ZELOI MARTINS DOS SANTOS
VISCONDE DE GUARAPUAVA:
UM PERSONAGEM NA HISTÓRIA DO PARANÁ.
CURITIBA
2005
ZELOI MARTINS DOS SANTOS
VISCONDE DE GUARAPUAVA:
UM PERSONAGEM NA HISTÓRIA DO PARANÁ
Tese apresentada ao Curso de Pós-Graduação
em História, Setor de Ciências Humanas, Letras
e Artes, Universidade Federal do Paraná, como
requisito parcial à obtenção do título de Doutor
em História.
Orientador: Prof. Dr. Carlos Roberto Antunes
dos Santos.
CURITIBA
2005
TERMO DE APROVAÇÃO
ZELOI APARECIDA MARTINS DOS SANTOS
VISCONDE DE GUARAPUAVA:
UM PERSONAGEM NA HISTÓRIA DO PARANÁ
Tese aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor no Curso de PósGraduação em História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná,
pela seguinte banca examinadora:
Orientador:
Prof. Dr. Carlos Roberto Antunes dos Santos
Departamento de História, UFPR
Prof.ª Dra. Helenice Rodrigues dos Santos
Departamento de História, UFPR
Prof.ª Dra. Maria do Carmo S. Di Creddo
Departamento de História, UNESP
Prof.ª Dra. Zulmara Clara Sauner Posse
Departamento de Antropologia, UFPR
Prof. Dr. Flamarion Laba da Costa
Departamento de História, UNICENTRO
Curitiba, 27 de junho de 2005
ii
Para meus filhos e marido
René José, René Neto, Lívia e Emmanuel
Meus pais
Dalva e Israel (em memória)
iii
AGRADECIMENTOS
Às diversas pessoas que colaboraram ao longo da elaboração desta tese de
doutoramento, gostaria de expressar meus agradecimentos.
Em especial ao Dr. Carlos Roberto Antunes dos Santos, pela orientação da
pesquisa, pelas observações cuidadosas, pela paciência e dedicação em ler e corrigir as
diversas versões desse trabalho, por me fazer compreender as sutilezas do discurso
historiográfico.
Aos professores do Curso de Pós-Graduação de História da UFPR
Aos colegas da turma de Doutorado de 2001 de UFPR, em especial, Zeca e
Suely.
Quero agradecer também à banca de qualificação: Profª. Dra. Zulmara Clara
Sauer Posse, Profª. Dra. Benilde Lenzi Motim e Prof. Dr. Carlos Roberto dos Santos,
pelas orientações e observações que me permitiram corrigir as falhas, mas
especialmente pelo estímulo para a finalização da tese.
À banca de defesa composta pelos professores: Profª. Dra. Zulmara Clara
Sauer Posse (UFPR), Prof.ª Dra. Maria do Carmo Sampaio Di Creddo (UNESP), Prof.ª
Dra. Helenice Rodrigues dos Santos (UFPR), Prof. Dr. Carlos Antunes dos Santos
(UFPR), Prof. Dr. Flamarion Laba da Costa (UNICENTRO) pelas argüições,
reflexões e observações a respeito da tese .
À professora e amiga Rosi Mariana Kaminski, pela correção e ajuste efetuado
no texto e especialmente pelo carinho e palavras de incentivo durante o período de
elaboração do trabalho.
Aos funcionários do Arquivo do Estado de São Paulo, do Arquivo Nacional do
Rio de Janeiro, do Arquivo Público do Paraná, da Biblioteca Pública do Paraná Divisão Paranaense, do Arquivo Histórico de Guarapuava, do Arquivo Histórico da
Câmara Municipal de Guarapuava, do Arquivo da Catedral Nossa Senhora do Belém,
do Arquivo da Matriz Nossa Senhora da Conceição da Palmeira, aos membros do
Instituto Histórico e Geográfico de Palmeira, aos colegas do Departamento de História
da UNICENTRO - Guarapuava, as funcionárias do setor de Pós-Graduação de História
da UFPR, Luci e Doris, pela presteza, atenção e carinho com que sempre fui atendida.
iv
Prepare o seu coração prás coisas que eu vou contar
Eu venho lá do sertão, eu venho lá do sertão
Eu venho lá do sertão e posso não lhe agradar
Aprendi a dizer não, ver a morte sem chorar
E a morte, o destino, tudo, a morte e o destino, tudo
Estava fora do lugar, eu vivo prá consertar
Boiadeiro muito tempo, laço firme e braço forte
Muito gado, muita gente, pela vida segurei
Seguia como num sonho, e boiadeiro era um rei
Mas o mundo foi rodando nas patas do meu cavalo
E nos sonhos que fui sonhando, as visões se
clareando
As visões se clareando, até que um dia acordei
Geraldo Vandré – Disparada
v
SUMÁRIO
LISTA DE FIGURAS................................................................................................ viii
RESUMO.......................................................................................................................ix
ABSTRACT ...................................................................................................................x
INTRODUÇÃO .............................................................................................................1
1 A IMAGEM DO VISCONDE DE GUARAPUAVA E A HISTÓRIA DO
PARANÁ .................................................................................................................19
1.1 A IMAGEM DO VISCONDE DE GUARAPUAVA: “PROGRESSISTA
ENTUSIASTA-DESTEMIDO BANDEIRANTE”.................................................19
1.2 HISTORIOGRAFIA PARANAENSE: O TEMPO VIVIDO PELO
VISCONDE.............................................................................................................24
1.3 UM “LUGAR DE MEMÓRIA” PARA O VISCONDE DE GUARAPUAVA
NA CAPITAL DO PARANÁ .................................................................................28
1.4 VISCONDE DE GUARAPUAVA: “PROGRESSISTA ENTUSIASTADESTEMIDO BANDEIRANTE”...........................................................................36
2 O NÚCLEO PARENTAL DE ANTÔNIO DE SÁ E CAMARGO: A
OCUPAÇÃO DE TERRAS NO PARANÁ ..........................................................46
2.1 A FAMÍLIA SÁ E CAMARGO E A OCUPAÇÃO DE TERRAS NO
PARANÁ.................................................................................................................46
2.2 A UNIÃO DOS MARCONDES DE SÁ COM OS CAMARGO:
NASCIMENTO DO VISCONDE DE GUARAPUAVA .......................................61
3 ANTONIO DE SÁ E CAMARGO NA FREGUESIA DE NOSSA SENHORA
DE BELÉM .............................................................................................................71
3.1 O PODER FUNDIÁRIO NOS CAMPOS DE GUARAPUAVA ...........................71
3.2 ANTONIO DE SÁ E CAMARGO – LIDERANÇA, PRESTÍGIO E
CARISMA. ..............................................................................................................95
3.3 O CASAMENTO E O DRAMA NA VIDA DE ANTONIO DE SÁ E
CAMARGO...........................................................................................................100
vi
4 VISCONDE DE GUARAPUAVA: UM HOMEM DE PRESTÍGIO NA
PROVÍNCIA DO PARANÁ ................................................................................119
4.1 O PODER LOCAL, REGIONAL E NACIONAL: A ARTE DAS
ARTICULAÇÕES.................................................................................................119
4.2 A POLÍTICA LOCAL E A INTERMEDIAÇÃO COM O NACIONAL: “O
MOÇO REPUBLICANO E O VELHINHO MONARQUISTA”.........................139
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...............................................................................160
REFERÊNCIAS ........................................................................................................165
ANEXOS.....................................................................................................................183
vii
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1 - AVENIDA VISCONDE DE GUARAPUAVA - CURITIBA-PR ..........35
FIGURA 2 - BUSTO VISCONDE DE GUARAPUAVA - CÂMARA MUNICIPAL
DE CURITIBA .......................................................................................35
FIGURA 3 - BUSTO VISCONDE DE GUARAPUAVA - CÂMARA MUNICIPAL
DE CURITIBA. ......................................................................................36
FIGURA 4 - MAPA DAS PROVÍNCIAS DO RIO GRANDE DO SUL, PARANÁ,
SÃO PAULO SÉCULO XIX..................................................................52
FIGURA 5 - MAPA DA FREGUESIA DA PALMEIRA -1854.................................55
FIGURA 6 - ÁRVORE GENEALÓGICA DOS AVÔS MATERNOS DO
VISCONDE DE GUARAPUAVA .........................................................59
FIGURA 7 - ÁRVORE GENEALÓGICA DOS AVÔS PATERNOS DO VISCONDE
DE GUARAPUAVA ..............................................................................63
FIGURA 8 - ÁRVORE GENEALÓGICA DO NÚCLEO FAMILIAR DO
VISCONDE DE GUARAPUAVA .........................................................64
FIGURA 9 - MAPA DOS CAMPOS DE GUARAPUAVA. ......................................74
FIGURA 10 - MAPA DA DIVISÃO DA SESMARIA PELO PADRE CHAGAS –
1821.........................................................................................................78
FIGURA 11 - MAPA DO MUNICÍPIO DE GUARAPUAVA - FAZENDA BOA
CRIA .......................................................................................................85
FIGURA 12 - MARCA DE GADO DA FAZENDA RINCÃO COMPRIDO. .............90
FIGURA 13 - MARCA DE GADO DA FAZENDA BOA CRIA.................................90
FIGURA 14 - MEDALHA DA ORDEM DE CRISTO...............................................138
FIGURA 15 - MEDALHA DA ORDEM DA ROSA..................................................138
FIGURA 16 - RETRATO DO VISCONDE DE GUARAPUAVA.............................159
viii
RESUMO
VISCONDE DE GUARAPUAVA: UM PERSONAGEM NA HISTÓRIA DO
PARANÁ
O objeto deste estudo é a investigação da trajetória de vida de Antonio de Sá e
Camargo – Visconde de Guarapuava, 1807-1896, por meio da análise dos extratos de
textos coletados nos vários discursos produzidos pelos memorialistas a respeito da
imagem construída de Antonio de Sá e Camargo e da documentação selecionada em
diversos arquivos que compreende uma gama de fontes significativas para a pesquisa
histórica. O estudo partiu da premissa de que a imagem do Visconde de Guarapuava,
construída no século XIX e rememorada no século XX, mostra-o como um homem
que vem sendo lembrado, celebrado e homenageado, na memória dos paranaenses,
como referência de um modelo na construção da identidade paranaense. A partir daí
questões foram formuladas: quais elementos foram identificados pela comunidade para
concebê-lo deste modo? A análise da sua trajetória pela história é capaz de revelá-lo?
O objetivo deste trabalho é evidenciar que a análise realizada no âmbito das
concepções da micro-história, ao abrir espaço para o indivíduo, permite revelar os
elementos sociais e culturais que o levaram a ser percebido como um modelo. Abrindo
espaço para o individual e descortinando novos territórios que permaneciam
abandonados, permite revelar, através de um nome (Antônio de Sá Camargo), de uma
comunidade (Guarapuava), a complexidade das redes de relações e de suas práticas
culturais, a multiplicidade dos espaços e dos tempos nos quais se inserem. Perceber o
social como um conjunto de inter-relações móveis dentro de configurações em
constante adaptação. Apresenta-se inicialmente a imagem construída pelos
memorialistas do IHGEP para celebrar e rememorar o Visconde de Guarapuava. Na
seqüência, a ênfase recai sobre o núcleo parental, evidenciando a estruturação no
território paranaense a partir do século XVIII e a ocupação dos Campos de
Guarapuava, no século XIX. Em seguida, procura-se demonstrar como indivíduos com
histórias e estratégias diferentes formaram um grupo social, uniram-se e construíram
uma povoação, a Freguesia de Nossa Senhora de Belém, e compartilharam lealdades.
Dentro dessa comunidade, houve muitos diferenciais, mas foi a partir desses
diferenciais que se traçaram estratégias de sobrevivência, na vida cotidiana. Por
último, o estudo revela o indivíduo que soube representar os papéis que lhe foram
atribuídos ou determinados e conquistados, tornando-se um homem de prestígio na
Província do Paraná e no Império brasileiro.
Palavras-chave: Indivíduo, micro-história, redes de relações, práticas culturais,
imagem.
ix
ABSTRACT
THE VISCOUNT OF GUARAPUAVA: A PERSONAGE IN THE HISTORY OF
PARANÁ
The object of this study is an investigation of the life trajectory of Antonio de Sá e
Camargo – Viscount of Guarapuava, 1807-1896, by means of the analysis of excerpts
from texts collected from the speeches recorded by memoirists with respect to the
image constructed of Antonio de Sá e Camargo and from documentation selected from
various sources which comprise a series of favourable founts for historical research.
The study began from the premise that the image of the Viscount of Guarapuava,
constructed in the nineteenth century and remembered in the twentieth, show him as a
man who has become remembered, celebrated and revered in the memory of the folk
of Paraná, as a reference for a model in the construction of Paranaense identity. From
this, questions were formulated: Which elements were identified by the community
that drove them to understand him as such? Can the analysis of his life trajectory
reveal him? The objective of this study is to show that the analysis based on the
concepts of micro-history, opening space for the individual, permits revealing the
social and cultural elements that caused his being perceived as a model. Opening space
for the individual and revealing new areas that had remained abandoned, the study
reveals, through a name (Antonio de Sá e Camargo), a community (Guarapuava), the
complexity of the networks of relationships, and their own cultural practices, the
multiplicity of spaces and of times in which they are placed. It recognises the social
climate as comprising a set of variable inter-relations within configurations in constant
adaptation. It initially presents the image constructed by the memoirists of IHGEP to
celebrate and remember the Viscount of Guarapuava. In the sequence, the emphasis
falls on the parental nucleous evidenced by the formation of the Paraná territory from
the eithteenth century on, and the occupation of the fields of Guarapuava in the
nineteenth century. Folowing, it attemps to demonstrate how individuals with different
histories and strategies formed a social group, got together and built up a village, the
Freguesia de Nossa Senhora do Belém, and shared loyalties. Inside this community
there were many differences, but it is from these differences that survival strategies of
daily life were traced. Finally the study reveals the individual that understood how to
play the roles given or assigned to him, as well as those acquired by him, making him
a prestigious man in the Province of Paraná and the Brazilian Empire.
Key-words: Individual, micro-history, network of relationships, cultural practices,
image.
x
INTRODUÇÃO
O presente trabalho analisa a trajetória de vida de um personagem da história
paranaense: o Visconde de Guarapuava. Mas, o que chama atenção em relação a esse
indivíduo, a ponto de, também, torná-lo tema de uma tese? O que é instigante?
História e personagem se confundem e se entrelaçam.
Respondendo a essas questões, pode-se dizer que foi tanto a idéia de trabalhar
com a história do Paraná, como, ao mesmo tempo, a de revelar o que este indivíduo –
Antonio de Sá e Camargo, Visconde de Guarapuava, realizou de tão significativo para
sua comunidade, sua província e para o Brasil, a ponto de ser rememorado e celebrado
pelos paranaenses, mais de 100 anos após sua morte.
No ano de 2004, dois fatos reforçam o interesse pelo personagem em análise:
um artigo publicado no jornal Gazeta do Povo, de 02-04-04, escrito pelo acadêmico
Luiz Romaguera Netto, evidenciando o indivíduo Antonio de Sá e Camargo –
Visconde de Guarapuava como: “O maior homem do Paraná”, gerando novas
discussões a respeito do personagem. Uma outra homenagem, foi a proposição do 26º
Grupo de Artilharia de Guarapuava de homenageá-lo como patrono da unidade.
Durante o século XX, o momento de maior destaque foi o ano de 1946,
quando se celebraram os 50 anos de sua morte (anexo 1): Tais celebrações foram
conseqüências da discussão da comunidade curitibana em torno da permanência do seu
nome em uma das principais avenidas da capital do Paraná – Curitiba -, que resultaram
em textos escritos pelos memorialistas do IHGEP - Instituto Histórico e Geográfico e
Etnográfico Paranaense, construção de busto, afixamento de placas e outras.
Em relação ao episódio de demarcação deste “lugar de memória”, uma
avenida na capital paranaense, para rememorar o personagem, o que se ressalta para a
percepção do historiador é a disputa que se deu entre um homem do século XX, de
prestígio pessoal e político em âmbito nacional – um presidente do país, Getúlio
Vargas -, e um homem do século XIX, Antonio de Sá Camargo, também de prestígio
local, habitante de uma pequena comunidade do período provincial. Aqui,
2
potencializa-se o interesse de quem foi este homem, qual o seu alcance e o papel que
desenvolveu como um paranaense.
Nesse sentido, este estudo partiu da premissa de que a imagem do Visconde
de Guarapuava, construída no século XIX e rememorada no século XX, mostra-o
como um homem que vem sendo lembrado, celebrado e homenageado, na memória
dos paranaenses, como referência de um modelo na construção da identidade
paranaense. Que elementos foram identificados pela comunidade para concebê-lo
desse modo? A análise da sua trajetória pela história é capaz de revelá-lo?
O objetivo deste trabalho é evidenciar que a análise realizada no âmbito das
concepções da Micro-História, ao abrir espaço para o indivíduo, permite revelar os
elementos sociais e culturais que o levaram a ser percebido como um modelo.
A proposta é recuperar a trajetória de vida de Antonio de Sá e Camargo –
Visconde de Guarapuava - e analisar como ele construiu essa trajetória, sua relação
com o poder local, regional e central, em quais condições se tornou um homem
público e quais foram suas ações para ser homenageado e celebrado por representantes
da intelectualidade paranaense, no século XIX e na primeira metade do século XX.
Com relação aos trabalhos que fazem referência ao Visconde de Guarapuava,
podemos destacar o de Luiz Romaguera Netto, biógrafo da família Sá e Camargo, que
se preocupou em especial com o irmão do Visconde, José Antonio de Camargo e
Araújo (padre Camargo). Ao escrever a genealogia descritiva do padre Camargo,
Gertrudes e o padre Camargo, faz uma breve referência ao Visconde de
Guarapuava. O trabalho segue a abordagem dos sócios do IHGEP - Instituto Histórico
e Geográfico e Etnográfico Paranaense, como os textos publicados no Boletim do
Instituto dedicado ao Visconde de Guarapuava por Eurico Branco Ribeiro, Loureiro
Fernandes, David Carneiro, Francisco de Lacerda Werneck, Dulcídio Tavares de
Lacerda, que serão evidenciados ao longo do trabalho, em que procuram eternizar os
fatos memoráveis e salvaguardar o nome dos “filhos ilustres” pela descrição de
episódios e dos méritos pessoais na produção dos seus textos.
Ricardo Costa de OLIVEIRA (2001, p.148, e p.152), na sua análise
sociológica, O silêncio dos vencedores: genealogia, classe dominante e estado no
3
Paraná, 2001, ao analisar as relações entre estruturas de poderes e estruturas de
parentesco, no Paraná, evidencia Antonio de Sá e Camargo como o representante de
Guarapuava na primeira Assembléia Legislativa do Paraná, recuperando, no seu
trabalho, o que Francisco NEGRÃO (v.1, 1926, p.346) escreveu sobre Antonio de Sá e
Camargo.
Inexiste, na historiografia paranaense, um trabalho de análise específico a
respeito do indivíduo Antonio de Sá e Camargo - Visconde de Guarapuava. As
referências encontradas abordam, em determinados momentos, sua descendência, sua
atuação nas questões política, econômica e o episódio da Guerra do Paraguai. Mas tais
abordagens são feitas de forma muito genérica. Esses trabalhos seguem uma linha
factual, preocupados em descrever e apresentar ao público seus “méritos”, em ações
pontuais da história do Paraná.
O espaço no qual teve lugar e atuou Antonio de Sá e Camargo, a Freguesia,
depois Vila de Guarapuava, no século XIX, foi o de uma sociedade em formação. O
crescimento econômico da localidade em que viveu e agiu deu-se através da
organização das “fazendas de criar”. Era um objetivo subordinado à ampliação e
confirmação das relações sociais sobre as quais se fundavam as necessidades de
subsistência.
Foi nesse contexto que as formas de entrelaçamento entre famílias da sociedade
campeira se tornaram significativas como um dos elementos estratégicos para a
criação de uma certa estabilidade em um espaço a ser colonizado. Pois as incertezas
das relações sociais, da ocupação do espaço e do sistema de comunicação eram
constantes e difíceis de serem superadas. Assim o entrelaçamento entre as famílias
funcionou como garantia de manutenção do poder e adaptação ao espaço conquistado.
Para se consentirem as necessárias e contínuas adaptações dessa comunidade
campeira, na ocupação do espaço desejado e a hierarquização do poder, criaram-se
normas flexíveis que tornavam previsível o comportamento de cada indivíduo em
relação a todos os outros, pois as relações que se estabeleciam na comunidade eram
provenientes da consangüinidade e das alianças de poder. Entretanto, isso foi apenas
um dos aspectos que podem ser analisados.
4
A multiplicidade dos interesses muitas vezes foi superada quando o interesse
comum se sobrepunha, por exemplo, na constituição da Câmara de Vereadores da vila
de Guarapuava e na indicação do indivíduo Antonio de Sá e Camargo como membro
da Guarda Nacional. Significava que a comunidade se politizava reivindicando suas
necessidades,propiciando aos lideres comunitários se sobreporem, nascendo seus
representantes políticos. Configura-se dessa maneira um poder real pelas pessoas que
compõem a comunidade.
O recorte temporal do presente trabalho abrange o nascimento de Antônio de
Sá e Camargo, em 1807, na cidade de Palmeira, até seu falecimento, em 1896, na
cidade de Guarapuava. O período da pesquisa está centrado, portanto, no período
Imperial, numa conjuntura marcada por muitas transformações sociais, entre as quais
evidenciam-se: abertura de caminhos para o interior do país, intensificação do
comércio interno entre as províncias, ampliação do comércio do gado, processo de
imigração européia, aumento da produção nas fazendas de café, criação da Guarda
Nacional,
revoltas
provinciais
(Revolução
Farroupilha,
Revolução
Liberal),
emancipação político-administrativa da 5ª Comarca de São Paulo, criando a Província
do Paraná, ocupação e delimitação dos territórios, Lei de Terras de 1850, Guerra do
Paraguai, abolição dos escravos, proclamação da República. Esses acontecimentos
permeiam e marcam a trajetória histórica de Antonio de Sá e Camargo - Visconde de
Guarapuava.
Pretende-se privilegiar o espaço para o individual, para o descortinamento
desse território da pesquisa histórica e, através da redução da escala de observação,
revelar o nome Antônio de Sá e Camargo e de uma comunidade, Guarapuava, inserida
na complexidade das redes de relações e de suas práticas culturais, a multiplicidade
dos espaços e dos tempos nos quais se inserem, percebendo o “social como um
conjunto de inter-relações móveis dentro de configurações em constante adaptação”
(REVEL, 2000, p. 17).
Para acompanhar o protagonista da história, Antonio de Sá e Camargo Visconde de Guarapuava, pretende-se estudar o espaço geográfico e social, suas idéias,
seus sentimentos, aspirações, decepções e as relações que estabeleceu com as pessoas
5
em seu entorno, suas escolhas, negociações, transações provisórias em Guarapuava e
outras localidades da Província do Paraná. O modo de registrar a trajetória de vida do
protagonista terá participação direta na construção do objeto de estudo e na sua
interpretação. A metodologia histórica utilizada para interpretação da trajetória
possibilitou a elaboração do objeto de estudo, com conseqüente problematização,
seleção das fontes e do recorte bibliográfico. Nesse sentido, as relações sociais vividas
servem de contexto no qual se inscreve sua trajetória. Faz-se necessário acompanhar o
personagem nestas perspectivas: a reconstrução do contexto anterior ao seu
nascimento, rememorando a chegada dos avôs maternos ao território paranaense; as
relações com o núcleo familiar e de amigos; a chegada à cidade de Guarapuava,
evidenciando seus hábitos de moradia, residência na fazenda e na Vila; as alianças que
realizou pelo casamento e pelo compadrio; as articulações político-partidárias - local,
provincial, imperial; as redes de dívidas e de créditos e dos investimentos econômicos.
O propósito da pesquisa é de analisar uma época através da atuação de um
homem, seguindo os pressupostos teóricos e metodológicos evidenciados em Giovanni
Levi, Carlo Ginzburg, Jacques Revel, Plínio Gomes, Eduardo Silva, entre outros.
Pauta-se a discussão em torno do objeto desta pesquisa na proposta das
concepções da micro-história. Segundo os teóricos historiadores, Carlo GINZBURG,
Enrico CASTELNUOVO, Carlo PONI (p.177/178),
a análise micro-histórica é, portanto, bifronte. Por um lado, movendo-se numa escala
reduzida, permite em muitos casos uma reconstituição do vivido impensável noutros tipos de
historiografia. Por outro lado propõe-se indagar as estruturas invisíveis dentro das quais
aquele vivido se articula.
Pretende-se mostrar, a partir do jogo das estratégias individuais e familiares, e
de suas interações, a comunidade da qual fez parte o personagem principal desde
estudo, Antônio de Sá e Camargo - Visconde de Guarapuava, abordando o universo
cultural dessa comunidade: a vida familiar, a posição no meio hierárquico, a
distribuição do poder local entre os homens, sob a perspectiva da vida desse
personagem.
6
A abordagem da micro-história emerge no momento de crise das concepções
teóricas, entre várias alternativas que surgiram para a prática da pesquisa histórica, no
fim dos anos 70 (momento de crise do marxismo e do estruturalismo).
A crise do marxismo e do estruturalismo, as duas concepções metodológicas
que foram marcantes na segunda metade do século XX, como paradigmas explicativos
dos contextos analisados pelos historiadores e cientistas sociais, fez com que se
perdessem as certezas, até então inabaláveis, da escrita da História. A complexidade
do conhecimento impôs a busca de novos caminhos para o desenvolvimento da
pesquisa histórica, caminhos esses nunca definitivos, mas sempre renovados pelos
diferentes modos de ver e contar o que se passou.
Nesse momento de crise, emergem outras abordagens históricas em países
como Itália, Estados Unidos, Alemanha que contestavam a História social da Escola de
Annales. Na Itália a riqueza dos arquivos sobre os séculos XVI, XVII e XVIII
contribuiu para que uma equipe de historiadores se posicionassem contra o enfoque da
macro-história, propondo a análise do individual, do local que seria a abordagem dos
micro historiadores.
As conseqüências dessa crise não devem ser entendidas como negativas para a
História, mas sim como possibilidade de problematizar o passado no sentido de
reconstruir idéias e experiências propiciando a mudança. A partir desse contexto de
crise, a História expande seu campo de conhecimento, caminhando em duas direções.
A aproximação multidisciplinar com a lingüística, antropologia, filosofia e com a
literatura encaminhou a História para novos temas, técnicas e métodos. A troca de
experiências com áreas afins permitiu que novos caminhos fossem trilhados por meio
da criatividade e competência do ofício de historiador, que sofre influências recíprocas
das diferentes linhagens historiográficas e da própria ciência política.
Entendemos que os estudiosos da História estão inseridos em uma era
demarcada por linhas indefinidas e por fronteiras intelectuais direcionadas para
discutir o novo, o inesperado, na busca de um discurso de vozes compartilhadas e que,
segundo Peter BURKE (2002, p23),
7
Vivemos uma era de linhas indefinidas e fronteiras intelectuais abertas, uma era instigante e,
ao mesmo tempo, confusa. Podem-se encontrar referências a Mikhail Bakhtin, Pierre
Bourdieu, Fernand Braudel, Nobert Elias, Michel Foucault e Clifford Geertz nos trabalhos de
arqueológos, geógrafos e críticos literários, assim como de sociólogos e historiadores. O
surgimento do discurso compartilhado entre alguns historiadores e sociólogos, alguns
arqueólogos e antropólogos, e assim por diante, coincidem com um declínio do discurso
comum no âmbito das ciências sociais e humanidades e, a bem da verdade, dentro de cada
disciplina.
A intermediação da História com outras disciplinas resultou numa grande
diversidade de estudos, com a incorporação de pensamentos por todas elas, e isso
permitiu que diferentes conhecimentos e pontos de vista fossem explorados em uma
iniciativa comum. A pluralidade de instrumentos, temas, abordagens e procedimentos,
ocasionaram mudanças no território do historiador, descortinando novos campos para
semear.
Para o historiador Jacques REVEL (1989, p. 5), o período de incertezas e
pensamentos intelectuais aberto ao novo é considerado feliz e benéfico. Ao falar da
experiência da sua geração, esclarece que o fundamental é a compreensão de que, a
partir da “própria prática dos historiadores do social, nasceram reflexões e exigências
que determinam hoje em dia, um pouco por toda a parte, uma viragem crítica”. O
período de incerteza ao qual o autor se refere é justamente a crise vivida pela escola de
Annales, pois esse momento rompeu com a certeza que caracterizava esse método de
análise histórico.
O esfacelamento da história, segundo esse autor, se de um lado constitui um
risco, por outro pode demonstrar o fato de que os historiadores centralizam suas
ambições em objetos restritos e mais fáceis de serem intermediados, a partir de campos
circunscritos, delimitados não mais por hábitos disciplinares ou técnicos, mediante
conceitos preestabelecidos, mas sim pela prática do historiador. Esse tempo de recuo
aparente pode ser interpretado como um momento de reconstrução do modo de
entender a função do historiador.
Nesse contexto de esfacelamento, de mudanças da forma de praticar a
pesquisa histórica, percebe-se um aumento da tendência para as histórias culturais,
destacando-se o resgate das memórias coletivas e individuais, permitindo o
desdobramento metodológico e proporcionando com isso, ao historiador, uma
8
diversidade de leituras do passado pesquisado essa diversidade surge a partir do
rompimento das certezas científicas nas abordagens até então feitas. Tal mudança pode
ser percebida no discurso da micro-história, da história local, da história individual, ou
seja, da história que reconstrói identidades peculiares e individuais, sem, portanto,
ignorar a macro-história.
Os historiadores precisariam inovar, recriar instrumentos metodológicos, para
poder dar sentido aos fragmentos e buscar uma nova representação mais adequada para
o passado estudado. Assim, essas possibilidades abriram caminhos para novas
abordagens para revisitar o passado estudado, entre as quais a da micro-história.
A micro-história orienta-se para o estudo de caso, privilegiando as situações
limites, atendo-se às estratégias individuais para a interatividade, para a complexidade
dos interesses e para o caráter imbricado das representações coletivas e, dessa maneira,
procura revelar a singularidade como entidade problemática definida.
A prática da micro-história, como procedimento prático de pesquisa, nasceu na
Itália, no final dos anos 70, do século passado, a partir da troca de idéias de um grupo
de historiadores italianos que escreviam artigos para a revista Quaderni Storici, entre
eles, Carlo Ginzburg, Carlo Poni, Edoardo Grendi e Giovanni Levi, cuja preocupação
inicial estava direcionada para a questão em torno do estilo de fazer história, ou seja,
da prática do historiador.
A idéia de ver uma época através da trajetória de um homem é muito
complexa, e tal propósito já foi exercitado por historiadores como Giovanni LEVI e
Carlo GINZBURG. Giovanni LEVI (2000, p.47) estudou o povoado Piemontês de
Santana, acompanhando a trajetória pessoal do indivíduo Giovan Batista Chiesa. Para
o autor, o personagem revelou características que assumiram “conotações que
envolveram o funcionamento concreto, em uma realidade específica, de leis gerais que
permitirão a identificação de elementos constantes e elaboração de comparações”.
Carlo GINZBURG (1987) procurou analisar as idéias, sentimentos, fantasias e
aspirações do moleiro friulano, Domenico Scandella, como via de acesso às
mentalidades coletivas.
9
Os estudos a respeito de Giovan Batista Chiesa e do moleiro Domenico
Scadella apontam diferenciais, uma vez que esses personagens viveram em épocas e
locais diferentes, sendo então indivíduos diferentes entre si.
A metodologia de trabalho de pesquisa proposta pela micro-história, em
especial com as questões que tratam das mudanças da escala de análise e da
pluralidade dos contextos, “convida a uma outra leitura do social” (REVEL, 2000,
p.16).
Ao trabalhar com a diferença de escala, deve-se esclarecer que não se trata
apenas do resultado de um processo de construção do objeto, mas também de sua
característica. Ao redirecionar a escala de observação do objeto de análise
possibilitam-se universos diferenciados de interpretação e ação, e também deixa-se
emergir uma pluralidade de vozes que compõem a realidade social pesquisada. Para
Simona CERUTTI (1998, p.196), há outra conseqüência que se revelou importante
com a mudança da escala de observação: “A adoção de uma pluralidade de níveis de
análise ilumina laços entre processos que pertencem a campos de natureza diferente: o
político e o econômico, por exemplo”.
A micro-história propõe construir a pluralidade dos contextos que são
necessários para o entendimento dos comportamentos analisados. Segundo Jacques
REVEL (1998, p. 27-28),
o trabalho de contextualização múltipla praticado pelos micro-historiadores parte de
premissas muito diferentes. Ele afirma, em primeiro lugar, que cada ator histórico participa,
de maneira próxima ou distante, de processos - e portanto se inscreve em contextos - de
dimensões e de níveis variáveis, do mais local ao mais global. Não existe portanto hiato,
menor ainda oposição, entre história local e história global. O que a experiência de um
indivíduo, de um grupo, de um espaço permite perceber é uma modulação particular da
história global. Particular e original, pois o que o ponto de vista micro-histórico oferece à
observação não é uma versão atenuada, ou parcial, ou mutilada, de realidades macrossociais:
é, e este é o segundo ponto, uma versão diferente.
10
Os adeptos da micro-história retomaram o interesse pela biografia1, como,
aliás, ocorre nas outras historiografias estrangeiras. A biografia ressurge com a
mudança dos paradigmas intelectuais (valorização do sujeito e abandono das
estruturas).
Partiram da perspectiva de que não é necessário o indivíduo representar um
caso típico, ao contrário, experiências que fujam da média comum dos registros da
vida dos “grandes homens” permitem análises singulares das especificidades do
destino pessoal, e tais análises exemplificam adequadamente o cotidiano da sua
comunidade. Ao trabalhar com a biografia, o historiador reconstrói um tecido social e
cultural mais vasto, trabalhando a multiplicidade individual do seu objeto de estudo.
C. WRIGHT MILLS (1973) no artigo onde discute a importância da biografia,
na história, para se estudar as estruturas sociais, evidenciou em especial que
A vida de um indivíduo não pode ser compreendida adequadamente sem referência às
instituições dentro das quais a sua biografia se desenrola. Pois esta biografia registra a
aquisição, abandono, modificação e, de forma muito íntima, a passagem de um papel para
outro. ... Para compreender a biografia de um indivíduo, devemos compreender a
significação e o sentido dos papéis que desempenhou e desempenha; para compreendê-los,
devemos compreender as instituições de que são parte (1973, p. 46).
À medida que desenvolveu seu raciocínio, Mills esclareceu que, ao escrever
uma biografia, a inter-relação dos vários cenários da vida do indivíduo e as possíveis
transformações devem ser devidamente analisadas.
Quando compreendemos as estruturas sociais e as modificações estruturais que influem
sobre os cenários e as experiências mais íntimas, podemos compreender as causas da
conduta e sentimentos individuais, dos quais os homens, nos ambientes específicos têm
consciência (1973, p. 47).
1
A retomada do gênero biográfico, atualmente, ocasionou o aumento da produção a respeito
do assunto. Deve-se isso à renovação historiográfica das últimas décadas. Além dos trabalhos citados,
a indicação de outros autores consultados para a reflexão a respeito da biografia: BOURDIEU, P. A
ilusão biográfica. In AMADO, J. e MORAES; M. de. Usos & abusos da história oral. Rio de
Janeiro: 4 ed., FGV, 2001. Revista Brasileira de História. Biografia, biografias. ANPUH. São
Paulo, Unijui, v.17 n. 33, 1997; LEVILLAIN, Philippe. Os protagonistas da biografia. In: RÉMOND,
René (Org.). Por uma história política. Rio de Janeiro: UFRJ, 1996, p.141-184.
11
Jacques LE GOFF (2002, p.20) informa, ao escrever a biografia histórica de
São Luis, que “reencontrei quase todos os grandes problemas da investigação e da
escrita histórica com os quais até então me tinha deparado. Certamente, confirmei a
idéia de que a biografia é um modo particular de fazer história.” Na seqüência de suas
observações a respeito da biografia evidencia a importância de focar a análise no
personagem.
Ora, que objeto, mais e melhor que uma personagem, cristaliza em torno de si o conjunto de
seu meio e o conjunto dos domínios que o historiador traça no campo do saber histórico? São
Luis participa simultaneamente do econômico, do social, do político, do religioso, do
cultural; age em todos esses domínios, pensando-os de uma maneira que o historiador deve
analisar explicar - mesmo quando a busca do conhecimento integral do indivíduo em questão
se torna uma “procura utópica”. É preciso, verdadeiramente, mais do que em qualquer outro
objeto de estudo histórico, saber respeitar aqui as falhas, as lacunas que a documentação
deixa, não querer reconstruir o que os silêncios de e sobre São Luis escondem, também as
descontinuidades e as disjunções, que rompem a trama e a unidade aparente de uma vida.
Mas uma biografia não é só a coleção de tudo o que se pode e de tudo o que se deve saber
sobre uma personagem (2002, p.21).
Sabine LORIGA (1998, p.227) encaminhou sua discussão primeiramente
tratando da análise atual a respeito da biografia, tecendo comentários sobre os textos
de Jacques Le Goff, que reconstruiu recentemente a trajetória de São Luis, e também
das considerações de Pierre Bourdieu, de Jean- Claude Passeron, ressaltando que
“estamos aí diante de objeções complexas...”. Loriga observa que esses autores
argumentam a respeito da biografia, evidenciando em seus enfoques pontos negativos
e positivos de se trabalhar com o gênero biográfico. Na continuidade da análise, faz
uma retrospectiva de três projetos biográficos, concebidos há 150 anos: “O herói de
Thomas Carlyle, o homem patológico de Jacob Burckhardt e o homem-partícula de
Hippolyte Taine” (1998, p. 228). Informa que o estudo do homem – herói encontra-se
em crise profunda. Mas adverte: “A morte do herói não eliminou, contudo, a exigência
de se estudar os indivíduos” (1998, p.244).
Loriga, ainda, esclarece que os estudos dos historiadores que trabalham com a
perspectiva da micro-história deixam claro não ser necessário que o indivíduo
represente um caso típico. “... o indivíduo não tem como missão revelar a essência da
humanidade; ao contrário, ele deve permanecer particular e fragmentado”. Através dos
12
“movimentos individuais” conseguir-se-á desfazer as “homogeneidades aparentes” na
sociedade, para fazer emergir os “conflitos que presidiram a formação e a edificação
das práticas culturais...” Esse tipo de discussão mostra que as práticas culturais
auxiliam na observação de como se dá a interação do individual e do coletivo no
contexto vivido, “...penso nas inércias e na ineficácia normativas, mas também nas
incoerências que existem entre diferentes normas, e na maneira pela qual os
indivíduos, ‘façam’ eles ou não a história, moldam e modificam as relações de poder”
(1998, p.249).
Giovanni LEVI (2001, p.174) afirma: “Fascinados com a riqueza das
trajetórias individuais e ao mesmo tempo incapazes de dominar a singularidade
irredutível da vida de um indivíduo, os historiadores passaram recentemente a abordar
o problema biográfico de maneiras bastante diversas”. No seu estudo, classificou
quatro tipos de biografias que vêm sendo produzidas: “prosopografia e biografia
modal”, que procura trabalhar sobretudo com formas de comportamentos; “biografia e
contexto”, que parte da idéia de construir o contexto e evidenciar o entorno do
indivíduo; “biografias e os casos extremos”, citando como exemplo o trabalho de
Carlo Ginzburg - O queijo e os vermes; e “biografia e hermenêutica”, relacionada com
a antropologia, considerando significativo o próprio ato interpretativo e, sendo assim, a
biografia pode assumir vários significados. Entretanto, na maioria das vezes, esses
tipos combinam-se, dependendo da abordagem que o historiador quer dar à sua
história.
Jean ORIEUX (1986, p.35), em suas considerações a respeito da arte do
biógrafo, ressalta que “uma biografia é uma obra em que entra a colaboração
espontânea e até o acaso”. Informa tratar-se de um trabalho solitário com a
documentação levantada para dar conta do personagem analisado. “É dessa longa
intimidade que nasce uma biografia. Uma espécie de confiança e de aliança póstuma...
Esses senhores confiam-se, em silêncio, ao amigo que se introduziu na sua vida
passada”.
Emmanuel Le Roy LADURIE (1986, p.49) diz que “a biografia é um domínio
que a história social não absorveu. No entanto, a idéia de ver uma época através do
13
destino de um homem seria, sem dúvida, fecunda....”. A partir dessa consideração do
autor, toma-se a biografia como uma espécie de desafio ao historiador, e entende-se
que essas considerações ultrapassam a idéia do retorno a uma simples biografia factual
e linear.
Carlos Antunes Roberto dos SANTOS (1997, p.81-82), ao realizar suas
considerações a respeito da biografia esclarece,
A biografia hoje enquanto objeto da História, busca revelar através de uma vida privada ou
pública de pessoas de influência, os limites das liberdades destas pessoas face ao jogo
complexo do processo histórico, face às tramas da sociedade. A História dos homens de
influência implica em abordar: a) o destino do seu nome; b) a sua ação na História enquanto
um ator genial e após como espectador desolado; c) e a história do seu povo, da qual ele é
um espectador privilegiado. Estes estranhos e enigmáticos homens de influência, que são
pioneiros sob diversos aspectos, exercem enorme influência na realidade em que estão
inseridos. Ao longo da História temos homens das armas, da política, das finanças, dos
bancos, das artes, das letras, da imprensa, do comércio, da agricultura, e de outras áreas, que
souberam ser mais livres que outros, prever novas alternativas, construir utopias, e gestionar
com competência.
Como se observa, SANTOS, ao discutir a biografia, remete as personagens
históricas para o teatro da vida, como costuma ser o procedimento prático da microhistória, que propõe a análise do indivíduo nos diferentes papéis que ocupa durante a
vida. Assim, dependendo do contexto, o personagem da história pode ser “ator genial”
ou “espectador desolado” ou “espectador privilegiado”, podendo prever “novas
alternativas” e “construir utopias”.
As pesquisas efetuadas, privilegiando o gênero da micro-história, aparecem no
Brasil em meados da década de 80. As traduções de especialistas vieram colaborar
para que os pesquisadores brasileiros tomassem contato com as publicações a respeito
da nova história cultural praticada pelos italianos e com a produção dos historiadores
norte-americanos e ingleses.
Os pesquisadores no Brasil contam com uma produção bibliográfica teórica
específica, orientada para o gênero da micro-história, destacando-se os textos de
Ronaldo Vainfas e Astor Antônio Diehl, como alguns dos exemplos.
Ronaldo Vainfas, na obra Os protagonistas anônimos da história: microhistória aprofunda reflexões, analisando o gênero historiográfico produzido na Itália,
14
evidenciando que a micro–história opera com redução de escala, exploração exaustiva
de fontes, descrição etnográfica e preocupação com a narrativa literária. Vainfas
procura contribuir para uma adequada concepção da micro-história, que ora era vista
como história cultural, ora confundida com a história das mentalidades e com a
história do cotidiano. Realiza um diálogo com os estudos históricos do século XX,
evidenciando a historiografia francesa e o movimento de Annales, para esclarecer “o
que a micro-história não é”. Destaca as vertentes da micro-história, realizando um
passeio pelos fundadores italianos e ressaltando a importância da revista Quaderni
Storici e da coleção Microstorie. Faz considerações dos trabalhos elaborados pelos
franceses, ingleses e norte-americanos. Discute o aparato conceitual utilizado pela
micro-história, a escolha temática, a problemática da diminuição da escala, a
delimitação dos objetos de estudo em termos de espaço e de temporalidade. Para
finalizar seu trabalho, apresenta uma relação bibliográfica comentada a respeito do que
já se publicou no Brasil sobre micro-história.
Outro trabalho que discute a abordagem da micro-história é a obra Cultura
historiográfica: memória, identidade e representação, de Astor Antônio DIEHL,
cuja análise da crise paradigmática dos modelos explicativos da História mostra que
essa crise foi entendida de forma positiva, indicando que isso propiciou uma cultura de
mudança, criando argumentos para a reconstrução da idéia de futuro que se tinha no
passado. Enfatiza ainda que as mudanças nas formas de produção do conhecimento se
tornam mais evidentes quando tomadas como referencial para o estudo. Suas
discussões a respeito da micro-história tratam dos apontamentos teóricometodológicos para o desenvolvimento da pesquisa microanalítica, ressaltando-se “os
limites e as possibilidades da cultura historiográfica regional como o locus das
dimensões da memória, da identidade e das implicações de mudanças estruturais
objetivas e culturais” (DIEHL, 2002, p.20).
Entre os historiadores brasileiros que realizaram estudos fundamentados nas
teorias da micro-história pode-se destacar o trabalho de Laura de MELLO e SOUZA,
O diabo e a terra de Santa Cruz, em especial o capítulo “Histórias extraordinárias: o
destino de cada um”. O pesquisador Plínio GOMES realiza um estudo do personagem
15
Hennequim, na sua obra: Um herege vai ao paraíso: cosmologia de um ex-colono
condenado pela inquisição.
A pesquisa de Luiz MOTT centra sua atenção na construção da biografia de
um personagem do sexo feminino, ex-escrava, ex-prostituta, no período colonial: Rosa
Egipcíaca: uma santa africana. Eduardo SILVA trabalha com o século XIX,
evidenciando o personagem de um rei negro no Rio de Janeiro: D. Obá II D’África, o
príncipe do povo: vida, tempo e pensamento de um homem livre de cor. Dentro da
vasta produção de Evaldo Cabral de MELLO destaca-se O nome e o sangue: uma
parábola familiar no Pernambuco colonial.
Com relação às fontes históricas, pode-se destacar que a documentação
selecionada é composta por uma tipologia documental variada, a saber: os textos
produzidos pelos memorialistas, o retrato e o busto produzido por artistas e uma
quantidade razoável de documentos manuscritos em diversos arquivos: a) na cidade de
Curitiba: Arquivo do Estado do Paraná e da Biblioteca Pública do Paraná; b) em
Guarapuava: Arquivo da Câmara Municipal de Guarapuava, Arquivo da Catedral
Nossa Senhora de Belém, Cartório da primeira Vara Civil do Fórum de
Guarapuava, Tabelionato de Notas de Guarapuava e Arquivo Público Municipal;
c) no Rio de Janeiro: Arquivo Nacional; e) e em São Paulo: Arquivo do Estado de
São Paulo; f) na cidade da Palmeira: Arquivo da Matriz de Nossa Senhora da
Conceição, Arquivo do Cartório de Registro Civil da Palmeira, Arquivo do
Cartório da Primeira Vara Civil do Fórum da Palmeira.
