já conhecidas e que não satisfazem apenas a alguns setores sociais e sexuais. Mostrou que as mulheres podem criar 292 verve A “mulher cordial”: feminismo e subjetividade novas ciências — novas formas de produção de conhecimento, as epistemologias feministas, transversais, pois as mulheres estão em todas as classes e grupos sociais, orientadas por agendas feministas, como observa Sandra Harding. Finalmente, o feminismo não visou apenas o benefício das mulheres, pois atingiu e desestabilizou também a solidez da identidade masculina do guerreiro, em oposição ao modelo aristocrático de masculinidade da “sociedade de corte”, e reforçada pelo sucesso de Tarzan, desde os inícios do século XX18. Expondo a unilateralidade e limitação dessa identidade masculina, que exclui tudo o que é considerado culturalmente feminino, como as emoções, os sentimentos, a fragilidade e a possibilidade de experiências e vivências mais reais, porque mais integradas psiquicamente, forçou a busca de novas formas de redescrição de si também para os homens. Como afirma aquela autora: “Portanto, nessa linha de raciocínio, as mulheres não são as agentes exclusivas do conhecimento feminista. O pensamento feminista deve fundamentar suas análises críticas da natureza e das relações sociais no âmbito das vidas das mulheres. Entretanto, os homens também precisam aprender como fazer o mesmo a partir das suas condições históricas e sociais particulares, agindo como homens traidores da supremacia masculina e das relações de gênero convencionais”19. O feminismo, tanto enquanto teoria, como enquanto prática, teve e tem uma função social eminentemente política, por seu potencial profundamente subversivo, desestabilizador, crítico, intempestivo, assim como pela vontade que manifesta de tornar o mundo mais humano, livre e solidário, seguramente não apenas para as mulheres. Por tudo isso, não pode recuar diante do enorme desafio que é uma avaliação contínua das próprias 293 6 2004 subjetividades e dos estilos éticos e estéticos de existência que promove, impedindo a ação das forças reterritorializantes paralizadoras, pois modos feministas de existir só devem se tornar incômodos enquanto movimentos intensos de afirmação da vida. Notas R. Braidotti. “Diferença, diversidade e subjetividade nômade”, Revista online Labrys, estudos feministas, n.1-2, julho-dez. 2002; Tânia Navarro Swain,“As teorias da carne: corpos sexuados e identidades nômades”, Revista on-line Labrys, estudos feministas, ns. 1-2, jul.-dez.2002. 1 2 M. Foucault. “Qu´est-ce que les Lumières?” in Dits et ecrits. Paris, Gallimard, 1994. 3 E. Hobsbawm. A era dos extremos. São Paulo, Companhia das Letras, 1996, p. 304. Veja-se a respeito M. Rago. “Feminizar é preciso. Por uma cultura filógina” in Revista São Paulo em Perspectiva, São Paulo, Sead, 2002. 4 5 J. Scott. “Fantasy echo: história e a construção da identidade” in Revista online Labrys, estudos feministas, números 1-2, jul.-dez. 2002. 6 Reporto-me obviamente ao conceito de M. Foucault desenvolvido na História da sexualidade: o uso dos prazeres. vol II, Rio de Janeiro, Graal, 1984. No sentido utilizado por M. de Certeau em A invenção do cotidiano. Petrópolis, Vozes, 1994. 7 J. Birman. “Se eu te amo, cuide-se” in Cartografias do feminino. Rio de Janeiro, Editora 34, 1999. 8 9 10 Idem, p.67. S. B. de Holanda. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro, Ed. José Olympio, 1982. Idem, p. 107. O autor prossegue, em nota de rodapé: “Cumpre ainda acrescentar que essa cordialidade, estranha, por um lado, a todo formalismo e convencionalismo social, não abrange, por outro, apenas e obrigatoriamente, sentimentos positivos e de concórdia. A inimizade bem pode ser tão cordial quanto a amizade, nisto que uma e outra nascem do coração, procedem, assim da esfera do íntimo, do familiar, do privado”. 11 294 verve A “mulher cordial”: feminismo e subjetividade 12 Idem, 104. Veja-se M. Rago. “Sexualidade e identidade na historiografia brasileira” in Maria Andrea Loyola (org.) A sexualidade nas Ciências Humanas. Rio de Janeiro, Editora da UERJ,1998, pp. 175-200. M. Foucault. História da sexualidade: o cuidado de si. vol. III, Rio de Janeiro, Graal, 1985. 13 14 R. Sennett. O declínio do homem público. S. Paulo, Companhia das Letras, 1989. 15 F. Ortega. Genealogias da Amizade, São Paulo, Iluminuras, 2000, p. 161. 16 Braidotti. Op. cit. 17 Swain. Op. cit. 18 E. Badinter. XY, La identidad masculina. Barcelona, Editorial Norma, 1993. S. Harding. Whose Science? Whose knowledge? Ithaca, New York, Cornell University Press, 1991, p. 311. 19 295 6 2004 RESUMO A atualidade do feminismo apresenta-se como pós-feminismo revelando novas relações que são possíveis no interior deste movimento. A emergência, no Brasil, de novas formas do feminino, próximas do que Foucault chama de artes da existência, e que interrogam a universalização da mulher como reação ou repetição do homem. Palavras-chave: feminismo, subjetividade, Foucault. ABSTRACT The contemporariness of feminism presents itself as a post-feminism, which reveals new relations that can be developed inside this social movement. The emergence, in Brazil, of new forms of feminism related to Foucault’s arts of being. This perspective queries the universalisation of woman as a reaction or repetition of man. Key words: feminism, subjectivity, Foucault. 296 verve Uniformidades e anarquia uniformidades e anarquia edson passetti* Crianças indo para a escola uniformizadas, é uma imagem que atravessa lembranças e o dia-a-dia. Crianças uniformizadas entrando e saindo da escola, aprendendo a obedecer, a formar uma identidade, compondo um rebanho. Às vezes, dentre elas, a ovelha negra, o lobo. Uniformizadas desde pequenas, crescem até se tornarem adultas, atravessando os esportes, as fábricas e escritórios, laboratórios, hospitais, seminários e conventos, prisões. Crianças, jovens e adultos, uniformizados aprendem a trabalhar, a buscar a cura do corpo ou do espírito e por quem cuide de suas almas. Educados, eles sabem respeitar os castigos e temem as penas aos delitos cometidos. Procuram ser obedientes e responsáveis. Aguardam pelos pastores que zelam pela permanência da uniformidade, pelo voluntário assujeitamento ao superior de cada patamar da hierarquia que consagra a soberania da autorida- * Professor no Departamento de Política e no Programa de Estudos PósGraduados em Ciências Sociais e Coordenador do Nu-Sol (Núcleo de Sociabildade Libertária) da PUC/SP. verve, 6: 299-318, 2004 299 6 2004 de central. Atuam em busca de direitos e querem melhorar de vida. Crianças indo para escolas sem uniformes, vagando pelas ruas surpreendendo num furto ou assalto, numa brincadeira circense nas esquinas com o semáforo fechado, também estão em nossa vida diária transitando a pé, de ônibus, trem, lotação ou automóvel. Elas estão, escaparam ou foram expulsas da escola. Aprenderam a obedecer de maneira diversa no interior de uma educação pelo castigo. Umas, por adesão ou omissão, introjetaram valores disseminados por adultos; outras, aprenderam a obedecer por meio de sofrimentos físicos regulares aplicados ao corpo. Para umas o castigo corporal ou moral é um dispositivo terminal, a fronteira inevitável da eficaz educação familiar e escolar; para outras o castigo físico é a expressão do quanto se é intolerável diante da ordem. De ambos os lados, convivemos com realizações do castigo, como pedagogias que ensinam as crianças, na família e nas escolas, a aprender a viver em sociedade, zelando pela autoridade central. O superior deve ser desejado e alcançado por meio do respeito às normas e leis: é mantendo hierarquias e consolidando a autoridade central que se perpetua a saúde da sociedade, do país. A criança educada pelos valores superiores inicia e conclui sua vida perpetuando a era dos servos voluntários! Max Stirner1, no final da primeira metade do século XIX, mostra que a criança busca instintivamente um objeto. Ela luta por ele, explicita sua força e, simultaneamente, restringe seu uso à aquisição do objeto. Conquistá-lo é o seu desejo e prazer. Não há julgamento sobre esta disputa. O vencedor de hoje pode ser um derrotado num instante seguinte, em que os mesmos corpos disputam outro objeto. Trata-se de uma 300 verve Uniformidades e anarquia prática que inventa o guerreiro e evita a criação do dominador e do seu subjugado. É uma luta entre corpos como parte da vida isenta de defesa a um valor superior. Entre crianças, a luta pelo objeto envolve a força e o cessar da força num exercício descontínuo que favorece o impedimento do vencedor contínuo e da perpetuação da guerra. As regras móveis por elas inventadas fazem com que cada uma se veja como única, legisladora que se dispensa de representação. Não sendo idênticas ou semelhantes rejeitam a constância da força física como elemento determinante; a força é parte da vibração dos seus corpos. Não há criança maior ou mais forte fisicamente que conseguirá dominar as demais, pois a mobilidade das regras favorece a inclusão ou a secessão, sem que isso traga marcas que não sejam as da própria batalha. Apartadas dos valores superiores, na luta por um objeto, as crianças evitam um sistema de dominação. Elas se afirmam como guerreiras na luta e contornam as condições para emergência da servidão. Constroem a vida como jogos de crianças, como sabemos desde Heráclito. Os jogos de forças inventados e que decorrem da convivência com outras crianças fazem da busca pelo objeto desejado um percurso prazeroso, no qual muitas vezes o próprio objeto é substituído por outro. É uma luta como jogo sem finalidade maior, sentido ou meta que indiquem um apaziguamento dos instintos pelo exercício de uma razão universal. Sob o comando dos valores superiores dos adultos, a brincadeira de guerra pela vida se transforma em guerra justa para dominar a vida. Aos poucos, as artimanhas da razão apartam os pequenos guerreiros para os educar como futuros cidadãos, soldados, trabalhadores que recebem ordens. Em lugar dos impulsos da força de cada um, domina a soberania da palavra universal construindo 301 6 2004 os donos dos objetos, segundo juízos dos valores superiores consagrados pelo sistema de recompensa e punição, caracterizando o ciclo da sociabilidade autoritária, no qual somos alvo da força de um superior e ao mesmo tempo fazemos do outro o alvo de nossa força. É aprender a obedecer por palavras, atos e castigos para construir o outro como Eu. Nossas identidades devem estar fundadas em semelhanças em direção a uma formação universal benéfica ao indivíduo e à sociedade, em sua defesa e como anteparo aos pais, aos professores, ao Estado. Todos, sem distinção de sangue ou classe devem aprender a seguir seus superiores e mandar nos que estão abaixo, em nome do direito, da religião, da impessoalidade, do egoísmo e do altruísmo, do individualismo e do coletivismo. Forma-se, assim, uma sociabilidade bem demarcada por uma naturalização do mando, na educação de cada um pela punição como parte da tradição dos costumes. É preciso perpetuar a duplicidade súdito-soberano, uma tradição na modernidade sob reforma constante. A modernidade é a era do amor ao castigo, da boa educação, da sapiente obediência, da desesperada busca por se tornar adulto o mais rápido possível e da inevitável condição material que exige que algumas crianças se tornem adultos responsáveis em pouco tempo. Algumas serão localizadas como perigosas, possíveis delinqüentes, com comportamentos desviantes, anti-sociais, marcadas, separadas e decifradas em nome da boa sociedade a ser preservada. A educação familiar e escolar voltadas para formação humanista e de inserção futura no mercado de trabalho moldam os valores superiores provenientes de autoridades centralizadas fortalecendo a utopia de adultos por meio da mobilidade social. Aos poucos, a força inicial de cada criança vai sendo domesticada, 302 verve Uniformidades e anarquia em nome do consenso e do diálogo, por condutas orientadas por idéias abstratas, educando-a para a formação segundo a moderna utilidade. Trata-se de um processo que aciona a força física ou moral do pai, da mãe, dos parentes, preceptor, professor, clérigo ou leigo responsável: a força do castigo educa, engrandece a moral e baliza os devidos comportamentos. Faz concretizar o cidadão ético responsável. No trajeto para a vida adulta, a adolescência é para cada única criança sua experiência trágica. É o momento que exige a abdicação definitiva da luta pelo objeto para se entregar ao culto aos valores maiores, assumindo uma identidade de assemelhado, um soldado para a guerra justa. Os que se revoltam contra o modelo da criança como miniaturização do adulto e sua correlata imagem de jovem responsável, muitas vezes são tidos como problemáticos, doentes, anormais e mesmo precoces marginais, necessitando de tratamentos que vão do atendimento psicológico particular à internação em instituições repressoras. A juventude, segundo Max Stirner, é um momento decisivo para cada único, diante da imposição racional universal dos valores pretendendo docilizar a contundente existência dos indomáveis instintos. É o instante em que a sociedade nos exige comuns: a tragédia atinge cada jovem em qualquer classe social. É preciso ser egoísta alerta Stirner diante deste abstrato bem coletivo ou social defendido pelos crentes na superioridade teológica e racional que consagra a importância do Estado. A juventude sinaliza o momento esperado de cada um diante da adesão à razão superior, sua crisma à adesão, ao reconhecimento que o superior nos traz paz por meio da domesticação dos inferiores instintos. Devemos estar aptos para a convivência. É a onipotência da razão diante da inevitabilidade do sexo, 303 6 2004 do incontrolável, do indomesticável, do inominável, que localiza, confina, separa e expõe o anômico e o perigoso. De maneira sutil ou brusca a adolescência é composta de instantes que explicitam os domínios e as resistências, o furor e a calmaria, as paixões e as durezas, os múltiplos amigos, a potência do sexo, o tesão e a tensão razão/instinto jamais solucionada e se vê impelida a transformar a tragédia em ideal ascético. Devem desaparecer a criança, o jovem e o guerreiro, para aparecer o soldado que morre pelo povo, o batalhador e responsável cidadão contemporâneo. Neste momento acontece o alinhavo dos recortes de cada existência. Para cada um resta uma definitiva chance num dramático ciclo em busca da felicidade. Jovens das diversas classes sociais, em especial os miseráveis, ficam expostos a prisões e à morte precoce em nome da boa formação de adolescentes, o futuro de uma nação, do povo, da propriedade. A população se tornou propriedade do Estado moderno que dela dispõe segundo os fluxos dos momentos, sob a forma de biopolítica. Uma lei geral se estabelece, a lei do castigo e das moderações e tolerâncias, na qual cada um deve aprender que o mundo é dos mais fortes, dos mais preparados, dos mais inteligentes. O Estado espera o melhor de cada potencial cidadão. Por isso lhes garante direitos e ama seus devotos. É ameaçando punir e vigiando que se previne a sociedade do perigo, educam-se os mais fracos e se cuida humanitariamente dos desiguais. Aos que extrapolam, a prisão, mesmo sendo um fracasso e transformada de ideal da reeducação em depósito de corpos indesejáveis, permanece como uma eficaz imagem do limite da punição2. 