No Arquivo Público do Paraná foram localizadas correspondências relativas
tanto ao período em que Antonio de Sá e Camargo era vereador, 1853-1856, quanto ao
período em que fez parte da Guarda Nacional.
Na Biblioteca Pública do Paraná, no acervo de documentos manuscritos que
pertenceram
a
Jesuíno
Marcondes
de
Oliveira
e
Sá,
foram
localizadas
correspondências que se referem ao personagem Visconde de Guarapuava.
No Arquivo da Catedral Nossa Senhora do Belém, em Guarapuava, foram
localizados os registros de terras ou “Registro do Vigário”, realizados pelo Cônego
16
Braga, de 1855 a 1857, entre os quais consta o registro da fazenda “Boa Cria” e dos
terrenos em sociedade do Visconde de Guarapuava.
No Arquivo Público Municipal, também nessa cidade, encontram-se
correspondências da Guarda Nacional, anos de 1865, 1866, 1867, inclusive as de
responsabilidade de Antonio de Sá e Camargo quando comandava a corporação.
No Arquivo da Câmara Municipal de Guarapuava foram localizados os livros
de atas do período compreendido de 1853 a 1889, quando atuou como vereador, os
relatórios encaminhados aos presidentes da Província, de 1855 a 1883 e o livro de
registro de ofício expedido pelo comando da Guarda Nacional de Guarapuava, de 1864
a 1893.
No Cartório da Primeira Vara Civil do Fórum de Guarapuava foi localizado o
Testamento do Visconde de Guarapuava.
No Tabelionato de Notas de Guarapuava, encontramos a documentação que
trata de compra e venda realizada pelo Visconde de Guarapuava.
No Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, localizaram-se Livro de Registros da
Guarda Nacional de Guarapuava, de 1855 a 1871, e registro das Graças honoríficas
recebidas por Antonio de Sá e Camargo, em 1876.
No Arquivo do Estado de São Paulo, encontramos documentação manuscrita
contendo informações da Expedição Colonizadora dos Campos de Guarapuava, de
1810; listas nominativas dos moradores da Freguesia de Nossa Senhora do Belém,
elaboradas pelo Padre Chagas e pelo comandante Francisco da Rocha Loures;
correspondências redigidas por Antonio de Sá e Camargo, quando esteve nos cargos
de subdelegado de polícia, inspetor de primeiras letras, administrador da estrada da
Mata, Major da Guarda Nacional. Pode-se delimitar o período dessa correspondência
entre 1833 e 1853.
No Cartório da Primeira Vara Civil do Fórum da Palmeira foi encontrado o
Testamento da Viscondessa de Guarapuava.
No Cartório de Registro Civil da Palmeira foi localizado o Registro de óbito
da Viscondessa de Guarapuava.
17
No Arquivo da Matriz de Nossa Senhora da Conceição da Palmeira foram
localizados os Registros de casamento do Visconde de Guarapuava, e batizado do seu
filho Firmino.
As cartas e os títulos recebidos pelo Visconde de Guarapuava por menção
honrosa, sob a guarda de João Carlos Prestes Taques Junior, em Guarapuava, serviram
também para estudar a trajetória do personagem.
Entre as publicações elaboradas sobre Antonio de Sá e Camargo – Visconde
de Guarapuava, foram selecionados alguns dos textos escritos pelos membros do
IHGEP - Instituto Histórico e Geográfico e Etnográfico Paranaense, que referenciam o
personagem Visconde de Guarapuava.
Com relação à estrutura da tese, no primeiro capítulo, A imagem do
Visconde de Guarapuava e a história do Paraná, pretende-se, através dos textos
selecionados e editados pelo Boletim do Instituto Histórico e Geográfico e Etnográfico
Paranaense - IHGEP, publicados em abril de 1950, filtrar a imagem construída pelos
discursos para celebrar e rememorar o Visconde de Guarapuava.
No segundo capítulo, O núcleo familiar de Antônio de Sá e Camargo,
tratou-se da estruturação do grupo parental do Visconde Guarapuava, no território
paranaense dos séculos XVIII e XIX, em especial na região de Guarapuava.
No terceiro capítulo, Antonio de Sá e Camargo e a Freguesia de Nossa
Senhora de Belém, procurou-se demonstrar como indivíduos com histórias e
estratégias diferentes formaram um grupo social, uniram-se e construíram uma
povoação e compartilharam lealdades. Dentro dessa comunidade, houve muitos
diferenciais, mas foi a partir desses diferenciais que se traçaram estratégias de
sobrevivência, na vida cotidiana.
No quarto capítulo, Visconde de Guarapuava: um homem de prestígio na
Província do Paraná, destacou-se o modelo coletivo valorizado pelos paranaenses,
Antonio de Sá e Camargo – Visconde de Guarapuava, revelando o indivíduo que
soube representar os papéis que lhe foram atribuídos ou determinados e conquistados,
tornando-se um modelo, um homem de prestígio na Província do Paraná e no Império
brasileiro. Ao longo de sua trajetória foi agraciado com as honrarias: Oficialato da
18
Ordem da Rosa (1861), Cavaleiro da Ordem de Cristo (1867) e com os títulos de
Barão de Guarapuava (1870) e Visconde de Guarapuava (1880).
19
1 A IMAGEM DO VISCONDE DE GUARAPUAVA E A HISTÓRIA DO
PARANÁ
Esse venerado ancião, morador da cidade de Guarapuava a
longuíssimos anos, merece de toda a Província do Paraná o maior e
mais justo respeito. Sempre que apelei para a sua generosidade, como
presidente desta grande zona, encontrei-o pronto para concorrer com
valiosos donativos a bem de benefícios morais e materiais. Dei por isso
à sala de honra da Biblioteca Pública (de Curitiba) assim como a uma
das sinuosidades do rio Iguaçu, o seu nome. Conhecido por inúmeros
atos de virtudes, modesto, retraído e superior a todas as vaidades do
mundo, tem sido esse ilustre paranaense incansável em promover o
adiantamento da cidade que habita e que deve ufanar-se de ter em seu
seio tão distinta e nobre personalidade. Pois o visconde de Guarapuava
é um brasileiro que honra o Brasil inteiro. Com a maior satisfação aqui
lhe fica prestada esta homenagem de elevadíssimo apreço e admiração,
o seu nome é Antonio de Sá Camargo (TAUNAY, 1886, p.42-432).
1.1 A IMAGEM DO VISCONDE DE GUARAPUAVA: “PROGRESSISTA
ENTUSIASTA-DESTEMIDO BANDEIRANTE”.
As manifestações que celebraram o cinqüentenário da morte do Visconde de
Guarapuava, nos meados do século XX, foram indispensáveis para a construção de sua
imagem. Expressões como “Ilustre paranaense”, “Progressista entusiasta - destemido
bandeirante”, “Poderoso fazendeiro”, “natural entusiasmo suscitado pelo espírito de
provincialismo”, “Modesto Visconde” e “Velhinho monarquista” são alguns exemplos
que se destacam nos documentos da época.
Iniciar o trabalho a partir da imagem construída na história paranaense foi uma
opção para estabelecer um diálogo possível entre o presente e o passado, sobre o
indivíduo Antonio de Sá e Camargo – Visconde de Guarapuava. Para tal, foram
selecionados os documentos editados pelo Boletim do Instituto Histórico e Geográfico
e Etnográfico Paranaense - IHGEP, publicados em abril de 1950, cujo conteúdo são os
textos escritos e os discursos proferidos nas celebrações do cinqüentenário da morte do
2
Em viagem realizada pelo Visconde Taunay para conhecer a navegação do rio Iguaçu,
homenageou o seu amigo Antonio de Sá e Camargo dando seu nome a uma volta desse rio.
20
Visconde de Guarapuava, pelos sócios da Instituição. Tais publicações refletem o
modo particular de fazer história nesse período no Brasil e, portanto, no Paraná.
O IHGEP foi fundado em 1900, seguindo as normas do IHGB – Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, formado por um quadro de sócios, considerados
indivíduos de destaque dentro das hierarquias dos poderes públicos locais e das
instituições sociais.
Faz-se necessário entender alguns dos intérpretes do Paraná em sua época,
com suas problemáticas determinadas a partir das suas avaliações do passado e da
projeção que idealizaram para o futuro. De uma maneira geral, percebeu-se que os
trabalhos elaborados por esses intérpretes prezaram por um cunho agregador,
emancipador e unificador, pois construíram seus discursos procurando evidenciar uma
identidade brasileira, considerando que os indivíduos formavam uma unidade objetiva
comum, justificada pela língua, pelo espaço territorial, pela cultura e por um passado
histórico.
Em relação ao Visconde de Guarapuava, os memorialistas deram destaque à
sua atuação como o indivíduo “branco” que lutou com coragem, enfrentando “índios
bravos e degredados” nos campos de Guarapuava e que, através do seu “espírito de
bandeirante” contribuiu para civilizar os habitantes do sertão paranaense.
Foram analisados os textos publicados pelos sócios do IHGEP, aqueles que
construíram uma imagem do indivíduo Antônio de Sá e Camargo, para celebrá-lo e
perpetuá-lo na história do Paraná, e foram utilizados, como base, os textos de Alfredo
Escragnole de Taunay, Eurico Branco Ribeiro, Loureiro Fernandes, David Carneiro,
Francisco Peixoto de Lacerda Werneck, Dulcidio Tavares de Lacerda, Rocha Pombo e
Romário Martins.
Destacam-se também os textos dos historiadores paranaenses: Brasil Pinheiro
Machado, Altiva Pilatti Balhana, Cecília Maria Westphalen, entre outros, que
auxiliaram na reconstrução do contexto histórico da trajetória de vida do Visconde de
Guarapuava.
Torna-se necessário compreender os textos dos autores citados, em sua
contemporaneidade, para reconstruir a trajetória de vida do Visconde de Guarapuava e,
21
também, para atender à proposta deste trabalho; mas, procurando um novo sentido do
seu mundo histórico, por meio de um ponto de vista apoiado nas metodologias
contemporâneas da história.
A análise do discurso histórico praticado pelo IHGEP, que se ocupou da
construção de uma identidade regional paranaense, até meados do século XX, seguiu o
modelo do IHGB - Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, criado em 1838, no Rio
de Janeiro, (inspirado no “Institut Historique de Paris”), cujo objetivo era o de
investigar, organizar e publicar documentos históricos a respeito do Brasil. Em ambos,
evidencia-se o interesse pela dimensão territorial, pelas diferenças regionais, por uma
abordagem histórica por região, pelos aspectos físicos e pela utilização de recursos da
cartografia.
Esse modo de registro foi muito utilizado na elaboração das memórias
histórico-descritivas das freguesias, vilas e províncias, no período imperial e
republicano, na descrição de como se deram as constituições dos municípios e dos
estados. Entretanto, o objetivo principal era o de eternizar os fatos memoráveis do país
e salvaguardar o nome dos seus “filhos ilustres”. Vários dos textos escritos sobre o
Visconde de Guarapuava seguem o modelo do discurso fundador, elaborado por Karl
Philipp Von Martius, botânico e viajante alemão que visitou o Brasil no século XIX.
Em 1840, o IHGB propôs premiar quem elaborasse o melhor projeto para escrever a
história do Brasil. Von Martius foi o vencedor. Seu trabalho intitulado Como se deve
escrever a história do Brasil foi publicado pelo IGHB, em 1845 e, nele, o autor
determinou um projeto histórico para o Brasil.
Para Von Martius, a história brasileira deveria versar sobre miscigenação das
raças, partindo do português, que se aventurou na conquista do território e deu
garantias morais e físicas ao Brasil. As demais raças não deveriam ser esquecidas, mas
o privilégio deveria recair sobre o branco, ou melhor, o português. Esse modelo
deveria procurar enfatizar uma história da unidade do Brasil, centrada na figura do
imperador. Propunha, ao historiador, que viajasse pelas províncias que constituíam o
território brasileiro e fosse coletando a história de cada região, buscando pontos
comuns no modo de viver em cada província. Tensões, contradições, exclusões,
22
conflitos, rebeliões e insatisfações deveriam ser amenizados, para diminuir as
diferenças, já que seu projeto estava orientado para a construção de uma identidade
nacional.
O IHGB tornou-se um dos grandes aliados do Imperador Pedro II, pois esse,
para legitimar seu poder, precisava que a história do país fosse construída, registrada e
consolidada.
Era preciso encontrar no passado referências luso-brasileiras: os grandes vultos, os varões
preclaros, as efemérides do país, os filhos distintos pelo saber e brilhantes qualidades, enfim,
os luso-brasileiros exemplares, cujas ações pudessem tornar-se modelos para as futuras
gerações (REIS, 1999, p.25).
O imperador tornou-se o protetor dos homens que escreveram a história do
Brasil, entre eles, Francisco Adolfo Varnhagen que, em 1850, escreveu a obra
História geral do Brasil a qual reflete sua preocupação com a história do país.
Seguindo o modelo do IHGB, Varnhagen incorporava “a visão iluminista de que o
historiador era um homem esclarecido capaz de influir, com seu conhecimento, nos
destinos do país” (ABREU, 1996, p.179). A obra deixou explícitos os fundamentos da
identidade nacional brasileira, como herança da colonização européia, na qual o
branco representava a civilização no novo mundo. Dessa maneira, índios e negros
foram excluídos porque não eram “civilizados”.
Os memorialistas e historiadores do IHGEP construíram, por meio da
biografia clássica, uma galeria de heróis nacionais, homens que representariam “bons
exemplos” para gerações do futuro, encarregados de transmitirem, pelas suas histórias,
ensinamentos a todos os habitantes, dando um sentido homogêneo a uma sociedade
constituída pela diferença racial, econômica e cultural.
Capistrano de Abreu, foi outro historiador que retratou a história do Brasil no
período de transição entre os séculos XIX e XX. Em sua obra nota-se a preocupação
com o desvelamento de documentos inéditos e com a tradução e publicação do
material coletado. Transformou-se em modelo de uma geração de autores que se
dedicavam à pesquisa e à construção da história brasileira, como foi o caso dos
historiadores paranaenses que procuraram documentos referentes à ocupação do
23
território paranaense pelos homens ilustres. Várias genealogias das famílias
colonizadoras foram produzidas e, entre elas, a da família Sá e Camargo3.
Muitas monografias ou memórias histórico-descritivas sobre reprodução de
documentos a respeito do Paraná e de seus municípios foram produzidas pelos sócios,
com aval do IHGEP.
Segundo Erivaldo Fagundes NEVES (2002, p. 70-71),
esse gênero memorialista estereotipava-se, nas monografias municipais, com descrições
fisiográficas, exposições sobre flora, fauna, recursos minerais e acidentes físicos; relatos de
produção agrícola, comércio e serviços públicos; narrativas de fatos relevantes, destacando
atos oficiais eventos – efemérides- sociais, apresentando dados biográficos de personagens
dos recortes espaciais objeto de estudo, apenas descrevendo episódios e suas circunstâncias,
sem formulação de problemas através de hipóteses, nem abstração sobre o método ou
elaboração de conceitos que o fundamentassem. Dissimulava as limitações metodológicas
com suposta carência de dados. Enfatiza o individual, ressaltando méritos pessoais pouco se
interessando pelos aspectos sociais. Geralmente, embasava-se mais em informações orais,
sem crítica, nem rigor metodológico, que outras fontes da pesquisa histórica.
O autor apresenta uma série de modelos a respeito dos biógrafos. Essa forma
de produção orientou-se também para a celebração da imagem de indivíduos que
pertenciam às famílias tradicionais de Curitiba, Paranaguá, Lapa, Castro, Campos
Gerais, Guarapuava e outras cidades do interior do Estado, que detiveram o domínio
político local da região que habitaram.
Segundo José Carlos REIS (1999, p.9),
cada geração, em seu presente específico, une passado e presente de maneira original,
elaborando uma visão particular do processo histórico. O presente exige a reinterpretação do
passado para se representar, se localizar e projetar o seu futuro. Cada presente seleciona um
passado que deseja e lhe interessa conhecer. A história é necessariamente escrita e reescrita a
partir das posições do presente, lugar da problemática da pesquisa e do sujeito que a realiza.
Essas colocações evidenciam que se deve levar em conta o objeto temporal e a
renovação teórico-metodológica de cada historiador que, ao escrever sua interpretação
do objeto escolhido, produz uma visão parcial, uma compreensão elaborada no seu
presente. O avanço do tempo, elemento presente na trajetória do historiador, faz com
3
Obra de Moisés Marcondes, “Pae patrono – Jesuíno Marcondes de Oliveira e Sá”. Conta a
história da ocupação da Palmeira e de seus colonizadores, os Sá e Camargo.
24
que as proposições históricas mudem e sejam elaboradas novas interpretações sobre o
mesmo assunto, em que o passado é revisitado por outras interrogações, que oferecem
respostas diversas das anteriores, que, por sua vez, conduzem a diferentes perguntas e
novas respostas e, assim, promovem um permanente movimento no modo de registrar
o passado, pois “... todo o historiador é marcado por seu lugar social, por sua ‘data’ e
por sua pessoa” (REIS, 1999, p.11).
Para realizar uma interpretação histórica, é necessário saber quem a produziu,
pois as contradições existem, os olhares lançados sobre o mesmo tempo podem revelar
representações diferentes. Portanto, há que se entender que cada interpretação da
realidade está carregada de influências do meio social e do tempo vivido.
1.2 HISTORIOGRAFIA PARANAENSE: O TEMPO VIVIDO PELO VISCONDE.
Os trabalhos de releitura dos textos escritos sobre a história do Paraná já vêm
sendo realizados especialmente pelos professores da Universidade Federal do Paraná:
Carlos Roberto Antunes dos Santos, Francisco Moraes Paz, Ana Maria de
Oliveira Burmester, Marionilde Dias Brepohl de Magalhães4, e também por alunos da
Pós-Graduação em História, como os trabalhos de Luís Fernando Lopes Pereira, Décio
Roberto Szvarça, Gilson Leandro Queluz, Christiane Marques Szesz entre outros, que
orientam suas análises para a temática do regional.
4
No artigo “O paranismo em questão: o pensamento de Wilson Martins e Temístocles
Linhares na Década de 50”, os seus autores, Francisco Moraes PAZ, Ana Maria de Oliveira
BURMESTER e Marionilde Dias Brepohl de MAGALHÃES, analisaram as obras: Um Brasil
diferente, de Wilson MARTINS, e Paraná vivo, de Temístocles LINHARES. A discussão levantada
por esses autores procurou demonstrar, na visão dos intelectuais – paranistas, como o Paraná, na
década de 50, foi contagiado pelo discurso do “espetáculo de progresso”, dos governadores Bento
Munhoz da Rocha Netto e Moysés Lupion, visto que “foram estes intelectuais que viveram um novo
surto de desenvolvimento” ... e que ao perceberem as aparências evidentes ou ocultas, as avaliaram e
registraram”.
A posição dos intelectuais da década de 50, no que diz respeito à maneira de registrar a
história, diverge. De um lado, Romário Martins e Walfrido Piloto eram vistos como escritores
ufanistas e, do outro, Wilson Martins e Temístocles Linhares consideravam-se pautados pela seriedade
do método científico.
25
Esses historiadores procuraram realizar uma releitura dos textos escritos pelos
memorialistas, cronistas, romancistas e historiadores paranaenses do final do século
XIX e primeira metade do século XX.
Para PAZ (1991, p.1), o trabalho do professor Brasil Pinheiro Machado,
Esboço de uma sinopse da história regional do Paraná,
pode ser visto como marco fundamental da historiografia paranaense, que influenciou
trabalhos posteriores. Segundo o autor, Brasil Pinheiro Machado partiu dos pressupostos de
Carlos Frederico von Martius e de João Ribeiro para propor um modelo explicativo da
história do Brasil e, particularmente, do Paraná. Segundo o autor, a história do Brasil resulta
de uma síntese de histórias sujeitas a múltiplos impulsos. Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro
e São Paulo são células fundamentais que formam o “tecido social”, do Brasil colonial. A par
das ações da Coroa, as populações foram se expandindo para o interior, incorporando novos
territórios e formando subnúcleos de povoamento. Em condições propícias, alguns desses
subnúcleos atingiram sua autonomia, passando a se constituir num novo núcleo. Esse é o
caso do Paraná.
Segundo esse autor (1991, p.2), esse trabalho divide o Paraná em três regiões:
o Paraná tradicional, o Norte e o Oeste-Sudeste. O tradicional corresponde às primeiras
regiões ocupadas – litoral e Campos Gerais, cuja história remonta aos séculos XVII – XIX.
A essa se vinculam a mineração, o tropeirismo, a erva-mate, a madeira e a imigração
européia. Já as outras duas têm uma história bem mais recente.
PAZ (1991, p.2) ainda ressalta a importância dos viajantes e cronistas do
século XIX, que percorreram o território paranaense: A de Saint-Hilaire, R. Avélallemant, T. Bigg-Wither, Salvador Corrêa Coelho e Antonio Viera dos Santos, e
acrescenta que “este último, ainda que cronista, pelas suas preocupações teóricometodológicas e rigor acadêmico, chega a ser apontado como o primeiro historiador
paranaense”.
Afirma também que alguns modelos explicativos foram elaborados, os estudos
monográficos cresceram em várias direções, que o novo está sempre presente na teoria
e na metodologia e o historiador tem certeza da necessidade de buscar sempre outros
territórios para suas investigações.
A produção de José Francisco da Rocha Pombo já foi analisada, comentada e
referenciada por Nestor Vítor e Valfrido Piloto. Este, em 1953, fez comentários a
respeito do livro Para a História, notas sobre a Revolução Federalista do Paraná,
26
na época inédito. Esse trabalho foi retomado nos anos 80, pelo historiador SANTOS
(1980), responsável pelos comentários introdutórios para a publicação da obra, e que
evidencia o estilo narrativo de Rocha Pombo como exemplo da história do tempo curto
que, lançando mão do seu próprio testemunho ocular, trouxe à tona a ideologia das
forças envolvidas no conflito.
A obra constitui-se num verdadeiro depoimento de quem assistiu e sentiu humanamente as
controvérsias de um período repleto de contradições da História do Brasil. E, ao longo do
depoimento, vislumbra-se que Rocha Pombo tem como objetivo central denunciar, de acordo
com sua visão dos acontecimentos, a intensidade dos erros, das injustiças e sacrilégios
perpetrados na terra paranaense.
Para alguns, talvez, não seja a crônica a forma mais aconselhável de apresentação de um
trabalho histórico. Entretanto, como testemunha dos acontecimentos, Rocha Pombo impôs a
forma da narrativa, a fim de melhor serem preservadas as observações aí detectadas,
revelando-se então um historiador engajado que, indignado, denuncia os atentados à
liberdade humana, e a não vinculação dos valores éticos e morais nas relações entre
vencedores e vencidos (SANTOS, 1980, p.11).
Em especial, esse trabalho de Rocha Pombo teve como missão, no seu tempo
vivido, revelar “os agentes” envolvidos no episódio da Revolução Federalista no
Paraná. A linguagem revela
as palavras, atitudes, comportamentos e atos contestadores... As idéias que alimentaram, os
anseios de transformação, a crítica consciente e inconsciente propaladas a partir das
denúncias e confissões... os princípios das facções políticas que defendem... revelando as
ideologias que se colocam por trás desses sentimentos e atitudes (SANTOS, 1980, p.12).
QUELUZ (1998, p.1), no seu trabalho Rocha Pombo: romantismo e utopias
(1880-1905), procurou mostrar a relação do autor com a modernidade, revelando a
ligação da história e da literatura presente na produção do escritor. Para ele, a obra de
Rocha Pombo resume-se,
... (n) a mescla encontrada em sua obra, de provincianismo e cosmopolitismo, anarquismo e
conservadorismo, angústia pelas questões sociais e retiro ascético da sociedade. Como não
simpatizar com o conflito de um autor que, determinista em boa parte de sua obra histórica,
coloca em seus personagens romanceados o anseio pela liberdade plena? Como não se
intrigar pelo mistério da existência em um mesmo autor, do produtor em série de manuais
didáticos de história, no início do século, (XX) e de um criativo escritor simbolista?
27
O trabalho de QUELUZ evidencia as críticas de Rocha Pombo à sociedade
moderna e as alternativas propostas por ele, nos romances Petrucello e No Hospício,
nos quais expôs sua visão utópica da sociedade futura. Rocha Pombo foi um
historiador que marcou seu lugar social, no seu tempo vivido.
PEREIRA (1998, p.8) informa que a historiografia regional do Paraná é
marcada por um “forte cunho historicista e positivista”, sendo seus propagadores
Romário Martins e Rocha Pombo, que privilegiaram, em suas obras, “o político, os
grandes personagens e os grandes feitos que teriam marcado a história do Estado”. A
obra de Romário Martins Pereira evidencia o modelo proposto pelo IHGB, ou seja:
Martins destaca o meio físico, faz a descrição da situação geográfica do Paraná, das
baías e dos portos, do litoral, dos rios e dos relevos e dos climas; relata a distribuição
geográfica das tribos indígenas, a posse da terra, as reduções jesuíticas, os caminhos, a
descrição da formação étnica do Paraná, as questões econômicas - tropeirismo,
mineração, erva mate -, a elevação da Comarca à Província, a Campanha Republicana;
e destaca personagens através de relatos biográficos, como fez com o registro da vida
do Visconde de Guarapuava.
SZVARÇA (1998) também fez a releitura da obra de Romário Martins,
mostrando que a trajetória de vida desse historiador se intercruzou com o fazer
histórico do modelo criado pelo IHGB, pois foi Romário Martins que presidiu a
primeira reunião de criação do IHGP, em 1900. A história fundada por Romário
Martins, como história de toda uma comunidade e suas relações com o meio, é uma
história mítica.
Portanto, além de sua função propriamente mítica, ou melhor, através dela, a história de
Romário Martins também participa de sua contemporaneidade. Em um momento de crise real ou imaginária – na sociedade tradicional paranaense, com a chegada de grandes levas de
imigrantes que precisavam ser incorporados à identidade regional e a ameaça e perda efetiva
de parcela de seu território, Romário Martins participa da criação de mitos modernos...
(SZVARÇA, 1998, p. 8).
Christiane Marques SZESZ (1996) realizou uma leitura dos diversos conceitos
que construíram o Paraná como região, desnaturalizando a região, problematizando a
sua invenção, buscando sua historicidade no campo das práticas dos discursos e das
28
representações, utilizando a produção literária e historiográfica de alguns intelectuais e
historiadores paranaenses. A respeito de Romário Martins informa que:
Para Romário Martins um dos elementos possíveis para reelaborar a região e elaborar a idéia
de modernização, e racionalidade, foi forjar uma representação simbólica do Paraná.
Romário recuperou a região, tomando expressões da natureza paranaense como a figura do
pinheiro, que passava a transfigurar o Paraná. O Paraná transfigurado no pinheiro tornava-se
a imagem de integração, de todos que habitavam o Paraná e portanto, tornava-se o elemento
de coesão da sociedade paranaense (SZESZ, 1996, p.301).
Romário Martins procurou forjar uma tradição, buscando no passado imagens
para justificar a construção de um homem ideal, a criação de um marco zero para
justificar a origem da sociedade paranaense, a visão idílica do território paranaense e
criação de imagens, utilizando elementos da natureza, como o pinheiro e o mate,
abundantes nas florestas do Estado, como símbolos que prevalecem até hoje.
Olhar a produção historiográfica dos intelectuais do século XIX e meados do
XX é um exercício de compreensão, que se faz abrindo-se à sua contemporaneidade,
aceitando dialogar com eles, entendendo que cada interpretação do vivido está
carregada de influências do meio social. Muitas vezes, no momento da escrita da sua
obra, deixaram-se influenciar pelo brilho, gestos, ações e discursos de outros sujeitos.
Toda interpretação é uma atribuição de sentido ao vivido, que é produzida a partir de
um ponto de vista do presente. O passar do tempo produz mudanças, e novas
interpretações emergem, porque não existe um passado fixo que pode ser esgotado
pelo historiador. Cada geração, em seu período, rememora o passado de modo original,
produzindo uma visão diferenciada.
1.3 UM “LUGAR DE MEMÓRIA” PARA O VISCONDE DE GUARAPUAVA NA
CAPITAL DO PARANÁ
Rememorar o passado significa buscar uma memória e não toda a memória de
um tempo específico. Mais precisamente, buscam-se no presente caso aquelas
referentes ao episódio de defesa do “lugar de memória” – Avenida Visconde de
29
Guarapuava -, determinado pelos paranaenses para homenagear Antonio de Sá e
Camargo na segunda metade do século XIX. Faz-se necessário entender esse episódio
ocorrido na trajetória de vida desse indivíduo escolhido para ser estudado, porque a
partir desse acontecimento é que se desencadearam outras homenagens, realização de
comemorações em órgãos públicos ( escolas, bibliotecas, etc.), produção de textos a
respeito do personagem, confecção de busto em praças públicas, entre outros.
Para Jacques LE GOFF (1994, p.423), “a memória como propriedade de
conservar certas informações remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções
psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações
passadas, ou que ele representa como passadas”.
Para o autor, a evolução das sociedades, nos meados do século XX, evidencia
a importância do papel que a memória coletiva presta à “história como ciência” e
como “culto público”. A memória, para LE GOFF (1994, p. 475), é o “reservatório
(móvel) da história, rico em arquivos e em documentos/monumentos, e a aval, eco
sonoro (e vivo) do trabalho histórico”.
As sociedades que conseguem alcançar o domínio da memória coletiva, tanto
a oral quando escrita, a utilizam como um instrumento ou objeto de poder. A memória
é também um elemento essencial para a “identidade, individual ou coletiva, cuja busca
é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje...” (LE
GOFF, 1994, p.476).
O historiador francês Pierre NORA (1993, p.8), ao problematizar a
importância da memória nas sociedades “complexas”, constata que estas, diante da
aceleração da sua história, levadas incessantemente pelas mudanças, são condenadas à
ausência de lembranças, pois são destituídas dos mecanismos de transmissão oral da
memória social, dos quais usufruíram as sociedades ditas primitivas ou arcaicas. Para
tentar superar isso, vêem-se compelidas a criar “lugares de memória”. Segundo o
historiador, a memória integra a vida social, enquanto a história integra um corpo
específico de conhecimentos datados, teorias, métodos e instrumentos próprios. Todas
as sociedades de todos os tempos são permeadas pela memória social. Ao analisar os
diferentes lugares de memória, na França, observa que os lugares de memória
30
aumentam enquanto a memória coletiva se desintegra. A proliferação de profissionais
preocupados com a área de preservação e de catalogação dos fatos da memória ocorre,
então, para compensar a perda da capacidade de memorizar as experiências de passar
de uma geração à outra as tradições e os costumes, nas sociedades modernas. A
sociedade passa a rememorar seu passado por meio do trabalho realizado por técnicos,
que selecionam as datas a serem comemoradas, os eventos mais importantes da
história de um país que devem ser ritualmente celebrados, muitos dos quais já
destituídos do seu sentido original.
Para Helenice Rodrigues da SILVA, na análise que fez a respeito de
“rememoração/comemoração: as utilizações sociais da memória”,
nesses tempos de “crises” de valores e de referências, as comemorações nacionais tendem a
demonstrar que o acontecimento “rememorado”, em razão do seu valor simbólico, visa,
sobretudo, ao devir. Em busca de um consenso nacional, o poder político investe nas
lembranças das grandes datas, de maneira a encontrar no passado uma legitimidade histórica
que permite consolidar a memória coletiva. Por trás de todas as comemorações nacionais,
encontra-se, portanto, a questão do tempo que se manifesta na sua relação com o passado da
História e o presente da memória (SILVA, 2002, p.425).
A preocupação central da autora são as comemorações nacionais e o que isso
representa para a coletividade. Exemplifica sua discussão com as comemorações dos
500 anos do Brasil, evidenciando a inexistência de uma reflexão crítica sobre o objeto
comemorado. O trabalho segue com outras intervenções interessantes a respeito da
questão sobre a memória, mas o ponto que traz contribuição para este trabalho é a
distinção entre os conceitos de rememoração e comemoração. Nesse sentido, SILVA
cita Paul RICOUER: “A propósito, Paul Ricouer estabelece uma distinção entre
‘rememoração’ (parte de um processo de elaboração individual) e comemoração
(trabalho de construção de uma memória coletiva)” (2002, p.428).
A relação entre memória individual e memória coletiva é a percepção de que a
memória individual não se constitui independentemente da memória do grupo social
no qual o indivíduo está inserido. Ao refletir sobre memória, a partir das perspectivas
acima postas, evidencia-se que não se trata de algo fixo, mas de reorganizações de
impressões passadas, constantemente entrelaçadas com o presente de quem escreve e
com o passado de quem viveu. Desse modo, as comemorações representam formas
31
idealizadas, que rememoram indivíduos e coisas, símbolos que legitimam a tradição e
se apresentam como modelos para o futuro de uma sociedade, e nação5.
A rememoração do passado vem sendo reorganizada, refeita, reconstruída e
repensada a partir de um determinado acontecimento ou experiência vivida. Os textos
analisados, neste estudo, foram escritos para denunciar o episódio da mudança do
nome da Avenida Visconde de Guarapuava, em Curitiba - PR, para Avenida Getúlio
Vargas. Esses textos encontram-se no Boletim do Instituto Histórico Geográfico e
Etnográfico Paranaense (IHGEP).
A homenagem teria sido prestada no ano de 1880, ao “ilustre paranaense”,
que ainda estava vivo e morando na cidade de Guarapuava. Tal homenagem foi uma
proposição de Manuel Negrão, em pleno período provincial. Mas, no século vinte
(1941/42), a mudança do nome da avenida foi efetuada com o objetivo de prestar
homenagem ao então presidente da República, o senhor Getúlio Vargas.
Para Euríco Branco RIBEIRO (1950, p.3), a mudança demonstrou que
contrariando as normas do bom senso, e mesmo dispositivos legais, freqüentemente se vê a
substituição em logradouro público do nome de destacada figura do passado pelo de pessoa
viva, momentaneamente em evidência e a quem se deseja testemunhar reconhecimento ou
simplesmente demonstrar apoio e solidariedade. Passada a oportunidade de realce com a
chegada de um ostracismo mais ou menos merecido, às vezes acontece que se reconsidera o
ato iconoclasta e volta o nome do antepassado a figurar onde tinha sido colocado para
perpetuar a memória de um cidadão que mui judiciosamente fôra considerado como exemplo
para a posteridade.
Foi o que se deu, recentemente, com o visconde de Guarapuava: o seu nome havia sido
substituído numa das principais ruas de Curitiba pelo de um político em evidência; com a
mudança do nosso sistema de governo, o menosprezo pela personalidade do visconde foi
posto em foco e as autoridades competentes, não tiveram dúvidas em repor o seu nome nas
placas da importante rua da capital paranaense.
5
Sociedade humana: “totalidade ordenada de indivíduos que atuam como coletividade,
baseada na tradição e num conjunto de ações padronizadas”. (DA MATTA, R. Relativizando: uma
introdução a antropologia social. Rio de Janeiro: Rocco, 2000, p.48). Nação: coletividade representada
por um corpo político moderno, um território soberano, isto, é um Estado Nacional” (DA MATTA, R.
Conta de Mentiroso: sete ensaios de antropologia brasileira. Rio de Janeiro: Rocco, 1994, p.92).
Tradição: “Um conjunto de escolhas que necessariamente excluem formas de realizar tarefas e
classificar o mundo, significa mais do que viver ordenadamente certas regras estabelecidas, mas,
vivenciá-las de modo consciente, colocando-as dentro de uma forma qualquer de temporalidade” (DA
MATTA, R. Relativizando: uma introdução a antropologia social. Rio de Janeiro: Rocco, 2000, p.49).
32
E para Francisco Peixoto de Lacerda WERNECK (1950, p.54),
aqueles que estudaram a história do nosso Estado, que procuraram conhecer os vultos do seu
passado, verificaram, com profundo sentimento de pezar a inominável ingratidão que se
praticou, nos dias negros do Estado Novo, retirando daqui e relegando ao esquecimento, à
humilhação das cousas inservíveis a placa com o nome do Visconde de Guarapuava.
Esta denominação, não tinha recebido, a bela avenida... por favoritismo pessoal, por
insensação barata.
A avenida que ostentava o nome do Visconde de Guarapuava havia 58 anos, testemunhava a
gratidão do Paraná a um vulto imperecível da história de nossa terra.
Pode-se evidenciar, nos dois textos selecionados, que a forma de elaboração
dos discursos dos sócios do IHGEP mantinha-se fiel às regras da Instituição, guardiã
da memória e da construção da identidade regional. Homenagear o Visconde de
Guarapuava, para o Estado do Paraná, demonstrava um valor simbólico maior do que
prestar homenagem a um ex-presidente da República brasileira.
Para David CARNEIRO (1950, p.27), a determinação do interventor Manoel
Ribas era de que
Antonio de Sá Camargo fora, para o Interventor Manoel Ribas, um “caboclo sem valor”,
segundo suas expressões características. E o Sr. Getúlio Vargas, aceitando o julgamento,
interessado cúmplice dessa tremenda injustiça, ignorante de nossas coisas, tendeu a aceitar o
veredictum, e achou conveniente fechar os olhos vaidosos à destruição de uma prova de
venerante consideração que ao velho e útil servidor da Pátria, haviam dado nossos avós em
tempo de livre manifestação das opiniões.
Era o presente ingrato e falso, insurgido, a tentar destruir o que o passado fizera.
Os discursos evidenciam que a mudança do nome da avenida que prestava
homenagem ao Visconde de Guarapuava criou um mal-estar na capital do Paraná,
sentimento esse que foi além da troca de nomes de uma rua da capital e revelou uma
questão político-cultural.
As ações do interventor Manoel Ribas, ao governar o Estado do Paraná, no
período do Estado Novo, foram julgadas negativamente, o episódio descrito foi visto
como um agravo à memória dos paranaenses, pois, para David Carneiro e outros, o
Visconde de Guarapuava era tido como um indivíduo que colaborou para a construção
e consolidação da Província do Paraná e, também, para a identidade dos paranaenses.
33
A luta dos paranaenses para perpetuar a memória do Visconde e a homenagem
a Getúlio Vargas, determinada pelo interventor no Paraná, levaram o poder público
municipal de Curitiba, em 1947,a revogar as determinações do ex-interventor Manoel
Ribas. E o prefeito municipal de Curitiba, Angelo Lopes, determinou o retorno do
nome Visconde de Guarapuava (figura 1), à avenida que, no passado, fora escolhida
para homenagear Antônio de Sá e Camargo.
Nessa disputa simbólica, Getúlio Vargas teve que ceder ao “ilustre
paranaense” a avenida que já lhe pertencia por direito e outra avenida foi escolhida na
capital para homenageá-lo, no Paraná.
Abriremos um parêntese para falar a respeito do mito a respeito de Tiradentes,
que segundo o historiador José Murilo de CARVALHO (1995, p.55), ao trabalhar com
a problemática em torno do mito da origem da república brasileira, estuda o conflito
político surgido em torno da memória de Pedro I e de Tiradentes6. Esse conflito serve
de exemplo para se perceber que a celebração da memória de um indivíduo tem que ter
certas características, ou melhor, como sugere o autor, sintonias, “tem de responder
a alguma necessidade ou aspiração coletiva, refletir algum tipo de personalidade ou
comportamento que corresponda a um modelo coletivo valorizado”.
No caso do Visconde de Guarapuava, as sintonias selecionadas pelo autor
citado podem servir de referencial para identificar características desse personagem,
que o tornaram um dos antepassados escolhidos pelos paranaenses para ser
rememorado.
Quais seriam as características do Visconde de Guarapuava que deram
sustentação à decisão de celebrá-lo, no final do século XIX e no XX, como um dos
personagens que fazem parte da memória dos paranaenses, tendo existido outros
6
O autor informa que o “primeiro conflito em torno da figura de Tiradentes ocorreu em
1862, por ocasião da inauguração da estátua de Pedro I no então largo do Rocio, ou praça da
Constituição, hoje praça Tiradentes. A ocasião e o local eram a própria materialização do conflito. No
lugar onde fora enforcado Tiradentes, o governo erguia uma estátua ao neto da rainha que o condenara
à morte infame. Teófilo Otoni, o liberal mineiro líder da revolta de 1842, chamou a estátua de mentira
de bronze, e a expressão virou grito de guerra dos republicanos. ...O conflito continuou após a
proclamação, agora representando correntes republicanas distintas (CARVALHO, J. M. de. A
formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
p.60-61).
34
personagens que, nas suas trajetórias de vida, prestaram também serviços relevantes à
sociedade paranaense, como afirmaram os memorialistas do IHGEP, homens que
lutaram e relutaram pelas causas da Província do Paraná.
Os elogios presentes nos discursos dos seus contemporâneos apontam pistas
para identificá-lo como um indivíduo portador de características ou “sintonias” que
respondem à “aspiração coletiva de um modelo valorizado”, como é o caso dos
comentários feitos por Taunay, que o descreve como “um brasileiro que honra o Brasil
inteiro”. Essa fala evidencia que o personagem ultrapassou as fronteiras da Província
do Paraná, conseguindo projeção nos mais elevados círculos do governo imperial.
Outros indícios para refletir a respeito da celebração da memória podem ser
encontrados no discurso do historiador David Carneiro, ao denunciar, no episódio de
1941-42, que se estava retirando o “lugar de memória” escolhido pelos antepassados,
que “haviam dado nossos avós em tempo de livre manifestação das opiniões”, à
avenida da capital da Província para homenagear o Visconde de Guarapuava. A fala de
David Carneiro demonstra que ele compartilhava da escolha feita pelos antepassados,
e que o “local de memória” escolhido deveria permanecer prestando homenagem ao
Visconde Guarapuava. Com isso, deduz-se que o Visconde de Guarapuava atendia às
características de um modelo valorizado pela elite local de Curitiba, Palmeira, Castro,
Guarapuava, Palmas.
O conflito da troca de nome da avenida suscitou a lembrança de que já havia
se passado um ano do cinqüentenário da morte de “tão ilustre paranaense”, completado
em 1946.
Essa lembrança deu margem a várias comemorações e solenidades públicas de
diversas naturezas: confecção de uma placa de bronze e um busto feito pelo artista
plástico João Turim, afixada na Avenida Visconde de Guarapuava, em Curitiba (figura
2 e 3); em Guarapuava, na praça principal, colocou-se um busto feito também pelo
mesmo artista; o casarão que serviu de residência do Visconde de Guarapuava foi
adquirido pelo governo municipal e, nele, instalaram-se a biblioteca e o museu
municipal; além das homenagens dos Institutos Histórico e Geográfico do Paraná e de
São Paulo.
35
FIGURA 1 – AVENIDA VISCONDE DE GUARAPUAVA - CURITIBA-PR
FONTE – Arquivo particular Zeloi Martins dos Santos -2004
FIGURA 2 -BUSTO VISCONDE DE GUARAPUAVA - CÂMARA MUNICIPAL
DE CURITIBA
FONTE – Arquivo particular de Zeloi Martins dos Santos -2004
36
FIGURA 3 - BUSTO VISCONDE DE GUARAPUAVA - CÂMARA MUNICIPAL
DE CURITIBA.
FONTE - Arquivo particular de Zeloi Martins dos Santos - 2004
1.4 VISCONDE
DE
GUARAPUAVA:
“PROGRESSISTA
ENTUSIASTA-
DESTEMIDO BANDEIRANTE”.
Entre os vários indivíduos que nasceram no território paranaense, no século
XIX, que participaram na construção da Província do Paraná, Antonio de Sá e
Camargo foi um dos escolhidos pela sociedade paranaense no século XX porque suas
ações estavam de acordo com as aspirações da coletividade, que buscou no passado o
seu representante para ser valorizado, celebrado e comemorado. Evidenciando
fragmentos do discurso construído pelos memorialistas a respeito da imagem do
personagem pode-se identificar ações/características no núcleo familiar, na
comunidade, na intermediação da política local com o regional, no universo dos
negócios público e particular que tornaram um “homem de bem”, no século XIX.
Antônio de Sá e Camargo recebeu uma educação que seguia as normas e
regras determinadas pela sociedade paranaense do século XIX, na qual o pai exercia o
pátrio-poder. Ao tornar-se adulto, teve que assumir as responsabilidades de filho
37
primogênito, pautadas nas orientações paternas. Mas, suas ações, relatadas nos
discursos, identificam-no como um homem atento às questões políticas e econômicas
da sociedade da qual fez parte. Segundo Dulcidio Tavares LACERDA (1950, p.40),
rico de família, trabalhador insaciável, integrado numa aristocracia rural sã e patriótica, onde
a base da sua prosperidade se firmava no braço escravo, e esse era o clímax geral do Brasil
em fins do século XVIII e começo do XIX. Para o jovem bandeirante o modo de proceder
era outro: pensava ele que a liberdade ao escravo dava-lhe novas energias, novas ambições,
uma capacidade maior de produção e de escravo boçal e servil, poderia tornar-se
comparativamente civilizado. Foi o que fez; deu alforria a todos os seus escravos e os
conservou em suas propriedades pagando-lhes salários e sustentando seus filhos. Vê-se que,
antes de 1840, a campanha abolicionista não havia começado; mas, o bandeirante Antônio de
Sá Camargo já iniciava com a sua prova em pessoa.
Antonio de Sá e Camargo instalou-se em Guarapuava, por volta de 1828,
tornando-se um “poderoso fazendeiro”. A ajuda que prestou à comunidade, quando
tinha recém-chegado revelou, em sua “plena mocidade, as singulares qualidades de
prudência e ativo espírito de iniciativas faces de sua personalidade a sagrá-lo, mais
tarde, como excelente administrador e prudente conselheiro” (FERNANDES, 1950,
p.18).
Para Eurico Branco RIBEIRO (1950, p.7-8), o Visconde de Guarapuava era
um “progressista entusiasta”, que trabalhou muito pela comunidade de Guarapuava, no
século XIX:
a prática do bem individual juntava a do bem coletivo. Foi um progressista entusiasta. A
todos os melhoramentos emprestava o seu apoio moral e material, senão mesmo o de
orientador e o de executor principal. Assim surgiram escolas, assim se beneficiaram as
Santas Casas de Curitiba e de Paranaguá, assim se edificou a velha e a nova matriz de
Guarapuava, assim se abriram novas estradas, assim se desbravaram sertões, assim se
construíram a casa da Câmara e da Cadeia....
Participou ativamente da ocupação dos campos além de Guarapuava,
organizando com os outros fazendeiros a sociedade do “Paiquerê”, dando continuidade
à política de ocupação das terras no sul do Brasil. Esse tipo de negócio possibilitou o
aumento do rebanho de gado, com a descoberta de novas pastagens, e agradava ao
governo imperial.
38
Essas suas iniciativas, direcionadas para a ampliação comercial e de visão
empreendedora para a região, foram classificadas como a de um “destemido
bandeirante que deixou seu nome gravado nas páginas da história do Paraná”
(RIBEIRO, 1950, p.8).
A fazenda de criar e invernar, no Paraná, constituiu-se na principal fonte de
renda e, concomitantemente, formou-se uma classe de proprietários e criadores de
gado composta por famílias que adquiriram o mais alto status na sociedade local e se
tornaram responsáveis diretas pelas decisões políticas, culturais e econômicas, na
região. Os familiares masculinos de Antonio de Sá e Camargo participaram da
ocupação dos Campos Gerais como também dos Campos de Guarapuava, tornando-se
homens de influência nessas regiões do Paraná.
Tratava-se de um homem “modesto”, segundo Eurico Branco RIBEIRO
(1950, p.10), mas mesmo assim, com essa característica, foi um paranaense que
recebeu dois títulos imperiais: primeiramente, o de Barão de Guarapuava e, no final da
sua vida, o de Visconde de Guarapuava. “Modesto, retirado nos confins da sua
longínqua cidade... Antônio de Sá Camargo não se preocupou com o desenho de um
brasão nem com a confecção de louças ou outros objetos que recordassem o seu
viscondado”.
Os discursos dos memorialistas revelam que a trajetória de vida do
personagem se construiu dentro da idéia de progresso. Essa idéia de progresso está
vinculada à civilização, que compreende, além de modos de ser, também produção da
tecnologia:
o conceito de “civilização” refere-se a uma grande variedade de fatos: ao nível da tecnologia,
ao tipo de maneiras, ao desenvolvimento dos conhecimentos científicos, às idéias religiosas e
aos costumes. Pode se referir ao tipo de habitações ou à maneira como homens e mulheres
vivem juntos, à forma de punição determinada pelo sistema judiciário ou ao modo como são
preparados os alimentos. Rigorosamente falando, nada há que não possa ser feito de forma
“civilizada” ou “incivilizada”. Daí ser sempre difícil sumariar em algumas palavras tudo o
que se pode descrever como civilização (ELIAS, 1995).
Civilização opõe-se a selvagem, isto é, ao próximo da natureza – a natureza
circundante ao homem - onde este se coloca como o que a domina. Portanto, da
39
oposição homem-natureza resultam a civilização e o progresso. Essa concepção,
fortemente arraigada na cultura Ibérica, no século XVI, tem conseqüências no Brasil:
no sistema social ibérico, do qual o Brasil faz parte, o mundo natural e a sociedade se
organizam por meio de relações complementares que vão do outro até os animais e as
plantas, passando por uma hierarquia de homens. Neste sistema, a exploração da natureza se
faz por meio do trabalho realizado por criados, subordinados e principalmente pelos escravos
– seres que estariam mais próximos da natureza -, que, com seus superiores e senhores,
formam uma comunidade fundada na desigualdade e na hierarquia. Natureza e sociedade não
se compartimentalizam e se confrontam diretamente, através de limites claros e fronteiras
irredutíveis, mas se ligam por meio de múltiplas mediações feitas por vários subordinados.
...No Brasil, quanto mais próximo da natureza, mais inferiorizado. Quem nada tinha, tirava
da terra o que pudesse, e quem não tinha criados ou escravos ia atrás dos índios (DA
MATTA, 1994, p.112-113).
Desse modo, “bandeirante e progressista” associam-se, pois indicam uma
mesma visão de mundo. O bandeirante não é apenas o desbravador dos sertões, pois ao
prear os índios e escravizá-los, está aproximando-os dos modelos da civilização e do
progresso vividos pelos luso-brasileiros. Índio e sertão são uma única coisa, natureza
pura, sem regras, normas, leis, conhecimento, isto é, mundo inferior. Esse mundo deve
ser civilizado e dominado com os modelos ideais que tornaram os luso-brasileiros
conquistadores do Brasil. Portanto, desbravar o sertão significava introduzir a
civilização e o progresso onde reinava a ausência da humanidade. Os bandeirantes,
nessa perspectiva, não são apenas homens corajosos, são a presença simultânea da
própria sociedade e da cultura onde nada há, humanizando a natureza e também os que
lá habitam.
Portanto, a referência a Antônio de Sá e Camargo como um “destemido
bandeirante” faz-se principalmente em relação à sua presença na área até então
denominada de “sertões de Guarapuava”. As incursões das expedições, em 1770,
comandadas por Afonso Botelho de Sampaio e Sousa, demonstraram claramente a
região como hostil, tanto geograficamente, como em relação aos seus ocupantes
índios. Estabelecer-se nela implicava ser corajoso para enfrentar o adverso mundo,
mas também habilidoso para administrar as dificuldades, e solidário, pois, sozinho,
não poderia ter êxito. Essas características, necessárias à organização das bandeiras,
que compreendiam grandes grupos de pessoas, tornavam-se mais valorizadas, no caso
40
de Antonio de Sá e Camargo, pois esses grupos nada mais eram do que uma pequena
família.
Antônio de Sá e Camargo, ao se estabelecer em Guarapuava, encontra-se de
acordo com o “aventureirismo personalista”, como estilo de vida. DA MATTA (1994,
p.108-109), ao analisar a obra de Gilberto Freire e Buarque de Holanda, acrescenta:
“como patrão absoluto, exploraria a nova terra até o limite, aproveitando todas as
oportunidades e tirando partido de tudo. Mas, ao realizar isso, não experimentava
nenhum padrão novo, ou modificava as formas de relacionamento a que estava
habituado”.
Detentor de terras recebidas por ser “homem de bem”, cabia a Antonio de Sá e
Camargo implantar as determinações do império, fixar-se na área e fazê-la progredir,
garantindo o território e expandindo a ocupação, mantendo a hierarquia social.
Entre a população, os “grandes proprietários” de terra eram os únicos que
dispunham de capital para aplicar em benfeitorias públicas, pois os agregados, os
escravos, os parceiros e pequenos proprietários não possuíam excedentes. Logo, as
benfeitorias públicas, igreja, estradas, casa para a instalação da câmara e da cadeia,
escolas, hospitais, ao serem financiados pelos “grandes proprietários”, atendiam não só
aos interesses da comunidade, mas também aos seus. As estradas representavam, para
Antônio de Sá e Camargo, a possibilidade de expansão do comércio a que se dedicava,
pois, sem elas, não havia como transitar o gado, abrir novos campos de pastagem,
aumentar a riqueza. As demais instituições garantiam a permanência da comunidade,
dando-lhe segurança com a presença da lei, da ordem, da civilização e do progresso.
Na sua correspondência, evidenciam-se a visão ufanista, a preocupação
demasiada com a Pátria, com seu progresso. Encarregado da construção da igreja
matriz da Freguesia de Guarapuava, pediu ajuda ao governo provincial e colocou sua
“boa vontade” para realizar tal obra: “esforçarei em proceder nesta empresa com
aquela diligência e zelo correspondente a um tão importante edifício 7”.
7
CAMARGO, A de S. Solicitação ao presidente da Província de São Paulo construção
da igreja. Guarapuava, 16 abr. 1841, Arquivo Estadual de São Paulo.
41
Em outra correspondência, como Diretor Geral dos índios de Guarapuava,
informou suas ações e proposições ao presidente da Província de São Paulo, “que se
estabeleça um aldeamento na campina denominada – Victorino...”, evidenciando que o
objetivo maior era civilizar essa população, “...a fim de que chamando-se para o
grêmio da civilização aos ditos índios, vão eles pouco a pouco desprezando o habito
malfazejo em que atualmente se acham...8 ”.
Quando foi nomeado para a administração da estrada da mata, informou ao
presidente da Província de São Paulo, em 1850, sobre o estado precário desse caminho
e a necessidade de conservá-lo. Com essas informações, deixou transparecer que a
população não estava contente com o estado desse caminho: “o mal estado dos
pedaços acima apontados da referida entrada crescem de dia a dia, conjuntamente com
o clamor público...”e argumenta, no seu discurso, que a melhoria do caminho traria
benefício para ambas as partes, “sendo alias este território um dos primeiros que pode
oferecer ao governo provincial um brilhante aspecto, coroando desta arte à
administração de Vossa Excelência que com imparcialidade que o caracteriza se
dignará a providenciar os males que ameaçam a este abençoado continente 9 ”.
A preocupação direcionada para o progresso e civilização da comunidade
ficou evidenciada quando pediu às autoridades provinciais a dispensa do cargo de
membro da comissão inspetora das aulas de primeiras letras, da Vila, em 1850.
Justificou seu pedido em razão do não cumprimento da função, pela falta de tempo10.
Ficou evidente a preocupação dos “homens de bem”, que habitavam a vila, em
efetivar o poder local pela criação das instituições que legitimariam e garantiriam o
poder e a lei na localidade, podendo-se percebê-la na documentação trabalhada. A
carta do senhor Manoel Marcondes de Sá, juiz de paz, tio de Antônio de Sá e
Camargo, informa que “tendo-se por Lei Provincial do presente ano elevado este lugar
a categoria de Vila com obrigação de seus habitantes fazerem a sua custa casa de
8
CAMARGO, A de S. Solicitação aldeamentos índios. Guarapuava, 10 jun. 1848, Arquivo
do Estado de São Paulo.
9
CAMARGO, A de S. Administração estrada da Mata. Guarapuava, 26 maio, 1850,
Arquivo do Estado de São Paulo.
10
CAMARGO, A de S. Dispensa da comissão inspetora das aulas de primeiras Letras.
Guarapuava, 2 fev, 1850, Arquivo do Estado de São Paulo.
42
Câmara, e cadeia, eu vendo que uma das grandes necessidades para promover a
prosperidade desta terra, é a criação de Câmara Municipal...11 ”.
A correspondência de Antônio de Sá e Camargo, e de seus próximos, revela as
colocações dos autores citados anteriormente - Da Matta, Holanda – como sendo
próprias do contexto da cultura e da sociedade brasileira do século XIX, presentes na
região dos Campos de Guarapuava, representadas por um de seus personagens.
Portanto, “destemido bandeirante”, “progressista entusiasta”, “modestovisconde”, “poderoso fazendeiro”, “excelente administrador”, “prudente conselheiro”
são atributos que remetem ao coletivo e individual, numa região particular e,
simultaneamente, aos padrões valorizados na sociedade nacional.
Os micro-historiadores realizam uma decupagem do seu objeto de estudo,
segundo Alban BENSA (1998. p.53),
A micro-história reconstrói, em torno de alguns personagens precisos, aquilo que o seu
espaço social foi e, dessa forma, dá conta das incertezas das suas escolhas diante da
conjuntura do momento. As condições do presente tal como ele foi vivido tornam-se
acessíveis para nós graças a uma decupagem da história em seqüências que correspondem às
modalidades práticas de uso do tempo pelas pessoas do século XVI. Esse “presente
histórico” não tem nada a ver com um instantâneo fotográfico, já que se decompõe em
realidades sociais articuladas no tempo; assim são restituídas as situações no interior das
quais os indivíduos reorganizaram suas experiências e fizeram valer suas estratégias próprias
apesar da rigidez das estruturas sociais do Antigo Regime.
O Visconde de Guarapuava, na micro escala, apresenta a macro-dimensão
vivida num espaço geográfico social específico. Utilizou-se de estratégias particulares
para projetar-se na comunidade que o acolheu e, na sua posteridade, foi rememorado
como o “ilustre paranaense”, “o bandeirante” e “o progressista”. As camadas
superpostas da história podem ser reveladas no corte horizontal do sujeito Antônio de
Sá e Camargo, ou no “detalhe”, como preferem os micro-historiadores, “O detalhe
vale pelas fatias de realidade que revela, pelo peso das circunstâncias e das motivações
que suporta, pela compreensão dos contextos aos quais introduz” (BENSA, 1998,
p.45).
11
SÁ, M. M. Criação da Câmara da Vila de Guarapuava. Guarapuava, 1849, Arquivo do Estado
de São Paulo.
43
Os contextos revelam os indivíduos como participantes da história, e o
pesquisador, ao detalhá-los, é remetido aos diversos contextos vividos por esses
indivíduos. Ou seja, o pesquisador efetua uma decupagem na história dos indivíduos,
em cada situação de suas vidas que, analisada, já remete a outras situações, diferentes
da anterior. Os textos escritos a respeito do Visconde de Guarapuava permitem outras
abordagens sobre esse personagem e apontam indícios da sua vida, tendo sido escritos
dentro de um modelo já explicitado. A partir das afirmações neles contidas e do
retorno às fontes selecionadas, será possível realizar uma nova leitura do personagem,
em questão.
O diferencial da leitura que se pretende realizar está na análise que a microhistória faz ao trabalhar com o indivíduo. Mostrando simultaneamente os contextos e
as estratégias individuais, o indivíduo é revelado, mas evidenciado pelo modo
particular como utiliza as regras do entorno social, o que o articula com o local, o
regional e o nacional.
A leitura dos documentos revelou Antonio de Sá e Camargo como um homem
vivendo
em
situações
de
enfrentamentos,
devendo
manter
padrões
e,
concomitantemente, reelaborá-los, sem rompê-los, para não desfazer o “edifício
social”. Os universos do homem público e da vida privada evidenciaram os
mecanismos de manutenção e superação das regras que o tornaram um “excepcional
normal”. Esses diferentes níveis de compreensão permitem igualmente entender sua
articulação com o poder econômico e político que, por sua vez, o situam como
individual e coletivo.
Estudar o Visconde de Guarapuava, rememorando a tradição, pressupõe
pensá-lo como um ator que possui significação social, cujos atos individuais
encontram-se fundamentados na cultura. Portanto, sua experiência traz a marca do
individual e do coletivo, como de todos os humanos. Nesse sentido, qualquer
indivíduo ou grupo pode ser objeto de análise quando se deseja observar a realidade.
Tomada na perspectiva histórica, significa buscar nos quadros sociais da memória, e
na memória coletiva, os elementos que lhes dão singularidade e os tornam
semelhantes. Desse modo, a apreensão diacrônica, no tempo, de atores sociais que se
44
constroem na tradição e inventam novas tradições pressupõe elaborar recortes na
memória coletiva, atribuindo-lhes lugares.
Ao se referir aos quadros sociais da memória, Maurice HALBWACHS (1990)
enfatiza três áreas em que podemos tomá-la como coletiva e individual: a família, o
grupo social em torno e a religião. Tais esferas marcam a trajetória de um grupo e de
cada indivíduo.
A família é o núcleo ordenador dos valores sociais, pois contém, como um
microcosmo, as regras desejáveis na formação do indivíduo na sociedade em que está
inserido. O grupo social imediato representa os contatos com a sociedade mais
complexa, interferindo na socialização do indivíduo, tornando-o simultaneamente
individual e coletivo. A religião é o instrumento sagrado que, legitimando as ações,
reforça os padrões estabelecidos. Todas as esferas implicam relações afetivas do
sujeito e sua ética.
Ao se tratar de um personagem da história, realiza-se sempre um corte nesses
quadros de referência, jamais o tomamos em sua totalidade, e é sempre com um
objetivo definido, a partir da ótica do presente, que se selecionam os quadros, os
elementos que serão priorizados e os que não serão lembrados. Isso não significa
relegar as relações intrínsecas que ocorrem em todas as esferas da memória, pois o
indivíduo encontra-se simultaneamente em todas elas, desempenhando inúmeros
papéis que se articulam de acordo com os padrões culturais vigentes. Logo, embora
único, é também coletivo, embora local, também o é regional e nacional. Mesmo
reconhecendo os indivíduos como fragmentos da memória social, é possível realizar a
leitura deles, pois suas trajetórias, embora particulares, são primeiramente sociais.
O pressuposto da realidade humana é o da construção da história repleta de
inúmeros atores, pois os humanos nada produzem sozinhos. Necessitam da sociedade,
para tornarem-se humanos, e de uma tradição, para tomar consciência de si e dos
outros. E a tradição assenta-se na memória, a qual se revela na cultura, isto é, “um
mapa, um receituário, um código, através do quais as pessoas de um determinado
grupo pensam, classificam, estudam e modificam o mundo e a si mesmas” (DA
MATTA, 1986, p.123).
45
De que modo Antonio de Sá e Camargo e seu grupo parental e a sociedade
local articularam-se, modificando o mundo circundante e a si mesmos, no território
paranaense do século XIX, na região de Guarapuava? Isto é, como podemos entender a
realidade e esse sujeito, na história do Paraná?
A documentação histórica reveste-se, nessa perspectiva, de um fragmento da
memória que, se adequadamente garimpada, pode revelar a dinâmica daquele
contexto.
46
2
O NÚCLEO PARENTAL DE ANTÔNIO DE SÁ E CAMARGO: A
OCUPAÇÃO DE TERRAS NO PARANÁ
2.1 A FAMÍLIA SÁ E CAMARGO E A OCUPAÇÃO DE TERRAS NO PARANÁ.
Geograficamente, a Região Sul do Brasil é constituída por planaltos
intercalados de campos limpos e pastagens naturais formadas por uma cobertura
contínua de vegetação rasteira, a chamada gramínea. As florestas encontradas pelos
desbravadores da região, no entanto, eram constituídas de matas de araucária. Esses
campos propiciaram a criação de rebanhos, tanto de bovinos como de muares.
Auguste de SAINT-HILAIRE (1995, p.12) botânico que visitou a comarca de
Curitiba, em 1820, deixou relatos de sua viagem, a respeito da região e de seus
habitantes.
Esses campos são certamente uma das mais belas regiões que já percorri desde que cheguei à
América; suas terras são menos planas, não tendo, pois a monotonia das nossas planícies de
Beauce, mas as ondulações do terreno não chegam a ser tão acentuadas que limitem o
horizonte. Até onde a vista alcança, descortinam-se extensas pastagens; pequenos capões,
onde sobressai a valiosa e imponente Araucária....
Esse viajante descreveu os cenários formados pela natureza no sul do Brasil,
discorreu sobre a vida cotidiana dos colonizadores, fornecendo inúmeras informações
47
sobre as fazendas de criar, local onde ficou hospedado quando de sua viagem pela
Comarca de Curitiba12.
Os primeiros núcleos de moradores que se efetivaram na 5ª Comarca de São
Paulo, em meados do século XVI, depois da descoberta das primeiras minas de ouro
de Paranaguá, constituíam-se predominantemente de famílias luso-brasileiras que
moravam na Capitania de São Paulo, entre elas, a família de Antonio de Sá e
Camargo.13 Os historiadores paranaenses que analisaram a ocupação do território
paranaense evidenciaram que, “nas informações sobre Curitiba de 1721, dizia o
Ouvidor Pardinho que a comunidade vivia num raio de apenas sete léguas, ao redor da
vila; que além desse limite existiam infinitos campos, que eram desconhecidos, para os
lados de oeste e do sul, e que só para o norte da vila, ao longo da estrada que ligava
Curitiba a S. Paulo, existiam algumas fazendas de criação de gado, de propriedade de
habitantes de Paranaguá e de S. Paulo” (BALHANA; MACHADO; WESTPHALEN;
1969 p.62).
A expansão para o oeste em direção aos sertões do Tibagi e Campos de
Guarapuava14 intensificou-se na segunda metade do século XVIII, através de
expedições militares (1768 e 1774), que tinham como objetivos reconhecer os
12
O inventário dos bens rústicos, como é conhecido o arrolamento de terras, compõe-se, no
caso do Paraná, da relação completa das propriedades de oito localidades e suas freguesias, ou seja,
todas as que compunham a então denominada 5ªComarca de São Paulo. O Paraná pertenceu
administrativamente à Província de São Paulo até 1853, mas por reforma administrativa passara a
constituir a sua 5ª comarca a partir de 1812. Nessa década, as principais localidades eram Curitiba, a
vila mais populosa e sede da comarca; Castro, com alta importância no comércio de tropas e larga
extensão territorial ocupada por fazendas de gado, e a cuja jurisdição estavam subordinadas algumas
freguesias que posteriormente se emancipariam, como Ponta-Grossa; Lapa (Vila Nova do Príncipe),
também com economia baseada na criação; e duas freguesias igualmente agropecuárias: São José dos
Pinhais e Palmeira. Na costa, erguia-se a vila de Paranaguá, a mais antiga da região e principal porto
de embarque e desembarque de mercadorias; Antonina, vila agrícola com destilarias de aguardente e à
qual pertencia a Freguesia de Morretes, e uma pequena vila no litoral sul, Guaratuba (GALLARDO,
D.H.G.Terras e Gado no Paraná Tradicional. 1996, p.34, Tese (doutorado), USP) .
13
Francisco Negrão, Genealogia Paranaense, Pedro Taques de Almeida Paes Leme,
Nobiliarquia Paulista.
14
“... uma vez que estava aquém da linha fronteiriça. O chamado “Sertão do Tibagy” e os
Campos de Guarapuava aparecem freqüentemente juntos na documentação; são áreas contíguas. Pela
primeira designação compreende-se todo o vale do Rio Tibagi, do Ivaí, a Serra de Apucarana, até os
cursos do Rio Corumbataí e Mourão. Os Campos de Guarapuava ficam a sudoeste desta área atingindo
o curso do Rio Iguaçu” (BELOTTO,L.H. Autoridade e conflito no Brasil colonial: o governo do
morgado de Mateus em São Paulo (1765 - 1750), 1974, p. 157).
48
territórios e dar posse daqueles que ainda não contavam com a presença dos
colonizadores luso-brasileiros15.
As expedições militares faziam parte de um plano maior de defesa das
fronteiras do Sul, ou seja, o rei de Portugal D. José, auxiliado pelo seu Primeiro
Ministro, o Marquês de Pombal, tinha como objetivo defender o território destinado a
Portugal e aumentar a expansão econômica da colônia para promover o fortalecimento
do poder real.
O desenvolvimento das fazendas de criar em especial na região Sul do país
colaborou para o desenvolvimento de um mercado interno. A descoberta de minas de
ouro, nas regiões de Minas Gerais e Goiás ocasionou grande concentração de pessoas
no território das ditas minas, acrescida de grandes levas de aventureiros que
emigraram de Portugal, na esperança de encontrar ouro. A carência de gêneros
alimentícios para a população que se formou subitamente criou problemas para o
governo. Abastecer a região mineradora com comida e transporte foi um dos
problemas enfrentados pelo governo colonial, na primeira metade do século XVIII.
Mas, tanto o Norte como o Sul do Brasil empenharam-se para solucionar o problema e,
dessa maneira, encontraram, afinal, mercado para o produto de suas atividades
econômicas.
15
A investida para descobrir a região dos “sertões de Guarapuava”, que ia desde os vales do
Tibagi e do Ivaí até o rio Paraná, tendo como limite sul o Rio Grande do Registro (o Iguaçu), era
antiga intenção do governador da capitania e já havia sido aprovada pela Coroa em 1766. Tanto é
assim, que, antes da determinação de D. Luis Afonso Botelho, já havia ocorrido uma primeira
bandeira, com 30 homens, partindo do porto de Nossa Senhora da Conceição do Registro, em
dezembro de 1768, para a exploração do rio Iguaçu e seus arredores. Logo o ajudante de ordens do
governador procurou dar cumprimento à incumbência que recebeu e, a 20 de junho de 1769, partiram
com ele cem homens rumo ao Tibagi. Essa bandeira descobriu o Ivaí, dando-lhe o nome de Mourão,
em honra ao governador. Embora a ordem fosse fazer marchar quatro bandeiras, elas chegaram ao
número de onze – contando-se a primeira, de 1768. Afonso Botelho comandou pessoalmente a 10ª
(1771) e a 11ª (1773). Foi na sexta bandeira, em julho de 1770, sob o comando do bravo tenente
Cândido Xavier de Almeida e Sousa, que foram descobertos os “Campos de Guarapuava”. Para
reconhecer os campos recém-descobertos, deliberou o tenente-coronel Afonso Botelho assumir
pessoalmente o comando da que foi a décima bandeira. Esta, maior do que as anteriores, entra com
cento e cinqüenta homens pelo sítio do carrapato, no sertão do Tibagi, distrito de Curitiba, a partir de
novembro de 1771. A expedição, entretanto, acabou tragicamente porquanto os índios, que habilmente
haviam sido bem tratados e muito presenteados pela tropa incursora, atacaram-na depois, de surpresa”
(GARCEZ, J.M.F. Notas biográficas sobre Afonso Botelho de Sampaio e Sousa. In: Do contato ao
confronto: a conquista de Guarapuava no século XVIII. São Paulo: BNP Paribas, 2003, p.24-25).
49
As fazendas de criar dos campos gerais do Paraná desenvolveram-se com a
venda de seu gado ao mercado mineiro, sendo o pagamento feito em ouro, mas a
produção era insuficiente para abastecer esse mercado. Os fazendeiros, sabedores de
que no Rio Grande do Sul existia quantidade de gado suficiente para abastecer a região
mineradora, procuraram abrir caminho para transportar o gado da região. Segundo os
historiadores BALHANA; MACHADO e WESTPHALEN (1969, p.64),
as campanhas e a região serrana do Rio Grande do Sul, estavam cheias de gado selvagem,
que poderia suprir as regiões mineiras, se fôsse possível conduzi-lo para lá. Mas não havia
ligação por terra entre o Rio Grande e Curitiba, separada por léguas de campos
desconhecidos.
Foi nessa conjuntura que o governador de S. Paulo, Caldeira Pimentel, mandou abrir a
estrada de Laguna, que, ligando os campos do Rio Grande com os de Curitiba, possibilitasse,
a subida de tropas de gado. A estrada, cujos trabalhos, começaram em 1728 e continuaram
com grandes dificuldades, foi afinal retificada, de Viamão, no Rio Grande, aos campos
gerais do Paraná, e começou a ser usada em 1731.
Em 1731, sai do Rio Grande do Sul a primeira tropa, composta de cavalos,
mulas e éguas, para ser revendida em São Paulo. Marcando a abertura do caminho do
Viamão, deu início ao tropeirismo, atividade econômica praticada pelos paranaenses e
pelos paulistas, que compreendia a compra de muares no Rio Grande do Sul, no
Uruguai e na Argentina, e sua condução em tropas, por um período aproximado de três
meses, pela estrada do Viamão e seus ramais. Se a viagem ocorresse dentro da
normalidade esperada, a seqüência da atividade era invernar a tropa por alguns meses
nos campos do Paraná. Isso se fazia necessário para recuperar o peso dos animais.
Dando continuidade à viagem, os tropeiros conduziam os animais para serem vendidos
na feira de Sorocaba, onde os negócios eram realizados com paulistas, mineiros, e
fluminenses. O avô materno de Antonio de Sá e Camargo, Manoel José de Araújo,
com seus filhos e genros, foi tropeiro entre os muitos indivíduos desse período que
conduziram tropas do Rio Grande do Sul para Sorocaba.
Com o estabelecimento das fazendas de criar, através da disposição de
sesmarias, desenvolveram-se três áreas para a criação do gado: “os campos de
Curitiba, de 1668 em diante, em pequenos currais; os campos Gerais, a partir de 1730,
com a abertura do Caminho de Viamão; e os Campos de Guarapuava, a partir de 1810,
50
com sua expansão aos campos de Palmas, a partir de 1839” (PIERUCCINI, 1995,
p.24). A expansão para os campos de Palmas foi realizada pelos fazendeiros de
Guarapuava, entre eles, Antonio de Sá e Camargo e seus tios, Manoel Marcondes de
Sá e Domingos Ignácio de Araújo, com o objetivo de desenvolverem a criação de
gado. Domingos Ignácio era proprietário do maior rebanho de gado na região.
No século XVII foram requeridas 19 sesmarias e, no século XVIII, esse
número aumentou, evidenciando-se uma explosão nos requerimentos de terra para a
formação de fazendas de criar. Os fazendeiros, motivados pelo consumo nas regiões da
mineração, interessaram-se ainda mais em possuir terras de campos limpos para o
desenvolvimento da pecuária.
Carlos Roberto Antunes dos SANTOS (2001, p.61), ao se referir à vida
econômica da Província do Paraná, esclarece:
durante grande parte do século XIX, a vida econômica dos Campos Gerais estava baseada na
criação e no comércio de muares. A essas duas economias, acrescentaram-se os aluguéis das
pastagens para o descanso e engorda das tropas, isto é, as invernadas. Muitos fazendeiros dos
Campos Gerais passaram a reservar, cada vez mais, um número de invernadas, em suas
fazendas, a fim de arrendá-las aos tropeiros. A invernada propiciou ao fazendeiro uma renda
mais fácil de ser alcançada do que através da criação do gado.
A criação do gado e de muares foi interessante porque não se tratava de uma
atividade sujeita ao regime de monopólio por parte da Coroa e, além do mais,
incentivou as concessões de sesmarias, ocasionando a fixação dos indivíduos nas
localidades determinadas pelo governo. As regiões paranaenses, privilegiadas pela
geografia de campos abertos, favoreceram a efetivação da fazenda de criar, recebendo
uma quantidade razoável de povoadores.
As fazendas de criar e invernagem de muares estendiam-se por todas as
regiões de campos naturais do território paranaense, campos que começavam em
Curitiba, Campos Gerais e, depois da posse efetiva pelos fazendeiros dos Campos de
Guarapuava e de Palmas, estenderam-se até as fronteiras do Rio Grande do Sul e
Argentina.
51
Segundo GALLARDO (1996, p.5),
O latifúndio, a escravidão e a pecuária foram os fundamentos da estrutura econômica no
Brasil meridional durante o período colonial e imperial. O processo de constituição das
classes sociais foi complexo e demorado, e deu origem a sociedades multirraciais,
miscigenadas e altamente estratificadas, com os proprietários da terra, da força de trabalho e
os rebanhos de um lado, e uma grande massa de despossuidos de outro, estando na base da
pirâmide os escravos, inicialmente indígenas, e posteriormente africanos. A terra, com pouco
valor comercial, foi no entanto um meio de produção essencial para o domínio econômico,
social e político dos proprietários.
Sob a base da grande propriedade, fator determinante para a criação de gado, e
também do tropeirismo e da invernagem, do trabalho dos índios, dos negros e
agregados, constituiu-se, no século XIX, a comunidade dominante regional,
caracterizada pelas famílias fazendeiras, vivendo em suas terras e detendo o poder
político local e regional, por meio de oligarquias parentais. Vilas como Palmeira,
Guarapuava e Palmas desenvolveram-se por estarem localizadas na rota das tropas.
Dessas vilas, Palmeira será destacada por ser o local onde nasceu o personagem central
deste estudo – Antonio de Sá e Camargo futuro Visconde de Guarapuava – tendo tido
uma grande importância na trajetória de vida do Visconde.
52
FIGURA 4 - MAPA DAS PROVÍNCIAS DO RIO GRANDE DO SUL, PARANÁ,
SÃO PAULO SÉCULO XIX.
FONTE – TRINDADE, J. B. Tropeiros. São Paulo: Editoração Publicações e comunicações,
1992.
53
No início do século XVIII, Antonio Luiz Tigre fez doação de meia légua de
terra aos frades do convento de Nossa Senhora do Carmo para que construíssem uma
capela, que foi denominada de Conceição de Tamanduá. Em 1813, o Príncipe Regente
determinou sua elevação à Freguesia Curada de Tamanduá, e esta se desmembra de
Curitiba. Por motivos alegados pelos moradores, de que a capela se encontrava num
local de difícil acesso, ela foi transferida para a nova localidade, onde hoje fica a
matriz de Palmeira.
Quando Saint-Hilaire visitou a 5ª comarca de São Paulo, localidade ainda
chamada de Freguesia Nova, deixou registro em seus relatos que
A uma légua do Rincão da Cidade, parei num lugarejo que se compunha de apenas uma
dúzia de casas, chamava-se então Freguesia Nova porque fazia apenas três anos,
aproximadamente, que o lugar tinha sido transformado em sede de uma paróquia... (SAINT
HILAIRE, 1995, p.60).
Moyses MARCONDES (1926, p.13-14) descreve-a:
Esta freguesia, anteriormente Capela Curada de Tamanduá, ... era mal localizada, para poder
congregar e fixar povoadores. Ocupava recanto destituído de bons mananciais, pouco
abundante de lenha, mal abrigado contra o inverno; de modo que os habitantes viviam
dispersos em grandes distâncias quase todos para além do rio dos Papagaios; rio que, nas
enchentes, lhes vedava o passo,....Desses inconvenientes nasceram a idéia e o acordo para a
transferência da freguesia, para sua sede atual na Palmeira.
A denominação de Palmeira estava relacionada à fazenda com o mesmo nome,
que pertenceu aos fundadores da Vila, os avôs maternos de Antonio de Sá e Camargo,
o tenente Manoel José de Araujo, natural da Campanha do Rio Verde de Santo
Antonio do Val da Piedade, Bispado de Mariana Província de Minas Gerais, casado
com Anna Maria da Conceição de Sá, em Curitiba, no ano de 1773. Depois do
casamento, foram morar em Palmeira. Eles foram os doadores do terreno para a
transferência da Freguesia (1823) e também auxiliaram, conjuntamente com outros
moradores, o padre Antonio Duarte de Passos na construção da primeira igreja. O
Alferes José Caetano de Oliveira genro de Manoel José de Araujo, comprou terras que
pertenciam a Querubina Rosa do Carmo, curadora do seu marido, Veríssimo Aires de
Araujo e também de Joaquim Leal e de sua esposa Ana Joaquina da Trindade em
54
1854, as quais, posteriormente, ele doou para o patrimônio da Freguesia da Palmeira.
O Capitão Domingos Ignacio de Araújo, filho de Manoel José de Araujo e sua esposa
Josefa Joaquina Pinheiro de França, fez doação de terras, localizadas nos campos de
Dona Josefa, para o alargamento do rocio da nova Freguesia. Na planta feita em 1854
pelo juiz de paz da Freguesia da Palmeira (Figura 5) pode-se visualizar a localização
dos campos referidos e também outras configurações, entre esstas, o traçado da estrada
que comunicava o Rio Grande do Sul e Paraná com São Paulo.
55
FIGURA 5 - MAPA DA FREGUESIA DA PALMEIRA -1854.
FONTE: MAYER, T. W. Memórias de Palmeira. Palmeira: 1992
56
Anna Maria e Manoel José constituíram uma família numerosa, característica
do século XIX. Geraram 12 filhos, entre homens e mulheres, os quais se casaram e,
também seguindo a tradição, constituíram famílias com um grande número de filhos
que, ao longo de suas existências, foram responsáveis pela formação de uma parcela
da sociedade paranaense na região dos Campos Gerais, Guarapuava, Palmas e também
na Província do Rio Grande do Sul. Os filhos:
1-
Elias Ignácio de Araújo (01/11/1773), que se casou com Lucrécia Maria
da Silva, e fixaram residência na Província do Rio Grande do Sul, em
Rio Pardo, onde deixaram descendentes, que participaram da formação
da localidade. A presença de um membro da família facilitaria a
organização de uma rede comercial para intervir diretamente nos
negócios de compra e venda, nessa região.
2-
Anna Joaquina de Araújo (13/03/1778), que se casou com Francisco de
Oliveira Bueno, e se estabeleceram também no Rio Grande do Sul.
3-
José Caetano (22/09/1779), portador de deficiência motora, faleceu em
1825.
4-
Manoel Mendes de Araújo (01/07/1781), casado com Ana Joaquina dos
Santos, se estabeleceram na vila de Guarapuava, pois recebera sesmaria
na região por ter colaborado com a expedição que foi enviada pelo
governo colonial de D. João VI, para povoar a região.
5-
Mathilde Umbelina da Gloria (04/05/1783), casada com Antônio
Joaquim de Camargo, se estabeleceram na Vila da Palmeira, na fazenda
Conceição – Rincão do Manhoso. A residência na Vila estava localizada
em um terreno que ficava nos fundos da igreja, e era conhecida como a
Casa de Pedra. Foram os pais de Antônio de Sá e Camargo. Esse casal
recebeu também sesmaria na região de Guarapuava.
6-
Domingos Ignácio de Araújo (04/06/1786), casado com Josepha de
França, e se estabeleceram na Vila de Palmeira. Depois do falecimento
de seus pais, a fazenda Palmeira foi dividida entre os irmãos. Também
recebeu sesmaria na região de Guarapuava.
57
7-
Francisco José de Sá e Araújo (08/09/1787), desapareceu em viagem no
Paraguai. Segundo Moysés Marcondes, seu bisavô sentiu muito o
desaparecimento desse filho e a deficiência do filho José Caetano, “...
nunca teve o Tenente Manoel José igual conformidade com a paralisia
que lhe invalidara o filho José Caetano, desde a infância; e menos, ainda
com o fatal desaparecimento do filho Francisco José que, aos dezoito
anos, seguira para o Rio Grande, em companhia de um de seus irmãos
(esse irmão era o Manoel Mendes), e empreendera dali viagem ao
Paraguai, de onde nunca mais voltará, ...” (MARCONDES, 1926, p 1718).
8-
Maria Caetana de Sá (06/08/1789), casada com Manoel Martins de
Araújo, seu primo, se estabeleceram na Vila da Palmeira. Recebeu como
herança do pai terras e a Chácara Palmeira. Em 1837, essa chácara foi
adquirida pelo capitão Domingos Ignácio que residiu nesse local até seu
falecimento. Também receberam sesmaria na região de Guarapuava.
9-
Cândida Flora de Sá (21/04/1794), casada com Joaquim Rodrigues
Jacques, se estabeleceram no Rio Grande do Sul, na fazenda denominada
Alegrete.
10- Cherubina Rosa Marcondes de Sá (24/01/1796), casada com José
Caetano de Oliveira. Com relação a esse casal, observá-los com maior
detalhe faz-se necessário, pois eram os tios de Antonio de Sá e Camargo
e, posteriormente, tornaram-se seus sogros, por serem os pais de
Zeferina, sua prima e futura esposa.
Cherubina Rosa Marcondes de Sá nasceu na cidade de Palmeira, em
1794, e José Caetano de Oliveira nasceu em Sorocaba, por volta de 1794,
e veio residir nos Campos Gerais de Curitiba. Sendo José Caetano amigo
de Antonio Joaquim de Camargo – pai do futuro Visconde de
Guarapuava -, foi apresentado à cunhada deste, Cherubina Rosa
Marcondes de Sá. Casaram-se em 27 de novembro de 1814 e foram
morar no Sítio do Rincão da Cria, que receberam dos pais de Cherubina.
58
A atividade de José Caetano também era a criação de gado e muares.
Tropeiro que percorria o caminho do Viamão para comprar tropas de
muares e guiá-las até suas propriedades, localizadas na Província do
Paraná, para comercializá-las na feira de Sorocaba, atividade que lhe
garantiu a fortuna e o título de Barão de Tibagi.
Cherubina Rosa e José Caetano constituíram uma família com oito
filhos. 1- Francisca Caetana, casada com Manoel da Cruz Carneiro; 2Maria de Luz de França e Oliveira, casada com o tio, Comendador
Antonio Caetano de Oliveira (Nhozinho); 3- Zeferina Marcondes de Sá,
que se casou com o primo, Antonio de Sá e Camargo – Visconde de
Guarapuava; 4- Conselheiro Jesuíno Marcondes de Oliveira e Sá, casado
com Domitilla Alves de Araujo (de Morretes); 5- Maria das Dores
faleceu na infância; 6- José Matheos de Oliveira e Sá, casado com Luiza
Marcondes de Oliveira; 7- Anna Marcondes Pacheco, casada com o
Coronel Joaquim Pacheco da Silva Resende (da Lapa); 8- Maria Clara de
Oliveira Martins, casada com o primo, Coronel Frederico Martins de
Araujo.
11- Rufina Antonia de Sá, que se casou com João da Cruz Carneiro, e se
estabeleceram em Palmeira, na localidade chamada de Chacrinha.
12- Delphina Rosa, que faleceu ainda criança.
Alguns dos casamentos realizados na família de Ana Maria e Manoel José
foram entre os primos e também com tios. Antonio de Sá e Camargo casou com
Zeferina sua prima, Maria Clara de Oliveira Martins, casou com o primo, Coronel
Frederico Martins de Araújo e Maria de Luz de França e Oliveira, casou com o tio,
Comendador Antonio Caetano de Oliveira (Nhozinho), entre outros.
Era uma prática comum os casamentos no mesmo núcleo parental, casamentos
preferenciais, que estavam, muitas vezes, relacionados à preocupação de manter o
patrimônio da família: terras, gados, escravos. Casando-se na mesma família, não se
corria o risco de dividir, e jogava-se com a possibilidade de aumentar esse patrimônio.
59
FIGURA 6 - ÁRVORE
GENEALÓGICA
DOS
AVÔS
MATERNOS
DO
Delfina Rosa
c/ João Cruz Carneiro
Rufina Antonia
Cherubina R.
Marcondes de Sá
c/ José C. de Oliveira
Cândida Flora
c/
Joaquim R. Jacques
Maria C. De Sá c/
Manoel M. de
Araújo
Francisco J. de Sá
Manoel José de Araujo
c/ Josepha de França
Domingos I. de Araújo
Mathilde U. da Gloria
c/ Joaquim José de
Camargo
Manoel Mendes de Araujo
c/ Ana jJoaquina dos Santos
José Caetano
Ana Joaquina de
Oliveria c/ Francisco de
Oliveira Bueno
Elias Ignácio de Araujo
c/ Lucrécia M. da Silva
.
e Anna Maria C. de Sá
VISCONDE DE GUARAPUAVA
FONTE: LEME, L. G. da S. Genealogia paulista. São Paulo: Duprat&Comp, 1903.
Depois do falecimento de Anna Maria, em 1816, e do tenente Manoel José, em
1825, a fazenda Palmeira foi dividida entre seus filhos. Segundo José Carlos Veiga
LOPES (2000, p.62), o inventário de Manoel José de Araújo compunha-se dos
seguintes bens:
O monte atingiu 7.653$640, que dividido entre os nove herdeiros deu 853$404 para cada um.
Os imóveis foram assim partilhados: Manuel Martins de Araújo (genro) ficou com o sítio da
Palmeira, casas, piquetes, arvoredos e campos na mesma, valor de 300$00(ficou com um
oratório com todas as imagens não descrito anteriormente, no valor de 12$800); Manuel
Mendes de Araújo ficou com uma sorte de campos que lhe tocara no rio da Areia, por
17$400; Domingos Inácio de Araújo ficou com uma morada de casas na fazenda Palmeira
por 40$000 e as capoeiras do Pinheiral, e matos sitos no Pinheiral, valor de 25$000; José
Caetano de Oliveira com os campos da Palmeira denominado da Cria, valor de 729$400; a
sesmaria de Guarapuava foi dividida entre vários herdeiros.
Nesse período, a sociedade colonial vivia segundo as normas do pátrio-poder,
que é uma herança da colonização portuguesa, que passou a fazer parte da organização
da família brasileira, o poder de decisão formal nas mãos do homem, como provedor e
60
protetor da esposa e dos filhos. A incumbência da mulher, no casamento, orientava-se
para o bom desempenho de cuidar do lar, educar os filhos e para a assistência moral
dos seus familiares e demais participantes do quadro doméstico, em especial quando se
tratava de uma residência localizada em uma fazenda, que envolvia escravos,
agregados, parentes e vizinhos.
Para os memorialistas, que dissertaram sobre os povoadores dos Campos
Gerais, Dona Ana Maria foi um exemplo para sua família, tanto pelo aspecto espiritual
como pelo trabalho. A fé ardente da avó de Antonio de Sá e Camargo sempre a
socorreu nos momentos mais difíceis da sua vida. Um, entre os vários relatos feitos
pelo seu bisneto, no livro de memória a respeito da família, refere-se à passagem em
que Anna Maria precisou assumir a frente dos negócios do marido, pois este comprara
uma tropa, cujos animais estavam contaminados com a doença epizootia e, em
conseqüência, o rebanho morreu, o que deixou Manoel José muito abalado, pois o
negócio comprometeu grande parte de sua fortuna. Como a honra desse homem estava
acima de qualquer coisa, sua esposa tomou para si a responsabilidade e o comando da
fazenda. Com muita luta e ajuda dos filhos que estavam próximos, conseguiu saldar as
dívidas e garantir a honra do seu marido que, depois de algum tempo, recuperou a
saúde e retomou suas atividades de fazendeiro.
Segundo Eni Mesquita SAMARA (1988, p.101), as relações marido-esposa,
a par das poucas opções que restavam às mulheres na sociedade brasileira, desde o período
colonial, a própria natureza do sistema patriarcal e a divisão de incumbências criaram
condições para a afirmação da personalidade feminina, dada a sua influência direta junto à
família. Antonio Candido sugere que a organização do sistema colonial desenvolveu
aspectos viris na personalidade da mulher que favoreceram o aparecimento de características
acentuadas de comando e iniciativa. Embora a conotação viril tenha sido usada
impropriamente pelo autor, não são raros os exemplos de mulheres que, por ausência do
marido ou viuvez, zelaram pelo patrimônio da família, gerindo propriedades e negócios.
Outras trabalharam na agricultura e nas pequenas manufaturas domésticas, contribuindo para
o sustento da casa.
Anna Maria, uma mulher do século XVIII, diante das dificuldades que
enfrentou, revelou-se capaz de levar em frente os negócios da família e de orientá-la
enquanto o marido esteve doente. A luta dessa mulher serviu de exemplo de vida para
seus descendentes.
61
Na maioria das vezes, era o filho mais velho que passava a gerenciar os
negócios paternos. No caso de Anna Maria, o marido não havia morrido, mas somente
adoecido, e seu filho mais velho acabara de se casar e se estabelecera na Província do
Rio Grande do Sul, onde morava seu sogro. Ela teve que assumir o controle dos
negócios e das dívidas e, conjuntamente, continuou com as lidas da casa: fiar e tecer a
lã das ovelhas, coser para si e familiares, fazer o queijo, o sabão, as velas, o azeite, a
farinha, as rendas de bilro para o vestidos das filhas e prestar cuidados e atenção aos
filhos mais novos.