304 verve Uniformidades e anarquia Diante das uniformidades e continuidades apresentadas por família, escola e leis, as autoridades superiores e suas misericordiosas sentinelas acham-se capazes de educar cada criança ou jovem em nome do UM (deus, rei, tirano, raça, senhor, povo, proletariado), o ápice da centralidade governando os outros e normalizando comportamentos pacificadores de instintos negativos. Crianças, jovens, índios, negros, mulheres, velhos, operários, escriturários, foram sendo apanhados gradativamente como objeto de investigação científica, de normalizações, objeto de investimento da razão em nome da liberdade e autonomia de cada sujeito livre que admite e engrandece sua condição de súdito. Crianças sorridentes e coradas na janela lateral de um automóvel; crianças atordoadas e atordoantes numa perua escolar, crianças de olhos arregalados nos ônibus, trem e metrô; jovens cabisbaixos bem vestidos, em bandos promovendo algaravias, jovens cabisbaixos magros, surrados, em bandos promovendo furtos e assaltos; eles são expressões inconciliáveis com a civilidade que se pretende eterna, uniformizadora por meio do castigo e que pode dispor da vida de quem discorda da construção de uniforme como um bem universal. A cultura do castigo, diante da desigualdade naturalizada e sob perspectiva de soluções sociais, perpetua sua continuidade por meio de reformas que vão do assistencialismo à compensação, difundindo o desejo reformista. Para suprir a falta é preciso repor, completar, acomodar, ajustar medidas, orçamentos e idéias. Modificam-se leis, certos delitos são suprimidos e substituídos por outros a serem penalizados como se houvesse uma ontologia do crime. 305 6 2004 Crianças e jovens devem aprender a respeitar; esta é a lei da autoridade superior, da uniformidade a qualquer instante e sob quaisquer circunstâncias. Diante desta continuidade, atuam as descontinuidades nas honrosas lutas inventadas pelos pequenos guerreiros pelos seus objetos, com suas regras maleáveis de convivência, o desconhecimento do culto ao UM, a vida na experiência livre das conservações e de suas utopias. Para as crianças inexiste a sociedade, apenas a associação livre de pessoas únicas e guerreiras. Não soa estranho que Max Stirner tenha respondido de imediato tanto contra o Estado moderno quanto à sua substituição pela Sociedade como fizeram os socialistas — criticando abertamente a metafísica do anarquista Proudhon tomado por ele como liberal social — com a noção de associação de únicos, uma associação de amigos, podemos completar, lembrando ao lado com Nietzsche, que o amigo é o melhor inimigo: aqui não há leis fixas, constantes, imutáveis. Abandonando a maioridade, o universalismo e a uniformidade sem culpas, Stirner reconhece, instintivamente, que diante da relação maior-menor é preferível ser menor sem almejar maioridades 3 e pensar criança diante dos idealismos e dos materialismos adultos universalistas que massacram os jovens iracundos. Todos, alguns, muitos e uns A partir de Etienne de la Boétie, uma série de autores problematizam o soberano não só como o governo do Um. Dimensionam a condição de servidão voluntária do súdito na qual se prefere aderir ao soberano, renunciando a si mesmo. Diante da uniformidade política fundada no exercício legítimo da autoridade central, a revolta de alguém, contra a condição na qual 306 verve Uniformidades e anarquia o superior governa (rei, aristocracia ou povo) e o rebanho (de escravos ou cidadãos) se conforma, inventa uma experiência de vida na descontinuidade. São revoltas do único contra o UM, de grupos contra o soberano, de classe contra o Estado (autoritário ou democrático), enfim, desde a modernidade, querendo um príncipe, seguindo Maquiavel, ou um sujeito livre de soberano, como sugeriu La Boétie no século XVI e anarquistas no XIX, não há regime, de um rei, de alguns aristocratas ou vanguardas, de muitos cidadãos livres no Estado, de todos os socialistas, portanto de um, alguns, muitos e todos, que não esteja abalado pela revolta de cada único diante da autoridade fundada na tradição, na força superior, no indivíduo, no coletivo. O regime de todos é sinônimo de tirania (todas as vontades são dali dirigidas pelo exercício arbitrário de falar em nome dos outros), de monarquia (para frente e para atrás da adesão hobbesiana à conservação da espécie) ou ausência de regime (a utopia socialista por meio da tomada do Estado). Fundamentam-se na crença numa exclusiva autoridade central que preserva ou inova, que pretende eternizar-se ou ser meio para uma infinita condição evolutiva superior. Por mais que se esforcem os teóricos e os governantes, convencendo ou punindo, reeducando ou matando, fazem do regime de todos uma utopia, um consolo. Os aristocratas, apesar da cantada decadência, seduziram muitos estudiosos e foram referências históricas às continuidades das dominações políticas, como no evento capitalismo/burguesia. Os intérpretes universalistas buscaram no agrupamento formado pelos especiais (pela tradição, sangue, propriedade ou razão verdadeira) justificativas para necessidades e domínios superiores fundados em legitimidades a 307 6 2004 governos que oscilaram entre aristocracia e oligarquia, e na razão moderna com a soberania popular, entre elites ou vanguardas. O governo de alguns como o aristocrático (positivo) possui seu reverso, o oligárquico, formando governos de minorias numéricas para minorias. Entretanto, no governo democrático em que a autoridade emana do povo como representação de muitos, forma-se uma maioria a ser governada por alguns, as elites. Sabe-se pela teoria dos regimes políticos que os tipos são idealizações e que acontecem na história de maneira mista. Eles apenas enfatizam a situação de força que prepondera. Do anarquista Pierre-Joseph Proudhon ao liberal Max Weber, sabemos que os estudos dos regimes são mais contundentes quando ao lado da tipologia como instrumento de análise se atenta para a impossibilidade de encontrar na história o tipo ideal. Proudhon sinalizou para o descarte de qualquer idealização ainda que inspirada na realidade, enquanto Weber lançou mão da idealização para atingir a compreensão na história na qual a inevitável relação entre autoridade e liberdade se ajusta regulamentada pelo Estado. Proudhon também defendeu, no século anterior a Weber, que a referida relação é indissociável, mas indicou que segundo a predominância de um dos princípios, no caso o da liberdade sobre o da autoridade, a existência ultrapassa a inevitabilidade de Estado e da centralidade de poder, afirmando, então, uma descontinuidade na uniformidade. De maneira que, se para Weber a democracia parlametar é o ápice da razão moderna, inclusive em função dos fenômenos de massa, para Proudhon a democracia moderna é a condição em trânsito para o regime da liberdade, da Anarquia. Entende-se desta maneira porque os anarquistas são simpáticos à idéia de democracia e críti- 308 verve Uniformidades e anarquia cos à democracia representativa como seqüestro da vontade pessoal. Compreende-se, também, que o alvo anarquista é o liberalismo e o regime da propriedade. Para os anarquistas, o socialismo estatal como sinônimo de comunismo é o regime de mais autoridade, é ditatorial e efêmero. Ainda que anarquistas e socialistas estatistas seguidores de Marx estejam no mesmo âmbito do discurso igualitário e socialista, distinguem-se radicalmente. O comunismo para Proudhon é potencialização da propriedade patriarcal e da tirania, jamais levando à sociedade igualitária. Os anarquistas, portanto, nada têm a dizer a respeito das lutas entre as vanguardas esclarecidas do socialismo e as eficientes elites liberais. Weber e Lenin duelaram no século XX pela supremacia de uma sobre a outra, segundo a defesa da propriedade capitalista ou socialista e suas efetivas produtividades. Pouco importam as vitórias proclamadas pelos seguidores de um ou outro lado. Elas permaneceram efêmeras e circunstanciais. Cada vitória deu a um ou outro seu momento de glória e manteve intacta a uniformidade do governo de alguns (elite ou vanguarda), num governo de muitos (a democracia) ou de todos (socialismo). Com La Boétie, nos primórdios modernos, e depois, desde o século XIX, com Proudhon, os libertários apareceram para discorrer sobre a possibilidade da sociedade sem Estado. Isso não estava mais restrito ao âmbito das idealizadas sociedades primitivas, dos nomadismos do passado e das utopias. No momento presente ou no futuro, segundo a vontade de pessoas livres, pode-se falar e fazer anarquia. O paraíso, que estava no céu e na Terra desde os liberais, e na Terra e não mais no céu com os socialistas estatistas, deixa de ser a metáfora preferencial. O anarquismo de Proudhon tanto quanto a reviravolta de Stirner sina- 309 6 2004 lizam para a vida livre sem que uma revolução determinista e providencial aconteça para fundar igualdades, sem que uma razão superior nos conduza e interprete: a vontade de igualdade sucede a qualquer instante. A razão moderna e científica se afirmou apoderandose da majestade teológica para se mostrar capaz de domesticar os instintos. Foi o atestado de maioridade do homem livre diante das religiões e dos comandantes que evitavam auscultar as pulsações dos seres vivos. Expressou o universal terreno que liberta cada um da servidão material ou política, instituiu a lei e a representação como maneiras de compreensão do todo (o Estado) por cada parte (o indivíduo e as instituições), colaborando para a primazia do governo das partes representadas diante da ameaça da ditadura do todo onipotente e consciente (Estado socialista, Estado fascista e regimes ditatoriais em geral). A razão moderna não procurou suprimir arbitrariamente o universal teológico. Mostraram isso Marx e Proudhon, enfatizando a composição direito universal e religião livre como partes indissociáveis na defesa da propriedade privada afirmando a inevitável desigualdade e formalizando a igualdade política ou emancipação política4. O Estado tanto quanto as religiões estavam preservados. Um como forma hierárquica de continuação da autoridade centralizada, as outras livres da tirania do domínio de uma religião soberana. A libertação das verdades propiciou, ao chamado mundo livre, as múltiplas formas combinadas de governos com ou sem associação com religiões. Nos termos do século XIX, tanta vontade de verdade não conteve socialistas e anarquistas que fundaram as verdades da emancipação humana como estágio seguinte a ser alcançado diante da emancipação política que se concretizava. 310 verve Uniformidades e anarquia Tanta vontade de saber fez irromper na continuidade estatal (de liberais e conservadores) ou na sua descontinuidade como meio (dos socialistas, conquistando o Estado para levar à emancipação humana por meio do planejamento da produção organizado cientificamente pelas vanguardas) ou fim (dos anarquistas, abolindo simultaneamente propriedade e Estado) brilhantes conclusões como: o capitalismo é eterno porque não há uma determinista lei socialista da história ou ainda, que inevitabilidades científicas sinalizam para a sociedade igualitária. As utopias de cada um e para todos permanecem sendo seus referidos consolos, sem dúvida, com esplendor menos reluzente que os religiosos. Do ponto de vista político, depois de idas e vindas, a democracia passou a ser reconhecida como o melhor dos regimes. No passado defendida pelos liberais, ressaltando suas imperfeições (dentre outras: o povo transformado em massa, a ditadura da opinião pública, o desgaste da representação, as inevitáveis corrupções no Estado, as morosidades judiciárias, a escalada da violência urbana e a inevitável miséria). No presente advogada pelos liberais, conservadores e exsocialistas ou neosocialistas, formando, agora, uma calorosa recepção aos antigos e abomináveis reformistas sociais-democratas. E assim, com o fim do socialismo estatista, enquanto pretensão à hegemonia planetária, a democracia se transformou em via de regra no regime para todos. Seja pela adesão dos neosocialistas, pelo reconhecimento dos anarquistas para atingir a sociedade igualitária, pelos liberais de ontem e hoje e até os conservadores, a democracia passou a ser inquestionável diante de qualquer adjetivo que acompanhe o substantivo. Se assim for, estamos diante de uma encru- 311 6 2004 zilhada já conhecida, um eterno retorno ao mesmo Estado ou não-Estado, uma oposição entre absolutos? O indivíduo moderno rompeu com o absoluto divino, sem com isso abandonar a religião. Novas religiões da razão apareceram, incluindo a da consciência superior chefiada pelos sacerdotes cientistas da sociedade. O rompimento formal com o divino não promoveu o rompimento com o absoluto, com as religiões, com a cultura