Dessa maneira, a busca de segurança e subsistência familiar fez com que ela
ultrapassasse as regras de uma família patriarcal, modificando as normas estabelecidas
na comunidade em que viveu, onde as mulheres deveriam voltar sua atenção para a
educação dos filhos e afazeres domésticos. Segundo Giovanni LEVI (2000, p.105), “na
medida em que foi a própria incerteza a dar lugar à criação de normas que tornassem
previsível o comportamento de cada indivíduo em relação a todos os outros, essa
mesma dificuldade de previsão fez com que essas normas fossem flexíveis e ambíguas,
de forma a consentirem uma continua adaptação”.
2.2 A UNIÃO DOS MARCONDES DE SÁ COM OS CAMARGO: NASCIMENTO
DO VISCONDE DE GUARAPUAVA
Tudo já tinha voltado à normalidade, na fazenda Palmeira, no início do século
XIX: Manoel José já estava recuperado e assumira novamente o comando dos
negócios. Anna Maria há muito tempo pensava em acompanhar seu esposo em uma
viagem, quando ele fosse levar o gado para vender na feira de Sorocaba. Falou da sua
intenção, mas seu marido relutou em aceitar, porque levar a família seria muito difícil,
mas sua mulher acabou convencendo-o. A comitiva, então, agregou outros
participantes: Anna Maria, Manoel Mendes, José, Francisco, Domingos, Mathilde,
Cândida, Cherubina, Ruffina e Delphina.
62
A feira de Sorocaba acontecia desde o primeiro quartel do século XVIII, e nela
homens do sul negociavam suas tropas com os homens que vinham do Rio de Janeiro,
Minas Gerais e Bahia. As feiras aconteciam nos primeiros meses do ano, oscilando
entre fevereiro e maio. Bastavam apenas dois meses para que as tropas fossem
esgotadas das invernadas localizadas nas proximidades da cidade. Segundo Luis
Caetano de ALMEIDA (1952, p.142), que descreveu esse universo, “na rua de
Passagem das Tropas ou do Comércio estavam os grandes negociantes, vultos também
na política do país. Estes eram geralmente compradores e revendedores, fiadores,
homens de tanta honradez quanto os tropeiros, gente já celebrada por essa virtude”.
A feira era sempre uma festa, e muitas famílias, como a de Manoel José de
Araujo, vinham a Sorocaba para participar das festividades que envolviam a cidade no
período em que se realizava a feira. Do Rio de Janeiro e São Paulo, chegavam as
novidades que eram revendidas pelos mascastes, os espetáculos, os fotógrafos, um
universo que deixou os filhos de Anna Maria encantados e enamorados porque, nessa
festa, moças e moços acabavam trocando olhares.
Coincidiam quase sempre com a época das feiras as festas do Divino, com as admiráveis
cavalhadas... À noite, os milhares de lanterninhas suspensas até a alta torre da matriz e
penduradas pelo pátio afora aumentavam a alegria reinante, em meio do vozerio e linguajar
de todos os matizes: vogais abertas, de paranistas, cantadas de catarinenses, fechadas, de
mineiros, tuteamento de gaúchos e cariocas, exclamações espalhafatosas de castelhanos... Os
tempos áureos da feira coincidiam com as saias de balão, botinas de cano alto, penteados
muito altos, brincos enormes nas orelhas, e bailes tão respeitosos nos salões empapelados,
onde nem faltavam pianos de cauda e, sobretudo, pianistas da terra, a executar as mais
recentes novidades adquiridas na “lira de Apolo”, “armazém de músicas, pianos e águas
mineiras da viúva CANÔNGLIA, rua do ouvidor, 11, ou do Imperial Estabelecimento de
Pianos Narciso, rua dos Ourives”, principalmente valsas, quadrilhas, polcas e tangos...
(ALMEIDA, 1952, p.161).
Nessa feira, aconteceu o encontro entre Mathilde e o tenente Antônio Joaquim
de Camargo, “moço de família”, tudo que o pai da jovem poderia desejar. O jovem era
filho de Francisco de Camargo Pontes, descendente dos Camargos da Província de São
Paulo, casado com Mariana de Siqueira Moraes. Os dois jovens estavam dentro dos
padrões e normas que agrupavam os indivíduos socialmente, em virtude da origem e
da posição sócio-econômica, e por essa razão, tão logo se conheceram, puderam se
63
casar (186/1807), ainda durante a permanência da família de Mathilde na feira de
Sorocaba.
FIGURA 7 - ÁRVORE GENEALÓGICA DOS AVÔS PATERNOS DO VISCONDE DE
Francisco de Paula
Camargo c/ Marianna
Antonia
Antonio Joaquim de
Camargo c/ Matilde
Umbelina da Gloria
Francisca Maria de
Camargo c/ André
Castanho de Medeiros
Gertrudes Maria de
Almeida c/ Jose de
Assumpção Pimentel
Maria de Camargo c/
Custodio F. Moraes
Manuel de Camargo c/
Maria de Mello Almada
Luis Jose de Camargo c/
Anna Francisca de
Medeiros
Joaquim de Camargo
Pontes c/ Marianna de
Almeida
Salvador de Camargo
Custodia M. de
Camargo c/ Jose Duarte
de Freitas
Alferes Francisco de
Camargo Pontes c/
Marianna de S. Moraes
GUARAPUAVA
FONTE: LEME, L. G. da S. Genealogia paulista. São Paulo: Duprat&Comp, 1903.
Juntamente com os familiares da sua esposa, Antônio Joaquim de Camargo
fixou sua nova residência na Freguesia de Palmeira, na localidade denominada Capão
do Manhoso, na fazenda Nossa Senhora da Conceição, nome dado por Mathilde por
ser devota da Santa. Tudo foi muito difícil para o novo casal: a construção da casa, na
fazenda; as primeiras viagens de Antonio Joaquim para o longínquo Rio Grande do
Sul, pois o moço tinha vindo de Sorocaba, não estando acostumado com a vida de
tropeiro. Mas contou sempre com a orientação do sogro e de seus cunhados para a
organização das comitivas para a viagem ao Rio Grande do Sul, onde adquiriam o
gado para formar os rebanhos que invernavam em suas fazendas para posteriormente,
serem revendidos nos campos de Curitiba ou Sorocaba. Mathilde, com muitos afazeres
na sua casa, vinha se sentindo cansada, com enjôos constantes, mas nada disse ao
marido, esperando uma visita à casa de sua mãe, para ter certeza do que estava
desconfiada. A conversa com a mãe confirmou sua suspeita, estava grávida. A notícia
64
deixou Antonio Joaquim perplexo, mas também muito feliz, pois um filho traria mais
alegria aos recém-casados.
Antônio de Sá e Camargo nasceu prematuro, em dezembro de 1807, na
pequena Freguesia de Palmeira
Antônio Joaquim, um pouco assustado com o nascimento prematuro do filho, foi consolado
pelo Sr. Manoel José, que explicava terem sido as notícias sobre José Francisco a causa de o
garoto ter nascido antes do tempo. Afinal, uma boa notícia na família, depois de tantas ruins.
O natal e fim de ano seriam alegres. O neto quase nascera no mesmo dia em que nasceu
Jesus. ... Os jovens pais combinaram com todos, para, no dia 25 de abril 1808, irem à capela
do Tamanduá batizar o menino. O acontecimento foi uma bela festa (ROMAGUERRA,
2001, p.36).
O núcleo familiar de Antonio Joaquim de Camargo e Mathilde Umbelina da
Glória constituiu-se de mais sete filhos: 1- Maria Francisca de Sá casada com
Francisco Moraes Camargo; 2- Francisco de Paula Camargo casado com Rita R.
França ; 3- Anna Maria; 4- Mariana de Siqueira Moraes casada com Serafim de
Oliveira; 5- José Antonio de Camargo de Araujo (padre Camargo) casado com
Gertrudes F. Fritz; 6- Rufina Mauricio de Sá casada com Antonio de Oliveira Ribas; 7Gertrudes Maria de Almeida Sá casada com o Capitão Estevão do Nascimento.
FIGURA 8 - ÁRVORE
GENEALÓGICA
DO
NÚCLEO
FAMILIAR
DO
Gertrudes Maria de
Almeida Sá c/ Cap.
Estevão R.
Nascimento
Rufina Mauricio de
Sá c/ Antonio de
Oliveira Ribas
Jose Antonio de
Camargo Araújo c/
Gertrudes F. Fritz
Mariana de Siqueira
Moraes c/ Serafim de
Oliveira
Ana Maria
Francisco de P.
Camargo c/ Rita R.
França
Maria F. de Sá c/
Francisco Moraes de
Camargo
Antonio de Sá
Camargo c/ Zeferina
M. de Sá
Antonio Joaquim de
Camargo c/ Matilde
U. da Glória.
VISCONDE DE GUARAPUAVA
FONTE: LEME, L. G. da S. Genealogia paulista. São Paulo: Duprat&Comp, 1903.
65
Os meninos e meninas da família Sá e Camargo receberam de seus pais
instrução e educação básica, já que na pequena Vila não existia uma escola e sequer
um professor para ministrar as primeiras aulas. A existência e manutenção de um
professor na Vila, para praticar um ensino coletivo, não foi prioridade dos fazendeiros,
que consideravam oneroso manter tal profissional e, também, porque as fazendas não
ficavam próximas da Vila, o que dificultava o acesso para seus filhos.
O dia-a-dia da família era marcado pelos cuidados com o gado, animais de
montaria, carneiros, os quais possibilitavam a lã, preparada no tear doméstico, na qual
se confeccionavam os baixeiros, coxonilhos, redes, cobertores, mantas, xales, etc.
O gado, além da engorda para a venda, principalmente na feira de Sorocaba,
rendia outros afazeres, como ordenhar as vacas de leite para a confecção de queijos,
manteiga e outros alimentos.
Os escravos plantavam as roças de milho, feijão, batata, mandioca e trigo para
a subsistência da própria fazenda. Todos participavam dos afazeres domésticos
conjuntamente e, no caso do personagem em questão, sua tarefa era maior por ser
primogênito e, nessa condição, exemplo para os irmãos.
A brincadeira infantil preferida dos meninos era galopar, pois já pequeninos
aprendiam a montar e a galopar pelos campos da fazenda. Também gostavam de ouvir
as histórias que os velhos escravos contavam sobre as longas viagens realizadas pelo
avô e pelo pai, para conduzir as tropas da Província do Rio Grande até a feira de
Sorocaba. Entre essas histórias, a lembrança revivida pelo narrador a respeito do
código do tropeiro era sempre positiva aos pequenos ouvintes.
Mas a família não parava de crescer, e a chegada de mais um irmãozinho veio
alegrar a casa do menino Antônio.
A 7 de junho de 1818, nascia o sexto filho de Mathilde e Antonio Joaquim, completando
assim três casais. Antônio, o primogênito, já com nove anos, parecia ser o mais
compenetrado de todos os filhos do casal, chamando para si a responsabilidade de cuidar do
novo nenê. Na verdade, Maria Francisca, a irmã logo abaixo dele, não gostava muito disso,
pois também queria ficar com o gurizinho no colo como se fosse brincar de boneca. Sua
mãe, sabiamente, para não criar atritos entre ambos, encarregava a menina de cuidar dele
enquanto o filho cumpria obrigação diária que o pai lhe passava, relativa ao gado no curral e
aos carneiros. Mesmo assim, Matilde notava que ele fazia todos os serviços com a maior
presteza, sem se descuidar de fazê-los bem feitos, para logo estar com o irmãozinho mais
novo. Já os outros irmãos, Francisco, Anna Maria e Mariana, ainda pequenos, não se
66
importavam com a criança, deixando os ciúmes e as brigas pelo garoto para os mais velhos
(ROMAGUERRA, 2001, p.40).
Esse cotidiano era comum na vida familiar dos descendentes de Anna Maria e
Manoel José. Seus filhos cresceram e foram orientados a cumprir esses afazeres
domésticos, o que não foi muito diferente com seus netos.
A narrativa deixada por Auguste SAINT-HILAIRE dá indícios ao leitor do
núcleo parental de Antonio de Sá Camargo. Antes de alcançar a Freguesia Nova em
sua viagem pelos Campos Gerais, no retorno da viagem realizada ao distrito de Castro,
em uma de suas paradas, pernoitou na fazenda Rincão da Cidade, “tratava-se de uma
pequena fazenda pertencente a pessoas pouco abastadas e com numerosa família. A
dona da casa recebeu-me com extrema gentileza. Enquanto eu trabalhava ela veio
sentar-se à soleira da porta do meu quarto e nos pusemos a conversar. “Por que o
senhor se sacrifica dessa maneira viajando pelo mundo?”, falou-me ela. “o senhor tem
mãe; não seria melhor que fosse para junto dela e a consolasse na sua velhice?”(1995,
p.59). Palavras estas que fizeram o viajante relembrar sua pátria e sua família,
deixando sem resposta sua interlocutora, pois a saudade e a emoção falaram mais alto
e, segundo ele, “... meus olhos se encheram de lágrimas e eu supliquei a essa senhora
que não continuasse a falar desse jeito. Uma senhora que demonstrava tanto respeito
pelos direitos maternos devia ser, ela própria, mãe excelente, e terá sido abençoada –
espero – por todos seus filhos” (1995, p.60). Auguste de SAINT-HILAIRE desabafou,
na seqüência do relato, que não escutou o conselho dado pela senhora e pagou um
preço amargo por isso.
Entretanto, essa conversa revela tanto o íntimo do viajante como o cotidiano
dos moradores da Freguesia Nova, em especial dos Sá e Camargo. Não se pode
precisar com exatidão, mas essa senhora poderia ser a mãe de Antonio de Sá e
Camargo, Mathilde Umbelina da Gloria ou uma de suas irmãs: Cherubina Rosa
Marcondes de Sá, Maria Caetana de Sá, Rufina Antonia de Sá ou talvez outra
moradora mas, com certeza, parente de ambas. Elas moravam nas terras doadas pelo
pai nas proximidades da Freguesia Nova.
67
O memorialista Astrogildo de FREITAS (1992, p.), ao argumentar sobre a
localidade da fazenda onde o cientista ficou hospedado informa:
...mas se argumentarmos com outros dados descritos, veremos que a citação da distância –
uma légua-entre o Rincão da Cidade e a povoação, nos dá a certeza de que entrada da
Freguesia Nova da Palmeira pois a essa distância do Rincão da Cria, não existiu e não existe
qualquer outra povoação. ... É motivo por outro lado, para a adoção dessas linhas
contraditórias de raciocínio o fato de, no livro daquele cientista francês, encontra-se a
denominação de Rincão da Cidade em vez de Rincão da Cria onde fixou residência José
Caetano de Oliveira, futuro Barão de do Tibagi e sua mulher Cherubina Rosa Marcondes de
Sá,... Neste particular há apenas divergência de nomes de Rincão da Cidade para Rincão da
Cria, pois a citação de distâncias, após haver atravessado o rio Tibagi, nos dá precisamente a
localização do Sítio da Baronesa, como local onde se hospedou Saint-Hilaire...
Depois de deixar a fazenda Rincão da Cidade ou Rincão da Cria, Saint-Hilaire
seguiu para Freguesia Nova (Palmeira), que ficava à distância de uma légua. Seu
contato foi especialmente com o padre Antonio Duarte de Passos. Em seus relatos
sobre as conversas que teve com o vigário, a respeito da religião, ressaltou que:
Era uma das doze ou quinze casas de que se compunha o lugarejo que a missa era celebrada.
De acordo com o estabelecido, as dízimas iriam para as mãos do Rei e este forneceria verbas
para a construção da igreja;... mas, até a época da minha viagem nada tinha sido conseguido.
minha viagem nada tinha sido conseguido. Por outro lado, o vigário se queixava da pouca
devoção de seus paroquianos, que não concordavam em fazer o menor sacrifício em favor de
sua religião, eles não estavam habituados a cumprir qualquer ato religioso, e era a duras
penas que o vigário os convencia a assistir á missa (SAINT-HILAIRE, 1995, p.60).
Dando seqüência à narrativa o viajante acrescentou:
Assisti à missa e, para grande espanto meu, notei entre os fiéis um número de brancos muito
maior do que o de pessoas de cor - o oposto do que eu tinha visto em todos os outros lugares.
Entre as mulheres, algumas eram muito bonitas, de pele rosada e feições extraordinariamente
delicadas. De acordo com o costume, elas ficavam acocoradas no chão e muitas delas
traziam uma criança nos braços. Todas tinham vindo a cavalo e vestiam roupas apropriadas
para isso, um traje de montaria azul com botões brancos de metal e um chapéu de feltro, que
tiravam na hora da missa (SAINT-HILAIRE, 1995, p.60).
Partindo dos relatos de Saint-Hilaire, que ora afirma que a população da
Freguesia Nova “não estava habituada a cumprir qualquer ato religioso”, essa sua
colocação contrapõe-se ao modo de ser das pessoas da época, em especial da família
de Anna Maria e Manoel José, que atendiam aos pedidos do vigário no trato da
68
questão religiosa. Mesmo porque a religião era um dos princípios a serem seguidos
dentro da política determinada pelo rei.
Saint-Hilaire foi um viajante que não teve a oportunidade de conviver o
suficiente com a comunidade da Freguesia Nova - Palmeira, entende-se que o tempo
de sua permanência nessa Freguesia não foi razoavelmente longo para conhecê-la e
julgá-la por si próprio. Atribuem-se, então, suas observações negativas a respeito das
obrigações religiosa da comunidade, ao pouco tempo de convívio com as pessoas e às
afirmativas, feitas a ele, pelo padre que foi a pessoa que transmitiu grande parte das
informações ao narrador.
Mas o que chamou atenção, foi a observação à respeito das mulheres: “peles
rosadas e feições extraordinariamente delicadas”. Entre essas mulheres estavam
Mathilde Umbelina da Gloria, Cherubina Rosa Marcondes de Sá, Maria Caetana de
Sá, Rufina Antonia de Sá, e entre as crianças encontravam-se o menino, ou melhor o
mocinho, Antonio de Sá e Camargo, pois já tinha nesse período doze anos, e seus
irmãos, Maria Francisca de Sá, Francisco de Paula Camargo, Anna Maria, Mariana de
Siqueira Moraes e, no colo de sua mãe Mathilde, o irmão José Antonio (padre
Camargo), que deveria ter em torno de um ano e meio de idade, além de seus primos e
primas.
Dentro do universo descrito pelo viajante, este revela fragmentos do cotidiano
dos moradores da Freguesia Nova.
As lembranças rememoradas na carta escrita por Jesuíno Marcondes de
Oliveira e Sá, filho de Cherubina Rosa de Sá e neto de Anna Maria, revelam o
cotidiano familiar dos Sá e Camargo.
Repassei em meu espírito aquela nobre vida, tão trabalhosa, tão valente e tão dura de
dignidade em todos as suas fases. Quantos ensinamentos. Não conheceste minha mãe senão
em sua velhice, já viúva, gozando do respeito amor da família e do bem estar zelativo de
uma situação feita por incessantes esforços de seu marido e dela em dezenas de anos de
trabalho, de economia e de ordem. A parte mais interessante de sua vida é aquela em foi (?).
Seu marido ausente quase sempre em continuas viagem para o Rio Grande do Sul e
Sorocaba, passando em casa 2 a 3 meses por ano. Ela tendo filho de 2 em 2 anos, só, naquele
Sítio. Trabalhando com alguns escravos, ficando e tecendo a lã de suas ovelhas para fazer
baixeiros e coxonilhos, cosendo para si e para os filhos, fazendo os torcidos para o grande
candieiro de metal amarelo que iluminava a varanda e o da cozinha. Fazendo a roupa e
poncho dos escravos, a farinha, o polvilho, as lingüiças dos porcos que se criava no sítio para
darem o tempero. As filhas logo que podiam, faziam renda para se vestirem. A grande
69
questão era viver sem dispender dinheiro que diminuiria o capitalzinho que girava meu pai.
Todas as noites, filhos e crioulos repetiam em torno dela as rezas que lhes ensinava, aos
sábado, abria-se o oratório e rezava-se o terço, aos domingos, toda a família ia à missa, ela
com os filhos e uma negra a cavalo; as outras a pé, algumas carregando crianças, outras
balaios com o jantar que se faria na freguesia (Palmeira). Na ida e na volta, passava-se na
Chácara da Palmeira, onde se reunia o nosso rancho a família de meu tio Domingos (Capitão
Domingos Ignacio, de Araujo), o pai do Marcondes. Na freguesia, confabulávamos com a
família dos tios Camargo (pais de Antonio de Sá Camargo) e outros parentes 16.
Na descrição do cenário, realizada por Auguste de Saint-Hilaire há mais de
184 anos, podem, ainda, ser visualizados fragmentos desse passado, como a paisagem
dos Campos Gerais, a imagem de Nossa Senhora da Conceição, a localidade onde
nasceu Antonio de Sá e Camargo, a casa em que morou e os campos que cavalgou por
muitas vezes em suas brincadeiras de menino.
Refazer o trajeto da fazenda Conceição, localidade onde Antonio de Sá e
Camargo viveu sua infância, até a igreja de Nossa Senhora da Conceição, passando
pela chácara Palmeira – onde se encontra a Casa Branca da Serra, residência que
pertenceu ao avô materno, Manoel José de Araujo, a qual foi merecedora de um poema
escrito por Sebastião Cícero Guimarães PASSOS, em 1894, com o título, “Na casa
Branca da Serra”,
Embora tudo! Bendigo
Esta ditosa lembrança,
Que, sem me dar esperança,
Une-me ainda contigo...
Bendigo a Casa da Serra
Bendigo as horas fagueiras,
Bendigo aquelas Palmeiras,
Querida, da tua terra!17 (PASSOS, 1884).
16
SÁ, J. M. O. Recordações familiares. Suíça, 2 out. 1898, Arquivo da Biblioteca Pública
do Paraná. – Divisão Paranaense.
17
Esse poema foi feito em homenagem a uma jovem palmeirense filha do Coronel Henrique
Alves de Araújo, parente de Antonio de Sá e Camargo. Sebastião Cícero Guimarães Passos participou
do movimento revolucionário contra o Marechal Floriano, e em 1894, esse indivíduo alistou-se ao lado
dos revoltosos, participando do governo revolucionário instalado no território paranaense. Com a
vitória dos legalistas o poeta fugiu para a Argentina, foi nesse momento de fuga que passou por
Palmeira, e conheceu a jovem na chácara da Palmeira pela qual ficou enamorado, e no seu exílio,
prestou homenagem à sua enamorada reverenciando local onde a conheceu. (MAYER, T. W.
Coletânea, Memória de Palmeira. Prefeitura Municipal de Palmeira, Departamento Municipal de
Educação. Palmeira, 1992).
70
Ao refazer esse trajeto, atualmente, foi possível perceber ainda na localidade
fragmentos do que foi deixado escrito a respeito do cenário, nas anotações de viagem
de Auguste de Saint-Hilaire e nas recordações pessoais deixadas por Jesuíno
Marcondes, na carta escrita a sua nora, em 1898, rememorando sua infância e
convivência com sua parentela na Freguesia da Palmeira.
71
3 ANTONIO DE SÁ E CAMARGO NA FREGUESIA DE NOSSA SENHORA
DE BELÉM
3.1 O PODER FUNDIÁRIO NOS CAMPOS DE GUARAPUAVA
A ocupação dos sertões paranaenses apresentava-se, no início do século XIX,
como uma nova oportunidade, pois há mais de 40 anos haviam sido visitados por
Afonso Botelho, e na seqüência abandonados, porque as sociedades tribais que
habitavam esses sertões demonstraram resistência à presença do colonizador lusobrasileiro. Com o objetivo de ocupar o território, dominar os índios e encontrar uma
passagem para as Missões, por determinação de D. João VI, foi organizada a
expedição militar para os Campos de Guarapuava.
Para dar continuidade às ações que determinariam o sucesso da expedição
militar, destinou-se o dinheiro vindo da arrecadação de tributos sobre animais enviados
para Sorocaba, em cujo Registro se cobrava o imposto sobre as tropas de muares que
vinham do Sul.
Criou-se, em São Paulo, uma Junta de Direção para Expedição, com poderes
de determinar ao Regimento de Milícias de Curitiba que organizasse uma tropa de 200
soldados. As autoridades locais foram encarregadas de ordenar aos fazendeiros dos
Campos de Curitiba e Campos Gerais a concorrerem com escravos, gado e
mantimentos. Entre os vários fazendeiros, destacaram-se os senhores José Felix e
Manoel José de Araujo, avô do Antonio de Sá e Camargo - Visconde de Guarapuava.
José Felix, proprietário de fazenda na margem direita do Yapó, fez-se presente
em todas as solicitações do comandante da expedição, Diogo Pinto de Azevedo
Portugal. Depois da abertura do caminho, a expedição seguiu para os Campos de
Guarapuava. Esse fazendeiro, mais uma vez, fez uma oferta de 50 alqueires de feijão e
50 bestas arreadas para o transporte do trem real. O comandante informou aos seus
superiores a ajuda desse senhor para com a expedição, desde o início da trajetória da
Real Expedição.
72
Quando o comandante fez a solicitação, Manoel José de Araujo e seus
familiares colaboraram com uma grande quantidade de sementes de milho, alguns
sacos de farinha, 20 bois e 6 vacas, e mais 2 escravos. Isso rendeu mais tarde, para a
família, uma quantidade expressiva de terras nos Campos de Guarapuava.
Esses homens compartilhavam das mesmas preocupações com a segurança
dos caminhos que tinham que percorrer para dar conta de seus negócios, e até mesmo
com a segurança da própria moradia. Articulavam-se entre si, com uma ampla fonte de
favores, feitos ou recebidos, mediante os quais passavam informações e trocas,
reciprocidades e proteções. Ajudar para o bom andamento da Real Expedição só traria
lucros para os fazendeiros.
O comandante da expedição, Coronel Diogo Pinto de Azevedo Portugal, em
junho de 1810, juntamente com seus comandados e as famílias que acompanharam a
expedição, concretizou parte dos seus objetivos tomando posse dos Campos de
Guarapuava. Os homens da expedição foram responsáveis pela abertura do caminho e
defesa em relação aos ataques das comunidades tribais. Entretanto, a ocupação
definitiva dos Campos de Guarapuava somente foi efetivada pelos fazendeiros dos
Campos de Curitiba e Campos Gerais, que há muito tempo desejavam alcançar essa
localidade para ampliar suas fazendas de criar.
A presença de moradores efetivos seria para o governo uma estratégia para ter
o domínio da região. A ordem régia determinava a distribuição de sesmarias na
localidade para os indivíduos que se dispusessem a povoar a região, pois existia um
espaço geográfico imenso a ser ocupado. Matas virgens, capoeiras, campos de criar,
terras férteis e bons pastos existiam em quantidade abundante. Faltavam pessoas para
desbravá-los, conquistá-los e possuí-los.
O relato deixado pelo capitão Antonio da Rocha Loures dá a noção do
tamanho das sesmarias que foram doadas nos sertões de Guarapuava: “Sobre a
repartição dos terrenos desta conquista tenho a dizer que recebendo eu no ano de 1818
73
uma ordem para prescrever a oito sesmeiros dos quais dois não procuraram. A seguir
sua diligência concede a cada um deles légua e meia em quadra... 18”.
Desde a concessão das sesmarias, no início do século XIX, na região dos
Campos de Guarapuava, os sesmeiros recebiam a terra através de uma determinação
do governo colonial, e os posseiros tomavam posse das terras sem concessão real, pois,
no imenso território “desocupado”, espaço era o que não faltava. Desse modo, foram
delineando e definindo a estrutura fundiária do terceiro planalto paranaense.
A Freguesia de Nossa Senhora do Belém, localidade onde se desenvolveu
parte importante da história do Paraná foi constituída em razão de uma determinação
real. A Carta Régia de 1809, de D. João VI, informava que depois da ocupação dos
Campos de Guarapuava, deveria ser fundada uma povoação, na região.
O desentendimento do comandante da Real Expedição para a ocupação dos
campos de Guarapuava, Diogo Pinto de Azevedo Portugal, com o padre Antonio das
Chagas Lima, adiou a ordem real por um período de nove anos. A fundação de uma
povoação efetiva somente aconteceu em 1819, através das articulações e
argumentações do padre Chagas para convencer os representantes da Junta Real,
encarregados pelas decisões a respeito da Real Expedição, que o melhor local para a
fundação da Freguesia não era o escolhido pelo comandante da Real Expedição, no
local chamado de Pontão das Estacadas, no Campo Real. O padre Chagas defendeu
que a localidade ideal para a fundação da nova Freguesia era a planície localizada
entre os rios Coutinho e Jordão (figura 9).
Para Eurico Branco RIBEIRO (1922. p.180),
ai havia água em profusão; a disposição do terreno era perfeitamente compatível com o
futuro desenvolvimento da povoação; nas redondezas havia capões para o fornecimento de
lenha; pouco distante à margem do Jordão, abundavam madeiras de lei, vegetando em um
solo fértil, apto para a agricultura.
18
LOURES, A da R. Carta ao presidente da Província de São Paulo. Guarapuava, 8 mar,
1825. Arquivo Estado de São Paulo.
74
FIGURA 9 – MAPA DOS CAMPOS DE GUARAPUAVA.
FONTE – Acervo do Arquivo do Estado de São Paulo
75
Foi nessa localidade que o padre Chagas e o comandante interino da Real
Expedição, Antônio da Rocha Loures, e demais pessoas que habitavam Atalaia
demarcaram, no dia 9 de dezembro de 1819, os primeiros fundamentos para a
construção da Freguesia e da Igreja de Nossa Senhora do Belém, hoje cidade de
Guarapuava.
O documento redigido pelo padre Chagas em 1819 determinava as normas
para a nova povoação, seguindo as orientações da Carta Régia, de 1809, denominado
de o Formal da Criação da Povoação e Freguesia de Nossa Senhora do Belém, nos
Campos de Guarapuava19.
A chegada dos familiares de Antonio de Sá e Camargo aconteceu antes da
fundação da Freguesia. Os familiares seguiram para os Campos de Guarapuava, com a
finalidade de efetivar a posse das sesmarias que receberam em troca da ajuda prestada
à Real Expedição que ocupou esses campos. Uma petição do Alferes Manuel Mendes
de Araujo, tio de Antonio de Sá e Camargo, ao comandante interino da expedição,
Antonio da Rocha Loures, solicitando a demarcação da sesmaria que tinha recebido na
região, revela a presença da família na região,
Senhor tenente comandante da conquista de Guarapuava. Diz o Alferes Manuel Mendes de
Araujo que trazendo ele suplicante uma porção de gado vacum e animais cavalares com que
saiu nestes Campos de Guarapuava a primeiro de dezembro de 1818 VM foi servido em
virtude das ordens que tinha consignar lhe para estabelecimento de sua fazenda légua e meia
em quadra de terreno, nos campos que se acha entre o ribeirão dos porcos e os campos
chamados da sepultura grande com a condição de tirar depois a competente sesmaria e
porque ora o suplicante agora quer seguir esta diligencia. Pede a vossa mercê seja servido
mandar-lhe passar suas confrontações para poder requerer onde compete a dita sesmaria e
recebera merce. Como pede Quartel de Belém em Guarapuava trinta de novembro de 1821,
Loures20.
19
Como deveriam ser construídas as casas; solicitação para reservar campos e matas em
comum para a população; informações detalhadas para preservar a mata nativa, principalmente a de
Araucária; como deveria ser a conduta para com os índios; solicitação à Câmara de Castro, à qual a
nova Freguesia estava administrativa e judicialmente atrelada, de abertura do caminho pelo campo do
Cupim, para diminuir a distância da comunicação com as outras localidades. CORREIA, L,
OLIVERO, M. F. Guarapuava. 2. ed. Curitiba: Olivero, 1928.
20
ARAUJO, M. M. Pedido Sesmaria pelo Alferes Manuel Mendes de Araujo.
Guarapuava. Tabelionato de Notas, Guarapuava. 16 nov., 1837 fls 41-42.
76
Como a sesmaria de Antonio Joaquim de Camargo, pai de Antonio de Sá e
Camargo, não constava no mapa organizado pelo padre Chagas e pelo comandante, foi
enviada correspondência para saber a seu respeito. Posteriormente, ele recebeu sua
sesmaria na localidade do Pinhão, onde organizou a fazenda de criar Camargos, ou
Boa Cria que, a partir de 1828 passou a ser gerenciada pelo seu filho primogênito.
Segundo o mapa elaborado pelo padre Chagas, a distribuição foi a seguinte:
1. Freguesia do Belém e do seu patrimônio.
2. Aldeia da Atalaia, terra aplicada aos índios.
3. Pequenas partes de terras aplicadas aos portugueses pobres.
4. Sesmaria do vigário. (Francisco das Chagas Lima)
5. Abarracamento do campo real demolido.
Campos de criar animais aplicados:
1. Ao capitão Francisco Teixeira de Azevedo (genro de Manoel Gonçalves
Guimarães – Assentista da Expedição).
2. A Benedito Aires Araujo.
3. A Manoel Mendes Xavier.
4. A Manoel José de Lima.
5. Ao Alferes Domingos Ignácio de Araújo (tio de Antônio de Sá e
Camargo).
6. A Francisco de Siqueira Côrtes. (Residente na Palmeira).
7. A Manoel Mendes de Sampaio.
8. Ao Alferes Manoel Mendes de Araújo. (tio de Antônio de Sá e Camargo).
9. Ao Tenente Manoel José de Araújo. (avô de Antônio de Sá e Camargo).
10. A José Gonçalves de Almeida.
11. A João Francisco Pinto.
12. A Francisco João Batista.
13. Ao Ten. Comandante Antonio da Rocha Loures.
14. A João Mendes de Araújo.(Figura 10)
Os vários textos que discutem a ocupação e povoação dos Campos de
Guarapuava reproduzem a linguagem dos relatos deixados pelos componentes da Real
77
Expedição, entre esses, os escritos dos Comandantes Diogo Pinto e Antônio da Rocha
Loures e do padre Chagas21.
Francisco das Chagas Lima, citado por Artur Martins FRANCO (1943, p.264265), deixa as seguintes informações referentes aos moradores que fixaram sua
residência nos Campos de Guarapuava:
os moradores pobres, que dos Campos-Gerais de Curitiba se passarão a Guarapuava, com
toda a sua família; e estabelecerão seus domicílios nas pequenas porções de terrenos, que
lhes foram concedidos, em virtude da Carta Regia,... neste mesmo sentido se fizeram úteis ao
Publico, porque fundamentarão o aumento da População Portuguesa em Guarapuava; e úteis
a si mesmos, porque em breves anos quais todos chegarão a ha melhor fortuna.
Porem os creadores de gados, que tendo seus domicílios nos mesmos Campos-Gerais de
Curitiba um ou dois meses em cada ano, se para si fizeram alguma utilidades; ao Publico
muito pouco tem feito.
Porque depois de haverem requerido mui amplas assinaturas, e consignações de terrenos,
para estabelecimento de suas Fazendas, e serem-lhes aqueles terrenos concedidos, bem
depressa mudarão de sistema; por que trazendo primeiramente, por anos, seus animais em
montões, ou dispersos pelos contornos desta Povoação, prejudicando as criações e lavouras
dos vizinhos...
Porquanto havendo presentemente em Guarapuava quatro mil e tantos animais dos
portugueses,
não há em Guarapuava de Portugueses se não cem pessoas pouco mais ou menos, todas
assistentes ou nesta Freguesia, ou nas suas circunvizinhanças...
21
Para Azevedo Macedo,... se completou em menos de três meses o número de 200
soldados selecionados, componentes do Corpo de Cavalaria da Expedição... Também nesses poucos
meses se enfileiram para a Expedição, em número suficiente operários livres com suas famílias e seus
animais...
De perto e de longe famílias abastadas, algumas grandes, outras pequenas, se apresentam a
cavalo, com seus camaradas e seus escravos, e com suas tropas carregadas de bagagem, aderindo à
Expedição com o propósito de ir estabelecer-se lá nos Campos de Guarapuava. E famílias operárias,
para trabalhar na Expedição e fazer jus aos prometidos lotes de terras. Entre os operários, alguns
portugueses ainda não radicados em Curitiba. E famílias de aventureiros, mineradores fanáticos, lá se
vão à cata de ouro e outros minerais... Indo com a Expedição, todos se dispunham a prestar serviços
durante a viagem, sob as ordens do comandante...
Irão mais de 200 homens só da força armada e mais a multidão de paisanos. Com as mulheres
e crianças e a escravaria, bem mais de 300 pessoas, ao todo. Fazem parte da Expedição dois sacerdotes
católicos que hão de vir de São Paulo (MACEDO, F. R A. Conquista pacífica de Guarapuava.
Curitiba: Fundação Cultural, 1995, p.117-118).
Para Alcioly T. Gruber de Abreu, inicialmente o efetivo da população constitui-se de 300
pessoas, aproximadamente; 200 eram militares e os restantes eram colonos e escravos, todos
componentes da Real Expedição e conquista dos campos de Guarapuava (ABREU, A . T. G. A posse
e o uso da terra: modernização agropecuária de Guarapuava. Curitiba: BPP/SECE, 1986, p.118-119).
78
FIGURA 10 - MAPA DA DIVISÃO DA SESMARIA PELO PADRE CHAGAS –
1821.
FONTE - Acervo do Arquivo do Estado de São Paulo.
79
O padre Chagas deixa transparecer, no seu discurso, que a comunidade fora
constituída por pessoas pobres, escravos, degredados e criadores de gado pertencentes
à oligarquia dos Campos Gerais e de Curitiba.
Na busca de indícios para saber a respeito dessas pessoas, procurou-se realizar
uma leitura mais específica para saber a quem o padre estava-se referindo. Parte da
resposta pode ser evidenciada na lista nominativa22, elaborada pelo comandante da
Real Expedição.
Ao trabalhar com os censos demográficos ou listas nominativas, devem-se
tomar certos cuidados com as informações neles contidas, e ter sempre outras fontes
para auxiliar na análise. Para Valter MARTINS (1995, p.26), “a presença de erros e
distorções em documentos desse tipo não causam nenhuma surpresa... apesar da
‘imperfeição’ dos censos, seu estudo não é apenas válido, mas fundamental para novos
progressos na história do período em questão”.
Alzira Lobo de Arruda CAMPOS (2003, p.30), ao comentar sobre os censos
demográficos de São Paulo afirma que,
...realizados intermitentemente (ou assim conservados), a partir de 1765, que registram
nome, naturalidade, idade, sexo, cor, estado civil, situação jurídica, e, em alguns anos,
profissão e renda dos moradores de São Paulo. A organização das listas em “fogos” –
pessoas em geral vivendo sob o mesmo teto. ...É possível conhecer o número de pessoas
presentes em cada domicílio, encabeçado pela figura do chefe (homem, por regra; mulher,
por exceção). Filhos, parentes (em linha reta ou colaterais), agregados e escravos,
compunham constelações de notável diversidade.
Na sua crítica a essa tipologia de fonte, a autora evidencia os erros cometidos
pelos recenseadores, erros como contagem de pessoas e até registro de morto entre
vivos.
22
Valter Martins informa, no seu trabalho a respeito das listas nominativas, censos ou maços
de população da Capitania de São Paulo, que a “a criação dos censos foi um reflexo das preocupações
de fundo militar, da necessidade das autoridades coloniais saberem o número de habitantes da
capitania, principalmente dos homens aptos a pegarem em armas” (MARTINS, V. Nem senhores,
nem escravos: os pequenos agricultores em Campinas na primeira metade do século XIX. Curitiba,
1995. Dissertação (Mestrado) UFPR, Orientador: Prof. Dr. Carlos Roberto Antunes dos Santos).
80
Ressalta que se deve ter atenção dobrada e uma atitude crítica ao analisar uma
documentação desse gênero.
A lista nominativa de 183223, elaborada pelo Capitão Comandante Antônio da
Rocha Loures, seguiu uma unidade de organização por “fogo”. Cada fogo representava
uma família, constituída pelo patriarca ou matriarca, juntamente relacionados aos seus
escravos e agregados. O conteúdo da lista foi encabeçado com as informações do
comandante da Freguesia e de seus familiares, na seqüência, as informações dos
destacados: alferes, sargento, fiel do armazém, escrivão, tesoureiro, cabo, os
empregados e os degredados enviados para a região. Dando continuidade, aparecem os
fogos com a descrição dos nomes das pessoas que habitavam a Freguesia de Nossa
Senhora do Belém, o estado civil, a cor, a idade, a profissão, o número de filhos, o
número de escravos, o número de agregados.
Justifica-se a análise específica da lista de 1832 porque o indivíduo Antônio de
Sá e Camargo apareceu como morador efetivo da Freguesia de Nossa Senhora do
Belém24. Através desses documentos, percebe-se, na comunidade, a diversidade dos
indivíduos que faziam parte do universo em que Antonio de Sá e Camargo transitava.
Dessa lista constavam ainda 83 famílias, em 10 das quais eram mulheres que
chefiavam o núcleo familiar, cuja soma totalizava 301 pessoas; faziam parte 18
soldados destacados; 24 pessoas nominadas como agregadas; 51 escravos; 11
degredados, entre eles 2 mulheres. A soma total de moradores que habitavam na
Freguesia de Belém, no ano de 1832, era de 405 indivíduos. A lista nominativa
informava também a ocupação de cada indivíduo, na Freguesia de Nossa Senhora do
Belém.
Comandante
01
Destacados
18
Empregados - Real Expedição
02
Lavrador
20
23
LOURES, A da R. Lista nominativa 1832 Guarapuava, 2 abr. de 1832, Arquivo do
Estado de São Paulo.
24
Outra lista que apresenta as mesmas características é a do ano de 1833. LOURES, A da R.
Lista nominativa 1833. Guarapuava, jan. 1833, Arquivo do Estado de São Paulo.
81
Jornaleiro
11
Negociante
09
Sapateiro
01
Estancieiro
22
Lombilheiro
01
Carpinteiro
02
Entre os 22 “estancieiros” de gado, identificou-se que 10 podem ser
qualificados de flutuantes, porque constam como moradores da Freguesia de Nossa
Senhora do Belém e também dos Campos Gerais. A dupla moradia já tinha sido
mencionada pelo padre Chagas, quando, em 1821, alertava as autoridades da Província
de São Paulo que muitos dos senhores que realizaram pedido de sesmaria na região de
Guarapuava, ao Príncipe Regente, somente enviaram gado e escravos para cuidarem
dos rebanhos e passavam somente um período pequeno do seu tempo na fazenda de
criar.
Os trabalhos que tratam da ocupação dos sertões do Brasil, no período colonial
e meados do Brasil Imperial25, informam que a maioria dos proprietários ficava ausente
das sesmarias recebidas. Essa constatação passou a ser generalizada na história da
ocupação. Mas, no caso de Guarapuava, essa realidade apresentou um diferencial, pois
a maioria dos senhores efetivou moradia ou deixou um parente próximo em seu lugar,
na sesmaria que recebeu do governo colonial.
25
LIMA, C. C. Pequena história territorial do Brasil: sesmaria e terras devolutas. 2 ed.
Porto Alegre: Sulina, 1954. PRADO JUNIOR, C. Formação do Brasil Contemporâneo. 8 ed. São
Paulo: Brasiliense, 1965. VIANA, O. Populações meridionais do Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1973. NOVAIS, F. Condições da privacidade na colônia. In: Laura de Mello e Souza (org.). História
da vida privada no Brasil. Cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo: Cia. Letras,
1997.
82
Muitos autores que discutem a temática da ocupação, nos campos do Paraná26,
construíram seus discursos pautados nas informações generalizadas com relação à
ocupação.
Essas informações levantaram questionamentos, tais como: Se a ausência dos
povoadores era constante, como se efetivaram as freguesias? Ou, mais
especificamente, como se efetivou a Freguesia de Nossa Senhora de Belém?
Deve-se inverter a escala de observação, e a partir do particular procurar um
número maior de informações sobre a ocupação na região dos Campos de Guarapuava.
O fato de olhar bem de perto, como as pessoas se moviam, poderá ajudar a esclarecer
esses questionamentos e a perceber configurações totalmente diferentes. Ao trabalhar
com a diferença de escala, Simona CERUTTI (1998, p.196) afirma: “implicam
informações diferentes, possibilidades diversas de interpretação e de ação”.
Ao deparar-se com as informações contidas nas listas nominativas, procurouse evidenciar vestígios que apontassem algumas diferenças dos moradores dos Campos
de Guarapuava em relação a questões que até então seguiam um padrão generalizado.
A necessidade de interrogar essa documentação, para obter respostas, revelou novas
perguntas, novos modos de experienciar a leitura dessa fonte, criando novas
possibilidades de empreender sondagens antes não pensadas.
Voltou-se a atenção para os seguintes moradores da Freguesia de Nossa
Senhora do Belém: o Capitão Domingos Ignacio de Araujo, o senhor Antônio Joaquim
26
“Nesse mesmo ano (1818) o governo Imperial mandou demarcar 3600 alqueires de terra
para servidão dos moradores da Freguesia de N. S. de Belém, cuja notícia da criação havia tornado
freqüentes os pedidos de sesmarias e aumentado o número de posses pela ocupação. Uns poucos
pretendentes enviaram capatazes e gado, porém a maioria visava o aproveitamento futuro,
prejudicando o desenvolvimento da região” (ABREU, 1986, p.60).
“A expedição militar tinha sido apenas a vanguarda da conquista daqueles campos. O grosso
realmente estava na multidão de fazendeiros dos Campos Gerais, à procura de novas terras de campo
limpo para a ampliação de suas criações de gado. Em 1821, segundo informações do Padre Chagas, só
estavam ocupadas cinqüenta léguas quadradas dos campos que mediam, no seu total, cento e trinta
léguas quadradas. Moradores pobres dos Campos Gerais se mudaram para Guarapuava, com toda a
sua família, e receberam pequenas porções de terras ao redor da vila. Mas os grandes fazendeiros dos
Campos Gerais obtiveram grandes extensões de campo, levaram “seus animais aos montões”, mas
continuaram com suas residências nos Campos Gerais, passando por ano uns dois meses em
Guarapuava, para verificar suas criações soltas na imensa campanha” onde não fizeram mais outro
benefício algum, nem currais nem lavouras, nem casa de vivenda” (PILATTI BALHANA; PINHEIRO
MACHADO; WESPHALEN; 1969, p.83).
83
de Camargo e o Alferes Manoel Mendes de Araujo. Essa escolha pode ser justificada
por dois motivos: primeiramente, porque esses senhores são parentes de Antonio de Sá
e Camargo e, também, porque estavam entre os 10 estancieiros que constam na lista
nominativa de 1832, classificados, por meio da pesquisa, como moradores flutuantes.
O Capitão Domingos Ignacio de Araujo, tio do futuro Visconde de
Guarapuava, possuía uma residência nos Campos Gerais e uma fazenda nos Campos
de Guarapuava. Dono dos escravos: “Joaquim, solteiro, preto com idade de 20 anos;
Vicente, solteiro, preto com idade de 16 anos, Escolástica, solteira, preta 12 anos”
(LOURES, 1832). Além da presença dos escravos na fazenda de Domingos Ignacio de
Araújo, dos Campos de Guarapuava, seu filho, Francisco Ignacio de Araujo Pimpão,
aparece como morador da localidade e sua presença é evidenciada na documentação da
Câmara: por volta de 1853, ele apareceu como candidato27 na eleição de Juiz de Paz da
Capela Curada de Palmas.
Antônio Joaquim de Camargo, pai de Antonio de Sá e Camargo, “estancieiro”,
com residência nos Campos Gerais, dono da fazenda Conceição, na Palmeira e de uma
fazenda nos Campos de Guarapuava, era dono dos escravos: Joaquim, solteiro, preto,
29 anos e José, solteiro, preto, 18 anos. Além dos escravos, moravam na fazenda seus
dois filhos, Antônio de Sá e Camargo, solteiro, branco, 23 anos e Francisco, solteiro,
branco, 18 anos.
27
“... numero de votos que obtiverão para Juizes de Paz desta Capella, e formando das taes
relaçoens uma geral desta extra os nomes dos cidadãos seguintes Antonio de Oliveira Ribas,
fazendeiro com quarenta e sete votos, Estevão Ribeiro do Nascimento, fazendeiro com quarenta votos,
João Carneiro Marcondes, fazendeiro com trinta e nove votos, Francisco Ignacio de Araujo Pimpão,
fazendeiro, com trinta e nove votos... (CÂMARA MUNICIPAL DE GUARAPUAVA. Cópia da ata
da sessão realizada 2 jun. 1853. Arquivo do Estado de São Paulo).
84
A descrição da sesmaria, realizada por Antonio Sá e Camargo, para
revalidação por determinação da Lei de Terras 185028, dá a noção da propriedade,
Fazenda Boa Cria (Figura 11), que tinha em sociedade com o pai. Essa descrição está
documentada no registro nº 31, de 6 de outubro de 1855 - Registro do Vigário – que se
encontra no Arquivo da Catedral Nossa Senhora do Belém :
Começa de um marco de pedra junto ao capão da casa de morada de Manoel Ribeiro
Coitinho, em rumo do norte dividindo 1º com o mesmo Coitinho, depois com os herdeiros do
finado João Corr.º da Assumpção a tocar em um galho do rio Pinhãozinho e deste abaixo até
entrar no rio Jordão. Do marco de pedra que a cima indiquei em rumo do oeste dividindo 1º
com terrenos pertencentes só a abaixo assignado e depois com os de José de Siqueira Cortes,
toca em um marco de pau que existe muito abaixo da casa do mesmo Siqueira, e passa unido
ao capão Miranda e encosta no lageado grande (?) de Manoel Ferreira dos Santos e deste
abaixo dividindo com D. Balbina Francisca de Siqueira até a barra do ribeirão cujas vertentes
nascem nas proximidades da fazenda de denominada Sobradinho de Theodoro Ferreira
Maciel. Da barra do ribeirão citado seguindo dele acima dividindo-se com Theodoro Ferreira
Maciel até a cabeceira de um banhado que faz socar o monjolo do referido...,desta cabeceira
vai bater na ponta de um valo da mesma fazenda, e dali um banhado, a esquerda do qual fica
o potreiro do burro dessa mesma fazenda a desaguar no rio Jordão, e deste acima até a barra
do rio Pinhãozinho...29
28
A Legislação fundiária, enquanto objeto de estudo, revela o pensar dos grupos dominantes
e sua aplicação pelos órgãos afins, como instrumento do poder, para mediar os problemas das
comunidades, atuando no sentido de modificar situações históricas. Na segunda metade do século
XIX, o “Conselho de Estado” elaborou a legislação agrária genérica da história brasileira, a “Lei de
Terras de 1850”, que tinha por objetivo normatizar a política de apropriação territorial. A historiadora
Maria do Carmo Sampaio Dicreddo, no seu livro “Terras e Índios: a propriedade da terra no vale do
Paranapanema”, analisa a problemática em torno da Lei de Terras de 1850.
29
ANTONIO DE SÁ E CAMARGO. Declaração das terras possuídas. Guarapuava, 6 out.
1855. Registro n.31. Arquivo da Catedral Nossa Senhora de Belém.
85
FIGURA 11 - MAPA DO MUNICÍPIO DE GUARAPUAVA - FAZENDA BOA
CRIA
FONTE - CORREIA, L, OLIVERO, M. F. Guarapuava. 2. ed. Curitiba: Olivero, 1928.
86
A declaração sob o nº 238, de 19 de maio de 185630, descreve o terreno
localizado nas margens do rio Ivaí, divisa com a Colônia Tereza, pertencente a
Antonio de Sá e Camargo em sociedade com Agostinho José de Almeida Queiros,
Manoel Baptista Bello, Francisco José de Bitencourt, Francisco da Rocha Loures e
Francisco José dos Santos.
O Alferes Manoel Mendes de Araujo, tio de Antonio de Sá e Camargo,
estancieiro, residente nos Campos Gerais, também tinha uma fazenda nos Campos de
Guarapuava e era dono dos escravos: Francisco, casado preto, 35; Francisco, solteiro,
preto, 30; Manoel, solteiro, mulato, 25 anos; e Paulo, solteiro, preto, 16 anos. Sua
assinatura consta em um abaixo-assinado, de 1841, no qual ele e outros representantes
da Freguesia de Nossa Senhora de Belém solicitam melhoria do caminho de acesso a
essa localidade, ao presidente da Província de São Paulo.
Outras informações da presença da parentela e da efetivação de membros
ligados à família na região de Guarapuava foram evidenciadas na documentação de
compra e venda, localizada no Tabelionato de Notas. Depois da morte de Ana Maria,
esposa de Manoel José de Araújo, seus filhos negociaram entre si as partes que foram
deixadas por herança.
“Dissemos nos abaixo assinados Domingos Ignacio de Araujo e Josefa
Joaquina França que é de nossa livre vontade vendermos ao Alferes Manoel Mendes
de Araujo uma parte de campo que por falecimento de minha mãe nos tocaram por
herança...seis de janeiro de mil oitocentos e vinte e três...31”. Esse tipo de negócio
permitiu que as terras permanecessem na família.
A observação detalhada desses três fazendeiros resultou no seguinte
entendimento: para atender às determinações do governo colonial no que dizia respeito
ao sistema de sesmaria, era necessária a permanência dos proprietários nas terras
30
QUEIROZ, Agostinho José de Almeida e outros. Declaração das terras possuídas.
Guarapuava, 19 mai. 1856, Registro n.238. Arquivo da Catedral Nossa Senhora de Belém.
31
ABREU, Feliciano Francisco de. Carta de venda do Capitão Domingos Ignácio de
Araújo e esposa ao Alferes Manoel Mendes de Araújo. Freguesia de Belém, 16 nov. 1837, p.42-43
livro 03, Tabelionato de Notas de Guarapuava.
87
recebidas para ocupação e cultivo, assim, esses lançaram mão da estratégia de deixar,
nelas, um membro da família e também escravos. Essa observação só foi possível
porque, ao questionar a documentação, procurou-se desenvolver uma sondagem ainda
não experienciada com essa tipologia de fonte, qual seja a de perceber, por meio de
uma leitura estratificada da realidade social ou detalhada, como os indivíduos já
mencionados organizaram estratégias para permanecer como donos das terras que
receberam na Freguesia de Nossa Senhora de Belém.
Para efetivar a ocupação das terras recebidas, seus donos abriram picadas nas
matas virgens, rasgaram as plantas espinhosas e se rasgaram nelas, enfrentaram
doenças e os perigos do sertão, tendo sido o maior deles o enfrentamento com os
índios Kaingangue. À medida que os campos naturais das vastas planícies do terceiro
planalto foram transformados em fazendas de criar, desencadearam-se vários conflitos
entre índios e fazendeiros. Esses conflitos chegaram a assumir sérias proporções, pois
os índios passaram a atacar os moradores em suas casas, roças e também nos caminhos
de acesso às propriedades. Esses acontecimentos levaram os fazendeiros a buscar
auxílio com as autoridades provincial e imperial, para a segurança da Vila e das
fazendas.
Os moradores dos Campos de Guarapuava alcançaram bons pastos e novas
perspectivas de vida. Depararam com muitas terras e realizaram nelas os devidos atos
preparatórios para plantar e também para criar o gado. Arrancharam em habitações
precárias e, a olho, delimitaram seus territórios. Nesse trabalho de demarcação,
ergueram cruzes e cravaram ferros em troncos de árvores, e com a mão escrava
fizeram construir muros de pedra, taipas, para delimitar suas fazendas, de uma forma
simbólica, porque um território tão vasto era significativamente difícil de ser
delimitado. Localizaram a água para seu consumo, plantaram suas roças. Com o passar
do tempo, construíram casas com mais conforto e segurança, monjolos e demais
benfeitorias necessárias para a vida e a atividade pastoril. Dessa maneira,
institucionalizaram-se como senhores das terras. Cada família cultivava e criava à
proporção de seus braços, escravos e riquezas. A maior parte da ocupação dos Campos
de Guarapuava foi realizada por grupos familiares que vieram de São Paulo, de
88
Curitiba, dos Campos Gerais e Palmeira, tendo sido, sem dúvida, um movimento
coletivo, visto que dele participaram conjuntos de famílias, das quais, ainda hoje,
encontram-se descendentes na região. Desses, alguns mantêm antigas partes das terras
recebidas pelos seus ancestrais: os Sá e Camargo, Marcondes, Martins, Ribas, Araújo,
França, Rocha Loures, entre outros. Outros ingressaram em novas profissões, advindas
a partir da diversidade e da modernização da sociedade local32.
A fixação dos indivíduos nas lidas do pastoreio de animais, nos Campos de
Guarapuava, não significou, de forma alguma, vida sedentária. O aumento da
aquisição de rebanhos, pelos mercados consumidores, fez com que os fazendeiros se
transformassem em criadores e tropeiros, ao mesmo tempo, abrindo os caminhos para
o Sul do Brasil, na busca de mais gado e muares para atender à demanda da feira de
Sorocaba e ao próprio mercado interno, como a feira de cavalo33 realizada na Vila.
Nas fazendas, os moradores dos Campos de Guarapuava viviam apenas partes
das suas vidas, uma vez que, em outros muitos momentos das suas vidas, estavam em
viagem ou comprando gado na Província do Rio Grande do Sul, ou negociando a tropa
de muares ou o rebanho de gado, na feira de Sorocaba. As sedes localizavam-se onde
32
A crise do sistema tradicional campeiro, em Guarapuava, foi ocasionada por vários
fatores, destacando-se: a falta de capital financeiro; a debilidade do processo de criação local,
ocasionada pela falta de novas raças para o crescimento dos rebanhos; o alto preço do sal, a
dificuldade de transporte do gado que ainda continuava sendo realizado de forma rudimentar; o
péssimo estado de conservação dos caminhos; o isolamento da região por falta de boas estradas e via
férrea.
A crise da pecuária fez com que outros empreendimentos se destacassem, o mercado da
erva-mate, da extração da madeira, são alguns dos exemplos. Mas, somente a partir das décadas de 40
e 50, com a mudança do uso e posse da terra, a agropecuária apresentou sinais de mudanças. O capital
para os investimentos passou a ser subsidiado pelo governo e a aplicação de novas tecnologias
favoreceu o crescimento das lavouras. (ABREU, 1986, p.226) informa a respeito da modernização da
sociedade local: “A presença de novos elementos no quadro da sociedade guarapuavana, a facilidade
de obtenção de créditos, a mudança das relações de trabalho, a graduação de filhos de fazendeiros
tradicionais em agronomia e veterinária, e outras variáveis, ocasionaram a mudança de mentalidade na
sociedade tradicional campeira, da qual alguns membros, que ainda conservavam suas terras, passaram
a ser agricultores, adotando também as modernas técnicas de plantio e aplicação de insumos. Outros,
mesmo convencidos de que a agricultura é mais rendosa que a pecuária nos campos da região, à ela
não se dedicaram, preferindo arrendar suas terras e explorar a criação de gado em lugares de clima
mais quente”.
33
Luis Caetano DE ALMEIDA (1944, p.157) informa a respeito da criação de cavalos nos
Campos de Guarapuava, “Em 1814, passaram 7504 mulas e 5330 cavalos (informação de A . de
Taunay). Em tão grande número de eqüinos é preciso lembrar a influência de Guarapuava, então
recém-fundada, e cujos cavalos (guarapuavanos) tiveram quase tanto valor como os muares do sul”.
89
foram construídas as casas de moradas, as senzalas, os monjolos e os currais. Pelas
descrições deixadas por esses fazendeiros, pode-se ter noção do seu modo de viver e
do seu mundo.
Moveis ... um colar de ouro(32$000), ...um lirante com seis oitavas (24$000), ...um sinto de
prata (8$400), ...uma faca com trinta oitavas de prata (8$400), ...uma serrilha de prata
(7$000), ...um par de boçais de prata (4$200). Uma espingarda troxada em bom uso..., uma
inchó chato ...Bens de raizes – ...uma morada de casa no rocio desta vila (300$00), um
campo da sepultura (3:500$00), um campo do faxinal (2:000$00), um potreiro denominado
do burro (900$000), a invernadinha (900$000), terras de plantas... (250$000) e mais os
rebanhos de gado e muares.34
Movéis, uma mesa grande, uma mesa pequena, três catres bons, dois ditos inferiores, um
banco grande, uma cadeira de pau, ... uma cuia pequena de cobre, um tacho de cobre, grande,
furado, dois caldeirões de ferro, duas cassarolas grandes de ferro, uma dita pequena, uma
chaleira de ferro, uma chocolateira. Imóveis, uma casa com quintal e mais benfeitorias,
piquete. Uma parte de campo denominado maracujá, com faxinais, logradouros, terras de
cultura, uma parte de terras além da serra de São João obtida por hora feita a casa do capitão
Antonio de França Loures, um sitio de mato compreendendo terras de agricultura,
Catanduvas e terras de portugueses, no lugar denominado Rio das Pedras – Covó. Ainda
consta a descrição dos rebanhos e de mais 4 escravos...35
O sertão do terceiro planalto paranaense ofereceu aos homens uma vida dura,
e de certa forma rudimentar, levando esses homens a ter um comportamento áspero em
todos os setores de suas vidas: eram homens duros, rudes, homens do sertão,
habituados à derrubada das matas, às lidas no campo, a domar as bestas na espora, a
derrubar o novilho ao chão para marcar com ferro em brasa a identidade do
proprietário no animal (figura 12 e 13 e anexo 6), a gerenciar os escravos, peões e
agregados no trabalho do dia-a-dia de uma fazenda de criar. A marca no animal tanto
servia para identificar o rebanho de cada proprietário, porque as propriedades não
eram devidamente delimitadas, como também representava o poder de cada
proprietário. Esses homens prosperaram com a criação e comercialização do gado,
formaram suas fazendas, aumentaram seus domínios tanto com relação à terra quanto
ao poder político local, provincial e imperial.
34
Autos do inventário de Manoel Mendes de Araújo. Guarapuava. Out. 1859. Cartório do
1ºVara civil.
35
Autos do inventário de Hermenegildo Alves de Araujo. Guarapuava. Abr. 1877. Cartório da
1ºVara civil.
90
FIGURA 12 – MARCA DE GADO DA FAZENDA RINCÃO COMPRIDO.
FONTE - CORREIA, L, OLIVERO, M. F. Guarapuava. 2. ed. Curitiba: Olivero, 1928.
FIGURA 13 – MARCA DE GADO DA FAZENDA BOA CRIA.
FONTE - CORREIA, L, OLIVERO, M. F. Guarapuava. 2. ed. Curitiba: Olivero, 1928.
91
Os notórios senhores paranaenses participaram da implantação do Estado
brasileiro, tendo como base do seu crescimento as terras recebidas por concessões pelo
governo. Desenvolveram suas atividades com base no trabalho escravo e na criação do
gado para atender ao mercado interno, originando, desse modo, uma organização
política eminentemente privatista e doméstica. A permanência dessa organização, ao
longo do século do XIX, pode ser explicada pela extensão territorial, pela rarefação da
população e pelas grandes distâncias que separavam o interior e a sede do governo, o
que impossibilitava o exercício do controle administrativo e político, que passou a ser
exercido, na maioria das vezes, pelo proprietário, o que aumentava o seu poder privado
e o arbítrio desses senhores.
Com relação à questão do patrimônio estatal e propriedade privada, o estudo
realizado por Maria Sylvia de Carvalho FRANCO (1983, p.122) demonstra como se
deu a fusão do público e do privado.
A carência quase completa de fundos públicos, nesse, nível, encontrou uma forma de
compensação que escapa de todo às medidas peculiares a uma ordem burocrática. A
superação do impasse gerado pelas expropriações das agências locais ocorre através do apelo
direto ao patrimônio particular do cidadão comum ou do próprio servidor público. Mesmo os
precários remendos de ruas, calçadas e pontes, em que se resumiram as realizações
municipais por mais de três quartos de século, ficaram várias vezes na dependência da boa
vontade dos habitantes da cidade .(p.119) ... Essa mistura entre a coisa pública e os negócios
privados fundamenta, sem dúvida, a extensão do controle pessoal a todo o patrimônio do
Estado. A passagem é rápida; o homem que sustenta com recursos particulares as realizações
próprias do governo está subjetivamente pronto para considerar como seu o conjunto de bens
públicos confiados à sua guarda. Por que não o faria? Por que não satisfaria aos próprios
objetivos com dinheiro do governo se, não raro, as dificuldades deste último eram resolvidas
com haveres seus, pessoais? Acaba por constituir-se de fato, nessas condições em que ficam
completamente fluidos os limites entre o que é patrimônio da Administração e o que é
propriedade do administrador, um fundo de “bens comuns” cujos valores, indivisos entre os
dois membros da associação formada, servem indistintamente ora a um, ora a outro.
O poder dos senhores esteve sempre relacionado às esferas pública e privada;
a apropriação dos cargos públicos e do seu monopólio estava diretamente ligada aos
seus interesses. Ao buscar detalhar a prática de exercer o poder público conjuntamente
com o poder privado, no universo que estamos propondo analisar, pode-se informar
que, desde a fundação da comunidade, essa prática fez-se presente, pelos comandantes
da Real Expedição, o padre Chagas e seus substitutos, os notórios senhores. Os
comandantes, os padres e os fazendeiros, no seu universo determinado, exerceram a
92
prática do poder ao gerenciar os cargos públicos, ao executar funções políticoadministrativas na Freguesia, depois Vila, buscando a ajuda da comunidade, ou
lançando mão de ajuda em dinheiro e escravos para a construção da igreja, da cadeia e
do quartel, para a abertura dos caminhos, para a organização da Guarda Nacional e
para a constituição da Câmara, entre outras questões que tinham que resolver na
comunidade. A documentação revelou essa prática e esclareceu também que as verbas
encaminhadas pelo governo provincial, muitas vezes, não eram suficientes para
concluir os trabalhos iniciados. Esses senhores, com interesses no término das
construções, ou dos reparos, ou na abertura dos caminhos, prestaram ajuda financeira.
Dessa maneira, a distinção entre o público e o privado, segundo o que ressaltou Maria
Sylvia de Carvalho FRANCO: “ficam fluidos os limites entre o que é patrimônio da
Administração e o que é propriedade do administrador”.
Os fazendeiros paranaenses conseguiram viver e manter a família patriarcal,
amparados nas relações hierárquicas, por meio do casamento, compadrio, negócios
com todos seus componentes, criando oligarquias para o domínio do poder público,
estadual e local. Os Sá e Camargo servem de exemplo, pois assumiram esferas do
poder no Paraná, anteriormente ao período provincial, até meados do século XX36.
As famílias que habitavam os Campos de Guarapuava se organizaram nas
fazendas com certa autonomia, pois a distância entre as fazendas e a Freguesia e da
Vila de Castro propiciava o isolamento. Em relação à distância do centro
administrativo, as dificuldades agravavam-se em situações de emergência, como
doenças, brigas, mortes, entre outras, e a população ficava desprovida da presença de
autoridades para resolver questões como as relacionadas. E o isolamento em relação à
36
. Antonio de Sá e Camargo fez parte da primeira legislatura de deputado provincial, em
1854-1855, e em 1864-1865 foi eleito novamente deputado, sendo designado, em 1865, para vicepresidente da Província. O irmão, José Antonio de Camargo e Araújo (padre), foi eleito nove vezes
deputado provincial, representando a região dos Campos Gerais. Jesuíno Marcondes de Oliveira e Sá,
primo e cunhado do Visconde de Guarapuava, filho e de José Caetano de Oliveira (Barão do Tibagi) e
Cherubina Rosa Marcondes de Sá, assumiu o poder da Província do Paraná cinco vezes, sendo o
último presidente da Província, na passagem para o período republicano. Afonso Alves de Camargo,
em 1908, fez parte do partido da coligação paranaense, foi eleito vice - presidente do Estado, nos
quatriênios de 1908 – 1912 e 1912 – 1916, e presidente do Estado, no quatriênio de 1916 – 1920, e de
1928 – 1932. Filho de Francisca de Paula França (sobrinha do Visconde de Guarapuava) e Pedro
Alves da Rocha Loures.
93
Província de São Paulo era muito mais agravante, pois para alcançá-la, eram
necessários longos dias de viagem. Segundo os historiadores paranaenses,
...encasteladas nos seus campos, as famílias fazendeiras criaram uma economia quase
autárquica, acentuaram suas relações patriarcais, lutavam sozinhas contra bugres que
invadiam suas terras e incendiavam seus paióis. Com o algodão que vinha da região de
Sorocaba e com a lã de seus próprios carneiros, em rodas de fiar e teares, manejados pelas
mulheres, fabricavam o pano de suas roupas.Com a madeira de seus capões, construíam suas
casas, suas mobílias, suas cercas, seus galpões. Com o ferro em barra armazenado,
reparavam seu instrumental de trabalho. Do couro de suas crias faziam os aperos de seus
cavalos, os arreios, lombilhos,... (BALHANA; MACHADO; WESTPHALEN; 1969, p.88).
Os indivíduos que formaram a povoação de Nossa Senhora de Belém, e
conviviam entre si, tinham histórias e experiências diferentes, tais como: comunidade
composta pela população indígena; degredados enviados para cumprirem penas na
região; escravos para cuidarem dos rebanhos de gado e muar e também dos serviços
domésticos; soldados para a defesa da Vila; jornaleiros para trabalharem na abertura
dos caminhos; carpinteiros para trabalharem na construção das casas; e os fazendeiros
criadores de gado e tropeiros. Essa comunidade organizou-se na vida cotidiana,
utilizando de múltiplas estratégias das normas sociais, pois no interior dessa
comunidade, incertezas, escolhas, conflitos, negociações, transações provisórias,
disputas, rixas foram experimentadas.
Pode-se dizer, contudo, que as relações dos moradores da Freguesia de Nossa
Senhora do Belém eram, também, de proximidade porque, devido à falta de segurança,
parentela, negócios, laços de amizade, escravidão e trabalho exigiam solidariedade.
Os moradores da Freguesia de Nossa Senhora de Belém, com interesses e
capacidades diferentes, transformaram-se num grupo e conseguiram conviver,
sentindo-se parte de uma mesma totalidade. Entende-se que o desenvolvimento das
relações dentro dessa comunidade somente foi possível porque o universo cultural lhes
forneceu normas, o que lhes possibilitou interagirem diante dos acontecimentos:
ataques dos índios; falta de autoridades na localidade, como juiz de paz, delegado;
conservação dos caminhos; falta de professores para as primeiras letras; elaboração e
execução do código de postura da Vila; construção do cemitério; ordenamento das
94
ruas; ordenamento dos terrenos para construção das casas na Vila; construção da igreja
e casa da Câmara; construção das fontes de água; comércio interno, entre outros.
Para Clifford GEERTZ (1978, p.228), estudar a cultura é conseguir perceber
por meio,
dos padrões culturais, amontoados de símbolos significativos, que o homem encontra sentido
nos acontecimentos através dos quais ele vive. O estudo da cultura, a totalidade acumulada
de tais padrões, é, portanto, o estudo da maquinaria que os indivíduos ou grupos de
indivíduos empregam para orientar a si mesmos num mundo que de outra forma seria
obscuro.
Para Roberto Da MATTA (1986, p.123), cultura é entendida como:
... um mapa, um receituário, um código através do qual as pessoas de um dado grupo
pensam, classificam, estudam e modificam o mundo e a si mesmas. É justamente porque
compartilham de parcelas importantes deste código (a cultura) que um conjunto de
indivíduos com interesses e capacidades distintas e até mesmo opostas transformam-se num
grupo e podem viver juntos sentindo-se parte de uma mesma totalidade. Podem, assim,
desenvolver relações entre si porque a cultura lhes fornece normas que dizem respeito aos
modos mais (ou menos) apropriados de comportamentos diante de certas situações.
As colocações desses autores com relação ao conceito de cultura para a
interpretação da vida social sugerem que, ao realizar uma leitura do social, deve-se
observar que o indivíduo segue regras, o que permite o entendimento de determinadas
situações dentro do grupo ou da comunidade, e também a ação particular de cada
indivíduo.
Compreender que “as regras que formam a cultura ou a cultura como regra”
(DA MATTA, 1986, p.124) auxiliam na observação de como se dá a interação do
individual e do coletivo no contexto vivido. As regras indicam parâmetros, mas isso
não exclui a possibilidade de sua atualização ou reelaboração. Para fazer parte de uma
determinada comunidade, deve-se ter conhecimento das regras que a orientam.
Para solucionar seus problemas, os indivíduos da Freguesia de Nossa Senhora
de Belém tiveram que lançar mão de estratégias individuais, familiares, comunitárias e
de suas interações, para provocar mudanças nas diversas situações que enfrentavam.
O fazendeiro Antônio de Sá e Camargo pode ser tomado como modelo de uma
sociedade particular em tempo determinado: o Brasil do século XIX, nos Campos de
95
Guarapuava, e que contribuiu, ora mais ora menos, para as mudanças ocorridas na
Freguesia de Nossa Senhora de Belém. Sua trajetória insere-se na história local e
regional, portanto, um homem que soube representar os papéis que lhe foram
atribuídos, determinados e conquistados, correspondendo, assim, a um modelo
coletivo valorizado. Mas, tornar-se um “ilustre paranaense” significava não apenas
estar de acordo com padrões estabelecidos, isto é, reproduzir as normas. Implicava
articulá-las e atualizá-las, pois “normas e regras gerais de conduta são traduzidas na
prática, elas são manipuladas em última instância pelos indivíduos em situações
particulares para servir a fins particulares” (VON VELSEN, 1967, p.136).
Antonio de Sá e Camargo, ao adentrar os sertões, foi, junto com seu grupo de
parentes e outros fazendeiros, manter a estrutura organizacional da sociedade, baseada
na hierarquia, atualizando simultaneamente as formas de relações sociais. O modo
particular como realizou a intermediação entre o coletivo e o individual, o tradicional e
o novo, levou-o a ser percebido pelos seus memorialistas como “destemido
bandeirante” e “progressista entusiasta”.
3.2 ANTONIO DE SÁ E CAMARGO – LIDERANÇA, PRESTÍGIO E CARISMA.
Antônio de Sá e Camargo foi um entre os vários indivíduos que moravam na
localidade da Palmeira e povoaram os Campos de Guarapuava. Entretanto, sua
permanência efetiva, na localidade, propiciou o diferencial na sua trajetória de vida,
fazendo com que a comunidade o elegesse como um dos homens capazes de comandar
o poder local, no decorrer do século XIX. “Ainda muito jovem, seu pai lhe confiou a
administração do estabelecimento pastoril fundado em Guarapuava. Em 1827, com
apenas 19 anos” (ROMAGUERA, 1992, p.22), fixou-se em Guarapuava, muito jovem,
mas isso não atrapalhou sua conduta e habilidade para tratar das questões que afligiam
a pequena comunidade.
A comitiva que partiu de Palmeira para os Campos de Guarapuava foi
composta por fazendeiros e seus escravos, que conduziam os animais, carregando nas
96
cangalhas os mantimentos e objetos necessários para a longa viagem. A passagem pela
serra da Esperança, com uma topografia acentuada, para chegar ao 3º planalto
paranaense, requeria dos viajantes certos cuidados. Os componentes da comitiva
tinham sido informados a respeito das dificuldades que deveriam enfrentar nesse
trecho da viagem, pois a subida da serra fazia qualquer besta empacar ou escorregar
ladeira abaixo, todo cuidado era pouco, qualquer descuido poderia ocasionar um
acidente. O jovem Antonio de Sá e Camargo, ao tentar vencer a passagem pela serra,
acompanhado de seu escravo José, ouviu, surpreso, gritos vindos do despenhadeiro.
Com cuidado, procurou observar e viu um homem lá embaixo. Com ajuda do escravo
tratou de socorrê-lo, lançando seu laço e conseguindo descer. Com muito esforço
físico, conseguiu transportar para fora do buraco José Maria, que fora abandonado
pelos companheiros, depois de um acidente que sofrera. O acidentado, depois de
socorrido, não sabia como agradecer a ajuda prestada por Antonio para salvar sua vida
e lhe seria grato por toda sua existência.
A viagem continuou até alcançar a Freguesia de Nossa Senhora de Belém e
encontrar seu tio, Manoel Mendes de Araujo, que esperava pelo sobrinho. Para
Antonio, que tinha ouvido tantas histórias contadas pelos tropeiros, que haviam
pousado na fazenda Conceição, a respeito da região, dos ataques dos índios e das
defesas realizadas pelo capitão comandante Antonio da Rocha Loures, estar presente
na localidade e reviver, na sua memória, as histórias narradas pelos tropeiros,
causavam-lhe saudades do seu cotidiano de menino, experienciado na fazenda
Conceição.
Antonio seguiu viagem para a localidade do Pinhão37, onde ficava a sesmaria
que pertencia a seu pai, e onde, depois de instalar-se, deveria organizar o trabalho na
fazenda, juntamente com os escravos que já vinham executando tal tarefa. Sua
37
O território que constituiu a localidade denominada Pinhão tinha como limites, “...o rio
Pinhão, Jordão, Iguassú, d’Areia, Concordia e pela Serra da Esperança, pertenceu a 9 grandes
sesmarias, assim denominadas:1ªFazenda Velha - de Antonio Carvalho, 2ª Fazenda Boa Cria – do
Visconde de Guarapuava, 3ª Fazenda Sobrado – do Cel. Polycarpo Ferreira Maciel, 4ª Fazenda Capão
Grande – de Joaquim Ferreira, 5ª Fazenda Reserva de Cima – de João Lustosa, 6ª Fazenda Reserva de
Baixo – do Alferes Elias, 7ª Fazenda Dos Caldas – de Jeronymo Caldas, 8ª Fazenda Dos Coutos - da
Família Couto, 9ª Fazenda Silverio – de João Silverio. (CORREIA, L, OLIVERO, M.F.1928, p.).
97
responsabilidade era maior, pois era o dono do rebanho, e fazer crescer o rebanho
aumentaria o capital da família Sá e Camargo. Também, tinha a responsabilidade de
agir dentro dos padrões estabelecidos, para tornar-se uma pessoa respeitada na
pequena comunidade, com o passar do tempo.
Alguns anos se passaram e Antonio de Sá e Camargo, já estabelecido em sua
propriedade, ficou surpreso ao receber a visita de José Maria, na fazenda “Boa Cria” Pinhão, pois há muito tempo não tinha notícias do homem que havia salvado na serra
da Esperança. Grato pela ajuda que recebeu, foi alertar Antonio de que os índios hostis
e degredados fugitivos, que não aceitavam a presença dos fazendeiros na região,
pretendiam assaltar a pequena Freguesia de Nossa Senhora de Belém.
Esse episódio é relembrado sempre pelos memorialistas que escrevem sobre
Antonio de Sá e Camargo: a ajuda prestada aos homens de bem da Freguesia, avisando
a respeito do que José Maria tinha–lhe alertado, e também sua participação na defesa
contra o ataque.
Localizou-se uma carta encaminhada ao Presidente da Província de São Paulo,
o senhor José Cesário de Miranda Ribas, enviada pelo Capitão Comandante da Vila de
Guarapuava, Antonio da Rocha Loures, relatando um ataque à Freguesia em maio de
1836. Possivelmente, esse documento pode ser o relato do ataque à povoação de
Guarapuava. A defesa, realizada pelos moradores e soldados, teve a participação de
Antonio de Sá e Camargo, que após ter sido informado por José Maria, alertou as
autoridades para montar defesa.
Cumpre-me comunicar, a V. Ex. que o sossego público nesta povoação foi alterado dia 1º de
maio corrente pelas oito horas da manhã, por um grupo considerável de indígenas que
pretendia surpreender-nos graças ao todo poderoso que tão filantropicamente nos protegeu,
os inimigos eram em numero de 54 indivíduos algumas mulheres e um recém nascido, a
força que empreguei de comum acordo com o Juiz de Paz para a defesa desta Freguesia foi
mais que suficiente para combater seus planos hostis, o ponto de vista que traziam os
insurgentes era ganhar o âmago da povoação o que conhecemos perfeitamente? A dúvida
pusemos em deixá-los seguir com a condição porem de deporem primeiramente as armas no
que não aceitaram puseram-se? imediatamente em atitude de combate, flexão logo a um
cidadão que fazia parte da guarda defensiva no braço direito, este insulto deu lugar a que a
98
mesma guarda se pusesse em movimento rompendo um vivo fogo contra tais malvados, o
combate durou meia hora pouco mais ou menos, e a vitória foi nossa ...38
O comandante não faz referência direta ao nome de Antonio de Sá e Camargo,
mas ao Juiz de Paz da Freguesia de Belém. Em 183639 a Freguesia contava com dois
juizes, os senhores Joaquim José de Lacerda e Antonio de Sá e Camargo.
O comandante deveria ter seus motivos para não evidenciar o nome, mas
somente a providência divina não daria conta de deixá-lo em alerta para montar uma
defesa contra o ataque. Como ele mesmo evidenciou queriam “surpreender-nos”, ele e
mais o Juiz de Paz já aguardavam tal ataque. Isso dá indício que esse ataque à
Freguesia pode ser o mesmo mencionado a Antonio de Sá e Camargo pelo amigo José
Maria.
Antonio, com sua atitude, passou a ser visto pelos moradores e autoridades
como um indivíduo de conduta exemplar para a comunidade. Sabendo do ocorrido, seu
pai, Antonio Joaquim de Camargo, veio lhe fazer uma visita e saber mais sobre o
ataque. Esse episódio pode ter marcado, na vida de Antonio, o início de sua liderança
junto aos moradores dos Campos de Guarapuava. Foi escolhido posteriormente para
desempenhar diversas funções na Vila: membro da Guarda Nacional, Inspetor das
primeiras Letras, administrador de estradas, administrador dos índios, administrador
das obras da Igreja, subdelegado de polícia.
Antônio de Sá e Camargo foi nomeado administrador da estrada que ligava a
Vila de Guarapuava a Curitiba e, através da correspondência encaminhada às
autoridades da Província, pode-se observar sua atuação. Informou às autoridades sobre
a necessidade de recuperar vários trechos da estrada, que se encontravam em péssimo
estado de conservação, “... que por ela transita as nossas tropas de gados, a vender-se
38
LOURES, A .da R. Informações ao presidente da Província do ataque de índios na
Freguesia. Freguesia de Nossa Senhora de Belém. 8 maio 1836. Arquivo do Estado de São Paulo, C
193, p 2, D 57, O 988.
39
Na ata da sessão ordinária realizada em 23 de fevereiro de 1835 na Câmara de Castro,
foram eleitos os juizes da Freguesia do Belém os senhores, Antonio de Sá e Camargo e Joaquim José
de Lacerda.
99
pelas mediações da cidade de Curitiba, e se conduzem sal e mais precisas para as
nossas fazendas, ...40”.
As considerações do administrador da estrada evidenciam a preocupação de
melhorar a estrada de acesso à capital da Província, justificando a sua melhoria para
facilitar o comércio com as tropas de gado e muares. Observa-se, já nesse período, que
o comércio de animais41 com a Província do Rio Grande do Sul, a cada dia, mostravase mais lucrativo, e a falta de uma estrada transitável estava prejudicando a efetivação
dos negócios. Seu interesse era tanto público como também privado, pois tinha que
trafegar com seu rebanho nesse caminho para vendê-lo nas proximidades de Curitiba
ou na feira de Sorocaba.
As informações a respeito dos habitantes da Freguesia de Nossa Senhora de
Belém, no século XIX, são bastante volumosas e contêm notícias dos seus habitantes
desde o início de sua ocupação. Exemplo são os manuscritos elaborados pelos padres
(Francisco das Chagas Lima e Antonio Braga de Araújo) e pelos comandantes da
expedição (Diogo Pinto de Azevedo Portugal e Antonio da Rocha Loures)42, para
prestar esclarecimentos e informações às autoridades da Província de São Paulo.
Existem também referências a essa população na documentação produzida pelos
indivíduos que assumiram funções de poder local, anteriormente à criação da Câmara.
Trata-se de uma diversidade de manuscritos feitos pelos indivíduos da comunidade,
nomeados para administrar a abertura dos caminhos, e pelos juízes de paz, nomeados
para representar a autoridade imperial na localidade. A partir da criação e instituição
da Câmara, os conteúdos das atas do período de 1853 a 1889 registram informações
referentes ao cotidiano da localidade. Pode-se também observar referências a respeito
dos habitantes nos testamentos e nos inventários. A distribuição dos indivíduos na
documentação é naturalmente muito desigual a respeito da relevância pública de cada
40
CAMARGO, A de S. Reparo das estradas. Guarapuava, 24 jun. 1849, Arquivo do Estado
de São Paulo.
41
Com relação ao comércio de gado no sul do país, o trabalho de Maria Thereza Schorer
PETRONE contextualiza esse comércio evidenciando os personagens e suas relações comerciais
(PETRONE, M. S. T. O barão de Iguape: um empresário da época da independência. São Paulo:
Nacional/INL. 1976).
42
Esses manuscritos encontram-se sob a guarda do Arquivo Estadual de São Paulo.
100
um.
Os
documentos
conservados
refletem
comportamentos
institucionais
reconhecidos, como ser testemunha ou protagonista de atos paroquiais, como os
registros de casamento, nascimento e morte. Atos de propriedades, carta de sesmaria,
registro de revalidação das terras ou Registro do Vigário, cujo número perfaz um total
de 396 registros, relatam o universo da divisão e da produção das propriedades, os
registros de compra e venda de imóveis do Tabelionato de Notas. Essas fontes
documentais mostram uma quantidade de personagens - escravos, agregados, índios,
degredados, fazendeiros ou estancieiros, e dão condições para pesquisar a comunidade
e seus comportamentos.
3.3 O CASAMENTO E O DRAMA NA VIDA DE ANTONIO DE SÁ E
CAMARGO
Contudo, esse homem público, aos 28 anos de idade, não constituíra ainda
uma família nos moldes esperados pela sociedade da época para um “homem digno e
de respeito”. Para continuar aumentando seu prestígio na localidade e também fora
dela, Antonio deveria seguir as normas da sociedade, e assim o casamento era
essencial, precisava constituir uma família, contar com a presença de uma esposa para
ajudar nos afazeres domésticos e também para garantir sua descendência através dos
filhos que deveriam ter. O trabalho na fazenda Boa Cria era muito árduo e a presença
de uma mulher ajudaria a amenizar a vida desse homem rústico.
O matrimônio era considerado, no século XIX, assunto de interesse das
famílias abastadas e deixava pouco espaço para escolhas baseadas em preferências
individuais. A preservação e ampliação do patrimônio presidiam os critérios para a
escolha dos cônjuges. Para Eni de Mesquita SAMARA (1983, p. 43),
na sociedade brasileira, especialmente no século XIX, os matrimônios se realizavam num
círculo limitado e estavam sujeitos a certos padrões e normas que agrupavam os indivíduos
socialmente em função da origem e da posição sócio-econômica ocupada. Tal fato,
entretanto, não chegou a eliminar a fusão dos grupos sociais e raciais, que ocorreu
paralelamente através das uniões esporádicas e da concubinagem.
101
Para
determinada
parcela
da
população
-comerciantes,
fazendeiros,
empregadores - o casamento era visto como um ato social de grande importância, que
polarizava vários interesses e se fazia, por isso, num meio muito limitado, sendo
comuns as uniões entre parentes, que tinham, como finalidade, preservar a fortuna,
mantendo a linhagem da família. Esses critérios e valores morais estavam reservados à
“elite”, que buscava opções para um bom casamento de seus descendentes. Ao
contrário, outras parcelas da população brasileira, na hora da escolha do cônjuge,
obedeciam a critérios menos seletivos, muitas vezes, burlavam as recomendações da
Igreja Católica, realizando uniões ilegítimas.
A Igreja Católica, desde o início da ocupação do território brasileiro, fez-se
presente no processo disciplinador da população. O discurso de cunho normatizador,
praticado pelos seus representantes, difundia padrões de comportamento nos sermões
dominicais, no confessionário, nos sermões nas longínquas capelas, nos casamentos, e
tinha um fim determinado: domesticar/civilizar os moradores no novo mundo.
Para a historiadora Mary DEL PRIORE (1995, p.29), a igreja
... regulamentava o cotidiano das pessoas pela ética, pela catequese, pela educação, pelo
ritmo semanal recortado pelo domingo e pelo calendário anual marcado pelo Advento, o
Natal, a Quaresma, a Páscoa e pelo ciclo santoral dos diferentes apóstolos, confessores e
sobretudo pelas festas de Nossa Senhora. A Igreja fazia-se presente ainda em momentos da
vida como o batismo, a eucaristia, o casamento, extrema-unção, os funerais, a penitência e os
demais gestos que acompanhavam o dia-a-dia das pessoas, do nascimento à constituição da
família, da reconciliação à morte, da reza doméstica às celebrações coletivas. E por último,
mas não menos importante, a Igreja exercia severa vigilância doutrinal e de costumes pela
confissão, pelo sermão e pelas devassas da Inquisição. Sua ação em relação à mulher fazia-se
especialmente ativa no campo da organização familiar nas precárias condições da nascente
sociedade colonial; para tanto, ela desdobrava-se em iniciativas e medidas que assegurassem
o estabelecimento da sociedade familiar nos moldes vigentes da tradição européia.
A análise da autora privilegia o período colonial, mas as práticas da Igreja
Católica ultrapassaram o período e estenderam-se ao século XIX. Os avôs, os pais, os
irmãos e o próprio Antônio de Sá e Camargo, participaram como sujeitos desse
universo descrito pela autora, na localidade da Palmeira. Receberam o ensinamento
das normas determinadas pela igreja, através do padre Antonio Duarte de Passos.
Antônio de Sá e Camargo, depois de se transferir para a Freguesia de Nossa
Senhora de Belém, por volta de 1828, continuou seguindo as normas da igreja
102
presentes nos sermões ministrados pelo padre Antonio das Chagas Lima, depois pelo
seu substituto, o padre Ponciano José de Araújo.
Seus familiares continuavam morando na fazenda Conceição, em Palmeira, e
seu pai, quando possível, ia até à Freguesia de Nossa Senhora de Belém ver como
estavam os filhos, Antonio e Joaquim, e a nova propriedade. Em uma dessas visitas,
foi acompanhado pelo seu cunhado, José Caetano de Oliveira, que também possuía
terras nos Campos de Guarapuava e demonstrava uma admiração especial pelos
sobrinhos.
Quando do retorno do pai, Antonio decidiu seguir junto para fazer uma
surpresa à sua mãe e, em seguida, deveria ir a Curitiba e Paranaguá, para cuidar de
seus negócios. Ficou surpreso ao rever seus familiares em Palmeira, mais ainda
quando encontrou sua prima Zeferina, a filha dos tios José Caetano e Cherubina.
Como tinha que seguir viagem foi logo oferecendo seus préstimos aos familiares, que
lhes solicitaram várias encomendas da capital.
Ao retornar, já tinha pretexto para ir à casa do tio, e rever Zeferina, pela qual
ficara enamorado. Tratou de cortejá-la. O reencontro com a prima fez com que
Antonio tomasse uma decisão antes de seguir viagem para a fazenda Camargo. Foi
logo contando aos pais sua intenção de pedir a prima em casamento, o que foi do
agrado de todos. Na visita que fez aos tios, antes do seu retorno, pediu a mão da prima
Zeferina, que contava apenas com quatorze anos de idade43, em casamento, o que foi
aceito pelos tios, com muito gosto.
Pode-se evidenciar com o pedido de casamento feito por Antonio de Sá e
Camargo e sua aceitação, pela família de Zeferina, o que Eni Mesquita SAMARA e
outros teóricos, que discutem a questão do casamento, colocam: ambas as famílias
tinham grande extensão de terras, escravos, cavalos, lavouras e praticavam o comércio
de gado. A preservação da fortuna e a manutenção da linhagem familiar seriam
garantidas com essa união entre primos,
43
Localizou-se o registro de batismo de Zeferina Marcondes de Sá no livro de assentos de
batizados do Termo de Tamanduá da Palmeira, aberto em 28 de janeiro de 1820 pelo vigário Antonio
Duarte Passos. Servindo de padrinho o senhor Manoel Mendes de Araújo, irmão de sua mãe, seu
batizado foi realizado no dia 13 de janeiro de 1822.
103
os preparativos seriam feitos para que dali a oito meses o casamento fosse realizado, tempo
mais do que o necessário para que também ele, montasse uma casa adequada para receber a
esposa. Casaram-se com muita pompa, festas e alegria, na matriz da Palmeira, recentemente
inaugurada, o que foi motivo de orgulho para toda a família. Seus avós, já falecidos,
certamente ficariam felizes com aquela união na igreja que tinham sonhado construir, e que
naquele dia recebia os netos para os votos do matrimônio (ROMAGUERRA, 2001, p.75).