da hierarquia. A oposição entre a razão moderna e a teologia constitui-se num novo artifício no interior do discurso hierarquizador. Da mesma maneira, a oposição entre as verdades Estado e nãoEstado não ultrapassou a obviedade em opor Estado a Sociedade. O discurso socialista (estatista ou anarquista) contrapôs Sociedade (atingida após a tomada violenta do Estado pelo partido da revolução e sua vanguarda científica, ou pela abolição do Estado por meio de revolução violenta ou pela federalização política e mutualismo econômico entre as associações) a Estado, e nesta inversão forjou suas utopias. Da ajuda estatal à ajuda mútua, os socialistas tomando ou abolindo o Estado, não conseguiram pensar senão noutra Sociedade, nova fusão entre razão individual e o coletivo, outro absoluto (onde predominou indivíduo, agora prevalece coletivo). Como críticos da metafísica que mostravam afinidades entre Estado moderno e religião, por suas próprias vias tortas, também afirmaram outro absoluto, nova continuidade, inventaram uma nova religião para todos fundindo cristianismo e humanismo. É muita utopia para pouco incômodo. Fim de século XX: diante dos egoísmos burgueses, os altruísmos socialistas estatistas se dissiparam e ambos se combinaram no ajuste por meio de uma justiça social escorada na filantropia privada e pública, fazendo crer numa eternização do capitalismo, do Es- 312 verve Uniformidades e anarquia tado, da democracia, da vontade de paz para outras guerras, dos direitos perante a inevitável miséria e das distribuições da renda à merenda e ao uniforme da criança escolarizada. Colocaram-se eqüidistantes quanto ao conceito que abarca tal situação: aos que defendem a globalização, os que lutam por uma outra globalização. Outra vez se dispuseram em opostos positivos e negativos, girando em torno dos mesmos elementos. Os anarquistas, por seu lado, após terem sido decretados mortos com o final da Guerra Civil Espanhola e ressuscitados depois de 1968, voltaram aos fluxos contemporâneos da política para colaborarem com o desassossego. A uniformidade de Estado convive até hoje com o incômodo que foi sua recriação como uniformidade de Sociedade. Querer fazer crer que isso acabou e que o inevitável se instituiu com o capitalismo e a democracia em escala evolutiva até atingir os Estados orientais, fundados em tradicionalismos superáveis pelo convencimento ou pela belicosidade, como se diz entre pessoas comuns: é fazer água. A democracia, paradoxalmente, é a comodidade e o incômodo do capitalismo atual. É um obstáculo aos impérios e às suas expansões, e um artifício circunstancial vivenciado por socialistas aguardando o momento exato para dar o bote e realizar a verdadeira justiça social, desarticulando, progressivamente, a propriedade privada. É uma realidade propícia para os anarquistas inventarem suas associações. O regime socialista, o governo de todos pela representação do partido e sua vanguarda, cedeu o lugar ao governo de muitos, a democracia, que representa a todos e que governa por meio de alguns (as elites econômicas, sociais, políticas e militares). Nesta suposta descontinuidade o indivíduo livre e autônomo per- 313 6 2004 manece sendo uma utopia, um ideal para o qual nos destinamos, o Bem que devemos almejar. Eu e você morremos, então, felizes, com a consciência tranqüila, sabendo que no futuro outros viverão este ideal. Disseram, no século XIX, Proudhon, Marx e Nietzsche: a democracia será a religião do rebanho no próximo século. Proudhon procurou libertar-se do absoluto, das substâncias e causas, dos sobrenaturais, das idealizações e teorias, voltando-se para análises por meio do método serial, investindo em estudar as séries autoritárias e libertárias, em afirmar que uma revolução nada mais é do que reposição da autoridade central. Marx mostrou como a democracia faz viver o domínio burguês, a forma ideal do regime para Estado capitalista por fazer crer na igualdade formal que legitima a desigualdade, difundindo a universalidade da lei e do direito. Nietzsche procurou mostrar como o cristianismo se transformou em democracia, e ponto5. Todos, muitos e alguns... Etienne de La Boétie, com seu escrito de jovem, O discurso da servidão voluntária, para os jovens, dizia que qualquer regime do Um é sempre uma tirania. Onde ficaram os anarquismos? Os anarquismos são criações de anarquistas que vivem a Anarquia, um regime de liberdade. Não há o anarquismo como se propaga, mas anarquismos, diferentes, coexistindo, inventando a vida. Os anarquistas não são apenas agitadores de rua, bem humorados incômodos aos homens de governo6, agentes do passado, grandes homens responsáveis pelo início do movimento operário no Brasil, os iludidos integrantes de movimentos pré-políticos, espectros do passado... Não tentem matá-los em nome do saber ou da prática mais justa. Eles sempre voltam, porque nunca saíram de circulação... Expressam a inocuidade das tiranias. Con- 314 verve Uniformidades e anarquia tra eles não há vacina, desinfetante, consolo ou força física. A liberação, quando prevalece diante da libertação, sinaliza para experiências de vida e os anarquismos, livres das suas sentinelas que guardam os escritos dos principais formuladores como livros sagrados, a qualquer momento são invenções liberadoras. Traduzindo os ensinamentos em cultos, são agentes libertadores em nome do absoluto Sociedade igualitária, e quer queiram ou não, inscritos na uniformidade, muitas vezes pretendendo substituir os sacerdotes, os cientistas e os professores universitários, com suas singelas devoções. A atualidade dos anarquismos não está no seu passado, mas na sua interpelação no presente. Não há um anarquismo correto ou anarquistas mais anarquistas que outros. Diferentes, eles se associam para inventar a vida, coexistindo, inventando éticas dos amigos como abrigos precários. Mesmo entre os que esperam pela Sociedade, o que distingue os anarquistas dos demais socialistas é que eles inventam associações para a vida no presente. Podem estar em movimentos de contestação, mas não é essa a atitude que os faz anarquistas. Nesta guerra pela existência são guerreiros que não objetivam subalternizar os outros. Uns não pretendem ser mais verdadeiros que outros. Formam associações, quiçá federações fundadas na ajuda mútua, em associabilidades libertárias. A anarquista Emma Goldman, no seu Living my life, disse que os anarquistas são aristocratas, como Nietzsche. Não de sangue ou dinheiro, mas como o filósofo, de inovação e poesia. Aristocrata sem o ser, experimentando ser criança, vai formando uma associação não mais de alguns, incluindo a vanguarda, mas apenas de uns. Nem longe nem perto do mundo novo ou da utopia, sem tempo para o tempo e sem perda de 315 6 2004 tempo, no espaço de agora, nestes outros espaços, nesta urgente ágora heterotópica. Um anarquismo atual pretende o pensar criança, analítico, buscando objetos, força inventiva, como associação de únicos, livre do Eu me governando, atingindo a Sociedade como alvo. Não pretende ser identificado. Está vivo e único. Está dentro e fora dos anarquismos. Estamos todos vivos. Somos uns incômodos. Jovens universitários sentados em fileiras, dia após dia ouvindo, opinando e seguindo seus mestres. Isto não é uma lembrança! Notas 1 M. Stirner. El único y su propiedad. México, Juan Pablos Editor, 1976; O falso princípio de nossa educação. São Paulo, Imaginário, 2000; “Algumas observações provisórias a respeito do Estado fundado no amor”. São Paulo, Verve, 2002, nº 1, pp. 13-21. “O sistema penitenciário, quer dizer, o sistema que consiste em internar pessoas, sob uma fiscalização especial, em estabelecimentos fechados, até que elas se emendem — isso é ao menos o que se supõe —, fracassou totalmente. Esse sistema faz parte de um sistema mais vasto e mais complexo que é, se o senhor quiser, o sistema punitivo: as crianças são punidas, os alunos são punidos, os operários são punidos, os soldados são punidos. Enfim, se é punido durante toda a vida”. M. Foucault. “Prisões e revoltas nas prisões (1973)” in M. B. Motta (org.) Estratégia, poder-saber, Ditos e escritos IV. Rio de Janeiro/São Paulo, 2003, p. 65. 2 G. Deleuze. Para uma literatura menor. Falando de Kafka, também, Georges Bataille (A literatura e o mal. Porto Alegre, LP&M Editores, 1989, pp. 129-148) o vê como autor que não teme a criança diante da autoridade do pai, a autoridade eficaz: “você só pode tratar uma criança conforme sua própria natureza, com energia, ruído e cólera...” (apud Bataille, p. 135), reconhecendo sua própria crueldade, acrescentaria Antonin Artaud. Os comunistas, segundo Bataille, tendem a ver Kafka como autor menor (criança) em relação ao adulto revolucionário comunista, o ápice da razão, por abandonar o leitor à sua própria conclusão. Kafka é menor como literatura que não pretende maioridade e literatura como infância reencontrada, como pretende Bataille. “Diante da necessida3 316 verve Uniformidades e anarquia de da ação, impõe-se a honestidade de Kafka, que não concedia direito algum” (Bataille, idem, p. 10). “O direito é a política: no fundo foi a burguesia que, por razões políticas e sobre a base de seu poder político, definiu os princípios do que se chama direito”. M. Foucault, idem, p. 142. 4 P.-J. Proudhon.O princípio federativo. São Paulo, Imaginário/Nu-Sol, 2000; K. Marx. A questão judaica. São Paulo, Editora Moraes, s/d; F. Nietzsche. Genealogia da moral. Lisboa, Guimarães Editores, 1992. 5 Por encontrar-nos na PUC-SP, gostaria de lembrar, brevemente, dois episódios. Cena 1: Em 1977, as forças repressoras do Estado invadiram a PUC-SP e espancaram estudantes que se reuniam para retomar a antiga UNE – União Nacional dos Estudantes. Cena 2: Mais tarde, estas mesmas forças, incendiaram o TUCA (fato jamais provado na justiça). Cena 3: Um ano após estes acontecimentos, estudantes anarquistas que realizavam a autogestão na sua associação visitam o Coronel Erasmo Dias, em seu gabinete e o presenteiam com bandejas contendo bombas de chocolate. Cena 4: 2003, Fórum Social Mundial, PUC-RS, uma jovem do Confeiteiros sem fronteiras lança uma torta no rosto do presidente de um partido político, sinalizando ser a pessoa parte dos Três patetas, seriado estadunidense que mostra estapafúrdias relações vividas pelos personagens. Cena Final: Nem o Cel. Erasmo Dias, nem o presidente do referido partido apreciaram os gestos. Ambos alegaram, nas duas datas, que vivíamos numa democracia plena. 6 317 6 2004 RESUMO Não há nada mais cômodo do que o regime da uniformidade. O incômodo como uma criança é a prática do desassossego, uma experimentação de liberdade. Palavras-chave: anarquistas, liberdade, incômodo. ABSTRACT There is nothing more accommodated than the regime of uniformity. The annoyance, like the child, is the practice of unrest, an experimentation of liberty. Keywords: anarchists, freedom, annoyance. 318 6 2004 320 verve Tecnologias de si tecnologias de si, 19821 michel foucault I Quando comecei a estudar as regras, os deveres e as proibições da sexualidade, assim como as interdições e restrições associadas a ela, eu não estava apenas preocupado com as ações permitidas ou proibidas, mas com os sentimentos que estavam sendo representados, os pensamentos, os desejos experimentados, as incursões para buscar em si qualquer sentimento oculto, qualquer movimento da alma, qualquer desejo disfarçado sob formas ilusórias. Há uma diferença significativa entre a interdição da sexualidade e outras formas de interdição. Diferente de outras interdições, as sexuais estão constantemente ligadas à obrigação de dizer a verdade sobre si. Dois fatos podem ser contrapostos: primeiro que a confissão desempenhou um importante papel nas instituições penais e religiosas, para todos os pecados, não apenas para o sexo. Contudo, a tarefa de analisar o desejo sexual de alguém é sempre mais importante do que analisar qualquer outro tipo de pecado. verve, 6: 321-360, 2004 321 6 2004 Eu também estou ciente da segunda contestação: a de que o comportamento sexual, mais do que qualquer outro, foi submetido a severas regras do segredo, da decência e da modéstia, de tal modo que a sexualidade está relacionada, de um modo singular e complexo, à proibição verbal e à obrigação de dizer a verdade, de esconder aquilo que se faz e de decifrar quem se é. A associação da proibição com o forte estímulo a falar é uma característica constante da nossa cultura. O tema da renúncia à carne estava ligado à confissão do monge ao abade, dizendo a este tudo o que aquele tinha em mente. Eu concebi um projeto estranho: não o estudo da evolução do comportamento sexual, mas a projeção de uma história do elo entre a obrigação em dizer a verdade e as proibições sobre a sexualidade. Eu perguntei: como o sujeito tinha sido forçado a decifrar a si mesmo em relação ao que era proibido? O que está em questão é a relação entre ascetismo e verdade. Max Weber formulou a questão: se alguém pretende comportar-se racionalmente e regular a ação de outro a partir de princípios verdadeiros, qual parte de si mesmo ele deve renunciar? Qual é o preço ascético da razão? A que tipo de ascetismo alguém deve se submeter? Eu formulei a questão oposta: como algumas formas de interdição demandaram certos tipos de conhecimento sobre si? O que alguém deve saber sobre si para que esteja disposto a renunciar a qualquer coisa? Assim, cheguei à hermenêutica das tecnologias de si na prática pagã e no início do cristianismo. Encontrei algumas dificuldades neste estudo porque estas práticas não são tão conhecidas. Em primeiro lugar, o cristianismo sempre esteve mais preocupado com a história de suas próprias crenças do que com a história das prá- 322 verve Tecnologias de si ticas reais. Segundo, tal hermenêutica nunca foi organizada em um corpo doutrinário como a hermenêutica textual. Terceiro, a hermenêutica de si tem sido confundida com as tecnologias da alma — concupiscência, pecado, e desgraça. Quarto, uma hermenêutica de si tem sido difundida na cultura ocidental por meio de diversos canais e integrada a várias formas de atitude e experiência, o que tornou difícil isolá-la e separá-la das nossas próprias experiências espontâneas. Contexto do estudo Meu objetivo por mais de vinte anos tem sido esboçar uma história das diferentes maneiras com que os indivíduos desenvolvem conhecimentos sobre eles mesmos em nossa cultura: economia, biologia, psiquiatria, medicina e penologia. A questão principal não é aceitar ingenuamente esse conhecimento, mas analisar essas denominadas ciências como “jogos de verdade” muito específicos, relacionados a técnicas particulares que os seres humanos utilizam para entenderem a si próprios. Como contexto, devemos entender que há quatro grupos principais de “tecnologias”, cada um deles uma matriz de razão prática: (1) tecnologias de produção, que permitem produzir, transformar ou manipular as coisas; (2) tecnologias dos sistemas de signos, que permitem utilizar signos, sentidos, símbolos ou significação; (3) tecnologias de poder, que determinam a conduta dos indivíduos e os submetem a certos fins ou dominação, objetivando o sujeito; (4) tecnologias de si, que permitem aos indivíduos efetuar, com seus próprios meios ou com a ajuda de outros, um certo número de operações em seus próprios corpos, almas, pensamentos, conduta e modo de ser, de modo a transformá-los com o objetivo 323 6 2004 de alcançar um certo estado de felicidade, pureza, sabedoria, perfeição ou imortalidade. Estes quatro tipos de tecnologia dificilmente operam separadamente, apesar de cada uma delas estar associada a certa forma de dominação. Cada um implica certos modos de treinamento e modificação dos indivíduos, não apenas no sentido óbvio de aquisição de certas habilidades, mas também de aquisição de certas atitudes. Gostaria de mostrar tanto sua especificidade como sua interação constante. Por exemplo, pode-se ver a relação entre a manipulação das coisas e a dominação em O capital, de Karl Marx, em que cada técnica de produção requer modificação na conduta individual — não apenas de habilidades, mas de atitudes. As duas primeiras tecnologias, geralmente, são utilizadas no estudo das ciências e da lingüística. São as últimas duas, as tecnologias de dominação e de si, que mais me chamaram atenção. Eu tentei construir uma história da organização do conhecimento relativo tanto à dominação quanto a si mesmo. Por exemplo, eu estudei a loucura não em termos do critério das ciências formais, mas para demonstrar como um tipo de gerenciamento dos indivíduos, dentro e fora de asilos, tornou-se possível por esse estranho discurso. Esse contato entre as tecnologias de dominação sobre os outros e as tecnologias de si, eu chamo de governamentalidade. Talvez eu tenha insistido demasiadamente na tecnologia de dominação e poder. Estou cada vez mais interessado na interação entre si e os outros, e nas tecnologias de dominação individual, a história de como um indivíduo age sobre si mesmo, na tecnologia de si. 324 verve Tecnologias de si O desenvolvimento das tecnologias de si Pretendo esboçar o desenvolvimento da hermenêutica de si em dois contextos diferentes, historicamente contíguos: (1) a filosofia greco-romana nos primeiros dois séculos d.C. do início do império romano e (2) a espiritualidade cristã e os princípios monásticos desenvolvidos nos quarto e quinto séculos do final do Império Romano. Ademais, eu pretendo discutir a questão não apenas teoricamente, mas em relação a um conjunto de práticas da antiguidade tardia. Essas práticas foram constituídas em grego como epimeleisthai sautou, “cuidar de si”, “o cuidado de si”, “preocupar-se, cuidar de si mesmo”. O preceito “preocupar-se consigo mesmo” era, para os gregos, um dos mais importantes princípios das cidades, uma das principais regras para as condutas sociais e individuais, e para a arte da vida. Esta noção está hoje para nós obscura e enfraquecida. Quando alguém é questionado “qual é o princípio mais importante na filosofia antiga?” A resposta imediata não é “cuidar de si”, mas o princípio délfico gnothi sauton (“conhece-te a ti mesmo”). Talvez a nossa tradição filosófica tenha enfatizado em demasia o último e esquecido do primeiro. O princípio délfico não era um princípio abstrato acerca da vida; era um conselho técnico, uma regra que deveria ser seguida para a consulta ao oráculo. “Conhece-te a ti mesmo” queria dizer “não se considere um deus”. Outros estudiosos sugerem que isso queria dizer “esteja ciente do que realmente pergunta quando consultar o oráculo”. Nos textos gregos e romanos, a obrigação de conhecer a si mesmo esteve sempre associada ao outro princípio, o de cuidar de si. E foi este princípio que colocou a máxima délfica em operação. Está implícito em toda 325 6 2004 cultura grega e romana e tem sido explícito desde Alcibiades I, de Platão. Nos diálogos socráticos, em Xenofonte, Hipócrates e na tradição neoplatônica de Albinus em diante, o indivíduo deveria cuidar de si. O indivíduo deveria ocupar-se de si antes que o princípio délfico entrasse em ação. Havia uma subordinação do segundo princípio em relação ao primeiro. Eu tenho três ou quatro exemplos disso. Na Apology, 29e, de Platão, Sócrates se apresenta aos juízes como um mestre de epimeleia heautou. Vós estais “envergonhados de preocuparem-se em obter riqueza, reputação e honra”, ele lhes disse, mas não vos ocupais convosco, ou seja, com “sabedoria, verdade e a perfeição da alma”. Ele, por sua vez, vela pelos cidadãos assegurando-se para que se ocupem deles mesmos. Sócrates diz três coisas importantes a respeito desse convite a outros para que se ocupem de si mesmos: (1) sua missão lhe foi conferida pelos deuses, e ele não a abandonará até seu último suspiro; (2) para essa missão, ele não exige nenhuma recompensa; ele é desinteressado; ele o faz por benevolência; (3) sua missão é útil para a cidade — mais útil do que a vitória militar de Atenas em Olímpia — porque ao ensinar as pessoas a cuidarem de si, ele os ensina a cuidar da própria cidade. Oito séculos depois, encontra-se a mesma noção e a mesma frase no tratado de Gregório de Nyssa, Sobre a Virgindade, mas com um significado totalmente diferente. Gregório não escrevia sobre o movimento no qual um indivíduo cuida de si e da cidade, mas sobre o movimento no qual renuncia ao mundo e ao casamento, separa-se da carne e, com a virgindade do coração e do corpo, recupera a imortalidade da qual havia sido privado. Ao comentar a parábola do dracma (Lucas 15: 8-10), Gregório incita o indivíduo a acender o lampião e virar 326 verve Tecnologias de si a casa do avesso até encontrar, brilhando nas sombras, o dracma perdido. Para recuperar a eficácia que Deus conferiu à alma do indivíduo e que o corpo obscureceu, o indivíduo deve cuidar de si mesmo e investigar cada canto de sua alma (De Virg. 12). Podemos ver que o asceticismo cristão, como a filosofia antiga, coloca-se sob o mesmo signo do cuidado de si. A obrigação de conhecer a si mesmo é um dos elementos centrais de sua preocupação. Entre esses dois extremos — Sócrates e Gregório — o cuidado de si não se constituiu apenas como princípio mas como uma prática constante. Poderia citar mais dois exemplos. O primeiro texto epicurista que serviu como um manual da moral foi a Carta a Meneceu (Diógenes Laërtius 10.122-38). Epicuro escreve que nunca é muito cedo ou muito tarde para ocupar-se da alma. Deve-se filosofar quando se é jovem e também quando se é velho. Esta era uma tarefa que deveria ser levada ao longo de toda a vida. Ensinamentos sobre a vida cotidiana eram organizados em torno do cuidado de si para ajudar cada membro do grupo com o trabalho mútuo da salvação. Outro exemplo vem de um texto alexandrino, Sobre a Vida Contemplativa, de Philon de Alexandria. Ele descreve um obscuro e enigmático grupo na periferia da cultura helênica e hebraica chamado Therapeutae, marcado por sua religiosidade. Esta era uma comunidade austera, devota à leitura, à meditação terapêutica, à reza individual e coletiva e a encontros para um banquete espiritual (agapê, “celebração”). Essas práticas derivaram da tarefa principal, o cuidado de si (De Vita Cont. 36). Este é o ponto de partida para possíveis análises do cuidado de si em culturas antigas. Eu gostaria de analisar a relação entre cuidado e conhecimento de si, rela- 327 6 2004 ção encontrada nas tradições greco-romana e cristã entre o cuidado de si e do muito conhecido princípio “conhece-te a ti mesmo”. Assim como há muitas formas de cuidado, há diferentes formas de si. Resumo Há diversas razões do porquê o “conhece-te a ti mesmo” obscureceu o “cuida de si mesmo”. Primeiro, houve uma profunda transformação nos princípios morais na sociedade ocidental. Nós acreditamos ser difícil basear moralidade rigorosa e princípios austeros no preceito de que devemos cuidar de nós mesmos mais do que qualquer outra coisa no mundo. Estamos mais inclinados a entender o cuidado de si como imoralidade, como uma forma de escapar de todas as regras possíveis. Herdamos a tradição da moralidade cristã que faz da renúncia de si condição para a salvação. Conhecer a si mesmo era paradoxalmente o caminho para a renúncia de si. Nós também herdamos uma tradição secular que respeita o direito externo como base para a moralidade. Como o respeito de si poderia então ser a base para a moralidade? Somos os herdeiros de uma moralidade social que busca regras para comportamentos aceitáveis em relação aos outros. Desde o século XVI, críticas à moralidade estabelecida têm sido feitas em nome da importância de reconhecer e conhecer a si mesmo. Portanto, é difícil ver o cuidado de si como compatível com moralidade. “Conhece-te a ti mesmo” obscureceu o “cuida de si mesmo” porque nossa moralidade, a moralidade do ascetismo, insiste que o si é o que deve ser rejeitado. A segunda razão é que, em filosofia teórica que vai de Descartes a Husserl, o conhecimento de si (o sujeito pensante) assume uma importância crescente como o primeiro passo na teoria do conhecimento. 328 verve Tecnologias de si Em suma: houve uma inversão de hierarquia entre os dois princípios da antiguidade, “cuida de si mesmo” e “conhece-te a ti mesmo”. Na cultura greco-romana o conhecimento de si surgiu como conseqüência do cuidado de si. No mundo moderno, o conhecimento de si constitui o princípio fundamental. II A primeira elaboração filosófica da preocupação com o cuidado de si que eu gostaria de mencionar é encontrada em Alcibiades I, de Platão. A data desse escrito é incerta e talvez seja um diálogo platônico apócrifo. A minha intenção não é estudar datas, mas apontar a principal característica do cuidado de si, que está no centro do diálogo. Os neoplatônicos no terceiro ou quarto século d.C. demonstram a relevância atribuída a esse diálogo e a importância que assumiu na tradição clássica. Eles pretendiam organizar os diálogos de Platão como pedagogia e como a matriz do conhecimento enciclopédico. Eles consideravam Alcibiades o primeiro diálogo de Platão, o primeiro a ser lido, a ser estudado. Chamava-se arché. No segundo século, Albinus afirmou que todo jovem homem dotado que quisesse se distanciar da política e praticar a virtude deveria estudar Alcibiades. Este fornecia o ponto de partida e um programa para toda a filosofia platônica. “Cuida de si” foi seu primeiro princípio. Eu gostaria de analisar o cuidado de si em Alcibiades I em relação a três aspectos. 1. Como essa questão é introduzida neste diálogo? Quais as razões que levam Alcibiades e Sócrates à noção do cuidado de si? 329 6 2004 Alcibiades está prestes a ingressar em sua vida pública e política. Ele deseja falar ao povo e ser o todo-poderoso na cidade. Ele não está satisfeito com seu status atual, com seus privilégios de nascimento e de herança. Ele deseja adquirir poder pessoal sobre todos os outros, dentro e fora da cidade. Nesse ponto de intersecção e transformação, Sócrates intervém e declara seu amor por Alcibiades. Alcibiades já não pode ser o amado, mas deve se tornar o amante. Ele precisa tornar-se ativo no jogo político e no jogo do amor. Assim, há uma relação dialética entre o discurso político e o erótico. Alcibiades realiza sua transição de uma maneira específica tanto na política como no amor. A ambivalência é evidente no vocabulário político e erótico de Alcibiades. Em sua adolescência, Alcibiades era desejado e tinha muitos admiradores; porém, agora que sua barba estava crescendo, seus amantes desapareceram. Antes, ele os havia rejeitado no auge de sua beleza pois queria ser dominante, não dominado. Na sua juventude, ele não queria ser dominado, mas agora deseja dominar os outros. Esse é o momento em que surge Sócrates, que é bem sucedido onde os outros falharam: ele fará Alcibiades submeter-se, mas em um outro sentido. Eles fazem um pacto — Alcibiades irá submeter-se ao seu amante, Sócrates, não no sentido físico, mas espiritual. A intersecção entre a ambição política e amor filosófico é o “cuidado de si”. 2. Nessa relação, por que Alcibiades deveria preocupar-se consigo mesmo, e por que Sócrates preocupa-se com a preocupação de Alcibiades? Sócrates indaga Alcibiades sobre sua capacidade pessoal e sobre a natureza de sua ambição. Ele saberia o significado das regras jurídicas, da justiça ou da concórdia? Alcibiades claramente não sabe coisa alguma. Sócrates o convida a comparar sua educação à dos reis da Pérsia e Esparta, 330 verve Tecnologias de si seus rivais. Os príncipes espartanos e persas têm professores de sabedoria, justiça, temperança e coragem. Em comparação, a educação de Alcibiades é como a de um escravo velho e ignorante. Ele não conhece essas coisas e, assim, não pode dedicar-se ao saber. Porém, afirma Sócrates, não é tarde demais. Para ajudá-lo a ganhar vantagem — para adquirir technê — Alcibiades deve se concentrar, cuidar de si mesmo. Mas Alcibiades não sabe no que deve concentrar-se. O que é esse conhecimento que busca? Ele está constrangido e confuso. Sócrates o convoca a ter coragem. No 127d de Alcibiades encontramos a primeira ocorrência da frase epimeleisthai sautou. O cuidado de si refere-se sempre a um estado político e erótico ativo. Epimeleisthai expressa algo muito mais sério do que o simples fato de prestar atenção. Envolve diversas coisas: preocupar-se com suas posses e sua saúde. É sempre uma atividade real, e não uma simples atitude. Esta expressão é utilizada em relação à atividade de um fazendeiro cuidando de seus campos, de seu gado, de sua casa, ou em relação ao trabalho de um rei em cuidar de sua cidade e seus cidadãos. Ou, ainda, ao culto aos ancestrais ou aos deuses, ou a um termo médico que traduza o fato de cuidar. É muito significativo que o cuidado de si em Alcibiades I seja relacionado diretamente à pedagogia deficiente, que diz respeito à ambição política e a um momento específico da vida. 3. O restante do texto é dedicado a uma análise dessa noção de epimeleisthai, “preocupar-se com si mesmo”. O texto está dividido em duas questões: O que é este si que se deve cuidar, e em que consiste este cuidado? Primeiro, o que é o si (129b)? Este é um pronome reflexivo que possui dois significados. Auto significa “o mesmo”, mas também conduz à noção de identidade. 