O casamento de Zeferina, com apenas quatorze anos de idade e Antonio,
com vinte e oito anos, aconteceu no dia 3 de dezembro de 1836, na igreja matriz de
Nossa
Senhora da Conceição de Palmeira, depois de terem corrido os proclames exigidos na
época e da despensa dada pelo vigário Antonio Joaquim, em razão do 2º grau de
consangüinidade em linha parental entre os noivos44. Estiveram presentes a família
Marcondes de Sá e Camargo e demais moradores da pequena Vila de Palmeira,
servindo de testemunhas dos noivos o senhor Antonio Joaquim de Camargo, pai do
noivo, e o Major Domingos Ignácio de Araújo, tio de ambos.
Para surpresa de Zeferina, sua viagem de núpcias seguiu com um cortejo para
a Freguesia de Nossa Senhora de Belém. Acompanharam o casal: o pai da noiva, o tio
de ambos, Domingos Ignácio de Araújo e seus dois filhos, João Carneiro Marcondes e
Veríssimo Marcondes, que seguiram para também fixar residência nos Campos de
Guarapuava.
Zeferina passaria a assumir o universo feminino de dona de casa, mulher
prestativa e submissa ao seu marido, porque estaria longe da casa e dos olhos paternos
e maternos, mas deveria exercer as recomendações recebidas, ser boa esposa e uma
mãe dedicada aos futuros filhos, que deveriam nascer dessa união. Deveria estar
sempre ligada à igreja da nova localidade em que iria morar, a qual continuaria a
repassar os ensinamentos necessários para que pudesse cumprir as normas para a
condução da nova vida de mulher casada.
As mulheres eram uma parte importante do universo de adestramento dos
indivíduos, por parte da Igreja Católica, e faziam parte do “processo civilizatório”,
44
Livro de assentos de casamentos do Termo da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição
da Palmeira, de 28 de janeiro de 1820, aberto pelo vigário Antonio Duarte Passos, folha 23.
104
segundo o conceito de Norbert ELIAS, já mencionado no primeiro capítulo deste
trabalho.
Sua ação em relação à mulher fazia-se especialmente ativa no campo da organização
familiar... Explorou as relações de dominação que presidiam o encontro de homem e mulher,
incentivando a última a ser exemplarmente obediente e submissa. A relação de poder já
implícita no escravismo reproduzia-se nas relações mais íntimas entre marido e mulher,
condenando esta a ser uma escrava doméstica, cuja existência se justificasse em cuidar da
casa, cozinhar, lavar a roupa, servir ao chefe da família com seu sexo, dando-lhe filhos que
assegurassem a sua descendência e servindo como modelo para a sociedade familiar com que
sonhava a igreja (DEL PRIORE, 1995, p.29).
A vida a dois dos recém-casados seguia a normalidade aparente de um
matrimônio do século XIX: o casal era valorizado pela comunidade pela divisão de
suas tarefas. A divisão de encargos da vida doméstica e privada do casal delimitava os
papéis sociais do gênero. Zeferina deveria dar conta de seus afazeres domésticos, pois
ela fora educada para servir aos pais, e depois do casamento, ao marido. Segundo
Alzira Lobo de Arruda CAMPOS (2003, p.447-448), “as noções de escrita e leitura,
apanágio da minoria, articulava-se à arte do bordado, da costura, das rendas... Quietas,
modestas, prendadas. Prendadas para o lar, para servir aos futuros maridos e filhos
deveriam desenvolver suas funções de esposa adequadamente”.
O marido continuou com seus afazeres na fazenda, dividindo o tempo com
serviços prestados fora do espaço privado, desenvolvendo funções públicas na Vila.
A chegada do primeiro filho era aguardada com bastante expectativa porque,
para que a descendência fosse assegurada, o primeiro filho deveria ser homem. Para a
mulher-mãe, a tarefa doméstica aumentaria, caber-lhe-ia educar sua prole seguindo os
ensinamentos da igreja, ensinar-lhe as primeiras letras e as primeiras atividades,
amamentar ou providenciar seu sustento e, também, os cuidados com sua higiene e
saúde.
O nascimento do menino Firmino, em 18 de junho de 183845, foi muito bem
recebido pelo pai, principalmente porque era seu primogênito e perpetuaria o nome da
família Sá e Camargo no território paranaense, especificamente na região de
45
O registro do batismo foi localizado no Livro n.3 de assentos de batizados da Matriz de
Nossa Senhora da Conceição da Palmeira, efetuado pelo padre Generoso Alexandre Vieira.
105
Guarapuava. A notícia do nascimento espalhou- se pelas duas vilas, Palmeira e
Nossa Senhora de Belém de Guarapuava, sendo provável que a criança tenha nascido
em Palmeira, porque foi batizada na Matriz de Palmeira, em 29 de junho de 1838, com
apenas 11 dias de vida e sua mãe ainda, encontrava-se em resguardo do parto. No
período, os batizados eram realizados posteriormente à quarentena da mãe. Realizavase um batismo em casa e depois, na igreja, era feita sua confirmação pelo padre.
Momentos de felicidade foram evidenciados na família dos Sá e Camargo: o
nascimento de mais um descendente e o retorno de José Antonio de Camargo e
Araujo, irmão de Antonio de Sá e Camargo, do seminário episcopal de São Paulo
(1839/1840), como Reverendíssimo Coadjutor Vigário, para estagiar na paróquia de
Castro. Estava longe de casa há dois anos e achou por bem permanecer um tempo na
Freguesia de Palmeira.
Para Anna Maria, avó do padre Camargo, se estivesse viva, receber seu neto
como padre na igreja que ela tanto lutou para que fosse edificada seria com certeza um
momento de extrema alegria. Ainda em vida, fez um pedido aos familiares para que a
igreja fosse construída mais próxima da fazenda Palmeira, a fim de que pudesse orar e
assistir às missas sem o incômodo de ter que se deslocar para a localidade de
Tamanduá. Seu pedido, contudo, somente foi concretizado depois de sua morte, pela
interferência do marido, filhos, genros e de outros moradores da Freguesia da
Palmeira.
A família conservou as tradições de veneração constante pela padroeira Nossa
Senhora da Conceição, realizando as festas em sua homenagem e na sua organização
sempre figurava um representante da família como festeiro. Também eram realizadas
doações em grande quantidade, por vários membros da família. Para exemplificar esse
ato, no jornal Dezenove de Dezembro (1856, Curitiba), encontra-se um anúncio da
festa em homenagem à padroeira da cidade de Palmeira, cujo festeiro era o senhor José
Antônio Camargo, juntamente com a senhora Anna e também a lista das pessoas que
realizaram doação para as obras da igreja, entre elas, Antônio de Sá e Camargo e sua
esposa, Zeferina.
106
O padre Camargo passou a auxiliar o padre Generoso Alexandre Vieira nos
trabalhos da paróquia, o que muitas vezes lhe trouxe decepção, porque o padre não o
deixava executar tarefas como oficiar missas, realizar casamentos e batizados.
Entretanto, sabia que tinha que ter humildade e paciência e aguardar uma
oportunidade, ou melhor, ganhar a confiança do padre Generoso, para que ele
concordasse em dividir suas ovelhas com o jovem vigário. Isso não demorou a
acontecer, sua dedicação para com a igreja e os fiéis fez com que o padre Generoso se
mostrasse generoso e convidasse José Antonio a ministrar o sermão de domingo para a
comunidade, composta, na maioria, por seus parentes.
Toda a família estava reunida para ouvir o sermão de domingo ministrado pelo
padre Camargo. Seus pais não cabiam em si de contentamento, os tios, os primos,
vizinhos, todos ansiosos para ouvir o padre conterrâneo ministrar o primeiro sermão na
igreja da Palmeira, a qual assumiria como pároco local somente em 1848.
Mas, no meio da missa, uma agitação fez com que as pessoas voltassem sua
atenção para o tumulto que acontecia fora da igreja. Ao término da missa, o padre
Camargo tratou de saber o que estava acontecendo. Nesse momento, seu pai e sua mãe
aparecem para dar-lhe a triste notícia. Contaram que a chegada do seu irmão Francisco
de Paula Camargo foi a causa da agitação fora da igreja, pois chegou a galope para
trazer a triste notícia a mando de Antonio de Sá e Camargo. Acontecera uma tragédia:
seu sobrinho Firmino morrera, todos estavam perplexos com o acontecido. Não
paravam de perguntar como, em um momento de celebração, uma notícia dessa
chegou para entristecer a pequena Palmeira. Francisco solicitou que a família se
reunisse na Casa de Pedra, localizada nos fundos da igreja, propriedade de seu pai,
Antonio Joaquim de Camargo, para que pudesse relatar o acontecido.
Começou sua narrativa explicando que sua cunhada, Zeferina, mandou duas
escravas prepararem o banho do bebê. As duas escravas começaram a preparar a bacia,
colocando primeiro a água quente e retornaram para apanhar a água fria para temperar
o banho, mas Zeferina, que estava em outro cômodo da casa, entra com a criança no
quarto e, achando que o banho já estava pronto, despiu Firmino, pegou o filho nos
braços e o colocou na bacia, para banhá-lo. Que triste percepção, ao sentir suas mãos
107
queimarem com a água fervente. Acabou deixando o menino debater-se na bacia por
alguns instantes, mas logo agarrou a criança, que chorava desenfreadamente,
retirando-a da bacia. Quando as criadas ouviram os gritos de desespero da patroa,
correram para o quarto, encontrando mãe e filho desmaiados.
Nesse momento, uma das escravas pediu para que o escravo José fosse às
pressas chamar Antonio de Sá e Camargo, que se encontrava na estância de Francisco
Ayres de Araujo. Quando recebeu a notícia, Antonio saiu em disparada para chegar o
mais breve possível em sua residência, em gritos pediu para ver seu filho, que não
acreditava estivesse morto, mas nada mais poderia fazer. Nesse momento de
desespero, culpou Zeferina pela morte do menino. Todos os que se achavam presentes
ficaram calados vendo a triste tragédia que destruiu o lar de Antonio e Zeferina. O
escravo Constantino saiu às pressas para chamar o padre Ponciano José de Araujo para
ajudar a família nesse triste momento. Depois do enterro do pequeno Firmino, Antonio
pediu a Francisco que levasse a notícia até Palmeira e, também, solicitasse aos seus
tios, José Caetano e Cherubina Rosa, que viessem buscar Zeferina, porque ele tinha
tomado a decisão de não mais viver junto dela.
Depois da partida de Francisco, Antonio decidiu que ele mesmo deveria
devolver Zeferina para os tios, e pediu para as escravas que preparassem a bagagem de
sua mulher e partiu para Palmeira, ao encontro dos parentes. A chegada do casal
causou muita surpresa, ninguém esperava essa atitude de Antonio. Chegando à casa de
José Caetano, relatou aos familiares a tragédia e pediu aos tios que recebessem
Zeferina em sua casa, de volta. José Caetano recebeu sua filha e seu genro, deixando
claro que receberia sua filha de volta, mas aceitar o acontecido, somente o tempo
poderia dizer. Zeferina precisava do apoio do pai e da mãe que, com uma atitude de
carinho, acolheram sua filha e também não desamparam seu sobrinho e genro.
O relato narrado acima a respeito da morte de Firmino foi o que permaneceu
na memória coletiva a respeito do acidente, tanto em Guarapuava como em Palmeira,
morte essa que marcou profundamente a vida de seus pais e comoveu a população de
ambas as vilas. A fronteira entre o vivido e o transmitido, o dizível e o indizível, o
108
confessável e o inconfessável sobre a tragédia aponta uma memória subterrânea de
lembranças proibidas, o “não-dito”46 do acontecido.
Ao buscar indícios a respeito da trágica morte de Firmino, localizou-se o
registro de óbito da criança, o qual evidencia que a queimadura com água quente foi o
que ocasionou sua morte.
Aos vinte e tres de agosto do ano de mil oitocentos e sessenta e sete, em virtude da
autorização que me foi conferida, e a pedido do Coronel Antonio de Sá e Camargo faço o
seguinte lançamento do assento de óbito.
Firmino inocente, aos 26 de janeiro do ano de mil oitocentos e sessenta e sete, digo aos vinte
e seis de janeiro do ano de mil oitocentos e quarenta e um, nesta vila de Guarapuava faleceu
da vida presente, queimado-se em água quente, Firmino, inocente, de dois anos de idade,
mais ou menos, filho legitimo do mesmo Coronel Antonio de Sá e Camargo, e de Zeferina
Marcondes de Sá. Seu corpo foi sepultado no cemitério desta mesma vila. Para constar faço
este assento. Cônego Antonio Braga de Araujo47 (Anexo 2).
Outro documento em que se localizaram indícios sobre o menino foi a lista
nominativa de 1840, dos moradores de Vila de Guarapuava, onde consta que o
fazendeiro Antonio de Sá e Camargo morava no 4º quarteirão, casado com Zeferina de
dezessete anos, e um filho de nome Firmino de um ano de idade e mais nove escravos.
As informações deixadas pelo cônego Braga, ao registrar o óbito de Firmino,
de que a criança tinha “dois anos de idade mais ou menos”, deixaram equivocada a
narrativa construída a respeito da tragédia, de que Zeferina teria colocado seu filho na
bacia com água quente. Isso só seria aceitável para um recém-nascido, não para uma
criança com quase três anos de idade que, com certeza, já andava e falava. Outra
constatação foi a de que a criança teria “queimado-se em água quente”, com isso,
pode-se entender que o acidente teria sido provocado pela própria criança e não pela
sua mãe.
Outra observação feita foi relativa à forma como o registro foi assentado no
livro de óbito. Observa-se que a página foi deixada em branco, tem-se o último
registro de
46
Michael Pollak, 1989, p. 7.
ARAUJO, Antonio Braga de. Registro de óbito de Firmino. Livro de assentos de óbitos.
Guarapuava, 23 ago., 1867, livro n.1B, p.8 verso.
47
109
morte na página 7, anterior à morte do menino, a página 8 foi deixada em branco até
1867, quando o padre teve a autorização da igreja para realizar o registro que se
encontra escrito na posição lateral, ocupando toda a página. Na outra folha, página 9,
encontram-se os registros posteriores à sua morte. O próprio padre esclareceu que o
registro foi feito posteriormente ao acontecimento.
O que teria levado o padre Braga a não efetuar o registro de óbito antes do
sepultamento? A possibilidade que se apresenta seria a descrição da “causa mortis”, a
vergonha do registro da “causa mortis”, na qual ficaria evidenciada a negligência de
Zeferina em relação aos cuidados com seu filho, e isso afetaria negativamente sua
condição de esposa e mãe. Tal circunstância revelou a importância ou o significado do
drama não apenas para o indivíduo Antonio de Sá e Camargo e sua esposa como
também para a comunidade, e no jogo das relações sociais, haveria o questionamento
dos papéis de pai e mãe.
O que seria da vida de Zeferina depois do episódio vivido pela perda de seu
filho? O que essa moça/mulher esperaria da vida, perdendo seu filho e seu marido?
Uma vida de confinamento e recato, o recolhimento à casa paterna foi o que o futuro
reservou a essa mulher, que na opinião do marido fora negligente com os cuidados que
deveria ter para com o filho. Ao procurar notícias a respeito de como Zeferina
sobreviveu à tragédia, foram encontradas as cartas do Barão do Tibagi, seu pai, ao
filho Jesuíno Marcondes de Oliveira e Sá e ao genro, o Comendador Antonio Caetano
de Oliveira. Relata ao filho o estado de saúde da irmã, “chegaram do Rio Sá, e
Pacheco, seguindo aquele para a Lapa com a mulher para usar dos remédios na
presença do Correia por mais quatro meses, que diz o médico do Rio será bastante para
a Zeferina restabelecer-se”48. “A Nhasinha esta sofrendo com resignação os remédios
furiosos de que esta usando, e seu marido em Guarapuava.... Isto fez logo que chegou
do Rio, deixando entregue aos cuidados do médico e da Anninha (irmã de
Zeferina)...”49. Em outra carta, informa também a respeito do mal estar ocasionado
48
OLIVEIRA. J. C. Paranaguá, 2 out. 1861. Arquivo da Biblioteca do Paraná – Divisão
Paranaense.
49
OLIVEIRA, J. C. Palmeira, 25 fev, 1862. Arquivo da Biblioteca Publica do Paraná –
Divisão Paranaense.
110
pelos remédios e a falta de atenção do marido, “a pobre Zeferina ficou só usando de
remédios muito forte, e seu marido a 3 meses em Guarapuava fazendo jus a suas
pretensões, Deus ajude a minha filha em seus sofrimentos...”50. Zeferina nasceu em
1822 e faleceu no início do século XX com oitenta e quatro anos de idade51.
A relação de proximidade de Antonio de Sá e Camargo com Zeferina, depois
da tragédia, deu-se especialmente para o cumprimento das obrigações religiosas como
a festa da padroeira e os batizados. Em 27 de abril de 1846, Antonio e Zeferina
batizaram Fortunata, filha do Capitão Agostinho José de Almeida Queiroz e sua
esposa Carolina. Batizaram Theofilo, filho de Francisco J. Bitencourt e Bibiana Maria
B. Bitencourt52.
“É batizado na paróquia de Palmeira – Misael Damásio de Camargo, nascido a
11 de dezembro de 1852. Foram seus padrinhos: Major Antonio de Sá e Camargo e
sua mulher Zeferina Marcondes de Sá” (TEIXEIRA, 2002, p.32). Manter as relações
de compadrio era necessário porque implicava articulações do poder e mando na
região e, nesse período, o futuro Visconde de Guarapuava já se tinha tornado um
notório senhor com prestígio.
Outro momento de proximidade do casal foi nas assinaturas de compra e
venda de imóveis, terrenos e subestabelecimento de procuração53 para o marido ou
parentes próximos como o pai, tios e cunhados, o que revela, mais uma vez, a
importância das relações parentais. Observou-se nessa tipologia de documentos que
depois do recebimento da titulação dada a Antonio de Sá e Camargo, pelo Imperador,
Zeferina passaria a utilizá-la também. Num primeiro momento, foi reverenciada como
Baronesa de Guarapuava e posteriormente de Viscondessa de Guarapuava.
50
OLIVEIRA, J. C. Palmeira, 28 fev. 1862. Arquivo da Biblioteca Pública do Paraná –
Divisão Paranaense.
51
Zeferina Marcondes de Sá faleceu em 27 de junho de 1905 com idade de 84 anos. Cartório
de Registro Civil da Palmeira, registro n. 252, livro 5, folha 73 verso.
52
Livro de Assento de Batizado da Matriz de Nossa Senhora de Belém de Guarapuava.
53
“Neste cartório comparecerão presentes, o Major Antonio de Sá e Camargo, e sua mulher
dona Zeferina Marcondes de Sá, moradores desta sobre dita Freguesia...” (CAMARGO, A. de S.
Substabelecimento de procuração. Guarapuava, Tabelionato de Notas de Guarapuava, 27 fev. 1849,
Livro n.01, p.107/108).
111
Dentro do universo privado, nas negociações e transações que Antonio de Sá e
Camargo realizou ao longo de sua existência, a presença de Zeferina de forma alguma
foi dispensada, mesmo que isso fosse mediante procuração dada por ela ao marido. Em
19 de junho de 1850, ela esteve presente na venda da fazenda Floresta, em Palmas,
cuja propriedade era uma sociedade com Antonio de Oliveira Ribas.
...senhores legítimos proprietários de uma fazenda de criar denominada floresta que tinham
em Palmas em sociedade, essa composta de dois mil animais de produção vacuns e
cavalares, porção de cavalos mansos, bestas arreadas, burros?, tres escravos de nomes Luiz,
Geraldo, Benedito, campos e logradouros, aquém e além do rio Chapecó...54.
Essas terras, adquiridas na região dos Campos de Palmas, estão relacionadas à
ocupação determinada pelo governo imperial. Antonio, com outros fazendeiros
organizou bandeiras para a região e tomaram posse desses campos.
Em abril 1859, Antonio vendeu parte dos campos da fazenda Boa Cria a seu
irmão Francisco de Paula Camargo55, e nessa negociação ele apareceu como
procurador de Zeferina.
O major Antonio de Sá e Camargo comprou a casa localizada na praça da
Matriz, em outubro de 186056, da senhora Raquel Marcolina Perpetua, pagando o valor
de seiscentos mil reis. Vendeu essa residência em outubro de 1891 ao tenente Gabriel
Lopes Branco pelo valor de três contos de reis. Na escritura de venda, foi feita a
seguinte observação: “... reservando-se
o
primeiro
vendedor
o
usufruto
da
propriedade vendida durante sua vida, e somente depois de sua morte poderá o
comprador entrar no gozo e domínio desta propriedade, como de sua mobília e seus
anexos que fazem parte integral da presente venda57”. Consta procuração de Zeferina
dando poderes para o marido realizar a venda da propriedade. O pedido para
54
CAMARGO, A. de S. Venda da fazenda Floresta em Palmas. Guarapuava, Tabelionato
de Notas de Guarapuava, 19 jun. 1850, livro 03, folha 13.
55
CAMARGO, A. de S. Venda de parte de campo da Fazenda Boa Cria. Guarapuava.
Tabelionato de notas de Guarapuava, 8 abr. 1859, livro 05 folha 20.
56
CAMARGO, A. de S. Compra da Casa na Vila. Guarapuava. Tabelionato de notas de
Guarapuava, 18 out, 1860, livro 06, folha 15.
57
CAMARGO, A. de S. Venda da casa na Vila. Tabelionato de Notas de Guarapuava, 15
out. 1891, livro 33, folha 04.
112
permanecer na casa até sua morte revelou que Antonio de Sá e Camargo já não estava
bem de saúde, vindo a falecer cinco anos depois da venda do seu casarão.
No inventário de Antonio de Sá e Camargo (Anexo 3), segundo seu
testamenteiro e inventariante, Major Manoel de França Camargo, os bens deixados
pelo falecido Visconde revelaram que o patrimônio era composto por oitenta apólices
da dívida pública, vinte ações do Banco do Paraná, dinheiro em conta corrente com os
senhores Oliveira do Valle & Companhia, no Rio de Janeiro, dinheiro em conta
corrente no Banco do Paraná, dinheiro a título de empréstimo ao Tesouro Nacional, 97
ações da Sociedade (?) Amigos do Progresso, em Guarapuava, dinheiro a juros para
terceiros. Não existe referência a terras, o que levou a entender que Antonio de Sá e
Camargo já tinha transformado boa parte das suas terras em capital financeiro, tendo
feito doações do restante aos sobrinhos, em período anterior à sua morte, pois como o
único filho que teve faleceu em 1841, não deixou herdeiro direto para transferir suas
terras. Por ter-se tornado um homem solitário, sem descendentes, a fortuna que
edificou através da compra e venda do gado na feira de Sorocaba e de outros negócios
foi aplicada em ações, títulos, empréstimos a terceiros58, a partir de um determinado
período de sua vida. Do seu patrimônio referente ao imóvel edificado, consta no
inventário somente uma casa com mobília, na cidade de Palmeira, a qual ficou para
sua esposa.
As transações referentes à venda e à compra de terras foram realizadas ao
longo do tempo, quando Antonio de Sá e Camargo procurou concentrar suas
propriedades na região do Pinhão. Comprou de sua irmã, Getrudes Maria de Almeida
Sá e do cunhado Capitão Estevão Ribeiro do Nascimento, em 1868, os campos, matas
58
Segunda Zélia Maria Cardoso de Mello, que analisou a passagem da economia mercantilescravista à economia exportadora capitalista de São Paulo, de 1845-1895, a respeito das dívidas
ativas e passivas descritas nos inventários esclarece, “o primeiro item refere-se aos créditos dos
proprietários; na maioria dos casos declara-se que “deve a herança, ou ao monte, fulano de tal, por
crédito passado em tal data, vencendo o prêmio de x% ao mês ou ao ano”. Como veremos, este item
participava significativamente da riqueza. Relaciona-se tal fato com a ausência de sistema creditício
desenvolvido, o que tornava muitos indivíduos emprestadores particulares” (1985, p.81). No
inventário de Antonio de Sá e Camargo, encontrou-se uma relação considerável de devedores, o que o
qualifica como um emprestador particular da província do Paraná. MELLO, Z. M. C. de.
Metamorfoses da riqueza de São Paulo, 1845-1895. São Paulo: HUCITEC, 1985.
113
e benfeitorias da invernada grande na fazenda Boa Cria59, que haviam adquirido por
herança pelo falecimento de sua mãe, Mathilde Umbelina da Gloria. Tais terras faziam
divisas com as do seu irmão.
Também tinha parte da fazenda Boa Cria em sociedade com seus pais. Depois
do falecimento deles, adquiriu a parte das terras que pertenciam aos seus irmãos
tornando-se o principal dono dessa propriedade. Em dezembro de 1869, fez doação de
parte dessas terras aos sobrinhos menores, José Antonio de Camargo, Antonio
Joaquim de Camargo, Diogo de França Camargo, Francisco de Paula Camargo e
Mathilde Umbelina da Gloria, filhos do seu irmão, Capitão Francisco de Paula
Camargo e de Rita Rosa de França. Zeferina compartilhou da doação feita pelo Barão
de Guarapuava aos sobrinhos. Localizou-se a procuração de Zeferina ao seu marido, a
qual trata especificamente de tal doação: “pela presente nomeio meu bastante
procurador com poderes especiais meu marido o Barão de Guarapuava, para que por
mim faça competentemente confirmar a doação... a seus sobrinhos menores... 60”.
Em 187361, Antonio de Sá e Camargo realizou uma troca de terrenos com José
Antonio de Almeida França e sua esposa. Trocou os terrenos que possuía em
Guarapuava, nos Campos da Sepultura, denominados Capão Rico, com os terrenos
localizados na Fazenda Boa Cria deixados por herança pelo sogro de José Antonio de
Almeida França, o senhor Francisco de Paula Camargo, irmão de Antonio de Sá e
Camargo.
Em janeiro 1887, vendeu a invernada São Pedro, no Pinhão, para Vicente
Ferres de Camargo, com a seguinte observação: “com a condição de continuar o
vendedor Exmº Visconde de Guarapuava no usufruto da mesma invernada até seu
falecimento... 62”.
59
CAMARGO, A. de S. Compra da Invernada Grande Boa Cria. Guarapuava,
Tabelionato de Notas de Guarapuava, 7 dez. 1868, livro 12, folha 20.
60
ZEFERINA, M. S. Procuração doação sobrinhos. Guarapuava. Tabelionato de Notas, 20
dez, 1896, livro 16, fls.14.
61
CAMARGO, A. de S. Troca de terrenos em Guarapuava. Guarapuava, Tabelionato de
Notas de Guarapuava, 4 ago. 1873, livro 16, folha 26.
62
CAMARGO, A. de S. Venda da invernada São Pedro. Guarapuava. Tabelionato de
Notas de Guarapuava, 24 jan. 1887, livro 29, folha 40.
114
Logo em seguida, em setembro de 1888, vendeu outra parte dos campos da
fazenda Boa Cria63 para José Manuel de Camargo. Em outubro de 1890, vendeu os
campos e matas do potreiro em frente da casa de morada da fazenda Boa Cria64, para o
capitão Ildefonso de Paula Camargo, seu sobrinho. Em todas essas transações, ele
consta como procurador de sua esposa a Baronesa e depois Viscondessa de
Guarapuava.
Depois do falecimento de Antonio de Sá e Camargo, Zeferina passou a ser
proprietária da metade dos bens deixados pelo falecido, sendo o monte mor declarado
em inventário a quantia de 146:173,173 (cento e quarenta e seis contos, cento e setenta
e três mil cento e setenta e tres reis) tendo uma dívida de 1:191,880 (um conto cento e
noventa e um mil oitocentos e oitenta reis), restando líquido para dividir entre sua
esposa e suas duas sobrinhas, Maria José de Camargo e Maria Rita de Camargo,
mediante testamento (essa crianças eram filhas de Mathilde Umberlina de Camargo,
sobrinha do Visconde de Guarapuava), o valor de 144:981.293 (cento e quarenta e
quatro contos novecentos e oitenta e um mil duzentos e noventa e três reis). Da parte
das sobrinhas, o valor de 4124,782 foi deixado para pagamento de bens da alma
(Anexo 3).
Dos bens pessoais que lhe pertenciam foram arrolados a montaria, de uso
pessoal, “um par de estribos de prata pesando sessenta e cinco gramas digo, seiscentos
e cinqüenta gramas, um par de esporas de prata, pesando trezentos e setenta gramas,
um freio de prata pesando quatrocentos e oitenta cinco gramas, ...um selim homem
para montaria usado, por trinta e cinco mil reis65”.
A trajetória de vida de Antonio de Sá e Camargo, marcada pela trágica morte
do filho, leva o historiador a pensar em questões como racionalidade, paixões,
neuroses, condições para compreender sua atitude de abandonar a esposa após a
tragédia.
63
CAMARGO, A. de S. Venda de Campos Boa Cria. Guarapuava. Tabelionato de Notas
de Guarapuava. 3 set, 1888, livro ?, folha 28.
64
CAMARGO, A. de S. Venda de campos e matas da Fazenda Boa Cria. Guarapuava.
Tabelionato de Notas de Guarapuava, 6 de out. 1890, livro 32, folha 42.
65
Autos do inventário e partilha de bens deixados pelo Visconde de Guarapuava.
Guarapuava, 1º dez, 1896, n.463. Inventariante major Manoel de França Camargo.
115
Para tentar entender sua atitude, deve-se pensar nas normas, nas práticas, nas
regras da sociedade e da família, no século XIX, pelas quais foi educado e sob as quais
viveu, e que eram o pano de fundo de suas ações.
Perceber as questões em torno das potencialidades e possibilidades, como isso
funcionou com o futuro Visconde de Guarapuava, qual a verdadeira dimensão das
escolhas e atitudes na sua vida? Como tomou a decisão de separar-se de Zeferina em
um momento de muita tristeza para ambas as vidas? Pode-se tentar uma justificativa
para sua decisão em razão dos seus sentimentos ou de comportamentos que lhe foram
impostos pela educação, religião, meio social. Era o que deveria fazer na época, porém
trata-se de um universo muito grande de possíveis respostas.
Vavy Pacheco BORGES (2001, p.306), que pesquisa a trajetória de vida de
Gabrielle Brune-Sieler, ao buscar entender as escolhas realizadas pelo seu personagem
de pesquisa expressa que
como isso funcionou em particular para Gabrielle? Qual a “verdadeira amplitude de escolha”
que ela teve em sua vida? Este é o nó central. Como tomou as decisões para os atos que
praticou: evidentemente se decidiu em função do que sabia na época, do que sentia, do que
podia fazer no momento das decisões; assim, percebo que tenho que pensar muito, a cada
momento da sua vida que parece mais decisivo, que determine certa ruptura, sobre quais
eram os problemas e as opções que precederam seus atos. Os atores históricos (nós todos)
não são modelos de coerência, continuidade, racionalidade; as tensões entre o vivido e o
imaginado e desejado são fundamentais.
Norbert ELIAS (1995, p.13) analisou a tragédia do compositor Mozart em sua
dualidade, sem separar o artista do homem.
Para se compreender alguém, é preciso conhecer os anseios primordiais que este deseja
satisfazer. A vida faz sentido ou não para as pessoas, dependendo da medida em que elas
conseguem realizar tais aspirações. Mas os anseios não estão definidos antes de todas as
experiências. Desde os primeiros anos de vida, os desejos vão evoluindo, através do convívio
com outras pessoas, e vão sendo definidos, gradualmente, ao longo dos anos, na forma
determinada pelo curso da vida; algumas vezes, porém, isto ocorre de repente, associado a
uma experiência especialmente grave. Sem dúvida alguma, é comum não se ter consciência
do papel dominante e determinante destes desejos. E nem sempre cabe à pessoa decidir se
seus desejos serão satisfeitos, ou até que ponto o serão, já que eles sempre estão dirigidos
para outros, para o meio social. Quase todos têm desejos claros, passíveis de ser satisfeitos;
quase todos têm alguns desejos mais profundos impossíveis de ser satisfeitos, pelo menos no
presente estágio de conhecimento.
116
O autor dá a pista de que, para estudar um indivíduo,
é preciso ser capaz de traçar um quadro claro das pressões sociais que agem sobre o
indivíduo”. Informa que seu trabalho não se trata de “uma narrativa histórica, mas a
elaboração de um modelo teórico verificável da configuração que uma pessoa – neste caso,
um artista do século XVIII – formava, em sua interdependência com outras figuras sociais da
época (ELIAS, 1995, p.18).
O modelo teórico elaborado pelo sociólogo para estudar o indivíduo despertou
novas possibilidades de empreender sondagens para pensar no modelo das estruturas
sociais do século XIX, para compreender o que o sujeito Antonio de Sá e Camargo –
futuro Visconde de Guarapuava, “envolvido por tal sociedade, era capaz de fazer
enquanto indivíduo, e o que – não importa sua força, grandeza ou singularidade - não
era capaz de fazer” (ELIAS, 1995, p.19). Deve-se levar em consideração que o futuro
Visconde de Guarapuava foi um representante com poderes na sociedade em que
estava envolvido. Mas, isso não anula a idéia do texto para entender as coerções
inevitáveis que agiam sobre Antonio de Sá e Camargo e como se “comportou em
relação a elas - se cedeu à sua pressão e foi assim influenciado” (ELIAS, 1995, p.19)
em suas decisões no jogo social.
As colocações desses dois autores auxiliam na reflexão sobre o personagem
Antonio de Sá e Camargo, no que diz respeito às ações praticadas por ele. Tais
reflexões devem procurar mostrar a amplitude da sua trajetória como um indivíduo que
viveu em conflitos, teve decepções, perdas, sofrimentos, solidão, e também,
experenciou paixões, alegrias, encantamentos, entender que a reconstrução da sua
trajetória estará imbricada nos universos indissociáveis - íntimo, privado e público -,
que se articularam em toda sua existência.
A narrativa do episódio da morte do filho de Antonio de Sá e Camargo e
Zeferina demonstra tratar-se de uma estrutura narrativa interessante e com apelo
dramático a qual deveria ser investigada com maior profundidade.
A perda inusitada do filho desfaz o projeto familiar de Antonio de Sá e
Camargo, que contava então com trinta e dois anos mais ou menos. Até a sua morte,
em 1896, não refez formalmente o casamento com Zeferina, nem construiu outra
unidade familiar. A documentação existente não sugere outros filhos fora do
117
casamento consagrado na igreja com Zeferina. Ela permanece como sua única esposa,
em todos os atos formais em que sua presença era requisitada. Encontrou-se somente
no registro de óbito de Antonio de Sá e Camargo, realizado pelo vigário Domingos
Vicente, a referência à sua separação: “Antonio de Sá e Camargo, Visconde de
Guarapuava, 89 anos, casado, separado, aos sete de novembro de mil oitocentos e
noventa e seis nesta paróquia faleceu de morte natural...66”.
Antonio de Sá e Camargo viveu 60 anos depois do seu casamento como um
homem casado, sem esposa e filhos. Interessante observar neste universo paradoxal
para o século XIX, como este “homem de bem” experienciou os conflitos e aspirações
pessoais. A comunidade como um todo foi tomada de uma comoção pelo drama
pessoal que sofreram Antonio e Zeferina. A estranha morte de Firmino apresenta-se
como um acidente, algo inusitado, não previsto, isto é, excepcional. Torna-se
inquietante e ameaçador, porque ocorreu fora do controle e “denunciam a precariedade
da condição humana” (RODRIGUES, 1986, p 16)67.
Esses elementos desafiadores, embora presentes nas sociedades, são pensados
como anômalos, e significam alterações profundas na vida dos envolvidos. Não afetam
porém só o grupo imediato, “a morte insólita ocorrida fora da rotina, longe das
previsões, colhendo de surpresa os sentimentos sociais. Provocam uma comoção
especial: ferem incisivamente. Devem ser seguidas das mais cristalinas reiterações dos
símbolos de solidariedade” (RODRIGUES, 1986, p.59).
O projeto de vida de Antonio de Sá e Camargo encontrava-se respaldado pelos
demais membros da comunidade local, em iguais condições à sua: grandes
proprietários de terra, gado, riqueza e detentores do poder econômico e político; isto é,
ter uma família com descendentes. A ruptura do projeto cria um conflito e leva a
situação de drama social que, de acordo com Victor TURNER68 (1974, p.39), implica
66
VICENTE, Domingos. Registro de óbito de Antonio de Sá e Camargo. Livro de
assentos de óbitos pessoas livres nesta paróquia, Guarapuava. 07 nov. 1896, registro n. 33.
67
RODRIGUES, José Carlos. O tabu do corpo. 4. ed. Rio de Janeiro: Dois pontos, 1986.
68
TURNER, Victor. Dramas, Fields and Metaphors: Symbolic Action in Human Society.
Cornell University Press. USA: Ithaca and London, 1974. [Printed in the United States of America by
Vail-Ballou Press, inc.] Texto traduzido por Ana Maria Rufino Gillies, Mestre em História
contemporânea. UFPR. Novembro, 2004.
118
renegociar a realidade em confronto com outros sujeitos ou grupos, manipulando e
dando sentido ao conjunto de valores existentes na sociedade. Significa estabelecer
estratégias particulares para depois da crise, manter-se integrado, utilizando uma ação
reparadora.
No caso do indivíduo Antonio de Sá e Camargo, ao devolver a esposa aos
pais, não se separando oficialmente, atribuiu uma nova visão dos valores estabelecidos
sobre a família conjugal, porém manteve as alianças com o grupo da parentela. Desse
modo, permaneceu no grupo, recebendo solidariedade de todos que poderiam, em
princípio, ter sofrido o mesmo infortúnio, pois foi essa possibilidade que a tragédia
com o filho revelou.
Com o passar do tempo, o drama pessoal vivido por Antonio de Sá e Camargo
deu-lhe credibilidade na comunidade que passou a vê-lo como um homem capaz de
enfrentar suas perdas, romper com as regras institucionalizadas, tomar decisões, um
indivíduo capaz de liderar pessoas acima de seus vínculos pessoais.
O infortúnio da morte do filho e o casamento desfeito reforçam a concepção e
a imagem que a população da Freguesia de Nossa Senhora de Belém elaborou a seu
respeito, pois simultaneamente ao trágico episódio da vida privada, Antonio de Sá e
Camargo é indicado como membro da Guarda Nacional.
Para ingressar na Guarda Nacional e assumir funções na hierarquia dessa
corporação, o distinto senhor precisava gozar da condição política de ser um homemlivre, ter independência econômica e o direito conquistado de participar
autonomamente na comunidade local. Do outro lado, o Estado deveria ser generoso
com esses senhores, oferecendo distinções honoríficas pelos serviços prestados,
comendas militares e os títulos de nobreza, sem remuneração salarial.
Antonio de Sá e Camargo estava dentro dos padrões exigidos para alcançar o
posto de oficial na hierarquia da Guarda Nacional: riqueza, propriedade de terra e de
escravos, status social e berço “fidalgo” (tanto seu pai quanto seus avôs - paterno e
materno – foram alferes).
119
4
VISCONDE DE GUARAPUAVA: UM HOMEM DE PRESTÍGIO NA
PROVÍNCIA DO PARANÁ
4.1 O
PODER
LOCAL,
REGIONAL
E
NACIONAL:
A
ARTE
DAS
ARTICULAÇÕES.
Visando controlar as agitações e revoltas, o governo regencial (1831 - 1840)
criou a Guarda Nacional, em 1831, composta por milícias civis organizadas pelos
proprietários de terra. Os coronéis e majores da Guarda Nacional foram os chefes
políticos regionais e tiveram, assim, seu poder local reforçado69. Antonio de Sá e
Camargo foi o escolhido para Comandante Superior da Guarda Nacional, na Freguesia
de Nossa Senhora de Belém.
A discussão em torno das relações entre o Estado e os grupos privados no
processo de formação do Estado, ocorrida durante o século XIX, já foi analisada por
Oliveira VIANA, Raymundo FAORO, Nelson Werneck SODRÉ, Sérgio Buarque de
HOLANDA, Fernando URICOECHEA70, entre outros. As versões interpretativas
trabalham a questão administração/dominação do poder público e sua relação com o
poder privado. Para Fernando URICOECHEA (1976, p.109), a relação entre o Estado
e os grupos privados foi concebida da seguinte forma:
69
A descentralização foi determinada pelo do “Ato Adicional de 1831”, e pelo “Código de
Processos do ano seguinte, os órgãos centrais se desmembraram para se reconstituírem ao nível
municipal. ... as legislaturas provinciais conquistaram a faculdade de definir as políticas mais
essenciais – orçamento, recrutamento das forças policiais, etc.”(Uricoechea, 1976, p.110). Mas toda
essa política de descentralização encontrou um sério problema com a nomeação do presidente de
província pelo governo imperial, porque, na maioria das vezes, o presidente da província nomeado era
de outra localidade e não atendia os problemas internos. Na década de 40, essa descentralização foi
revista, os chefes locais perderam o poder de nomear o vice-presidente e a decisão de nomear o juiz de
paz e o delegado.
70
VIANA, O . Evolução do povo brasileiro. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956. _____.
Populações meridionais do Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1973. FAORO, R. Os donos do
poder: formação do patronato político brasileiro. Rio de Janeiro: Globo, 1958. SODRÉ, N. W.
Formação histórica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1962. BUARQUE DE HOLANDA, S. Raízes
do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1969.
120
... à interpretação dessa questão durante o Império é aquele que concebe a interação da
autoridade central com o poder local como um processo complexo, composto de
antagonismos relativos, identidades relativas, e autonomias relativas entre os dois atores. O
estado gozava de uma relativa autonomia que lhe permitia eventualmente antagonizar grupos
privados e vice-versa. Simultaneamente, compartilhava-se de algum grau de identidade com
grupos privados que tornaram possível a esse poder antagonizar outras facções, e assim
sucessivamente. Nem um monismo administrativo, nem um monismo agrário podem
capturar dialeticamente todos esses aspectos do processo histórico. Era da essência do
processo certo dualismo que se manifestava, por um lado, num governo relativamente
centralizado e, por outro, numa oligarquia agrária relativamente poderosa, sendo que a
eficiência daquele - dada a natureza patrimonial e diletante do governo local – dependia da
cooperação litúrgica angariada desta última. Cada um deles era fraco sem o outro.
A partir do momento em que o governo central deixou os homens livres e
notáveis que habitavam o interior do Brasil resolverem as questões de regulação do
poder local, eles passaram a gerenciar a comunidade, e mesmo em certas situações, o
governo ficou de fora das decisões e articulações. Nem a presença do presidente de
província conseguiu coibir os mandos e os desmandos dos notórios senhores locais.
A Guarda Nacional tinha por objetivo, segundo a Lei de 18-08-1831, art.10,
citado por URICOECHEA (1976, p.133), “defender a Constituição, a liberdade,
independência, e integridade do Império, para manter a obediência às Leis, conservar,
ou restabelecer a ordem, e a tranqüilidade pública; e auxiliar o Exército de linha na
defesa das fronteiras e costas.” A Guarda Nacional foi dividida em três armas:
infantaria, cavalaria e artilharia71.
Os moradores da Freguesia de Nossa Senhora de Belém encontraram
dificuldades para a organização da sua Guarda Nacional, e a falta de um juiz de paz, na
localidade, contribuiu para o aumento das dificuldades. Os homens de bem da
Freguesia, há tempo, solicitavam aos vereadores de Castro a nomeação de tal
71
“A unidade organizacional básica da infantaria e da cavalaria era a companhia, um corpo
que consistia de até 140 e 100 homens, respectivamente, sob o comando de um capitão. Os distritos
com menos de 60 ou 70 milicianos, respectivamente, tinham apenas seções de companhia. Quatro a
oito companhias de infantaria, i.e., de 240 a 1120 homens, formavam um batalhão de infantaria,
comandado por um tenente-coronel. Duas companhias de cavalaria, i.e., de 140 a 200 guardas,
formavam um esquadrão de cavalaria. Um corpo de cavalaria, por sua vez, era composto de no
mínimo dois e no máximo quatro esquadrões. Finalmente, a unidade maior era a legião, para aquelas
comarcas que dispunham de mais de 1000 guardas, sob o comando de um coronel” (URICOECHEA,
1976, 139). O Comando Superior das Legiões da Guarda Nacional do Sul da Província de São Paulo
foi dado para o notório senhor João da Silva Machado (MACHADO, J. da S. São Paulo, 27 de maio de
1841, Arquivo do Estado de São Paulo).
121
autoridade, mas a desculpa era que não existiam, na localidade, pessoas para ocupar o
cargo:
...sabe a Câmara ali não existirem as pessoas aptas para ocupar os cargos de juiz de paz em
conformidade do Código de Processo, porém todavia a vista de tais requisições a maioria da
Câmara mandou que o juiz de paz desta, ser um homem daquela Freguesia e depois de
juramentado como delegado, voltasse a criar e elegesse interinamente um juiz de paz de que
72
recebemos ordem eficazes de v. Ex. ....
Entretanto, os senhores da Freguesia de Belém buscavam soluções para
resolver os problemas locais, com brevidade, e encaminharam um parecer expondo a
situação da localidade e a imediata necessidade de eleger um juiz de paz. A lista de
assinaturas do documento deixa claro que a localidade tinha condições de eleger seu
juiz de paz73.
Mas, os vereadores de Castro, em 1836, alegaram que a Freguesia não tinha
eleitores de paróquia para a organização do conselho local para qualificação dos
membros para a Guarda Nacional. “A cada ano, um Conselho de Qualificação local,
formado pelos eleitores vitoriosos e presidido pelo juiz de paz local, elaborava a lista
de matrícula de todos os membros qualificados da paróquia ou do distrito”
(URICOECHEA, 1976, p.138).
72
CÂMARA MUNICIPAL DE CASTRO. Ofício dos vereadores. Castro, abr. 1833.
Arquivo do Estado de São Paulo.
73
A lista conta com a assinatura de: Antonio da Rocha Loures, Benjamim José Gonçalves,
Antonio Joaquim de Lacerda, João Carvalho da Assunção, Elias de Araujo, Francisco Manuel de Assis
França, José Antonio Loures, Manoel Antonio Villa Nova, A rogo de Silverio Antonio da Silva –
Francisco Manuel de Assis França, João José de Almeida, Elias José Santos, Francisco A. Santos,
Manuel Eugênio, Salvador Ignasio, Pedro José Leite, João José Mendes, Florentino Francisco França,
Antonio Nunes de Santiago, Angelo Fernandes, Manuel Mendes de Araujo, José de Almeida, Manoel
L. de Almeida, Verissimo Ignacio Marcondes, Francisco da Rocha loures, Antonio de Sá e Camargo, a
rogo de José de Almeida de Fiusa, Antonio de Sá e Camargo, a rogo de Antonio de José de Souza,
Francisco de Ferreira da Rocha Loures, a rogo de Ignasio Antonio de Oliveira, Verissimo Ignasio de
Marcondes, Ignacio Gonçalves da Costa, Manoel Antonio, a rogo Francisco Antonio de Oliveira,
Ignacio Gonçalves da Costa, Salvador da Silveira Caldas, Francisco Ayres de Araujo, Francisco de
Paula. (Carta moradores Guarapuava, 2 abr. 1833, ofício aos vereadores de Castro, Arquivo do Estado
de São Paulo).
122
Os notórios senhores da localidade apresentaram, no ano seguinte, as
condições para organizar o conselho de qualificação para elaborar a matrícula dos
membros aptos para fazer parte da Guarda Nacional. Antonio de Sá e Camargo foi um
dos qualificados, em 20 de março de 183874. Tinha 31 anos de idade.
No início de 1843, foi nomeado pelo senhor José Carlos Pereira de Almeida
Torres, presidente da Província de São Paulo, para ocupar o posto de sargento-mor
comandante do esquadrão da cavalaria de guardas nacionais da Freguesia de
Guarapuava75. Nesse período, a Freguesia de Guarapuava estava ainda sob
administração da Vila de Castro.
A atuação do sargento-mor Antonio de Sá e Camargo pode ser evidenciada
por meio da solicitação ao presidente da Província de São Paulo, Vicente Pires da
Motta, para criação de um instrutor para o esquadrão sob seu comando, a qual foi
negada por falta de verba: “havendo–se consignado muito diminuta a quota para as
despesas com a Guarda Nacional, não poderia por conseguinte se providenciar a
medida indicada da criação de um instrutor para o esquadrão de cavalaria sob meu
comando”76. Na continuidade da solicitação, pediu ao presidente que considerasse as
indicações dos nomes para oficiais da 2ª e 3ª Companhia, assegurando que se tratava
de pessoas com “merecimento e consideração77”, homens que colaboravam nas
decisões locais.
74
CAMARGO, A. S. Ofício informação da guarda nacional. Guarapuava, 1858. Arquivo
Histórico Municipal de Guarapuava.
75
TORRES, J.C.P. de A . Nomeação de Antonio de Sá Camargo para Posto de Sargento Mor
da Guarda Nacional. São Paulo, 12 jan. 1843. Arquivo particular de João Carlos Prestes Taques
Junior.
76
CAMARGO, A de S. Solicitação instrutor para esquadrão. Guarapuava, 10 fev, 1849,
Arquivo do Estado de São Paulo.
77
Em 1847, foram nomeados o “alferes porta estandarte, João Abreu e Araujo, sargento
quartel mestre, Salvador da Silveira Caldas e para o Clarim do mesmo Esquadrão, Felix da Silva. Em
1848, na lista de Organização das Guardas Nacionais, deste Município, aparece a 1ª Companhia com
100 praças de serviço ordinário e 10 de reserva, tem no total 110 praças e sua parada é na praça da
Matriz em Guarapuava. A 2ª Companhia com 96 praças de serviço ordinário e 18 na reserva,
totalizando 114,... e a 1ª Seção de Cavalaria com 43 praças de serviço ordinário...”. (PEREIRA, J. de
S. M. Guarda Nacional – Síntese. In: Revista Monjolo, Guarapuava: ano II, n.7, p.25-29, 2001).
123
A correspondência encaminhada pelo alferes João Nepomuceno Carneiro78, da
1ª secção da cavalaria de Guarapuava, em 30 de abril de 1849, ao presidente da
Província de São Paulo, Vicente Pires da Motta, informa que,
havendo sido demitido o cidadão Antônio de Sá e Camargo do lugar de Major Comandante
do Esquadrão de Cavalaria da Guarda Nacional desta Freguesia, lembro-me também de pedir
a V. Ex. a minha demissão de Alferes da Secção do mesmo Esquadrão, em que tenho
servido, pois não tendo sacado da secretaria em tempo competente o meu título, e além disso
pertencendo eu ao partido oposicionista, entendo que também devo ser contemplado no
mesmo numero dos demitidos.
Ao se reportar à questão política, o alferes dá pistas de que a demissão de
Antonio de Sá e Camargo estava relacionada à sua opção de pertencer ao Partido
Liberal, na Província do Paraná, e de defender os ideais do partido. O retorno de um
Gabinete Conservador, em 1848, implicava tomar medidas para desarticular a rede de
poder organizada pelo partido opositor para se manter no poder central. Para o
fortalecimento do poder, era necessário desfazer os núcleos de micropoderes, nas
províncias. Antônio de Sá e Camargo detinha uma base local de aliados fiéis ao
Partido Liberal.
O fortalecimento do poder central foi difícil e complexo, e conseguir o apoio
das forças dominantes do vasto território brasileiro não foi tarefa fácil. Uma das
dificuldades foi a de controlar as revoltas que tiveram início no período regencial e se
estenderam ao segundo reinado79.
Os moradores da Freguesia de Nossa Senhora de Belém tiveram que se
defender do ataque, em junho de 1839, dos revoltosos ligados à revolta Farroupilha.
“O quartel da polícia foi atacado por 21 indivíduos... Os assaltantes ali surgiram com
altos brados de Viva a República! Dos 36 homens que defendiam o Quartel saiu ferido
78
CARNEIRO, J. N. Demissão do Alferes da 1ªSecção. Guarapuava, 30 abr, 1849. Arquivo
do Estado de São Paulo.
79
Cabanos, 1832-5, Pernambuco/Alagoas; Cabanagem, 1835-40, Pará; Farroupilha, 1835-45,
R. G. do Sul; Sabinada, 1837-38, Salvador, Balaiada; 1835-1841, Maranhão; Revolução Liberal, 1842,
São Paulo/Rio de Janeiro/Minas Gerais; Praieira, 1848-49, Pernambuco (CARVALHO. J. M. A
construção da ordem: a elite política imperial; Teatro de sombras, Rio de Janeiro, Relumé Dumará,
1996, p. 231).
124
Joaquim Alves Ribeiro. Os assaltantes deixaram 3 cavalos encilhados, sendo um
baleado e duas armas de fogo” (TEIXEIRA, 2002, p.116).
O juiz de paz Antonio de Sá e Camargo abriu processo crime contra os
revoltosos que atacaram a Freguesia para captura e prisão dos réus. A revolta
Farroupilha foi um movimento que teve origem no Rio Grande do Sul e durou de 1835
a 1845. Em 1836, foi proclamada a República do Piratini, por Bento Gonçalves. A
posição estratégica dessa Província ocasionou preocupação para o governo central, que
buscou, de todas as formas, acabar com a força constituída pelos farrapos.
Evidenciar a Revolução Liberal de 1842, em São Paulo, justifica-se pelo
envolvimento direto dos fazendeiros e tropeiros da 5ª Comarca. A Revolução Liberal,
motivada pelas medidas centralizadoras80 do Segundo Reinado, envolveu os
proprietários das províncias de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, contrários a
tais medidas. Para José Murilo de CARVALHO (1996, p.234),
...as revoltas de proprietários mostravam que o problema de consolidar um sistema de poder
não passava apenas pelo controle da população urbana e do campesinato, sem falar dos
escravos. A tarefa complicava-se pelo fato de não haver consenso entre as camadas
dominantes sobre a qual seria o arranjo institucional que melhor servisse a seus interesses.
Em parte, a falta de acordo se devia ao fato de que tais interesses nem sempre coincidiam.
Em parte, advinha do fato de que muitos dos membros dessas camadas, sobretudo os
proprietários rurais, não estavam preparados para conceber a dominação por via da mediação
do Estado.
Dentro do universo da Revolução Liberal de São Paulo, encontravam-se
personagens próximos do mundo de Antonio de Sá e Camargo: seu sogro e tio, José
Caetano de Oliveira – Barão do Tibagi, que ajudou na fuga de Rafael Tobias de
Aguiar, um dos líderes do movimento, para a Província do Rio Grande do Sul.
Compartilharam também dos ideais desse movimento outros fazendeiros das regiões
dos Campos Gerais e Campos de Guarapuava, entre os quais, Antonio de Sá e
80
O regresso do Partido Conservador, em março 1841, determinou modificações no Código
do Processo Criminal. “...as assembléias estaduais deixariam de ter jurisdição sobre funcionários do
governo central; todo o funcionalismo da Justiça e da política passou a ser controlado pelo Ministro da
Justiça; o único juiz eleito, o juiz de paz, perdeu boa parte de suas atribuições em benefício dos
delegados e subdelegados de polícia. O ministro da Justiça ganhou o poder de nomear e demitir, por
meios diretos ou indiretos, desde o desembargador até o guarda de prisão” (CARVALHO, J. M. 1996,
p.235).
125
Camargo e José Antonio de Camargo e Araújo, ligados ao Partido Liberal, sendo
Jesuíno Marcondes de Oliveira e Sá o chefe maior na 5ª Comarca de São Paulo.
Defender os ideais do seu grupo de convívio fazia parte das regras, pois as medidas do
governo central afetaram o poder desses notórios senhores. Entretanto a Revolução
Liberal foi controlada pelo governo central, com medidas enérgicas. Entre os adeptos,
alguns foram perseguidos, outros foram presos e outros conseguiram fugir. O retorno
do Partido Liberal ao poder dois anos depois da Revolta Liberal, em 1844,
“demonstrou aos revoltosos da véspera que podiam chegar ao governo e que havia,
portanto, lugar para a divergência oligárquica dentro sistema” (CARVALHO, 1996, p.
235). Esse retorno ao poder revelou aos oposicionistas que a alternância do poder,
entre as facções políticas do Império, era importante para a Coroa, pois, dessa forma,
estaria evitando o monopólio do poder. Através desse jogo político, o imperador
procurava manipular o poder para manter a ordem no interior das províncias e na
Corte, tornando-se, em algumas ocasiões decisivas, o árbitro das desavenças entre os
grupos dominantes. Na fala do trono, em 1844, Pedro II “anunciou que tinham sido
anistiados todos os comprometidos nos movimentos revolucionários de S. Paulo e
Minas” (FLEIUSS, 1922, p.249).
Em setembro de 1848, o Partido Conservador retornou ao poder,
permanecendo nele até maio de 1852, e a demissão de Antonio de Sá e Camargo está
relacionada à atuação dos conservadores para a manutenção do poder. Depois da sua
demissão do comando da Guarda Nacional, na localidade, continuou a atuar em outras
funções na Vila: administração da abertura e conservação da estrada da mata; pela
criação da Câmara Municipal; cuidados com a construção da igreja; e luta pela
emancipação política da Província ocupavam seu tempo, além dos negócios com a
compra e venda de gados e muares.
126
Depois da emancipação política e administrativa da Província do Paraná, em
dezembro 1853, o presidente da Província, Zacarias de Goes e Vasconcelos, seguindo
as orientações imperiais81 transmitidas pelo ministro do Império, Dr. Luiz Pedreira do
Couto Ferraz, tomou as devidas medidas para pôr em prática as instruções imperiais:
nomeação dos funcionários que iriam formar o corpo administrativo para dar
andamento nos trabalhos políticos e administrativos na nova Província.
Com relação à organização da Guarda Nacional, somente a partir de 1855, por
meio de um decreto imperial, foi determinada a nomeação dos comandantes para
organizarem seus corpos de comandados na nova Província. O comando superior de
Castro e o de Guarapuava ficou a cargo do coronel Manoel Inácio do Canto e Silva,
que deu o encaminhamento para organizar a corporação sob seu comando, e Antonio
de Sá e Camargo foi chamado para reassumir seu cargo na Guarda Nacional.
O pedido de Antonio de Sá e Camargo82, encaminhado ao presidente da
Província do Paraná, solicitando sua demissão do cargo de diretor dos índios da extinta
81
De uma maneira geral seguiam orientações para: 1º A instalação da sede administrativa do
governo, com nomeação dos funcionários para desenvolvimento dos trabalhos; e organização das
eleições para constituição da assembléia provincial; 2º. Nomeação para o cargo de administrador geral
dos correios e organização das agências para o interior da província; 3º. Nomeação do provedor da
Saúde dos Portos da Província; 4º. Promover a eleição para um senador e um deputado à assembléia
Geral e dos membros da Assembléia Legislativa Provincial; 5º. Promover levantamento detalhado
sobre o estado em que se encontra a instrução pública, o comércio, a mineração e a indústria em geral;
6º a 10º instrução: ambas tratavam de melhorias nas vias de comunicação terrestres e fluvial da
província, da abertura de uma estrada para o litoral e instalação de barreiras nas principais vias, para
arrecadação de rendimentos para conservação das ditas vias; 11º. Recomendação para promover o
aumento da população livre, através do incentivo à colonização estrangeira e da fundação de presídios
e colônias militares, repassando a informação das localidades mais apropriadas; pede também para
informar a respeito da catequese e civilização dos indígenas, para finalizar essa instrução pede
informações a respeito da colônia alemã do Rio Negro e de Santa Tereza no rio Ivaí, dirigida pelo Dr.
Faivre. 12º. Informações a respeito da colônia militar do Jataí e da navegabilidade do rio Tibagi. 13º.
Solicita informações sobre o estado dos aldeamentos dos indígenas nos campos de Guarapuava e de
Palmas, lembrando as providências que lhe parecerem mais acertadas para aumentar o número destes
aldeamentos, restabelecer os abandonados e velar na conservação dos que ainda existam na Província,
quando por circunstâncias especiais não sejam suficientes, ou não convenham algumas disposições do
Regulamento nº 426 de 24 de julho de 1845. 14º. Após conhecer as necessidades da província deverá
prestar informações ao governo imperial para este poder atender por meio eficaz ou através de ato do
poder legislativo geral. 15º. Solicitação para que o presidente atendesse aos aldeamentos do Ivinheima
e Varadouro localizados na província do Mato Grosso, mas de proximidade e acesso mais fácil pela
província do Paraná e estando os mesmos sob a direção do Barão de Antonina, pede ao presidente que
forneça os recursos necessários para o seu desenvolvimento (MOREIRA, J., 1974, p.9).
82
CAMARGO, A de S. Pedido de demissão do cargo de diretor dos índios. Guarapuava,
23 jul. de 1855. Arquivo Público Paraná. A P.017, p.7.
127
aldeia de Guarapuava, por ter sido nomeado major comandante do esquadrão da Vila
de Guarapuava, deixa claro que reassumiu o cargo na Guarda Nacional, depois da
emancipação política da Província.
Júlia de Santa Maria PEREIRA (2001.p.28) informa que
...o governo da Província no ano de 1857, faz as nomeações para a Guarda Nacional de
Guarapuava e Palmas. Para o 4° Esquadrão de Cavalaria, na 1ª Companhia: Capitão
Francisco Ferreira da Rocha Loures, Tenente José Francisco dos Santos e Alferes Cândido
Ayres de Araújo.
Na 2ª Companhia o Capitão Manoel Marcondes de Sá, Tenente Frederico Guilherme
Virmond Júnior, Alferes Joaquim Tavares de Miranda Lacerda e para a Seção de
Companhia, o Tenente Francisco Antônio Alves Rocha e Alferes João Simão Gonçalves de
Andrade.
Para o Estado Maior: Alferes Porta Estandarte Manoel José Moreira, e cirurgião com
graduação de Alferes, Pedro de Siqueira Côrtes.
Para a Seção de Companhia do Distrito de Palmas: Tenente Antônio Caetano de Oliveira
Nhozinho e Alferes Joaquim Manoel d´Oliveira Ribas.
Entre esses senhores, a presença do núcleo parental de Antonio de Sá e
Camargo pode ser percebida: seu primo, Capitão Manoel Marcondes de Sá e, no
distrito de Palmas, seu cunhado, o tenente Antônio Caetano de Oliveira, o Nhozinho.
O pedido de informações do comandante superior de Castro ao major Antonio
de Sá e Camargo (anexo 5), e as informações prestadas, na nota abaixo, revelam
indícios da sua vida pessoal e atuação na Guarda Nacional, em Guarapuava:
Major Antonio de Camargo, comandante do 4ªEsquadrão, Filho de Antonio Francisco de
Camargo, Natural do Paraná, Casado, Negociante proprietário rendimento 8:000$ anuais,
idade 50 anos, foi qualificado guarda a 20 de março de 1838, foi nomeado Major
Comandante do Esquadrão da Guarda Nacional por portaria do Presidente da Província de
São Paulo em 1842, demitido em 1849, nomeado por Decreto Imperial de 21 de fevereiro de
1855. Licenças, tem pelo comando superior 3 meses de licença contadas do dia 20 de abril a
20 de julho de 1858 para tratar de seus negócios dentro da Província83.
Prestar serviço na Guarda Nacional e demais cargos que assumiu,
conjuntamente, deu condições para Antonio de Sá e Camargo tornar–se um homem de
influência. Na prática, a função da Guarda Nacional era a de atender à insuficiência de
funcionários burocráticos, realizando as seguintes atividades: fornecimento de
83
CAMARGO, A . de S. Ofício informação ao Comando Superior da guarda nacional.
Guarapuava, 12 set, 1858. Arquivo Histórico Municipal de Guarapuava.
128
milicianos para as solicitações dos juizes e delegados para auxiliarem na captura de
criminosos ou transferência de presos; policiamento da Vila; patrulhamento dos
sertões e captura dos “bugres”; abertura e reparos dos caminhos; e, também, as frentes
de guerra, em especial os confrontos no sul do Brasil e a Guerra do Paraguai, deram
condições a Antonio de Sá e Camargo de demonstrar aos seus superiores na hierarquia
da corporação, e ao próprio imperador D. Pedro II, o “prestígio local” que tinha
alcançado na região de Guarapuava.
Sua nomeação, em abril de 1864, para comandar a nova unidade composta
pelo 7º corpo de cavalaria, pelo 7º batalhão de infantaria e pelo 6º esquadrão, em
Guarapuava e Palmas juntamente com seu tio, para chefe do Estado Maior, o Major
Manoel Marcondes de Sá, são indícios claros do seu prestígio na localidade.
Em 1865, o então presidente da Província, André Augusto de Pádua Fleury,
encaminha, a todas as províncias, o decreto Imperial nº 3371, de 7 de janeiro de 1865,
apelando a todos os brasileiros para prestarem serviço na defesa da pátria. O coronel
Antonio de Sá e Camargo, depois de tomar conhecimento, repassou as informações à
tropa sob seu comando e, também, solicitou o auxílio da comunidade. “...Cumpre-me
em resposta significar a V.Ex, que já estão dadas as providências necessárias no
sentido de ser satisfeita a sua recomendação e muito estimarei que a leitura do mesmo
Decreto, despertando na Guarda Nacional o patriótico entusiasmo, produza o resultado
desejado com a apresentação de muitos voluntários para defesa da Pátria”84.
Para Lilia Moritz SCHWARCZ (1999, p.314), o Império brasileiro tinha como
força principal, no início da guerra, a Guarda Nacional: “A sua força fundamental era
constituída
pela
Guarda
Nacional,
diretamente
formada
por
latifundiários,
comerciantes e políticos”.
84
CAMARGO, A .S. Ofício ao Presidente da Província do Paraná. Guarapuava, 5 fev.
1865. Arquivo da Câmara Municipal de Guarapuava. Livro de expediente da Guarda Nacional de
Guarapuava.
129
O coronel Antonio de Sá e Camargo passou o comando da Guarda Nacional e
as determinações encaminhadas pelo presidente da Província para Francisco Ferreira
da Rocha Loures, para este seguir para os Campos Gerais, em cumprimento do
Decreto n.3383 de 16 de janeiro 1865, para o “fim de ser cumprido neste comando a
parte em que toca lhe dar 40 guarda nacional (sic) para a formação dos corpos
destacados... 85”.
O 1ºconselho de qualificação composto no período contou com os senhores
Francisco Ferreira da Rocha Loures, como presidente, Pedro de Siqueira Cortes, juiz
municipal e José Tavares de Miranda Lacerda, presidente da Câmara. Selecionaram 25
guardas nacionais da paróquia de Guarapuava e ficaram faltando 15 guardas nacionais
para serem recrutados na paróquia de Palmas. A lista foi encaminhada ao presidente da
Província do Paraná86.
O presidente da Câmara Municipal de Guarapuava, na sessão em 8 de março
de 1865, realizou a leitura do Decreto Imperial, que fazia apelo aos cidadãos
brasileiros para “pegarem armas” em defesa do Império brasileiro, motivado pelo
confronto no sul do país, com o Paraguai.
O Governo Imperial... em que chama as armas para defender a integridade do Império, todos
os cidadãos que quiserem se alistar nas fileiras dos Voluntários da Pátria, aclamado por esta
Câmara o Decreto depois de lido e publicado, a Câmara responde ao governo da Província
que (?) todos os seus esforços para nas emergências atuais mostrar–se digna (?) seus
munícipes dos valentes Paulistas de que são descendentes, e para que os seus concidadãos se
(?) seus deveres.87
As providências dos vereadores para atender à solicitação do imperador D.
Pedro II foram imediatas. Medidas foram tomadas para que o alistamento fosse
realizado com a maior brevidade, para encaminhar para a capital da Província os
85
LOURES, F. F. R. Informações sobre qualificação de corpos destacados para
Guarapuava. Guarapuava, 24 fev. 1865. Arquivo da Câmara Municipal de Guarapuava. Livro de
expediente da Guarda Nacional de Guarapuava.
86
LOURES, F. F. da R. Ofício sobre informações de corpos destacados. Guarapuava. 25
fev. 1865. Arquivo da Câmara Municipal de Guarapuava. Livro de expediente da Guarda Nacional de
Guarapuava.
87
CÂMARA MUNICIPAL DE GUARAPUAVA. Guarapuava. Ata da sessão realizada no
dia 8 mar. 1865. Livro 02.
130
cidadãos da Vila de Guarapuava que se disponibilizaram a atender ao chamado do
imperador do Brasil.
No largo da matriz de Nossa Senhora de Belém, em abril de 1865, os 23
voluntários de Guarapuava foram homenageados pela comunidade e pelo brigadeiro
Francisco da Rocha Loures, o qual fez um discurso saudando seus conterrâneos que
seguiriam para Curitiba para fazer parte dos batalhões que seriam encaminhados para o
sul do país.
Em período posterior, os vereadores receberam os agradecimentos
transmitidos por correspondência pelo presidente da Província: “Agradecendo os
esforços dos cidadãos patrióticos do município de Guarapuava pelo envio de 23
homens que se alistaram para Voluntários da Pátria” 88.
Entretanto o clima de confraternizações logo foi desfeito, pois o confronto no
sul exigia um número maior de homens para enfrentar o “teatro da guerra89”. As
exigências dos comandos superiores do Império brasileiro pressionavam os presidentes
das províncias que, por sua vez, pressionavam os comandantes das Guardas Nacionais
nas localidades em que existiam. Isso pode ser evidenciado no que diz respeito ao
comando interino da Guarda Nacional de Guarapuava, que não dava conta de atender
às solicitações superiores de encaminhar os guardas destacados para fazer frente ao
confronto. Vários problemas apresentaram-se nesse momento: falta de organização
interna do novo comando ocasionada pela falta de nomeações dos comandantes das
companhias e mais oficiais subalternos; falta de pagamento aos destacados; fuga dos
destacados para não irem para a guerra. Essas questões foram evidenciadas na resposta
dada ao presidente da Província, pelo comando interino:
Havendo-me sido ordenado pela Presidência em circular reservada... para enviar presos a
V.S. os Guardas Nacionais designados deste comando que depois de avisados por edital não
se apresentarem no prazo de dez dias prontos a seguirem para essa capital, tenho a ponderar
a V. S. que nesta data apresento a mesma Presidência as dificuldades se não impossíveis da
ida de todos esses guardas, quer presos, quer voluntários, em conseqüência, não só por ter
sido feito as designações em corpos ainda não organizados, como pela ma qualificação que
88
CÂMARA MUNICIPAL DE GUARAPUAVA. Guarapuava. Ata da sessão realizada no
dia 26 jun. 1865. Livro 02.
89
Expressão do romancista Machado de Assis, em Iaiá Garcia, citado por Lilia Moritz
SCHWARCZ, As barbas do imperador; D. Pedro II, um monarca nos trópicos. p. 304.
131
encontrarão os respectivos conselhos de designação, V. S. deve saber que os Guarapuavanos
não foram indiferentes aos reclames da Pátria, concorrendo com voluntários e donativos para
a guerra. Porém quanto aos guardas designados só se poderá preencher o numero com nova
designação. Pelo exposto espero também ser por V. S, relevado de alguma falta que por
ventura houver na remessa dos oito designados90.
Agrava essa situação a ausência do coronel Antonio de Sá e Camargo do
comando direto da Guarda Nacional de Guarapuava, motivada pela própria guerra,
porque foi chamado pelo Comando Superior aos Campos Gerais e, também, por estar
com a saúde debilitada. A falta de determinação dos seus substitutos, para fazer
cumprir as ordens do presidente da Província, revelou o poder de comando que
Antonio de Sá e Camargo detinha em relação ao grupo que estava sob seu comando.
“Tenho a honra de comunicar a V. Ex. que em data de hoje assumi o Comando
Superior da Guarda Nacional desta Comarca, não o tendo feito antes em razão de
inconvenientes que hei sofrido91.” Reassumindo seu cargo, passou as informações aos
seus subalternos, comandante do 7º Batalhão, comandante do 7º Corpo de Cavalaria,
comandante do 6º Esquadrão e para o comandante da força aquartelada na Vila,
conclamando a ajuda de todos para que pudessem desempenhar bem os deveres de seu
cargo. Solicitou aos comandantes: “Para cumprimento dos meus deveres convém, que
com urgência V. S. declare-me, se os oficiais nomeados para o corpo da cavalaria sob
seu comando se acham todos juramentados e no exercício dos seus respectivos postos,
declarando igualmente o nome daqueles que tal juramento ainda não prestarão” 92
Atendendo às solicitações do presidente da Província, passou a executar as
funções que seu cargo determinava: encaminhamento do mapa da Guarda Nacional de
Guarapuava, dando noção ao presidente do número de guardas qualificados no
município. Tomou medidas para atender ao pedido do envio de indivíduos para o
90
LOURES, F. F. da R. Informações sobre problemas internos do comando. Guarapuava.
10 jul. 1865. Arquivo da Câmara Municipal de Guarapuava. Livro de expediente da Guarda Nacional
de Guarapuava.
91
CAMARGO, A de S. e. Comunicado ao Presidente da Província. Guarapuava. 14 nov.
1865. Arquivo da Câmara Municipal de Guarapuava. Livro de expediente da Guarda Nacional de
Guarapuava.
92
CAMARGO, A de S. e. Solicitação aos seus comandados. Guarapuava. 21 nov. 1865.
Arquivo da Câmara Municipal de Guarapuava. Livro de expediente da Guarda Nacional de
Guarapuava
132
corpo de destacados para a guerra. Essa questão vinha causando constrangimento para
o comandante anterior, que tinha comunicado ao presidente, em correspondência, que
já se encontravam aquartelados os guardas nacionais para o serviço da fronteira, num
total de 78 homens, e mais 5 oficiais voluntários, faltando apenas 17 para atender ao
número de 100 homens que fora exigido da localidade.
O coronel Antonio de Sá e Camargo realizou inspeção junto aos homens
destacados para o serviço e relatou ao presidente da Província que “Nessa lista figurão
guardas em que servem de amparos as suas mães viúvas, pobres e afamiliadas, outros
que socorrem a seus velhos pais, e outros reconhecidamente doentes, que não podem
fazer o serviço que lhes esta destinado e finalmente outros reconhecidos ter mais de 40
anos93”. Apontou as falhas na qualificação dos guardas e sugeriu dispensar os
indivíduos não aptos ao serviço. A solução seria chamar outros indivíduos ao quartel,
em condições mais adequadas. Exercendo seu poder de comandante superior, tomou
providências para que os praças dispensados fossem substituídos com brevidade,
passando determinações aos seus subalternos:
Sendo justo e razoável dispensar-se algumas praças que o corpo de cavalaria sob o comando
de V. S. forneceu para o serviço de corpos destacados, por esse motivo convém que V. S.
expeça suas ordens de modo que dentro do prazo de 8 dias, a contar-se desta data,
apresentem-se nesta vila para o dito destacamento 6 praças incluso as duas que a mais de
quinze dias lhe foram requisitadas. ... Espero que V. S. fará tudo quanto estiver da sua parte
para que o serviço da guarda nacional fique o mais fácil que for possível94.
Na comunicação de 20 de dezembro 1866 informou que o número de
indivíduos aquartelados na Vila já era de 93 praças e mais 12 em Palmas, esclarecendo
que estava cumprindo com as solicitações do governo provincial para organizar
o corpo de destacados para serviço na guerra. Ponderou que o número de praças
93
CAMARGO, A de S. e. Informação a respeito dos guardas para o serviço da guerra.
Guarapuava. 25 nov. 1865. Arquivo da Câmara Municipal de Guarapuava. Livro de expediente da
Guarda Nacional de Guarapuava.
94
CAMARGO, A de S. e. Ordens para seus comandados. Guarapuava. 19 dez. 1865.
Arquivo da Câmara Municipal de Guarapuava. Livro de expediente da Guarda Nacional de
Guarapuava.
133
destacados já era suficiente para a região, e diz serem constantes as reclamações e
súplicas a seu comando pelos familiares:
As famílias moradores nos longe desta vila querem os seus filhos como apoio ao não
abandono de suas casas pelo temor dos índios – outros falam em falta de meios para pagarem
a quem cuide na lavoura95...” acrescenta ainda que a comunidade já tinha prestado ajuda
financeira, doação de armas, munições e escravos. Nesse momento, eram seus filhos que
estavam sendo chamados para a defesa da fronteira com o sul, e isso estava causando
clamores na localidade. Por isso, o apelo por parte do comandante para o presidente atender
ao pedido de aceitar a proposta de Guarapuava colaborar com 100 indivíduos para fazer
parte dos corpos de destacados para a guerra contra o Paraguai: Se V. ex. resolver-se a
atender a que tenho exposto fará um grande benefício aos que dele precisam, e este
município terá isso em muita conta96.
A falta de pagamento dos praças destacados foi um das questões que causaram
mal-estar na vila,
... alguns dias depois que assumi o comando superior da Guarda Nacional desta, deu-se, com
efeito, o fato de uma fração dos guardas aquartelados virem a minha casa exigir o pagamento
dos seus vencimentos,... Não se daria o fato referido se por ventura aqueles que mais
interesse devem ter pela disciplina da Guarda Nacional, fossem (?) em fazer ver a ela o
cumprimento de seus deveres97.
Outro problema estava relacionado com a fuga dos guardas destacados. Para
trazer de volta esses indivíduos ao quartel, realizou vários pedidos às autoridades de
Ponta Grossa, Palmeira, Campo-Largo e até da Província de São Paulo, através de
correspondências, solicitando a captura se, por ventura, essas pessoas estivessem
escondidas nessas localidades. Através desses pedidos, deixou transparecer as
articulações entre os municípios e o poder que cada indivíduo tinha na localidade.
O apelo realizado por Antonio de Sá e Camargo ao capitão Estevão Ribeiro do
Nascimento, seu cunhado, casado com sua irmã, Gertrudes, expõe suas questões
particulares relacionadas com sua doença e o pedido de licença que lhe foi negado pelo
95
CAMARGO, A de S. e. Reclamações familiares guardas destacados. Guarapuava. 20
dez. 1865. Arquivo da Câmara Municipal de Guarapuava. Livro de expediente da Guarda Nacional de
Guarapuava.
96
Id.
97
CAMARGO, A de S. e. Reclamações com o pagamento dos praças destacados.
Guarapuava. 02 jan. 1866. Arquivo da Câmara Municipal de Guarapuava. Livro de expediente da
Guarda Nacional de Guarapuava.
134
presidente da Província, esclarecendo que, “supondo que na presente conjuntura os
meus serviços poderiam alguma coisa valer, não só negou-me a licença pedida, como
tão bem a mim positivamente ordenou-me que para ca viesse98”.
A partir desse pedido do presidente da Província, deixou de lado seus interesses
particulares e tratou de desempenhar seu serviço na Guarda Nacional para “além da
causa que advogamos contra o Paraguai”.Fez um pedido ao seu cunhado, solicitando
que este enviasse seu sobrinho para fazer parte do corpo de destacados.
...Estevão - assim, certo de que V.m. pode prestar um bom contingente, eu solicito de V.m.
não só o envio de seu filho e meu sobrinho Alípio a reunir-se ao destacamento que tem de
fazer parte de corpos destacados, mas tão bem intervir para que todos os mais de boa mente
se prestem. É deste modo que os homens adquirem direitos necessários para os atos da
vida99.
A presença nos corpos dos destacados do próprio sobrinho do comandante
superior demonstrava sua conduta perante as autoridades e, também, da comunidade e
de seus valores para com a pátria nesse momento de guerra.
Mesmo com muitos problemas, o comandante demonstrou que cumpriu as
funções na Guarda Nacional que o governo imperial lhe atribuiu. Defendeu a fronteira
sudoeste do território paranaense com o Paraguai em conjunto com a comunidade, que
atendia a seus apelos tanto de ajuda financeira como de alistamento dos jovens para
fazer parte do corpo de destacados. Para o bom desempenho das funções, contou com
o auxílio de seus comandados, sendo alguns dos postos de comando ocupados por seus
parentes.
Levo as mãos de V.Ex. o mapa incluso, de toda a força da guarda nacional deste município
sob meu comando com declaração dos oficiais que se acham fardados e armados, assim
como as informações dos guardas que se acham na campanha do sul e serviços prestados
98
CAMARGO, A de S. e. Pedido ao capitão
Guarapuava. 24 jan. 1866. Arquivo da Câmara Municipal de
Guarda Nacional de Guarapuava.
99
CAMARGO, A de S. e. Pedido ao capitão
Guarapuava. 24 jan. 1866. Arquivo da Câmara Municipal de
Guarda Nacional de Guarapuava.
Estevão Ribeiro do Nascimento.
Guarapuava. Livro de expediente da
Estevão Ribeiro do Nascimento.
Guarapuava. Livro de expediente da
135
pela mesma guarda dentro do município especificando as diversas naturezas dos serviços que
prestaram...100.
Antonio de Sá e Camargo agradeceu ao vice-presidente da Província,
Agostinho Ermilino de Leão, a comunicação que este encaminhou, informando a
respeito das homenagens prestadas pela Câmara dos Deputados aos guardas nacionais,
com o pedido que fosse repassado aos seus comandados, “um voto de louvor e
gratidão aos comandantes em chefe, generais, oficiais, voluntários, guardas nacionais e
praças de terra e mar, pelos serviços prestados durante a guerra...101”.
A atuação do coronel Antonio de Sá e Camargo como comandante superior da
Guarda Nacional, em Guarapuava, foi intercalada por pedidos de licença para cuidar
de sua saúde. Os pedidos para seu retorno, feitos pelo presidente da Província,
aconteciam nos momentos em que seus substitutos não conseguiam atender às
solicitações do governo. Observou-se que, ao retornar ao comando, suas ordens são
executadas e atendidas com maior rapidez. O coronel fez seu último pedido de licença
no ano de 1871, depois do término da guerra: “cumpre-me levar ao conhecimento de
V.Ex. que entrei hoje no gozo da licença que V. Ex. me concedeu por despacho de 8
de maio... 102”.
Sua atuação na Guarda Nacional, desde os trinta e um anos de idade, deu-lhe
condições para criar estratégias para atuar como um homem público. A Freguesia de
Nossa Senhora de Belém era uma sociedade em formação. O crescimento econômico
com base na fazenda de criar e no comércio de gado e muares esteve subordinado à
ampliação e confirmação das relações sociais, sobre as quais se fundavam
as necessidades de subsistência. Foi nesse contexto que as formas de entrelaçamento
100
CAMARGO, A de S. e. Informações dos guardas nacionais de Guarapuava.
Guarapuava. 06 jan. 1866. Arquivo da Câmara Municipal de Guarapuava. Livro de expediente da
Guarda Nacional de Guarapuava.
101
CAMARGO, A de S. e. Agradecimento ao presidente da Província homenagem
guarda nacional. Guarapuava. 12 jul. 1870. Arquivo da Câmara Municipal de Guarapuava. Livro de
expediente da Guarda Nacional de Guarapuava.
102
CAMARGO, A de S. e. Comunicado de licença. Guarapuava. 05 jun. 1871. Arquivo da
Câmara Municipal de Guarapuava. Livro de expediente da Guarda Nacional de Guarapuava.
136
entre famílias tornaram-se significativas como um dos elementos estratégicos para o
desenvolvimento da região. A guerra com o Paraguai trouxe insegurança para a
sociedade brasileira como um todo. Entretanto o território que compreendia
Guarapuava, na segunda metade do século XIX, fazia fronteira com o país em
confronto. A defesa dessa fronteira representava também proteger seus rebanhos, suas
lavouras e os próprios indivíduos que habitavam essa região. A atuação dos notórios
senhores da comunidade tinha objetivos patrióticos, mas também particulares: a defesa
de suas propriedades e da própria vida.
Antonio de Sá e Camargo soube tirar proveito da proximidade com a
comunidade, do domínio das informações para se impor como um mediador nesse
momento de dificuldades no âmbito local, regional e nacional. Fazendeiro de posses,
dono de escravos, fazia parte de uma grande família com ramificações dentro e fora da
Província do Paraná, o que lhe deu garantias para articulações. O comando superior da
Guarda Nacional de Guarapuava deu-lhe condições de firmar sua posição para gerir,
da melhor maneira possível, os interesses da Vila.
Durante o confronto, foi homenageado em 9 de março de 1867 pelo Império
brasileiro com a graça honorífica de Cavaleiro da Ordem de Cristo: “Atendendo aos
relevantes serviços que na Província do Paraná prestarão, a bem da integridade do
Império, honra nacional, o Coronel Antonio de Sá e Camargo, ... Hei por bem nomeálos Cavaleiros da Ordem de Cristo103” (Figura 14).
Depois do término da guerra, recebeu o título de Barão de Guarapuava, por
decreto de 14 de julho de 1870. Esse título era tradicionalmente dado aos grandes
proprietários rurais que se destacavam por seu poder local e pelos bens materiais que
detinham. Barão carregava o significado de ser um homem poderoso.
Para Janne Berrance de CASTRO (1971, p.290),
o Império do Brasil, na sua fase nacional independente, tendeu a estimular a prestigiar a
formação de uma elite ligada ao trono e ao Imperador, instituindo a sua nobreza. Para
substituir uma aristocracia de linhagem criou-se outra, baseada em um prestígio social. Da
103
ARQUIVO NACIONAL DO RIO DE JANEIRO, Rio de Janeiro. Título honorífico a
Antonio de Sá e Camargo. Cx.787–D, Pac.3, doc.19.
137
mesma forma, na concessão de títulos, aos novos titulares do Império, os Bragança deram
preferência àqueles menos importantes de barão e de visconde....
Pedro II foi muito generoso com a distribuição dos títulos nobiliárquicos, em
especial aos oficiais da Guarda Nacional.
Antonio de Sá e Camargo recebeu o título de Visconde Guarapuava (anexo 7),
por decreto de 31 de agosto de 1880104, por indicação do ministério presidido pelo
liberal João Lins Vieira Cansanção de Sinimbu, período em que já se encontrava
reformado na Guarda Nacional.
Anteriormente, já havia recebido a Comenda Imperial da Ordem da Rosa
(figura 7) em 30 de outubro de 1861105. Essa ordem servia para agraciar militares e
civis que se destacaram por sua fidelidade à pessoa do imperador e por serviços
prestados ao Estado, o que foi o caso de Antonio de Sá e Camargo, que se manteve fiel
à monarquia até sua queda, tendo sido um representante local do poder do imperador.
104
VASCONCELLOS, B. Archivo nobiliarchico brasileiro. 1917. p.169.
ARQUIVO NACIONAL DO RIO DE JANEIRO, Rio de janeiro. Título honorífico a
Antonio de Sá e Camargo. Cx.789, Oficialato da Ordem da Rosa – RJ. 30/10/1861, doc.3 anx- 4fls,
Doc.1 – Doc. 50.
105
138
FIGURA 14 – MEDALHA DA ORDEM DE CRISTO
FONTE - Acervo Museu Paranaense.
FIGURA 15 – MEDALHA DA ORDEM DA ROSA
FONTE – Acervo Museu Paranaense.
139
4.2 A POLÍTICA LOCAL E A INTERMEDIAÇÃO COM O NACIONAL: “O
MOÇO REPUBLICANO E O VELHINHO MONARQUISTA”.
Antônio de Sá e Camargo, Pedro de Siqueira Cortes, Francisco José dos
Santos, Hermenegildo Alves de Araújo, Joaquim José de Lacerda, Francisco Ferreira
da Rocha Loures, Luiz da Silva Gomes, Bernardino José de Lacerda, entre outros,
foram homens que estabeleceram suas atividades na Freguesia de Nossa Senhora de
Belém e que, a partir dessa rede de relações, passaram a constituir o poder local. Esses
indivíduos, com o aval de outros moradores, articularam a elevação da Freguesia para
Vila de Guarapuava.
Observa-se que as solicitações dos moradores foram encaminhadas às
autoridades da Província de São Paulo. O pedido de elevação da Freguesia de Nossa
Senhora de Belém para Vila de Guarapuava foi anterior à emancipação política
administrativa da 5ª Comarca. As solicitações encaminhadas ao governo provincial,
pedindo a elevação, alegavam vários motivos, entre eles, a longa distância que tinham
que percorrer para chegar à Vila de Castro.
O padre Antonio Braga de Araújo relatou:
Tendo sido por Lei Provincial do presente ano declarado esta Povoação a Categoria de Vila,
atenta a imensa extensão de seu Distrito, sua numerosa população, e finalmente porque
distando 37 léguas da Vila de Castro... Cumpre observar à V.Excia que a Matriz acha-se em
tal adiantamento, que já pode-se nela celebrar missas...106.
Manoel Marcondes de Sá, juiz de paz, informou:
Tendo-se por Lei Provincial do presente ano elevado este lugar a categoria de Vila com
obrigação de seus habitantes fazerem a sua custa casa de Câmara, e cadeia, eu vendo que
uma das grandes necessidades para promover a prosperidade desta terra, é a criação de
Câmara Municipal... 107.
106
ARAUJO, A B. Informações a respeito da Vila. Guarapuava, 15 set, 1849, Arquivo do
Estado de São Paulo.
107
SÁ, M. M. Criação da Câmara da Vila de Guarapuava. 1849, Arquivo do Estado de São Paulo.
140
Observou-se que, nesse período, a Freguesia de Nossa Senhora de Belém já
possuía seu quadro urbano planejado pelo primeiro vigário, o padre Chagas, com as
ruas,
longitudinalmente,
Guayra,
Chagas,
Direita,
Matriz,
Boa
vista,
e
transversalmente, Paulistas, Carioca, Sacristia, Bela, Cadeia, do Loures, Palha. A
denominação simples das ruas foi dada pela população que habitava a Vila108.
Por determinação do vice-presidente da Província de São Paulo, o bacharel
Hypolito José Soares, no ano de 1852, pela Lei Provincial n. 12 de 17 de julho, foi
elevada à categoria de Vila a Freguesia de Nossa Senhora de Belém, que passou a se
denominar Vila de Guarapuava109.
A instalação da Câmara de Guarapuava110 deu-se em 9 de abril de 1853, sob a
presidência de Manoel Marcondes de Sá, primo do Visconde de Guarapuava. Foram
eleitos para ocupar o cargo de vereadores, para o quatriênio 1853-1856, os senhores
Francisco Ferreira da Rocha Loures, Antonio de Sá e Camargo, Joaquim José de
Lacerda; para suplentes, Hermenegildo Alves de Araújo, Francisco José dos Santos e
Pedro de Siqueira Cortes; para a função de juízes de paz, os senhores Luiz Jorge da
Silva Gomes e Bernardino José de Lacerda; e para procurador, Antonio Antunes de
Lima111.
A Câmara de Guarapuava, no período compreendido de 1853 a 1889, teve
nove legislaturas, assumindo o cargo de vereadores indivíduos que faziam parte das
108
CÂMARA MUNICIPAL DE GUARAPUAVA. Ata da sessão realizada no dia 10
nov.1853. Livro 01, p.13/14.
109
CÂMARA MUNICIPAL DE GUARAPUAVA. Ata da sessão de posse realizada no dia
9 abr. 1853. Livro 1, p.1.
110
Somente nas localidades que tivesse pelo menos a categoria de vila, concedida por ato
régio, podiam instalar-se as câmaras municipais, cuja estrutura foi transplantada de Portugal, a
princípio, na conformidade das Ordenações Manuelinas e, mais tarde, das Felipinas. A Câmara
propriamente dita compunha-se dos dois juízes ordinários, servindo um de cada vez, ou do juiz de fora
(onde houvesse) e dos três vereadores. Eram também oficiais da câmara com funções especificadas, o
procurador, o tesoureiro e o escrivão, investidos por eleição, da mesma forma que os juízes ordinários
e os vereadores. A própria câmara é que nomeava os juízes de vintena, almotacés, depositário,
quadrilheiros e outros funcionários. Os oficiais da câmara, especialmente os vereadores em suas
deliberações conjuntas com o juiz, e os funcionários subordinados incumbiam-se, no limite de suas
atribuições, de todos os assuntos de ordem local, não importando que fossem de natureza
administrativa, policial ou judiciária. LEAL, V. N. Coronelismo, enxada e voto: o município e o
regime representativo no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p.81.
111
CÂMARA MUNICIPAL DE GUARAPUAVA. Ata da sessão realizada no dia 10 abr.
1853. Livro 01.
141
famílias proprietárias que procuravam, dessa forma, a manutenção do poder local. Isso
permitiu a construção de uma rede de poder dessas famílias, na Vila de Guarapuava,
na segunda metade do século XIX. Para as questões abordadas neste estudo, foi
selecionado o período compreendido entre 1ª a 4ª legislaturas da Câmara da Vila de
Guarapuava112. Essa seleção foi realizada em razão de os documentos, utilizados para a
análise, evidenciarem ações direta ou indiretamente praticadas pelo personagem
Antônio de Sá e Camargo, dentro dos contextos vividos na localidade.
No discurso de posse, Manoel Marcondes de Sá deixou transparecer sua
proximidade com os outros senhores vereadores e juízes eleitos - evidenciando a rede
de relações estabelecida com a elite local.