331 6 2004 Este segundo significado altera a questão “o que é o si” para “qual é o fundamento no qual poderei encontrar minha identidade?” Alcibiades tenta encontrar o si em um movimento dialético. Quando se cuida do corpo, não se cuida de si. O si não é vestimenta, ferramenta ou posses. Ele deve ser encontrado no princípio que utiliza esses instrumentos, não um princípio do corpo, mas da alma. É necessário se preocupar com a alma — essa é a principal prática do cuidado de si. Este é o cuidado da prática e não o cuidado da alma como substância. A segunda questão é: como devemos cuidar desse principio da prática da alma? Em que consiste esse cuidado? É necessário saber em que consiste a alma. A alma não pode conhecer a si mesma, a não ser ao olhar para si em um elemento similar, um espelho. Assim, ela deve contemplar o elemento divino. É nesta contemplação divina que a alma poderá descobrir regras que sirvam de base para o comportamento justo e para a ação política. O esforço da alma em se conhecer é o princípio no qual a ação política justa pode se fundar, e Alcibiades será um bom político na medida em que contemple sua alma no elemento divino. A discussão freqüentemente gravita em torno e é formulada nos termos do princípio délfico “conhece-te a ti mesmo”. Cuidar de si consiste em conhecer-se a si mesmo. O conhecimento de si torna-se o objeto da busca do cuidado de si. Ocupar-se de si e as práticas políticas estão vinculados. O diálogo se encerra quando Alcibiades compreende que deve cuidar de si por meio do exame de sua alma. Este texto inicial elucida o pano de fundo histórico do preceito do cuidado de si e estabelece quatro problemas fundamentais que perduram ao longo da antiguidade, 332 verve Tecnologias de si apesar das soluções frequentemente apresentadas diferirem daquelas contidas em Alcibiades, de Platão. Primeiro, há o problema da relação entre ocupar-se de si e a prática política. Nos últimos períodos helênico e imperial, a questão é apresentada de maneira alternativa: quando é o melhor momento para afastar-se da prática política e voltar-se aos cuidados de si? Segundo, há o problema da relação entre ocupar-se de si e a pedagogia. Para Sócrates, o cuidado de si é o dever de um jovem, porém mais adiante no período helênico, o cuidado de si é visto como dever permanente por toda a vida. Terceiro, há o problema da relação entre ocupar-se de si e o conhecimento de si. Platão priorizou o princípio délfico “conhece-te a ti mesmo”. A posição privilegiada do “conhece-te a ti mesmo” é uma característica de todos os platônicos. Depois, nos períodos helênico e grecoromano, essa questão sofre uma inversão. A ênfase não estava mais no conhecimento de si, mas no cuidado de si. A este último, lhe foi atribuída proeminência como uma questão filosófica. Quarto, há o problema da relação entre ocupar-se de si e o amor filosófico, ou a relação para com o mestre. Nos períodos helênico e imperial, a noção socrática do “cuidado de si” tornou-se um tema filosófico comum e universal. O “cuidado de si” foi aceito por Epicuro e seus seguidores, pelos cínicos, e por alguns estóicos como Sêneca, Rufus e Galen. Os pitagóricos atentaram à noção de uma vida comunitária ordenada. O tema do cuidado de si não era um conselho abstrato, mas uma prática difundida, uma rede de obrigações e serviços para a alma. Segundo Epicuro, os epicuristas acreditavam que nunca era tarde para ocupar-se de si. Os estóicos diziam que se deve assistir a si mesmo, “retirar-se 333 6 2004 para dentro de si e lá permanecer”. Luciano parodiou essa noção. Esta era uma prática largamente difundida que gerou competição entre os retóricos e aqueles que se voltaram contra si, particularmente sobre a questão do papel do mestre. Havia charlatões, certamente. Mas alguns indivíduos acreditaram. Era de entendimento comum que era bom ser reflexivo, ao menos um pouco. Plínio aconselhava um amigo a reservar alguns momentos ao dia, várias semanas ou meses, para um retiro dentro de si. Este era um lazer ativo —estudar, ler, preparar-se para o infortúnio ou a morte. Era uma meditação e uma preparação. A escrita era também importante na cultura do cuidado de si. Uma das principais características do cuidado era tomar notas de si para que fossem relidas, escrever tratados e cartas a amigos para ajudá-los e cultivar cadernos com a finalidade de reativar para si as verdades necessárias. As cartas de Sêneca são um exemplo dessa prática de si. Na vida política tradicional, a cultura oral era profundamente dominante e, portanto, a retórica era fundamental. Porém, o desenvolvimento de estruturas administrativas e a burocracia do período imperial aumentaram a quantidade e o papel da escrita na esfera política. Nos escritos de Platão, diálogos cedem espaço ao pseudodiálogo literário. Mas com o advento da era helênica, a escrita prevalece e a dialética real transfere-se para a correspondência. O cuidado de si torna-se constantemente ligado à prática da escrita. O si é algo para se escrever a respeito, um tema ou objeto (sujeito) da prática da escrita. Esta não é uma característica moderna, nascida da Reforma ou do romantismo; é uma das mais antigas tradições ocidentais. A escrita já era bem esta- 334 verve Tecnologias de si belecida e profundamente enraizada quando Agostinho iniciou suas Confissões. O novo cuidado de si envolvia uma nova experiência de si. A nova forma de experiência de si será vista nos séculos I e II quando a introspecção torna-se cada vez mais detalhada. Uma relação desenvolvida entre a escrita e a vigilância. Prestava-se atenção às nuances da vida, ao estado de ânimo, e da leitura, e, assim sendo, a experiência de si foi intensificada e ampliada pelo ato de escrever. Um vasto campo de experiências se abre, onde antes não existia. É possível comparar Cícero aos posteriores Sêneca ou Marco Aurélio. Vemos, por exemplo, a preocupação meticulosa de Sêneca e Marco Aurélio com os detalhes da vida cotidiana, com o movimento do espírito, com a auto-análise. Todos os aspectos do período imperial estão presentes nas cartas de Marco Aurélio de 144-45 d.C. a Fronto: Saudações, meu mais querido dos mestres. Nós estamos bem. Eu dormi relativamente tarde devido ao meu leve resfriado, que agora parece ter diminuído. Assim, das 5 da manhã às 9, passei parte do tempo lendo Agricultura, de Cato, e a outra parte, graças aos céus, escrevendo coisas mais agradáveis do que ontem. Então, depois de rezar, eu aliviei minha garganta, não vou dizer que pelo gargarejo — apesar da palavra gargarisso ser encontrada, acredito eu, em Novius, dentre outros lugares — mas pela ingestão de mel com água até a goela e cuspindo novamente. Após cuidar de minha garganta, fui até meu pai para acompanhá-lo em um sacrifício. Então, fomos ao refeitório. O que você acha que eu comi? Um pedaço de pão, apesar de ter visto outros devorando feijões, cebolas, e arenques cheios de ovas. Depois 335 6 2004 disso, trabalhamos duro na colheita de uvas, fazendo um bom exercício, estávamos felizes e, como diria o poeta “ainda deixando alguns cachos pendurados como sobras da colheita”. Depois das 6 voltamos para casa. Fiz algum trabalho, mas sem propósito algum. Depois, tive uma demorada conversa com minha mãe, sentada na cama. Minha conversa foi assim: “o que você acha que meu Fronto está fazendo agora?” Então ela: “e o que você acha que minha Gratia está fazendo? Então eu: “e o que você acha que o nosso passarinho, nossa pequena Gratia, está fazendo?” Enquanto falávamos dessa forma e disputávamos quem de nós amava mais o outro, o sino tocou, uma intimação de que meu pai havia ido para o seu banho. Então, jantamos depois de tomarmos banho na sala de extração de óleo; não quero dizer tomar banho dentro da sala de extração de óleo, mas quando tomamos banho, jantamos lá, e desfrutamos do som dos pica-paus brincando uns com os outros. Depois de voltar, antes de me virar e cair no sono, faço minha lição e dou a meu querido mestre um relatório das atividades do dia; e se eu pudesse sentir mais saudade, eu não hesitaria em enfraquecer um pouco mais. Adeus, meu Fronto, onde quer que esteja, meu querido, meu amor, meu deleite. Como estão as coisas entre nós? Eu o amo e você está longe. Esta carta apresenta uma descrição da vida cotidiana. Todos os detalhes do cuidado de si estão presentes, todas as coisas sem importância que ele fez. Cícero conta apenas coisas importantes, mas na carta de Marco Aurélio esses detalhes são importantes, pois eles são o próprio indivíduo — o que ele pensou, o que ele sentiu. 336 verve Tecnologias de si A relação entre o corpo e a alma é também interessante. Para os estóicos, o corpo não era tão importante, mas Marco Aurélio fala por si, de sua saúde, do que comeu, de sua dor de garganta. Isso é muito característico da ambigüidade sobre o corpo e este cultivo de si. Teoricamente, a cultura é orientada pela alma, mas todas as preocupações com o corpo assumem uma grande importância. Em Plínio e Sêneca, há grande hipocondria. Eles se recolhem a uma casa no campo. Eles desenvolvem atividades intelectuais, mas também atividades rurais. Eles comem e participam de atividades dos camponeses. A importância do retiro rural contida nessa carta é a de que a natureza ajuda o indivíduo a colocá-lo em contato consigo. Há também uma relação amorosa entre Aurélio e Fronto, relação entre um homem de 24 anos e outro de 40. Ars erotica é um tema de discussão. O amor homossexual era importante nesse período e estendeu-se no monasticismo cristão. Finalmente, nas últimas linhas, há uma alusão ao exame de consciência no final do dia. Aurélio vai dormir e olha em seu caderno para ver o que irá fazer e em que medida correspondia ao que havia feito. A carta é uma transcrição desse exame de consciência. Valoriza aquilo que foi feito, não o que foi pensado. Esta é a diferença entre a prática nos períodos helênico e imperial e a posterior prática monástica. Em Sêneca, também, há apenas ações intencionais, não pensamentos. Há, de fato, uma antecipação da confissão cristã. Esse gênero de cartas revela uma face distinta da filosofia da época. O exame de consciência se inicia com a escrita dessa carta. A escrita de diários surge, posteriormente, na era cristã e concentra-se na noção de combate da alma. 337 6 2004 III Em minha discussão de Alcibiades, de Platão, destaquei três temas principais: primeiro, a relação entre o cuidado de si e o cuidado com a vida política; segundo, a relação entre o cuidado de si e a educação deficiente; e terceiro, a relação entre o cuidado de si e o conhecimento de si. Embora tenhamos visto em Alcibiades a estreita relação entre “cuidar de si mesmo” e “conhecer a si mesmo”, o cuidado de si foi eventualmente absorvido pelo conhecimento de si. Podemos ver esses três temas em Platão, também no período helênico, e quatro ou cinco séculos depois em Sêneca, Plutarco, Epíteto e outros. Se os problemas são os mesmos, as soluções e temas são diferentes e, em alguns casos, opostos ao significado platônico. Primeiro, preocupar-se com si mesmo nos períodos helênico e romano não é exclusivamente uma preparação para a vida política. O cuidado de si tornou-se um principio universal. Deve-se deixar a política para melhor cuidar-se de si. Segundo, o cuidado de si não é apenas obrigatório aos jovens preocupados com sua educação; é um modo de vida para todos ao longo de suas vidas. Terceiro, mesmo que o auto-conhecimento desempenhe um papel importante no cuidado de si, este envolve também outras relações. Gostaria de discutir brevemente os primeiros dois pontos: a universalidade do cuidado de si independente da vida política, e o cuidado de si ao longo da vida. 1. O modelo pedagógico de Platão foi substituído por um modelo médico. O cuidado de si não é um outro tipo 338 verve Tecnologias de si de pedagogia; este deve se tornar um cuidado médico permanente. O cuidado médico permanente é uma das principais características do cuidado de si. O indivíduo deve se tornar o médico de si. 2. Já que devemos nos cuidar ao longo da vida, o objetivo não é mais preparar-se para a vida adulta, ou para uma outra vida, mas preparar-se para uma realização plena da vida. Esta realização só está completa no momento imediatamente anterior à morte. Essa noção de uma alegre aproximação da morte — da velhice como plenitude — é uma inversão dos valores tradicionais gregos de juventude. 3. Por último, há as diversas práticas que surgiram a partir do cuidado de si e a relação do auto-conhecimento com estas práticas. Em Alcibiades I, a alma tinha uma relação espelhada com ela mesma, que se refere ao conceito de memória e justifica o diálogo como um método para descobrir a verdade na alma. Porém, do tempo de Platão à era helênica, a relação entre o cuidado de si e o conhecimento de si se alterou. Podemos notar duas perspectivas. Nos movimentos filosóficos do estoicismo no período imperial há uma concepção diferente de verdade e memória, e um outro método de exame de si. Primeiro, vemos o desaparecimento do diálogo e a importância crescente de uma nova relação pedagógica — um novo jogo pedagógico em que o mestre/professor fala e não faz perguntas e o discípulo não responde, mas ouve e fica em silêncio. A cultura do silêncio torna-se cada vez mais importante. Na cultura pitagórica, discípulos ficavam em silêncio por cinco anos devido a uma regra pedagógica. Eles não faziam perguntas ou falavam durante as lições, mas desenvolveram a arte da escuta. Essa 339 6 2004 era a condição indispensável para conquistar a verdade. Nesta tradição instaurada no período imperial, vemos o início da cultura do silêncio e da arte da escuta, ocupar o lugar do cultivo do diálogo, como em Platão. Para aprender a arte da escuta, devemos ler o tratado de Plutarco sobre a arte de escutar a conferências (Peri tou akouein). No início do tratado, Plutarco afirma que, após o período escolar, devemos aprender a ouvir o logos ao longo de nossa vida adulta. A arte da escuta é crucial para distinguir a verdade da dissimulação e a verdade retórica da mentira no discurso dos retóricos. O ato de ouvir está ligado ao fato do discípulo não estar sob o controle dos mestres, mas ele deve ouvir o logos. Ele deve ficar em silêncio durante uma conferência e pensar sobre ela depois. Essa é a arte da escuta da voz do mestre e da voz da razão dentro de si. O conselho pode parecer banal, mas penso ser importante. Em seu tratado Sobre a Vida Contemplativa, Philon de Alexandria descreve banquetes do silêncio e não banquetes devassos, com vinho, rapazes, bacanal e diálogo. Há, em vez disso, um professor que apresenta um monólogo sobre a interpretação da bíblia e uma indicação precisa sobre como as pessoas devem escutar (De Vita Cont. 77). Por exemplo, eles devem assumir sempre a mesma postura ao escutar. A morfologia dessa noção é um tema interessante no monasticismo e, posteriormente, na pedagogia. Em Platão, os temas da contemplação de si e cuidado de si estão relacionados dialeticamente por meio do diálogo. No período imperial temos os temas, de um lado, da obrigação de escutar a verdade e, de outro, da obrigação de olhar e escutar a si mesmo pela verdade interior. A diferença entre as duas eras é um dos grandes sinais do desaparecimento da estrutura dialética. 340 verve Tecnologias de si O que era o exame de consciência nesta cultura, e como alguém olha para si mesmo? Para os pitagóricos, o exame de consciência estava relacionado à purificação. Assim como dormir estava relacionado à morte como uma forma de encontro com os deuses, era preciso se purificar antes de dormir. A lembrança dos mortos era um exercício para a memória. Mas no período helênico e no início do período imperial, pode-se observar esta prática adquirindo novos valores e significação. Há diversos textos relevantes: De Ira e De Tranquilitate, de Sêneca, e o início do quarto livro de Marco Aurélio, Pensamentos. De Ira (livro 3) de Sêneca, contém alguns traços da tradição antiga. Ele descreve um exame de consciência, recomendado pelos epicuristas, cuja prática teve origem na tradição pitagórica. O objetivo era a purificação da consciência utilizando um instrumento mnemônico. Faça o bem, faça um bom exame de si, e terá um bom sono seguido de bons sonhos, que é o contato com os deuses. Sêneca utiliza uma linguagem jurídica e tudo indica que o si é ao mesmo tempo o juiz e o acusado. Sêneca é o juiz, que processa o si, tornando o exame uma forma de julgamento. Mas ao olhar de perto, este se difere de um tribunal. Sêneca utiliza termos relacionados à prática administrativa, não jurídica, como quando um contador olha os livros ou quando um mestre de obras examina um edifício. O auto-exame está sendo avaliado. Falhas são simplesmente boas intenções que não se realizaram. A regra é um meio para se fazer algo corretamente, sem julgar aquilo que ocorreu no passado. Posteriormente, a confissão cristã buscará as más intenções. 341 6 2004 A visão administrativa de sua vida, muito mais que o modelo jurídico, é o que importa. Sêneca não é um juiz incumbido de punir, mas um administrador que avalia situações. Ele é um administrador permanente de si mesmo, não um juiz de seu passado. Ele vê que tudo foi feito corretamente de acordo com as regras, mas não com a lei. Não são suas falhas reais, mas a sua falta de sucesso que o reaproxima de si. Seus erros são de caráter estratégico, não moral. Ele deseja realizar um ajuste entre aquilo que gostaria de ter feito e aquilo que fez, reativar as normas de conduta, não escavar sua culpa. Na confissão cristã, o penitente é obrigado a memorizar as leis, mas o faz com o objetivo de descobrir seus pecados. Para Sêneca, esta não é uma questão de descobrir a verdade sobre um assunto, mas de se lembrar da verdade, de recuperar uma verdade que havia sido esquecida. Segundo, o sujeito não se esquece de si, de sua natureza, de sua origem, ou de sua afinidade sobrenatural, mas das normas de conduta, do que ele deveria ter feito. Terceiro, a recapitulação dos erros cometidos no dia é a medida da diferença entre aquilo que foi feito e aquilo que deveria ter sido feito. Quarto, o sujeito não é a base de operação para o processo de decifração, mas é o ponto onde as normas de conduta se aglutinam na memória. O sujeito constitui a intersecção entre as ações que devem ser reguladas e regras para aquilo que deve ser feito. Isso é muito diferente da concepção platônica e cristã de consciência. Os estóicos espiritualizaram a noção de anachoresis, a retirada de um exército, o esconder de um escravo fugido de seu mestre, ou a retirada em direção ao campo, longe das cidades, como na retirada de Marco Aurélio. Uma retirada para o campo torna-se um retiro espiritual para dentro de si. Esta é uma atitude genérica e 342 verve Tecnologias de si ao mesmo tempo uma ação diária precisa; um indivíduo retira-se para dentro de si para descobrir — mas não para descobrir falhas ou sentimentos profundos, apenas para lembrar regras de ação, as principais leis do comportamento. É uma fórmula mnemotécnica. IV Eu falei de três técnicas estóicas de si: cartas a amigos e a revelação de si; exame de si e da consciência, incluindo uma revisão do que foi feito, daquilo que deveria ter sido feito, e uma comparação entre as duas. Agora, eu gostaria de tratar da terceira técnica estóica, askêsis, não uma revelação do si secreto, mas uma lembrança. Para Platão, o indivíduo deve descobrir a verdade que se encontra dentro dele. Para os estóicos, a verdade não está dentro do indivíduo, mas no logoi, os ensinamentos dos professores. O indivíduo memoriza aquilo que ouviu, convertendo as afirmações que ouve em normas de conduta. A subjetivação da verdade é o objetivo dessas técnicas. Durante o período imperial, o indivíduo não podia assimilar princípios éticos sem um quadro teórico como a ciência, como, por exemplo, em De Rerum Naturae, de Lucrécio. Há questões estruturais subjacentes à prática do exame de si toda noite. Eu gostaria de sublinhar o fato de que no estoicismo não é a decifração de si, nem os meios de revelar um segredo, que importam; é a memória daquilo que fez e daquilo que teve que fazer. Na cristandade, asceticismo sempre se refere a certa renúncia de si e da realidade, pois na maior parte do tempo o si é parte de uma realidade da qual se deve renunciar para obter acesso a um outro nível de reali- 343 6 2004 dade. Esse movimento para alcançar a renúncia de si é o que distingue o asceticismo cristão. Na tradição filosófica dominada pelo estoicismo, askêsis significa, não a renúncia, mas a progressiva consideração de si, ou o domínio de si, obtido não por meio da renúncia da realidade, mas pela aquisição e assimilação da verdade. Esta tem como seu objetivo final, não a preparação para outra realidade, mas o acesso à realidade desse mundo. A palavra grega para designar isso é paraskeuazô (“preparar-se”). A askêsis é um conjunto de práticas pela qual o indivíduo pode adquirir, assimilar e transformar a verdade em um permanente princípio de ação. Aletheia torna-se ethos. Este é um processo de tornar-se mais subjetivo. Quais são as principais características da askêsis? Elas incluem exercícios nos quais o sujeito se coloca em uma situação na qual ele pode verificar se pode confrontar os acontecimentos e utilizar os discursos com os quais está munido. Esse é um caso de testar a preparação. Essa verdade está assimilada o bastante para se tornar ética, para que possamos nos comportar como se deve quando um acontecimento se apresenta? Os gregos caracterizavam os dois pólos desse exercício pelos termos meletê e gymnasia. Meletê significa “meditação”, de acordo com a tradução do latim, meditatio. Ela tem a mesma raiz de epimeleisthai. É um termo relativamente vago, um termo técnico emprestado da retórica. Meletê é o trabalho realizado com o objetivo de preparar um discurso ou uma improvisação, refletindo sobre termos e argumentos úteis. Foi necessário antecipar a situação real por meio do diálogo no pensamento. A meditação filosófica é um tipo de meditação que é composta pela memorização de respostas e reativação dessas memórias, colocando o indivíduo em uma situa- 344 verve Tecnologias de si ção em que ele imagine como reagiria. O indivíduo julga as razões que deveria utilizar em um exercício imaginário (“Vamos supor...”) com a intenção de testar uma ação ou acontecimento (por exemplo, “Como eu reagiria?”). Imaginar a articulação de possíveis acontecimentos para testar sua reação — isso é meditação. O mais famoso exercício de meditação é o premeditatio mallorum, praticado pelos estóicos. É uma experiência ética, imaginária. Sua aparência é uma certa visão sombria e pessimista do futuro. Esta pode ser comparada ao que Husserl afirma em relação à redução eidética. Os estóicos desenvolveram três reduções eidéticas da adversidade futura. Primeiro, não é uma questão de imaginar o futuro provável, mas de imaginar o pior cenário possível, mesmo que haja poucas chances de se confirmar — o pior como certeza, como atualização do que pode acontecer, não como um cálculo de probabilidade. Segundo, o indivíduo não deve vislumbrar as coisas em sua potencialidade de acontecimento em um futuro distante, mas como algo que já está em curso de se realizar. Por exemplo, não imaginar que um indivíduo pode ser exilado, mas imaginar que este já está exilado, sujeito à tortura e que está morrendo. Terceiro, o objetivo não é experimentar um sofrimento mudo, mas se convencer de que esses males não são reais. A redução de tudo que é possível, de todas as durações e infortúnios, não revela algo negativo, mas aquilo que devemos aceitar. Consiste em ter simultaneamente o acontecimento futuro e presente. Os epicuristas eram hostis a tal idéia, pois a consideravam inútil. Eles acreditavam que era melhor relembrar e memorizar prazeres passados com o objetivo de obter prazer de acontecimentos presentes. 345 6 2004 No lado oposto está gymnasia (“treinamento”). Se, por um lado, meditatio é uma experiência imaginária que treina o pensamento, gymnasia é o treinamento em uma situação real, mesmo que induzido artificialmente. Há uma longa tradição por trás disso: abstinência sexual, privação física e outros rituais de purificação. Estas práticas de abstinência têm outros significados além da purificação ou o testemunho de forças demoníacas, como em Pitágoras e Sócrates. Na cultura estóica, sua função é estabelecer e testar a independência do indivíduo em relação ao mundo exterior. Por exemplo, em De Genio Socratis, de Plutarco, o indivíduo se entrega a práticas esportivas intensas. Ou, ainda, submete-se à tentação colocando-se diante de apetitosos pratos para, então, os recusar. O indivíduo, em seguida, chama seus escravos, dá-lhes os pratos e come a refeição que havia sido preparada para eles. Outro exemplo é a décima oitava carta de Sêneca a Lucílio, na qual este se prepara para um grande banquete por meio de atos de mortificação da carne para convencer a si mesmo de que a pobreza não é um mal e de que ele pode resistir a ela. Entre esses extremos de treinar no pensamento e treinar na realidade, meletê e gymnasia, há uma série de possibilidades intermediárias. Epíteto nos fornece o melhor exemplo do meio termo. Ele pretende cuidar eternamente das representações, técnica que encontra seu ápice em Freud. Há duas importantes metáforas de seu ponto de vista: o vigia noturno, que não permite a entrada na cidade de ninguém que não se identifique (devemos ser “vigias” sobre o fluxo do pensamento); e o cambista, que verifica a autenticidade do dinheiro, examina, pesa e averigua. Nós devemos ser cambistas de nossas próprias representações de pensamento, testan- 346 verve Tecnologias de si do-os atentamente, certificando-os, seu metal, seu peso, sua figura. A mesma metáfora do cambista é encontrada nos estóicos e na literatura cristã antiga, porém com diferentes significados. Quando Epíteto afirma que alguém deve ser um cambista, ele quer dizer que assim que uma idéia vir à mente, este deve pensar nas regras que devem ser utilizadas para avaliá-la. Para João Cassiano, ser um cambista e analisar seus pensamentos possuem significados totalmente diferentes: o indivíduo deve tentar descobrir se, na raiz do movimento que lhe trás as representações, há ou não luxúria e desejo — se seu pensamento inocente possui origens malignas, se há algo intensamente sedutor que está subjacente, talvez encoberto, a moeda de seu pensamento. Há dois grupos de exercícios em Epíteto: o sofístico e o ético. O primeiro, são exercícios trazidos da escola: jogos de pergunta e resposta. Este deve ser um jogo ético, ou seja, deve ensinar uma lição moral. O segundo, são exercícios ambulantes. O indivíduo sai para passear e testa suas reações a esse passeio. O propósito de ambos os exercícios é o controle das representações, não a descoberta da verdade. São lembretes sobre a obediência às regras diante da adversidade. Os testes de Epíteto e Cassiano descrevem detalhadamente uma máquina pré-freudiana de censura. Para Epíteto, o controle das representações não significa a descoberta, mas a recordação de princípios de ação e, portanto, a verificação, por meio do auto-exame, da capacidade dos indivíduos em governarem suas próprias vidas. É uma forma de auto-exame permanente. O indivíduo deve ser seu próprio censor. A meditação sobre a morte é o ápice de todos esses exercícios. 347 6 2004 Além das cartas, do exame, e da askêsis, nós devemos evocar uma quarta técnica do exame de si: a interpretação dos sonhos. Esta técnica teria um destino importante no século XIX, mas ocupou uma posição relativamente marginal na antiguidade. Os filósofos possuíam uma atitude ambivalente diante da interpretação dos sonhos. A maioria dos estóicos era crítica e cética a respeito de tal interpretação. Mas ainda há sua prática popular e generalizada. Houve especialistas capazes de interpretar os sonhos, incluindo Pitágoras e alguns estóicos, além de alguns especialistas que escreveram livros para ensinar as pessoas a interpretar seus próprios sonhos. Havia uma enorme quantidade de escritos sobre como fazê-lo, mas o único manual sobre os sonhos que permaneceu foi A interpretação dos sonhos, de Artemidoro (segundo século d.C.). A interpretação dos sonhos era importante, pois na antiguidade o significado dos sonhos era um presságio dos acontecimentos futuros. Eu citaria outros dois documentos sobre a importância da interpretação dos sonhos para a vida cotidiana. O primeiro é de Synesius de Cyrene, no quarto século d.C., que era um homem muito conhecido e dedicado. Apesar de não ser cristão, pediu para tornar-se bispo. Seus comentários sobre os sonhos são interessantes, ainda que a adivinhação pública fosse proibida para que o imperador fosse poupado de más notícias. Portanto, o indivíduo deveria interpretar seus próprios sonhos; deveria ser um intérprete de si. Para isso, ele deveria lembrarse não apenas de seus sonhos, mas dos acontecimentos anteriores e posteriores. Ele deveria registrar os acontecimentos diariamente, tanto da vida diurna, quanto da vida noturna. Os Discursos Sagrados, de Aelius Aristides, escritos no segundo século, registra seus sonhos e explica como 348 verve Tecnologias de si ele os interpreta. Acreditava que na interpretação dos sonhos nós recebíamos conselhos dos deuses sobre remédios para as doenças. Com esse trabalho, nós estamos na encruzilhada de dois tipos de discurso. A matriz dos Discursos Sagrados não é a escrita das atividades diárias de um indivíduo, mas a dedicação ritualística de preces aos deuses que o curaram. V Eu pretendo examinar a estrutura de uma das principais técnicas de si no início do cristianismo e em que esta consistia como jogo de verdade. Para isso, necessito analisar a transição da cultura pagã para a cristã, na qual é possível observar continuidades e descontinuidades precisas e bem definidas. O cristianismo pertence ao campo das religiões de salvação. É uma dessas religiões que tem como objetivo conduzir o indivíduo de uma realidade à outra, da morte à vida, do tempo à eternidade. Para alcançar isso, o cristianismo impôs um conjunto de condições e regras de comportamento para certa transformação de si. O cristianismo não é apenas uma religião da salvação, é uma religião confessional. Ela impõe severas obrigações de verdade, dogma e cânone, mais do que o fazem as religiões pagãs. Obrigações de verdade em creditar nisto ou naquilo foram, e ainda são, muito numerosas. O dever de aceitar um conjunto de obrigações, de assumir certos livros como verdades absolutas, de aceitar decisões autoritárias em matéria de verdade, de não apenas acreditar em algo, mas demonstrar o credo, e de aceitar a autoridade institucional, são todas características do cristianismo. 349 6 2004 O cristianismo exige outra forma de obrigação para com a verdade, diferente da fé. Cada indivíduo tem o dever de saber quem ele é, ou seja, de tentar descobrir o que acontece em seu interior, de assumir seus defeitos, reconhecer as tentações, localizar os desejos, e todos são obrigados a revelar esses segredos, seja a Deus ou a outros membros da comunidade; e, portanto, de prestar testemunho, público ou privado, contra si mesmo. As obrigações de verdade da fé e o si estão ligados um ao outro. Esse vínculo permite uma purificação da alma que seria impossível sem o conhecimento de si. As coisas são diferentes nas tradições católica e protestante, mas as principais características de ambas são um conjunto de obrigações de verdade em relação à fé, aos livros, ao dogma, e um outro em relação à verdade, ao coração e à alma. O acesso à verdade não pode ser concebido sem a pureza da alma. Esta é a conseqüência do conhecimento de si e uma condição para entender o texto; Agostinho diz: Quis facit veritatem (fazer a verdade dentro de si, obter acesso à luz). Eu gostaria de analisar as maneiras pelas quais a igreja, em seu intuito de obter acesso à luz, concebeu a iluminação como revelação de si. O sacramento da penitência e a confissão dos pecados são inovações consideravelmente tardias. Os cristãos dos primeiros séculos possuíam maneiras diferentes de descobrir e decifrar a verdade sobre eles mesmos. Uma das duas principais formas dessas revelações pode ser caracterizada pela palavra exomologêsis, ou “reconhecimento do fato”. Mesmo os padres latinos utilizavam essa expressão em grego sem tradução precisa. Para os cristãos, isso significava reconhecer publicamente a verdade de sua fé ou reconhecer publicamente que eles eram cristãos. 350 verve Tecnologias de si A palavra possuía ainda um significado de penitência. Quando um pecador busca a penitência, ele deve solicitá-la ao bispo. No início do cristianismo, a penitência não era um ato ou um ritual, mas um status imposto sobre um indivíduo que houvesse cometido graves pecados. Exomologêsis era um ritual de reconhecimento de um indivíduo como pecador e penitente, o qual possui diversas características. Primeiro, o indivíduo era penitente por um período de três a dez anos, e essa condição o afetaria para o resto de sua vida. Havia a prática do jejum e também regras sobre vestimenta e proibições sobre o sexo. O indivíduo era marcado de tal forma que ele não podia viver da mesma forma que outros. Mesmo após sua reconciliação, ele era sujeito a diversas proibições. Por exemplo, ele não poderia se casar nem tornar-se padre. Nesta condição encontra-se a obrigação da exomologêsis. O pecador busca sua penitência. Vai ao bispo e pede que lhe imponha o status de penitente. Ele precisa explicar porque quer esse status e quais são os seus erros. Isso não é uma confissão, mas uma condição do status. Mais tarde, no período medieval, exomologêsis passou a ser um ritual que ocorria no término do período de penitência, imediatamente anterior à reconciliação. Essa cerimônia colocou o pecador entre os outros cristãos. Sobre essa cerimônia de reconciliação, Tertuliano afirma que, maltrapilho, vestindo uma camisa feita de pêlos e coberta de cinzas, o pecador erguese humildemente diante da igreja. Depois, ele atira-se ao chão e beija os joelhos de seus irmãos (On repetance 9-12). Exomologêsis não é um comportamento verbal, mas o reconhecimento dramático do status de penitente de um indivíduo. Muito tempo depois, em Epístolas, Jerônimo descreve a penitência de Fabiola, uma senho- 351 6 2004 ra romana. Durante esses dias, Fabiola estava no mesmo nível dos penitentes. Pessoas se lamentavam junto a ela, adicionando dramaticidade à sua punição pública. O reconhecimento também designa todo o processo que o penitente experimenta nesse status ao longo dos anos. Ele é o elemento agregador de comportamentos penitenciais manifestos, de autopunição, bem como da revelação de si. Os atos pelo qual o indivíduo pune a si mesmo são indistingüíveis daqueles em que ele revela a si mesmo. A autopunição e a expressão voluntária de si estão coladas. Esse vínculo é evidente em diversos escritos. Cipriano, por exemplo, versa sobre exibições da vergonha e da modéstia. A penitência não é nominal, mas dramática. Comprovar o sofrimento, demonstrar vergonha, humildade e modéstia — essas são as principais características da punição. A penitência no início do cristianismo é um modo de vida que transparece a todo momento a obrigação da revelação de si. Ela deve ser representada visivelmente e acompanhada por outros que reconhecem o ritual. Essa condição permaneceu até os séculos XV e XVI. Tertuliano utiliza o termo publicatio sui para caracterizar exomologêsis. Publicatio sui refere-se ao auto-exame diário de Sêneca, que era, entretanto, totalmente privado. Para Sêneca, exomologêsis ou publicatio sui não implicam uma análise verbal de fatos e pensamentos; é apenas uma expressão somática e simbólica. Aquilo que era privado para os estóicos, era público para os cristãos. Quais eram suas funções? Primeiro, era uma forma de livrar-se dos pecados e recuperar a pureza adquirida no batismo. Segundo, tinha também o intuito de mos- 352 verve Tecnologias de si trar o pecador como ele é. Este é o paradoxo no coração da exomologêsis; ela livra dos pecados e revela o pecador. A principal parte do ato de penitência não era dizer a verdade sobre o pecado, mas revelar a verdadeira essência pecadora contida no pecador. Não era uma maneira do pecador explicar seus pecados, mas sim uma forma de apresentá-lo como pecador. Por que essa exposição deveria apagar os pecados? A exposição é o coração da exomologêsis. No cristianismo dos primeiros séculos, autores cristãos haviam recorrido a três modelos para explicar a relação paradoxal entre livrar-se dos pecados e revelar-se. O primeiro é o modelo médico: o indivíduo deve revelar suas feridas para que possa se curar. Outro modelo, menos freqüente, era o julgamento a partir do modelo do tribunal. O indivíduo sempre cede ao juiz confessando seus erros. O pecador age como o advogado do diabo, tal como faria o diabo no Juízo Final. O modelo mais importante utilizado para explicar exomologêsis foi o modelo da morte, da tortura, do martírio. As teorias e práticas sobre a penitência foram elaboradas em torno do problema do homem que prefere morrer a comprometer ou abandonar sua fé. A forma pela qual o mártir encara a morte é o modelo para o penitente. Para o decaído ser reintegrado à igreja, ele precisa se expor voluntariamente a um martírio ritual. A penitência é o resultado da mudança, da ruptura consigo, do passado, do mundo. É uma forma de demonstrar que se é capaz de renunciar à vida e a si mesmo, para demonstrar que se é capaz de encarar e aceitar a morte. A penitência de um pecado não tem como alvo o estabelecimento de uma identidade, mas serve para marcar a recusa de si, a ruptura consigo mesmo: ego non sum, ego. Essa fórmula está no coração do publicatio sui. 353 6 2004 Representa uma ruptura do indivíduo com a sua identidade passada. Estes gestos ostensivos têm a função de revelar a verdade sobre o estado de ser do pecador. A revelação de si é ao mesmo tempo a autodestruição. A diferença entre as tradições estóica e cristã é que na tradição estóica o exame de si, o julgamento e a disciplina mostram o caminho para o conhecimento de si por meio da sobreposição da verdade sobre si através da memória, ou seja, por meio da memorização das regras. Na exomologêsis, o penitente sobrepõe a verdade sobre si por meio da ruptura violenta e da dissociação. É importante enfatizar que essa exomologêsis não é verbal. É simbólica, ritual e teatral. VI Durante o quarto século encontramos uma tecnologia muito diferente para a revelação de si, exagoreusis, muito menos famosa do que a exomologêsis, porém mais importante. Esta é remanescente de exercícios verbais em relação ao professor/mestre das escolas filosóficas pagãs. Nós podemos observar a transferência de diversas tecnologias estóicas de si para técnicas espirituais cristãs. Pelo menos um exemplo do exame de si, proposto por João Crisóstomo, era exatamente a mesma forma e a mesma característica administrativa que a descrita por Sêneca em De ira. De manhã, devemos contabilizar nossos gastos e, à noite, devemos nos interrogar acerca da prestação de contas sobre nossa conduta, a fim de determinar o que nos é vantajoso e o que nos é prejudicial, com rezas em vez de palavras indiscretas. Este é exatamente o exame de si como concebido por Sêneca. É também importante notar que esse exame de si é raro na literatura cristã. 354 verve Tecnologias de si A prática elaborada e bem desenvolvida do exame de si no cristianismo monástico é diferente do exame de si de Sêneca, e muito diferente de Crisóstomo e da exomologêsis. Essa nova prática deve ser entendida a partir do ponto de vista de dois princípios da espiritualidade cristã: o da obediência e o da contemplação. Em Sêneca, a relação do discípulo com o mestre era importante, porém instrumental e profissional. Esta era fundada na capacidade do mestre em conduzir o discípulo a uma vida feliz e autônoma, por meio de bons conselhos. A relação se encerraria quando o discípulo alcançasse essa vida. Devido a uma extensa série de razões, a obediência possui características muito diferentes na vida monástica. Esta difere da relação greco-romana diante do mestre no sentido em que a obediência não é baseada apenas na necessidade de aprimoramento de si, mas deve contemplar todos os aspectos da vida monástica. Não há qualquer elemento na vida de um monge que escape a essa relação total e permanente de obediência ao mestre. Cassiano repete um antigo princípio da tradição oriental: “tudo aquilo que um monge faz sem a permissão de seu mestre constitui um roubo”. Neste caso, obediência é o total controle do comportamento pelo mestre, não um estado autônomo definitivo. Este é um sacrifício de si, um sacrifício da vontade do sujeito. Esta é a nova tecnologia de si. O monge precisa da permissão de seu diretor para tudo, até mesmo para morrer. Tudo aquilo que faz sem permissão é furto. Não há um movimento sequer no qual o monge é autônomo. Mesmo quando se torna diretor, ele deve preservar o espírito da obediência. Ele deve preservá-lo como um sacrifício permanente do controle 355 6 2004 total do comportamento pelo mestre. O si deve constituir-se como tal por meio da obediência. A segunda característica da vida monástica é que a contemplação é considerada o bem supremo. É obrigação do monge orientar seus pensamentos continuamente para o ponto que é Deus e de se assegurar de que seu coração é puro o bastante para que possa ver Deus. O objetivo é a contemplação permanente de Deus. A tecnologia de si, desenvolvida a partir da obediência e contemplação nos monastérios, apresenta algumas características peculiares. Cassiano apresenta uma exposição razoavelmente clara dessa tecnologia de si, um princípio do exame de si que ele emprestou das tradições monásticas síria e egípcia. Essa tecnologia de origem oriental do exame de si, dominada pela obediência e pela contemplação, preocupa-se muito mais com o pensamento do que com a ação. Sêneca havia colocado ênfase na ação. Com Cassiano, o objeto não são as ações passadas do dia, mas os pensamentos presentes. Já que o monge deve voltar seu pensamento continuamente a Deus, ele deve explorar minuciosamente o curso desse pensamento. Esta exploração, portanto, tem como objeto a discriminação permanente entre os pensamentos que conduzem e aqueles que não conduzem a Deus. Essa preocupação contínua com o presente é diferente da memorização, de Sêneca, dos fatos e suas correspondências com as regras. Os gregos referem-se a esta situação com a palavra pejorativa: logismoi (“cogitações, raciocínio, pensamento calculista”). Há uma etimologia de logismoi em Cassiano, mas eu não sei se é válida: co-agitationes. O espírito é plukinetos “movendo-se perpetuamente” (Primeira conferência de Abade Serenus 4). Para Cassiano, a mobilidade perpétua 356 verve Tecnologias de si do espírito é sua fraqueza. Distrai o indivíduo de sua contemplação de Deus (Primeira conferência de Abade Nesterus 13). A exploração da consciência consiste em tentar imobilizá-la, em eliminar os movimentos do espírito que desviam o indivíduo de Deus. Isso significa que devemos examinar cada pensamento que se apresenta à consciência para verificar a relação entre ação e pensamento, verdade e realidade, para ver se há algo nesse pensamento que irá mover nosso espírito, provocar nosso desejo, desviar nosso espírito de Deus. A exploração é baseada na idéia de uma concupiscência secreta. Há três tipos principais de exame de si: primeiro, o exame de si em relação a pensamentos em correspondência com a realidade (Descartes); segundo, o exame de si em relação à forma pela qual nosso pensamento relaciona-se com regras (Sêneca); terceiro, o exame de si com respeito à relação entre pensamentos ocultos e uma impureza interna. Neste momento inicia-se a hermenêutica cristã de si, com sua decodificação dos pensamentos interiores. Isto implica que há algo escondido dentro de nós e que estamos sempre em uma auto-ilusão que oculta os segredos. Cassiano diz que para realizar essa busca devemos cuidar de nós mesmos e atestarmos nosso pensamento diretamente. Para isso, apresenta três analogias. Primeiro, a analogia do moinho (Primeira Conferência do Abade Moisés 18). Pensamentos são como grãos, e a consciência é o celeiro. O nosso papel, assim como o do moleiro, é de separar os grãos ruins daqueles que podem ser utilizados na produção de boa farinha e bons pães para nossa salvação. A segunda é a militar (Primeira Conferência do Abade Serenus 5). Cassiano estabelece uma analogia com o 357 6 2004 oficial que ordena ao bom soldado marchar para a direita, e ao mal soldado marchar para a esquerda. Nós devemos agir como o oficial que separa os soldados em duas fileiras, a boa e a má. A terceira apresenta a analogia do cambista (Primeira Conferência do Abade Moisés 20-22). A consciência é o cambista de si. Ele deve examinar as moedas, sua figura, seu metal, sua procedência. Deve pesá-las para verificar se foram mal utilizadas. Como há a imagem do imperador na moeda, a imagem de Deus deve ficar em nossos pensamentos. Devemos verificar, então, a qualidade do pensamento: será real essa figura de Deus? Qual o seu grau de pureza? Não estará misturado com o desejo e a concupiscência? Assim, encontramos a mesma imagem vista em Sêneca, porém com um significado diferente. O nosso papel é ser um cambista permanente de nós mesmos, então como é possível fazer tal discriminação e reconhecer se um pensamento é bom? Como essa “discriminação” pode ser feita efetivamente? Há apenas um único caminho: confessar todos os nossos pensamentos ao nosso diretor, obedecer ao nosso mestre em todas as circunstâncias, e engajarmo-nos na constante verbalização de nossos pensamentos. Em Cassiano, o exame de si está subordinado à obediência e à constante verbalização dos pensamentos, o que é diferente do estoicismo. Ao dizer a si mesmo, não apenas seus pensamentos, mas também os menores movimentos de consciência, suas intenções, o monge situa-se em uma relação hermenêutica em relação, não apenas ao mestre, mas a ele mesmo. Essa verbalização é o critério ou a moeda do pensamento. Por que a confissão é capaz de assumir essa função hermenêutica? Como podemos ser os hermeneutas de 358 verve Tecnologias de si nós mesmos ao relatar e transcrever todos os nossos pensamentos? A confissão concede ao mestre um conhecimento, graças a sua grande experiência e sabedoria, que lhe permite transmitir sábios conselhos. Mesmo se o mestre, em seu papel como um poder discriminatório, não diz nada, o fato do pensamento ter sido exprimido fará com que este tenha um efeito discriminatório. Cassiano relata o exemplo do monge que roubou o pão. Num primeiro momento, ele não consegue confessar seu ato. A diferença entre bons e maus pensamentos é que estes não podem ser expressos sem dificuldades, já que o mal é oculto e negado. O fato dos maus pensamentos não poderem ser expressos sem dificuldades e constrangimentos, pode fazer com que não se estabeleça a diferença cosmológica entre a luz e a escuridão, entre a verbalização e o pecado, entre o segredo e o silêncio, entre Deus e o mal. O monge, então, prostra-se e confessa. Apenas a confissão verbal o livra do demônio. A expressão verbal é o momento crucial (Segunda Conferência do Abade Moisés II). A confissão é uma marca da verdade. Essa idéia da verbalização permanente é apenas um ideal. Nunca é completamente. O preço da verbalização permanente foi transformar em pecado tudo aquilo que não pode ser expresso. Como conclusão, no cristianismo dos primeiros séculos, há duas formas de revelação de si, de demonstração da verdade sobre si. A primeira é a exomologêsis, ou a expressão dramática da situação do penitente como pecador, que torna pública sua condição de pecador. A segunda é aquela denominada na literatura espiritual exagoreusis. Esta é uma verbalização analítica e contínua do pensamento, conduzida em relação à obediência total a outra pessoa. Essa relação é corporificada na renúncia da vontade própria e na própria renúncia de si. 359 6 2004 Há uma grande diferença entre exomologêsis e exagoreusis; no entanto é preciso destacar o fato de que há um importante elemento em comum: não se pode revelar sem a renúncia. Exomologêsis tinha como modelo o martírio; o pecador tinha que se matar por meio do auto-flagelo ascético. Seja por meio do martírio ou por obediência a um mestre, a revelação de si é a renúncia a si mesmo. Na exagoreusis, de outro lado, o indivíduo mostra que, pela verbalização permanente do pensamento e pela constante obediência ao mestre, renuncia a sua vontade e a si mesmo. Esta prática estende-se do início do cristianismo até o século XVII. O surgimento da penitência no século XIII é um passo importante em sua ascensão. O tema da renúncia de si é muito importante. Ao longo do cristianismo, há uma correlação entre a revelação de si, dramática ou verbal, e a renúncia de si. Minha hipótese ao observar essas duas técnicas é a de que a verbalização torna-se a mais importante. Desde o século XVIII até o presente, as técnicas de verbalização foram reinseridas em diferentes contextos pelas denominadas ciências humanas com o objetivo de utilizá-las sem a renúncia de si, mas para constituir, positivamente, um novo sujeito. Utilizar essas técnicas sem renunciar a si mesmo constitui uma ruptura decisiva. Tradução do inglês por Andre Degenszajn. Notas Michel Foucault. “Technologies of the self ” in Luther H. Martin et al (orgs.). Technologies of the self – a seminar with Michel Foucault. Amherst, University of Massachusetts Press, 1988. 176 pp. 1 360 6 2004 362 verve NU-SOL Publicações do Núcleo de Sociabilidade Libertária, do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. hypomnemata Boletim eletrônico mensal, 1999-2004 vídeos Libertárias, 1999 Foucault-Ficô, 2000 Um incômodo, 2003 CD-ROM Um incômodo, 2003 (artigos e intervenções artísticas do Simpósio Um incômodo) Coleção Escritos Anarquistas, 1999-2003 1. a anarquia Errico Malatesta 2. diálogo imaginário entre marx e bakunin Maurice Cranston 3. a guerra civil espanhola nos documentos anarquistas C.N.T. 4. municipalismo libertário Murray Bookchin 5. reflexões sobre a anarquia Maurice Joyeux 6. a pedagogia libertária Edmond-Marc Lipiansky 7. a bibliografia libertária — um século de anarquismo em língua portuguesa Adelaide Gonçalves & Jorge E. Silva 8. o estado e seu papel histórico Piotr Kropotkin 9. deus e o estado Mikhail Bakunin 10. a anarquia: sua filosofia, seu ideal Piotr Kropotkin 11. escritos revolucionários Errico Malatesta 12. anarquismo e anticlericalismo Eduardo Valladares 13. do anarquismo Nicolas Walter 14. os anarquistas e as eleições Bakunin, Kropotkin, Malatesta, Mirbeau, 363 6 2004 Grave, Vidal, Zo D’Axa, Bellegarrigue, Cubero 15. surrealismo e anarquismo Joyeux, Ferrua, Péret, Doumayrou, Breton, Schuster, Kyrou, Legrand 16. nestor makhno e a revolução social na ucrânia Makhno, Skirda, Berkman 17. arte e anarquismo Ferrua, Ragon, Manfredonia, Berthet, Valenti 18. análise do estado — o estado como paradigma do poder Eduardo Colombo 19. o essencial proudhon Francisco Trindade 20. escritos contra marx Mikhail Bakunin 21. apelo à liberdade do movimento libertário Jean-Marc Raynaud 22. a instrução integral Mikhail Bakunin 23. o bairro, o consumo, a cidade... espaços libertários Bookchin, Boino, Enckell 24. max stirner e o anarquismo individualista Armand, Barrué, Freitag 25. o racionalismo combatente: francisco ferrer y guardia Ramón Safón 26. a revolução mexicana Flores Magón 27. anarquismo, obrigação social e dever de obediência Eduardo Colombo Livros Edson Passetti (org.). Curso livre de abolicionismo penal. Rio de Janeiro, Editora Revan/Nu-Sol, 2004. Edson Passetti (org.). Kafka-Foucault, sem medos. São Paulo, Ateliê Editorial, 2004. Mikhail Bakunin. Estatismo e anarquia. São Paulo, Ed. Imaginário/Ícone Editora/Nu-Sol, 2003. Pierre-Joseph Proudhon. Do Princípio Federativo. São Paulo, Ed. Imaginário/Nu-sol, 2001. 364 verve Publicações Libertárias em Língua Portuguesa verve Revista Semestral do Nu-Sol Nas livrarias e em www.nu-sol.org letralivre Revista de Cultura Libertária e Literatura Assinaturas: [email protected] e Caixa Postal 50083 20062-970 Rio de Janeiro/RJ libertários Revista de expressão anarquista Nas livrarias e bancas de jornais. Assinaturas: [email protected] utopia Revista Anarquista de Cultura e Intervenção www.utopia.pt Novos Tempos Nas livrarias e bancas de jornais. Assinaturas: [email protected] 365 6 2004 Recomendações para colaborar com verve Verve aceita artigos e resenhas que serão analisados pelo Conselho Editorial para possível publicação. Os textos enviados à revista Verve devem observar as seguintes orientações quanto à formatação: Extensão, fonte e espaçamento: a) Artigos: os artigos não devem exceder 26.000 caracteres contando espaço (aproximadamente 15 laudas), em fonte Times New Roman, corpo 12, espaço duplo. b) Resenhas: As resenhas devem ter até 6.000 caracteres (com espaço), em fonte Times New Roman, corpo 12, espaço duplo. Identificação: O autor deve enviar mini-currículo, de no máximo 03 linhas, para identificá-lo em nota de rodapé. Resumo: Os artigos devem vir acompanhados de resumo de até 10 linhas, em português e inglês. Notas explicativas: As notas, concisas e de caráter informativo, devem vir em nota de fim de texto. Citações: As referências bibliográficas devem vir em nota de fim de texto observando o padrão a seguir: I) Para livros: Nome do autor. Título do livro. Cidade, Editora, Ano, página. Ex: Max Stirner. O falso princípio de nossa educação. São Paulo, Imaginário, 2001, p. 74. II) Para artigos ou capítulos de livros: Nome do autor. “Título” in Título da obra. Cidade, Editora, ano, página. 366 verve Ex: Michel de Montaigne. “Da educação das crianças” in Ensaios, vol. I. São Paulo, Nova Cultural, Coleção Os pensadores, p.76. III) Para citações posteriores: a) primeira repetição: Idem, p. número da página. b) segunda e demais repetições: Ibidem, p. número da página. c) para citação recorrente e não seqüencial: Nome do autor, ano, op. cit., p. número da página. IV) Para resenhas As resenhas devem identificar o livro resenhado, logo após o título, da seguinte maneira: Nome do autor. Título da Obra. Cidade, Editora, ano, número de páginas. Ex: Pierre-Joseph Proudhon. Do Princípio Federativo. São Paulo, Ed. Imaginário, 2001, 134 pp. V) Para obras traduzidas Nome do autor. Título da Obra. Cidade, Editora, ano, número de páginas. Tradução de [nome do tradutor]. Ex: Michel Foucault. As palavras e as coisas. São Paulo, Martins Fontes, 2000. Tradução de Salma T. Muchail. As colaborações devem ser encaminhadas por meio eletrônico para o endereço [email protected] salvos em extensão rtf. Na impossibilidade do envio eletrônico, pede-se que a colaboração em disquete seja encaminhada pelo correio para: Revista Verve Núcleo de Sociabilidade Libertária (Nu-Sol), Programa de Estudos Pós-graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Rua Ministro Godói, 969, 4o andar, sala 4E-18, Perdizes, CEP 05015-001, São Paulo/SP. Informações e programação das atividades do Nu-sol no endereço: www.nu-sol.org 367 6 2004 368