Senhores vereadores cheio de prazer e de honra, e possuído de nobre orgulho pela primeira
vez levanto minha débil voz, no recinto de uma corporação, tão respeitável como a que se
acha hoje reunida para começar os trabalhos inerentes ao alto papel que representa na forma
do governo que nos rege: sim levanto minha voz não para isortar-vos ao cumprimento de
seus deveres, mas sim para congratular-me com vossa excelência... 113.
Na fala do presidente da Câmara, pode-se ressaltar a preocupação de transmitir
a importância da instituição que ora passaria a presidir. Ao comparar outros discursos
de posses, foram constatadas semelhanças de pensamentos com relação à existência
das câmaras para a administração política do Brasil.
Manoel Marcondes de Sá procurou justificar a importância das câmaras “Senhores as câmaras municipais na história dos povos tem ocupado um grande
capítulo pelo fato de terem elas concorrido muitíssimo para o seu bem estar
114
” -
relacionando as funções da Instituição, sendo a principal atender à comunidade. Mas,
percebe-se, no seu discurso, que a comunidade que representava estava restrita aos
seus pares, pois outros indivíduos parecem não fazer parte da mesma comunidade, ou,
pelo contrário, eram vistos como intrusos na comunidade, como foi o caso da relação
desses senhores com os índios habitantes da região.
112
1ªlegislatura (1853-1856), 2ª legislatura (1857-1860), 3ªlegislatura (1861-1864),
4ªlegislatura (1865-1868).
113
CÂMARA MUNICIPAL DE GUARAPUAVA. Guarapuava. Ata da sessão realizada no
dia 9 abr. 1853. Livro 01.
114
Id.
142
Os problemas que afligiam a comunidade de Guarapuava foram os seguintes: os
conflitos com as tribos indígenas contrárias à presença dos fazendeiros (os índios
praticavam assaltos às fazendas e também nos caminhos que cortavam a extensa
região) a abertura e a manutenção dos
caminhos que
ligavam a Vila a outras
localidades; e a questão religiosa. Esses problemas foram priorizados nas discussões
dos vereadores, sendo o objetivo resolver essas questões, mesmo que em longo prazo.
A solicitação de verbas e nomeação de um diretor para o aldeamento, localizado
na povoação de Palmas115, bem como a construção de uma capela com condições mais
adequadas para a pregação dos ensinamentos religiosos, tão necessários à comunidade
dos ditos “selvagens”, para poder civilizá-los, são exemplos da preocupação desses
senhores116. Os índios que moravam no aldeamento de Atalaia-Guarapuava, em 1828,
deixaram essa localidade e se transferiram para os Campos de Palmas, ainda incultos.
Com o povoamento desses campos, a partir de 1839, pelos fazendeiros de Guarapuava,
tanto índios como fazendeiros partiram para novos enfrentamentos, novas alianças
tiveram que ser estabelecidas, e a catequese foi o meio mais eficaz para deter os
“bugres” 117.
A Câmara constituiu uma comissão para elaborar o código de posturas da
Vila, sendo composta pelos membros “Antonio de Sá e Camargo e Francisco da Rocha
Loures e Pedro de Siqueira Cortes e Francisco da Rocha Loures118”. A organização das
normas e regras para o bom andamento do convívio fazia-se necessária, e os
vereadores encarregados de elaborar o código de posturas da Vila apresentaram, em
uma primeira fase, 38 artigos que, em períodos posteriores, foram sendo reelaborados
115
Em 1859 a Vila de Guarapuava foi elevada a comarca, dividida em três distritos,
Guarapuava, Palmas e colônia Tereza, com uma população de sete mil e duzentos e noventa e sete
habitantes e a população indígena era discriminada não entrando nessa estatística, sendo estimada em
torno de dez mil índios existentes nos sertões de Guarapuava (Relatório encaminhado pelos
vereadores, em de 8 de janeiro de 1862, ao presidente da Província Antonio Barbosa Gomes Nogueira,
p.83/87).
116
CÂMARA MUNICIPAL DE GUARAPUAVA. Guarapuava. Ata da sessão realizada no
dia 13 abr. 1853. Livro 01.
117
PARANÁ. Relatório do Presidente da Província do Paraná, Antonio Barbosa Gomes
Nogueirana na abertura da Assembléia Provincial de 15 de fevereiro de 1862. Curitiba: Typ. Do
Correio Oficial, p.79-80.
118
abr. 1853.
CÂMARA MUNICIPAL DE GUARAPUAVA. Guarapuava. Ata da sessão realizada no dia 10
143
e, conforme os problemas da comunidade, outros foram criados119, sendo aprovados
primeiramente na Câmara e, depois, encaminhados ao governo provincial, para
apreciação. Porém, por determinação do presidente da Câmara, foram publicados os 38
primeiros artigos do código de posturas, antes mesmo de serem enviados ao
“excelentíssimo governo provincial120”. Entende-se que esses senhores atuavam na
Vila com plenos poderes no que diz respeito às normas locais. O presidente da Câmara
determinou o cumprimento das posturas, que foram publicadas no Jornal Dezenove de
Dezembro, veículo de divulgação oficial do presidente da Província. O presidente da
Câmara solicitou que fossem afixadas cópias em lugares públicos para que a
comunidade tomasse conhecimento. Determinou também ao fiscal e ao procurador sua
execução: “Arrolamento de todas as casas, deste rocio e o número de animais de criar
de cada proprietário121...”.
As regras auxiliam na observação de como se dá a interação do individual e do
coletivo no contexto vivido. As regras indicam parâmetros, mas isso não quer dizer
que não exista a possibilidade de sua atualização ou reelaboração. Para fazer parte de
uma determinada comunidade, deve-se ter conhecimento das regras que a orientam. E
no caso da comunidade em questão, lançar mão da “maquinaria”, segundo GEERTZ
(1978, p.228), para efetivação do poder local, no momento, era de extrema
necessidade.
A Câmara Municipal de Guarapuava, para atender à 5º instrução, encaminhou
um ofício ao presidente da Província relatando a situação em que se encontrava a Vila
no que dizia respeito à instrução pública, agricultura, comércio, mineração, indústria,
índios. E demonstrou a intenção de que a Vila de Guarapuava fosse escolhida para a
capital da Província, evidenciando várias razões para tanto:
119
CÂMARA MUNICIPAL DE GUARAPUAVA. Guarapuava. Ata da sessão realizada no
dia 20 maio. 1853. Livro 01.
120
CÂMARA MUNICIPAL DE GUARAPUAVA. Guarapuava. Ata da sessão realizada no
dia 21 maio. 1853. Livro 01.
121
CÂMARA MUNICIPAL DE GUARAPUAVA. Guarapuava. Ata da sessão realizada no
dia 3 fev. 1855. Livro 01. E também, CÂMARA MUNICIPAL DE GUARAPUAVA. Guarapuava.
Ata da sessão realizada no dia 23 fev. 1855. Livro 01.
144
Este país sendo auxiliado oferece vantagens para um crescimento rápido, pela fertilidade do
solo, pela navegação dos rios que se vão lançar no Paraná, e finalmente pela comunicação,
que deve ser aberta com o Paraguai, Corrientes, província do Rio Grande e Cuiabá.
Finalmente esta câmara pensando todas estas circunstâncias e conhecendo as boas intenções
de V.E., atreve-se a dizer que esta vila será o lugar mais conveniente da província para ser
assentada sua capital...122
Através dessas informações prestadas ao presidente da Província, a Câmara
direcionou suas ações para as necessidades que exigiam soluções imediatas na Vila de
Guarapuava.
O presidente da Província deu início ao seu governo sem a Assembléia
Legislativa Provincial123. Para que fossem eleitos os representantes para o cargo de
deputado provincial, as eleições deveriam ser convocadas pelo governo. Essa
Instituição deveria ser composta por 20 deputados.
No início do ano 1854 os vereadores da Vila de Guarapuava receberam as
devidas informações do presidente da Província, no que dizia respeito às eleições do
representante da localidade para deputado provincial. O presidente da Câmara
determinou que fossem tomadas as medidas necessárias para a eleição na paróquia de
Guarapuava e na capela de Palmas124. As circulares do presidente da Província
determinavam o dia 26 de fevereiro de 1854 para a eleição primária de um senador, e o
dia 28 de março para a eleição secundária dos membros das Assembléias Geral e
Provincial. Determinou aos candidatos eleitos a data de 15 de maio para a reunião de
instalação do poder legislativo Provincial, mas foi adiada para o dia 15 de julho. Os
trabalhos da Assembléia Provincial ocorriam durante dois a três meses na capital da
Província.
122
CÂMARA MUNICIPAL DE GUARAPUAVA. Guarapuava. Ata da sessão realizada
em 10 de fev. 1854. Livro 01.
123
“A 4ª Instrução dizia: “Assim que V.Exa. entrar em exercício expedirá as convenientes
ordens para que, na conformidade da Lei nº387, de 18 de agosto de 1846, se proceda à eleição de um
senador e um deputado à Assembléia Geral e bem assim dos membros da Assembléia Legislativa
Provincial, designando o dia e lugar em que deverá esta reunir-se pela primeira vez e dando para este
fim as providências necessárias” (COSTA, S. G. História política da Assembléia Legislativa do
Paraná. Curitiba: Assembléia Legislativa, 2.v. 1994, p.89).
124
LOURES, R. Ata com informações a respeito de eleições. Guarapuava, 14 jan. 1854.
Arquivo Câmara Municipal de Guarapuava.
145
O representante da região dos Campos de Guarapuava foi o senhor Antonio de
Sá e Camargo, que recebeu 80 votos, sendo o décimo sexto deputado votado para
exercer o cargo no biênio de 1854-1855. Ele fez parte da comissão encarregada de
recepcionar o presidente Zacarias de Goes e Vasconcellos e convidados na sessão
solene de instalação da Poder Legislativo da Província do Paraná. Antônio de Sá e
Camargo, Dr. Jesuíno Marcondes de Oliveira e Sá (primo e cunhado), com os demais
eleitos125, debateram e decretaram as leis126 necessárias para organização administrativa
da Província recém-instalada, como também inúmeros atos sancionados pelo
presidente da Província. O período de trabalho dos deputados estendeu-se de 15 de
julho a 15 de setembro, na legislatura de 1854. Antonio de Sá e Camargo foi eleito
novamente para o cargo de deputado provincial para o biênio de 1864-1865. Foi
indicado para vice-presidente da província, em 1865.
De acordo com o sistema eleitoral vigente no Império, o acúmulo de cargos
era tolerado e, assim, Antonio de Sá e Camargo continuava atuando como vereador,
administrador da estrada da mata, major da Guarda Nacional, participação na comissão
para demarcação do aldeamento e da colônia militar na localidade do Chagú.
Desenvolvendo essas funções, continuava atuando próximo da comunidade.
O crescimento da Vila pode ser observado pelos requerimentos de “cartas de
datas” para “construção de prédios urbanos nesta vila127”. Presume-se que alguns
125
José Matias Gonçalves Guimarães (Curitiba), Manoel Leocádio de Oliveira (Paranaguá e
Guaratuba), Antonio José de Faria, Francisco José Corrêa (Lapa), Joaquim José Pinto Bandeira
(Curitiba), presidente da Assembléia Legislativa, (1854-1855), Manoel Ignácio do Canto e Silva
(Jaguariaíva), Manoel Gonçalves de Moraes Roseira (Curitiba), Manoel de Oliveira Franco (Curitiba),
Francisco de Paula Ferreira Ribas, Modesto Gonçalves Cordeiro (Morretes), Dr. José Lourenço de Sá
Ribas (Curitiba), Manoel Gonçalves Marques (Morretes e Porto de Cima), Manoel Antonio Guimarães
(Paranaguá), José Joaquim Marques de Souza (Paranaguá), Manoel Antonio Ferreira (Curitiba), David
dos Santos Pacheco (Lapa), Fernando Antonio de Miranda, Manoel Francisco Correia Júnior
(Paranaguá). O irmão de Antonio de Sá e Camargo, o padre José Antonio de Camargo Araújo, foi
eleito suplente com 52 votos.
126
A organização judiciária, divisão da Província em comarcas e escolha da capital que
recaiu sobre Curitiba. Castro e Guarapuava passaram a formar uma Comarca separada de Curitiba.
Organização do registro do Rio Negro para cobrança do imposto sobre os animais que transitavam
pelo caminho das tropas. Construção da estrada da Graciosa. Instrução pública. Orçamento provincial.
Agricultura e colonização. Questões de limites. Criação do arquivo público.
127
CÂMARA MUNICIPAL DE GUARAPUAVA. Guarapuava. Ata da sessão realizada no
dia 6 de nov. 1853. Livro 01. E também, CÂMARA MUNICIPAL DE GUARAPUAVA.
Guarapuava. Ata da sessão realizada no dia 12 nov. 1854. Livro 01.
146
pedidos foram de novos moradores e outros dos que já estavam estabelecidos nas
fazendas e que pretendiam construir casa na Vila de Guarapuava.
A preocupação com a questão levou o vereador Francisco da Rocha Loures a
encaminhar aos moradores, que ainda não tinham a documentação de seus terrenos, o
pedido para que a providenciassem, com brevidade: “Solicitou que esta câmara
marcasse em tempo razoável para todos que tinham lugares marcados nesta vila para
edificarem casas tirassem suas competentes cartas de datas findo o qual se tornará
devoluto os ditos lugares... podendo–se dar a outro que o requerer128”.
O pedido do vereador Agostinho José de Almeida Queiroz, para determinação
das ruas da Vila, fornece indícios da estruturação da pequena Vila:
A primeira onde morou o primeiro missionário e fundador desta mesma vila, rua das chagas,
a segunda, rua direita, a terceira, rua da matriz, a quarta, rua das flores, a quinta rua boa
vista, foram denominadas as ruas travessas pela maneira seguinte, a primeira principiando
pelo lado da estrada, rua dos paulistas, a segunda, rua da carioca, a terceira, rua da sacristia, a
quarta rua bela, a quinta, rua da cadeia, a sesta, rua do Loures, sétima, rua da palha. Mandou
a câmara que se lavrasse edital desta sua última deliberação para que os habitantes desta vila
tivessem conhecimento129.
Foi nomeada uma comissão para escolher o local mais apropriado para o
cemitério da Vila, composta por Joaquim de José Lacerda, Pedro de Siqueira Cortes,
administrador da obra e Francisco da Rocha Loures, tesoureiro, juntamente com o
vigário Antonio Braga de Araujo, “e mais pessoas gradas do lugar indicassem o local
mais apropriado para esse fim130”. A questão do cemitério provocou discórdia na
tomada de decisão pelos senhores vereadores, mas decidiu-se por cercar com muro de
pedra o velho cemitério, caso a verba enviada pelo governo provincial cobrisse a
construção do muro. Com o saldo, dar-se-ia início à construção do novo cemitério, no
128
CÂMARA MUNICIPAL DE GUARAPUAVA. Guarapuava. Ata da sessão realizada no
dia 12 dez. 1854. Livro 01.
129
CÂMARA MUNICIPAL DE GUARAPUAVA. Guarapuava Ata da sessão realizada no dia 10
nov. 1853. Livro 01.
130
CÂMARA MUNICIPAL DE GUARAPUAVA. Guarapuava. Ata da sessão realizada no
dia 16 dez. 1854. Livro 01.
147
local escolhido pela comissão, “ficando marcado para o lugar do novo cemitério o
primeiro alto a direita da estrada que vai para Cascavel, saindo desta vila131”.
Os ensinamentos religiosos proferidos pelo vigário local serviam de base de
conduta dos moradores da Vila de Guarapuava. Percebe-se que a prática de participar
das missas com uma certa freqüência não era uma norma observada rigorosamente
pelos moradores. Mas, a construção da igreja era um desejo de toda a comunidade e
para que isso fosse possível, deveriam eleger um de seus representantes para
administrar a construção da igreja e Antonio de Sá e Camargo foi o escolhido para
exercer a função. Enfrentou dificuldades para desenvolver o novo trabalho, a falta de
verbas para tal empreendimento local demandou ao administrador arrecadar o dinheiro
com os fiéis, solicitar as verbas ao governo provincial e até mesmo ao governo
imperial. Além de que não existia na vila mão-de-obra para o tipo de construção que se
pretendia realizar. O relato dos vereadores ao presidente da província evidencia a
questão religiosa.
A religião do estado é aqui observada regularmente, o reverendo cônego Braga de Araujo
vigário desta paróquia, tem exercido este cargo há mais de vinte anos e por sua moralidade,
bons costumes dedicação fervorosa a igreja no desempenho dos sagrados atos de nossa
religião, prestando-se para tudo e a todos sem distinção de posição social, ...O povo, se em
geral não é possuído de uma devoção assídua, concorrendo ao templo diariamente é ao
menos de uma devoção irregular, freqüentando a igreja com decência e respeito e mostrando
sobre tudo bastante zelo e dedicação pelo asseio e pelas obras da igreja matriz, ...O povo em
geral tem morigeração e sujeitos as leis, do que é uma irrefragável prova o tato não se ter
cometido muitos crimes 132.
A instrução pública da Vila contava com uma escola de primeiras letras, para
pessoas do sexo masculino, e também de uma para as pessoas do sexo feminino.
Também existiam escolas localizadas nos sítios, porque muitos pais não tinham
condições de manter seus filhos na Vila. Existiam aulas particulares de música, língua
francesa e latim.
131
CÂMARA MUNICIPAL DE GUARAPUAVA. Guarapuava. Ata da sessão realizada
em 29 mar. 1855. Livro 01.
132
CÂMARA MUNICIPAL DE GUARAPUAVA. Guarapuava. Relatório apresentado ao
Presidente da Província Antonio Barbosa Gomes Nogueira. Dez, 1862, p.83-87.
148
A segurança dos habitantes por muitas vezes esteve ameaçada. A freqüência
dos ataques dos índios às fazendas e à Vila amedrontava os moradores, e a falta de
“tropa de linha133”, para realizar a vigilância na localidade, fez com que os vereadores
lançassem mão de estratégias para buscar uma certa segurança.
Esses vereadores sugeriram ao governo provincial a criação de um corpo de
polícia ambulante, composto pelos índios já “catequizados”, para realizar patrulhas nos
sertões. A estratégia era utilizar os próprios índios já catequizados para a segurança da
comunidade.
O delegado de polícia desta vila não tem podido até hoje tomar uma medida que de alguma
maneira remediasse estes males, esta câmara julga-se no rigoroso dever de comunicar o seu
pensamento, ousando propor uma medida, não profícua, ... Existe hoje nos campos do
Goynhoem um cacique já velho chamado Vitorino, nascido e criado no antigo aldeamento de
Guarapuava, do qual era diretor o reverendo padre Chagas, este cacique e conhecido nos
sertões desde Paraná até o Goynhoem, e respeitado pelas tribos selvagens dessas paragens,
não só pelo seu nome como por contar com grande número de indivíduos pertencentes ao seu
toldo, sem mencionar o cacique Viry que é pertencente a sua comunhão. Engajar este
cacique e sua gente a fim de manter nestes lugares um corpo de polícia ambulante destinado
a percorrer continuamente as costas das matas do Paiquerê, será presentemente a única
medida a tomar, este índio pode prestar valiosos serviços, pois que é dotado de muita visão e
talvez aliviasse muito o país reduzindo a muitos selvagens e afugentado a outros134.
Os índios que aceitaram conviver ‘pacificamente’ com os povoadores,
submetendo-se às suas ordens, ao longo do processo de ocupação dos Campos de
Guarapuava, foram utilizados como força de trabalho pelos fazendeiros, na conquista
de novas terras. E aqueles que não aceitaram a submissão, por se considerarem os
verdadeiros donos do território, foram dizimados. Mas a cultura indígena sucumbiu de
133
Segundo a décima quarta Instrução que permitia ao presidente da Província tratar de questões
pertinentes à segurança, pela Lei n.07, de 10 de agosto de 1854, foi sancionada e criada a Companhia
de Força Policial, através da qual “fica o Governo autorizado a organizar uma Companhia de Força
Policial com um total de sessenta e sete praças e soldo constante do planejamento junto; assim como
dispender o que for necessário para armamento, equipamento, expediente, luzes, aluguel de casas para
Quartéis da Companhia e Destacamentos ...” (BOLETIM DO ARQUIVO DO PARANÁ, ano V, n.06,
1980, p.25)
O presidente da Província, Zacarias de Goes e Vasconcellos, constituiu uma força militar que
auxiliaria a solucionar os problemas de segurança na capital, e aqueles referentes ao interior da
Província, quando solicitada pelas pessoas que habitavam os sertões paranaenses, para ajudar na
defesa de suas propriedades, contra os ataques dos ‘bugres’. Muitas vezes, esses proprietários agiam
por conta própria, sendo contrários às determinações da Província e mesmo da Corte.
134
CÂMARA MUNICIPAL DE GUARAPUAVA. Guarapuava. Ata da sessão realizada no
dia 23 mar. 1855. Livro 01.
149
qualquer forma, pois (os índios) que se submeteram ao domínio dos povoadores
tiveram que modificar seus hábitos culturais e os que lutaram, não venceram, perdendo
também o espaço e seus traços culturais135.
Outra questão para ser resolvida pelos vereadores foi a das estradas. Esteve
sempre em primeiro plano, primeiramente, por se tratar do acesso dos moradores e,
também, por estar ligada diretamente ao comércio de gado, responsável principal pelo
desenvolvimento financeiro dos fazendeiros. A estrada da mata, que ligava a Vila aos
Campos Gerais, e seguia para a Província do Rio Grande do Sul, estava, segundo os
vereadores, em um estado lastimável, a ponto de interromper o trânsito das bestas que
vinham da Província do Rio Grande do Sul para serem comercializadas na feira de
Sorocaba. A estrada que fazia a ligação da Vila de Guarapuava à Colônia Tereza136,
também precisava passar por reparos, “apesar dos esforços do ilustríssimo senhor
Doutor Faivre”, diretor da Colônia Tereza, fundada às margens do Rio Ivaí. O diretor
encaminhou representação à Câmara de Guarapuava, pedindo aos vereadores que
solicitassem ao governo provincial a anexação da Colônia Tereza ao município de
Guarapuava137.
Os presidentes da Província que atuaram no período solicitavam informações
detalhadas a respeito das estradas,
A câmara prestou informação que só está em obra a estrada que desta vila segue para os
campos gerais, e que é diretor dela o major Antonio de Sá e Camargo, e que é necessário
135
SANTOS Z. M. dos. Os campos de Guarapuava na política indígena do estado provincial
do Paraná, 1854-1889. Guarapuava, 1999. 187 f. Dissertação (Mestrado em História) – Departamento
de Ciências Humanas, Universidade Estadual do Centro-Oeste. Orientador: Maria do Carmo S. Di
Creddo.
136
A chegada dos imigrantes no Paraná ocorreu em torno de 1829, quando o Barão de
Antonina conseguiu autorização do Império para instalar as margens do Rio Negro o primeiro núcleo
de imigrantes do Paraná, constituído por alemães (WACHOWICZ, 1988, p.142). Orientados por João
Maurício Faivre, colonos franceses fundaram a colônia Teresa, em 1847, às margens do rio Ivaí. A
política de imigração intensificou-se na Província do Paraná, durante o Governo do Presidente
Lamenha Lins, em 1875.
137
CÂMARA MUNICIPAL DE GUARAPUAVA. Guarapuava. Ata da sessão realizada no
dia 22 jan. 1855. Livro 01.
150
para esta obra a quantia de oito contos de reis, ...a estrada que desta segue para o Goynhoem
achando-se em mau estado e precisa de ... a quantia de seis contos de reis138.
A falta de manutenção dos caminhos foi um problema enfrentado tanto pelos
moradores dos Campos de Guarapuava, como por viajantes e tropeiros. Esse assunto
foi discutido ao longo do período de 1853 a 1889, com os vereadores da Câmara de
Guarapuava insistindo com o governo provincial pela melhoria e exigindo ações mais
eficazes, já que eram feitas cobranças de impostos dos animais que trafegavam por tais
estradas. Entendiam que a obrigação do governo era de mantê-las em condições de
uso.
A estrada que dos campos gerais passando por esta vila segue em direção a província do Rio
Grande do Sul, com quanto tenha recebido auxílios do governo ainda longe de ser uma
perfeita estrada, devido isto a não podido o mesmo governo consignar uma quantia
competente para o término dela, sendo de suma importância pois que passam por ali
anualmente mais de vinte mil animais, muares, e outro tanto de animais de diversas natureza,
os quais com efetivamente pagão tributo aos cofres da província139...
As transações comerciais da Vila de Guarapuava estabeleceram-se em torno
da compra e venda do gado, cavalos e muares. Os animais que vinham da Província do
Rio Grande do Sul invernavam nos Campos de Guarapuava para recuperar o peso e
melhorar a qualidade, para serem comercializados na feira de Sorocaba,
Calcula-se em mais de trinta mil os animais que anualmente passam por esta comarca e vão
para feira de Sorocaba ... e tendo este município grande parte de campos de criar neles ficam
uma boa parte dos animais esperando o tempo da feira o que resulta ao comércio grande
vantagem incrementado bastante o estado monetário140....
Além desse comércio, os habitantes ocupavam-se com a fabricação de queijos,
tijolos, telhas e tecidos de lã. Cultivavam, nos vales dos rios Ivaí e Iguaçu, cana-deaçúcar, algodão e arroz. Na Colônia Tereza, fabricavam-se pequena quantidade de cal,
138
CÂMARA MUNICIPAL DE GUARAPUAVA. Guarapuava. Ata da sessão realizada no
dia 5 jul. 1855. Livro 01
139
CÂMARA MUNICIPAL DE GUARAPUAVA. Guarapuava. Relatório ao Presidente da
Província Augusto de Padua Fleury. Dez.1865.
140
CÂMARA MUNICIPAL DE GUARAPUAVA. Guarapuava Relatório ao Vicepresidente da Província Agostinho Emíliano de Leão. Dez. 1870.
151
aguardente, rapadura, melado, fumo. A erva-mate era extraída na região adjacente ao
rio Goyo-en (Uruguai).
O arroz e o algodão beneficiado para o que possui o laborioso agricultor capitão Frederico
Virmond Junior um excelente engenho de descaroçar a soque na margem esquerda do
Iguaçu. ... a cultura de trigo, cevada, centeio e linho para os quais o solo se presta
admiravelmente aplicam-se a maior parte dos agricultores na plantação do milho ,feijão,
batata e mandioca que abundantemente produz de cujos gêneros não faz grande exportação
por serem feitas as plantações em pequenas escalas e isto devido a escassez de braços141.
Juntamente com o comércio do gado, existiu um comércio paralelo de itens
produzidos na Vila e dos produtos de primeiras necessidades inexistentes na
localidade. Do litoral da Província do Paraná chegava o sal, produto de extrema
necessidade para o trato dos animais e preparo dos alimentos. A carne - seca (charque)
era preparada com o sal e utilizada na principal alimentação degustada pelos tropeiros.
A aguardente chegava de Morretes, São Paulo e Côlonia Tereza. As
manufaturas como chapéus, selins e todos os instrumentos de montaria, redes para
dormir, foices, machados eram importados de São Paulo. A Vila fornecia crinas
extraídas dos animais e chapéus confeccionados com esse produto, couro, queijos,
carne - seca e erva-mate, mas essa troca comercial não era realizada em grande escala,
e a razão apresentada era o mau estado de conservação dos caminhos, e os tropeiros
que transportavam gêneros do litoral, da capital e de São Paulo muitas vezes preferiam
conduzir seus animais sem carga, para que, no retorno, carregados, os animais
tivessem condições de resistir às dificuldades das estradas. Dessa forma, o comércio
desenvolveu-se na região, e as mercadorias acabavam chegando ao seu destino, porque
os homens que enfrentaram essa realidade souberam utilizar suas estratégias para a
melhoria dos caminhos.
Observar através do comércio paralelo a política cotidiana dos moradores e
intermediadores de mercadorias na Vila de Guarapuava, propicia visualizar situações
específicas, cujo centro é a utilização estratégica das normas sociais, já que no interior
141
CÂMARA MUNICIPAL DE GUARAPUAVA. Guarapuava Relatório ao Vicepresidente da Província Agostinho Emíliano de Leão. Dez. 1870.
152
das comunidades existiram incertezas, escolhas, conflitos, negociações, transações
provisórias experienciadas no cotidiano das relações sociais.
O Visconde de Guarapuava, mesmo já estando afastado das funções de
vereador da Câmara da Vila de Guarapuava e de deputado provincial, continuava
prestando serviços para a comunidade. Os vereadores da década de 70 e 80 fizeram
referências às suas ações “na estrada desta cidade ao Chapecó tem havido alguns feitos
pelos particulares e com especialidade pelo Exmo Barão de Guarapuava, sobre o rio
Pinhão de ambos os lados...”142.
“A igreja matriz graças ao benemérito de vossa senhoria”. “Visconde de
Guarapuava” e muitos outros patrióticos habitantes deste município esta com a torre
concluída, envidraçada, forrada e assoalhada...”. o governo provincial determinou uma
quantia para a obra de 3:000$00. “o prédio que esta mandando construir esta câmara
para a cadeia, e casa da câmara ajudada com o valioso donativo de 800$000 que fez o
Exmo senhor Visconde de Guarapuava...143”.
Mesmo que em longo prazo, os moradores conseguiram terminar a igreja,
construir a cadeia, a Casa da Câmara, melhorar os traçados das estradas, verba para
calçar a serra da Esperança, e outras melhorias para a região, e o notório senhor
Antonio de Sá e Camargo participou ora mais ora menos para que o discurso
civilizador se transformasse em ações reais na Vila de Guarapuava.
O conjunto de ações desenvolvidas na Vila de Guarapuava permite perceber
uma modulação particular da história do Paraná provincial, evidenciando a experiência
local e sua interligação com o nacional, a relação do micro com o macro. Segundo
Jacques Revel, é possível uma versão diferente da história através da diminuição da
escala do observador. Pode-se destacar, entre estas ações, as seguintes: a abertura do
caminho que ligava a Vila à Colônia Tereza, localidade determinada pelo Império para
o desenvolvimento da experiência com colonos franceses no Brasil; os reparos e a
ampliação nas estradas tão necessárias para o desenvolvimento econômico das
142
CÂMARA MUNICIPAL DE GUARAPUAVA. Guarapuava. Relatório apresentado ao
Presidente Joaquim Bento de Oliveira Junior. Dez. 1877.
143
CÂMARA MUNICIPAL DE GUARAPUAVA. Guarapuava. Relatório apresentado ao
Presidente da Província Luiz Alves de Oliveira Belo. Dez. 1883.
153
províncias do sul do Brasil; efetivação de força policial para garantir segurança nos
momentos de incertezas provocados pelos conflitos com os índios; a criação de normas
através da elaboração e reelaboração do código de postura no desenrolar da política da
vida cotidiana dos moradores da Vila de Guarapuava. Através das solicitações,
argumentações, reclamações individuais e comunitárias, os moradores da Vila de
Guarapuava lançaram mão dessa interatividade e provocaram as mudanças nas
diversas situações que afligiam essa comunidade.
Contudo, a idade bastante avançada de Antonio de Sá e Camargo e o fato de
ser morador efetivo na cidade de Guarapuava não impediram o velho senhor de
participar do acontecimento da passagem do governo provincial para o republicano
que deixou marcas na comunidade.
No discurso do deputado Francisco Peixoto de Lacerda WERNECK (1950,
p.56 e 58), rememorou-se a trajetória de vida de Antonio de Sá e Camargo, e entre as
lembranças recuperadas nesse discurso foram evidenciadas as divergências políticas
do Visconde de Guarapuava na localidade:
Bem a propósito, quero lembrar, neste momento, uma passagem da vida do Visconde de
Guarapuava, que ficou de forma indelével vinculada à de minha família que formava,
sempre, em oposição à facção política dirigida pelo Visconde de Guarapuava... Coube à nós,
bisneto de Frederico Guilherme Virmond – irreconciliável adversário político do Visconde –
neto do Juiz republicano – seu companheiro na Revolução 93 – a honra de falar nesta
cerimônia.
O Visconde esteve sempre ligado ao grupo do Partido Liberal, do qual faziam
parte seu pai, Antonio Joaquim de Camargo, o sogro, José Caetano de Oliveira e o
cunhado, Jesuíno Marcondes de Oliveira e Sá, entre outros parentes. Os dois partidos
políticos do período imperial eram o Liberal formado pela coalizão de profissionais
liberais e de donos de terras, e o Conservador, formado por burocratas e também por
donos de terra. José Murilo de CARVALHO (1996, p.192-193), ao analisar a
composição dos partidos, no período imperial, informa que os proprietários rurais,
se compunha de elementos que se consideravam liberais por defenderem a descentralização
do poder em benefício de interesses locais ou provinciais, isto é, em benefício deles mesmos.
Dentro do Partido Conservador estavam os burocratas, defensores constantes do
fortalecimento do poder central, esteios da formação do Estado Imperial.
154
Para entender o diferencial entre os proprietários de terra que faziam parte do
Partido Liberal e os que estavam ligados ao Partido Conservador, é preciso localizá-los
geograficamente. Os conservadores concentravam-se, em maior número, nas regiões
de Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro, cujos interesses comerciais eram voltados para
a exportação, e preocupavam-se em manter a estabilidade do sistema. Já os liberais
estavam localizados nas regiões de Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande do Sul, e
não tinham interesse em manter a centralização do governo imperial. No Paraná, a
composição dos partidos, depois da emancipação política e administrativa, em 1853,
era a seguinte: os proprietários de terras das regiões de Campos Gerais, Palmeira,
Guarapuava, Castro e Lapa estavam ligados ao Partido Liberal. Jesuino Marcondes de
Oliveira e Sá, cunhado e primo do futuro Visconde de Guarapuava, era o chefe e
mentor desse partido na Província e, com ajuda da sua parentela, constituiu a mais
poderosa oligarquia regional. Os representantes do Partido Conservador foram as
famílias que detinham o poder no litoral e controlavam o comércio importador e
exportador, em especial da erva–mate. Seus representantes eram os senhores Manuel
Antônio Guimarães e Manuel Francisco Correia.
O Partido Republicano foi fundado por volta de 1870, por elementos com uma
posição mais radical, que não compartilhavam da ideologia dos conservadores como
também não apoiavam os liberais.
Nos tempos conturbados da consolidação da República, o jovem juiz
Francisco Peixoto de Lacerda Werneck, formado na Faculdade de Direito de Recife,
que durante sua vida acadêmica teve contato com os ideais abolicionistas e
republicanos, depois de formado, veio atuar como juiz, em Guarapuava. Casou-se com
a Filha de Frederico Guilherme Virmond, a senhorita Eponina Virmond de Lacerda.
Seu pai chefiava o grupo político local contrário ao de Antonio de Sá e Camargo.
Lacerda Werneck, contrário à forma de governar do marechal Floriano
Peixoto, resolveu romper com seus familiares, que davam apoio ao governo do
Marechal, e montar um batalhão armado para defender seus ideais republicanos. Seu
sogro era o presidente da Câmara de Vereadores de Guarapuava. “A presente sessão
tem por fim esta Câmara telegrafar ao Governo Provisório dos Estados Unidos do
155
Brasil e ao Governo do Estado do Paraná aderindo ao Governo republicano e
oferecendo a ele o seu franco apoio144...”.
Forças contrárias ao marechal Floriano Peixoto formavam-se nas diversas
localidades do território brasileiro e em Guarapuava Lacerda Werneck foi o
responsável pela organização de um Batalhão. Foi nesse momento que procurou o
velho Visconde, para pedir ajuda para a aquisição dos recursos materiais.
Procura-os com o Visconde de Guarapuava que, não obstante alquebrado pelas lutas, pelos
trabalhos, pelos 86 anos que lhe pesem, empresta o apoio moral, o auxílio material para
armar o batalhão, para guerrear contra uma situação que o Juiz declarava inconstitucional,
ilegal, que não condizia com os ideais cristalinos da República que, nos bancos acadêmicos,
com Silva Jardim e com Seabra, ele sonhara e que também ajudara a construir.
O Visconde de Guarapuava estende sua mão dadivosa ao irrequieto Juiz – e o moço
republicano e o velhinho monarquista – se apertam as mãos num cumprimento que simboliza
a união de duas eras – as mais distintas – as mais antagônicas. A Monarquia que fora, - a
Republica que nascera - numa instabilidade muito própria de uma infância mal dirigida e um
tanto desambientada (WERNECK, 1950, p.57).
O Visconde de Guarapuava, velho monarquista ligado ao Partido Liberal da
Província do Paraná, colaborou com o jovem republicano, que tinha sonhado e
idealizado uma república diferente, e esse encontro, na história do Brasil, entre dois
indivíduos tão diferentes, deixou marcas na trajetória de vida do personagem estudado.
Esse jovem forasteiro era neto de um grande fazendeiro de café do Rio de
Janeiro - o Barão de Pati do Alferes, Luiz Peixoto de Lacerda Werneck, homem de
influência no seu meio. Luiz Francisco trouxe com ele, para a Província do Paraná,
seus ideais, mas foi traído pelos representantes do governo republicano.
144
CÂMARA MUNICIPAL DE GUARAPUAVA. Guarapuava. Ata da sessão
extraordinária dos vereadores no dia 23 nov, 1889. Livro.
156
A imprensa local, através do jornal O Guayra, deixou registradas notícias do
Batalhão Visconde de Guarapuava145 (Anexo 4), incentivado e criado por Luiz
Francisco Peixoto de Lacerda Werneck,
Advertidos pelo enérgico apelo que, no último numero desta folha, o Coronel Dr. Lacerda
Werneck e a redação desta folha dirigiram ao povo guarapuavano despertou este sono
profundo em que adormecera seus mais vitais e sagrados interesses. O Batalhão V. de
Guarapuava está em formação!
Conta grande número de voluntários; tem a oficialidade quase completa e muitas pessoas
tem corrido a fazer ofertas de animais cavalares, gado, armas e dinheiro para sua organização
e manutenção enquanto aqui estiver146.
No artigo escrito por Honorina Martins de Araujo, ela fez referência à ajuda
prestada por Antonio de Sá e Camargo para a formação do Batalhão de Guarapuava.
Após longos e trabalhosos dias, conseguiu finalmente coadjuvado pelo benemérito Visconde
de Guarapuava, o incansável e digno patriota Coronel Dr. Lacerda Werneck, convencer os
dignos filhos de Guarapuava, de que acima do amor devido a família... esta o sagrado dever
do patriotismo147...
Outra forma de solicitação e pedido de apoio utilizado pelos defensores da
República para convencimento da população foi a poesia. O poeta guarapuavano
Antonio Martins de Araujo, através de seus versos, exaltou o Exército Libertador,
Avante pois, defensores
Da República adorada,
Da Pátria a imagem sagrada
Bem alto erguendo de pé;
Provai ao mundo que o povo
Não é rebanho de escravos,
145
O corpo oficial foi composto por Estado Maior: D. Lacerda Werneck. Tenente Coronel:
José Fagundes Serrano. Major Fiscal: Raphael Marcondes de Araujo. Capitão ajudante: Luis Miguel
Schleder. Tenente secretário: Francisco de Paula Alves. Tenente quartel-mestre: Nestor Martins de
Araujo. 1ª Companhia, Capitão: Miguel Stresser. Tenente: Paulino Ayres de Aguirra. Alferes: Rodrigo
Antonio Perreira. 2ª Companhia, Capitão: Rodolpho Boese. Tenente: José de Moraes Camargo.
Alferes: Paulino Mattoso do Nascimento e Tiburcio Cardoso Marques. 3ª Companhia, Capitão: Diogo
Ferreira de Siqueira. 4ª Companhia, capitão; Pedro Ayres de Araujo Lima. Tenente: Coriolano de Sá
Ribas. Alferes: Augusto Bastos Marcondes e Diocleciano Lino da Silva. Instrutores: Francisco de
Paula Pletz, Chistiano Pletz e Francisco de Almeida. (O Guayra, 13 de março de 1894, ano 1, nº49).
146
O Guayra. Guarapuava, 18 de mar, 1894, n. 49, Redator, Luiz D. Cleve, proprietário
Serafim Ribas.
147
O Guayra. Guarapuava, 18 de mar, 1894, n. 49, Redator, Luiz D. Cleve, proprietário
Serafim Ribas.
157
Mas, sim, punhados de bravos,
Das liberdades na fé!148
(ARAUJO, 1894, p.1)
O batalhão Visconde de Guarapuava foi treinado pelos guarapuavanos que
participam da Guerra do Paraguai: Francisco de Paula Pletz e Christiano Pletz. Mas,
não chegou a participar de nenhuma frente de combate, porque Gumercindo Saraiva
recuou e os legalistas conseguiram recuperar terreno. Ao terminar a revolta, Lacerda
Werneck e seus companheiros precisaram fugir de Guarapuava e rumaram para o
sertão do Iguaçu para refugiarem-se na Argentina. Mas, as forças legalistas alcançaram
o jovem idealista republicano Lacerda Werneck e seus companheiros. O que restou aos
revolucionários, inimigos políticos, foi o fuzilamento, procedimento adotado pelos
legalistas.
Já o velho Visconde, morador há muitas décadas na Província do Paraná, líder
político da cidade, aguardou a chegada do Coronel Braz Abrantes, apresentando-se
como seu prisioneiro, deixando de lado seu passado monarquista de comendador,
Major, Coronel, Barão e Visconde. Mas, suas ações, atitudes e serviços prestados em
nível local, regional e nacional deram-lhe garantia para enfrentar Braz Abrantes, que
nada fez ao velho monarquista.
O Visconde, em sua trajetória de vida, para historiadores e memorialistas,
pautou sua conduta com um “natural entusiasmo suscitado pelo espírito de
‘provincialismo’” (FERNANDES, 1950, p.18), que lutou juntamente com os liberais
conterrâneos para a emancipação administrativa da Província do Paraná, em 1853, e
em período posterior representou sua comunidade como deputado na primeira
Assembléia Legislativa Estadual. Retornou ao cargo de deputado provincial em 18641865. Atendendo aos apelos do imperador Pedro II, para que todos os brasileiros
ajudassem a pátria, que estava em guerra contra o Paraguai, o Visconde participou,
com ajuda em dinheiro, para auxiliar nas despesas causadas pela guerra, e libertou seus
escravos para fazerem parte do corpo de Voluntários da Pátria. Foi o chefe e
148
O Guayra. Guarapuava, 18 de mar, 1894, n. 49, Redator, Luiz D. Cleve, proprietário
Serafim Ribas.
158
comandante do 7º Batalhão de Cavalaria da Guarda Nacional, tornando-se o
responsável pela defesa da fronteira sudoeste do território paranaense com o Paraguai,
“serviu sempre, com dedicação, a causa do Império do Brasil”. Seguindo seus
princípios, o velho Visconde entendeu que a manutenção da ordem, naquele momento,
era necessária para garantir a manutenção do Estado, do território paranaense e da
identidade de brasileiro.
Nesse período de sua vida, os sertões que ajudara a conquistar já estavam
desbravados e ocupados; os grupos indígenas que administrara já não representavam
ameaça; o tropeirismo que lhe dera poder econômico encontrava-se retraído; os
caminhos que administrara não eram mais vitais, pois a estrada de ferro CuritibaParanaguá tornara-se mais importante; a erva - mate era agora o produto dominante
nas exportações e trazia os grandes dividendos para o Estado; os escravos
encontravam-se libertos, substituídos pela mão-de-obra livre, que avançava com a
economia cafeeira ao norte e com a imigração européia no território paranaense; a
religião católica não estava mais atrelada ao Estado, convivendo com as diversas
religiões dos imigrantes; a Guarda Nacional já não existia, e os coronéis e
comandantes pertenciam ao Exército Nacional; a capital do Estado detinha o controle
do poder político e as relações com o Estado eram impessoais e burocratizadas. O
cidadão guarapuavano, Antonio de Sá e Camargo, político e representante de sua
comunidade no governo monarquista, aceitou a nova ordem e manteve-se como
respeitável conselheiro, sintetizando a memória coletiva de sua região.
159
FIGURA 16 – RETRATO DO VISCONDE DE GUARAPUAVA.
Fonte - Acervo Museu Paranaense
160
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise da micro-história, ao reduzir a escala de observação do macrosocial, aprofundando a do micro-social, introduz o historiador em situações pouco
vivenciadas na produção da história, seu objeto assume proporções incomensuráveis,
ao se adentrar nas múltiplas facetas que passam a ser reveladas. Desse modo o
indivíduo - o micro do social – torna-se um fenômeno social complexo, onde se
encontram todos os elementos da cultura e da sociedade. As determinações do político
e da economia se sujeitam as regras, as normas, as sensibilidades, indicando os
indivíduos como personagens do teatro da vida, conforme já demonstramos através do
estudo do estado da arte, cujos autores foram citados.
Pensar sobre estas variáveis é possível, utilizando a metodologia científica.
Evidenciá-las, eis a questão da micro-história. Tomando Antonio de Sá e Camargo Visconde de Guarapuava como objeto numa perspectiva histórico-biográfica, pode-se
estudar um período histórico pela perspectiva de um indivíduo, de sua sensibilidade,
de suas reações registradas em diferentes domínios sociais. Dependendo do contexto, o
personagem pode ser desde um “ator genial” até o “espectador desolado”,
evidenciando o indivíduo nos diferentes papeis que ocupou durante sua trajetória de
vida.
Certamente a leitura da documentação oficial, pública e privada, passou por
um crivo e um olhar no qual a restituição do indivíduo é fundamental. Desse modo
percebe-se que a discussão da memória como instrumento da análise histórica deve
concebê-la como um fenômeno simultaneamente coletivo e individual, tomado do
presente com recortes e seleção sobre o passado.
A reconstrução da trajetória do indivíduo Antonio de Sá e Camargo –
Visconde de Guarapuava foi escrita pautada nas literaturas teóricas e metodológicas e
na interpretação das fontes selecionadas, como os registros a respeito da administração
e da abertura dos caminhos para a região sul do Brasil, da administração do
aldeamento indígena nos Campos de Guarapuava e da construção da igreja, as atas do
161
período de 1853 a 1889 que registraram informações referentes ao cotidiano da
localidade e de sua atuação como vereador, o registro de revalidação das terras ou
Registro do Vigário, registros de compra e venda de imóveis, procurações,
testamentos, inventários, cartas particulares, registros de batizados, registros de óbitos
entre outras fontes, como a viagem à cidade de Palmeira, onde se visualizam os belos
campos descritos pelo viajante Auguste de Saint-Hilaire, as habitações do avô
materno, a casa branca da serra, a casa da fazenda Conceição, onde o personagem
viveu a sua infância e a igreja de Nossa Senhora da Conceição da Palmeira. O olhar do
viajante do passado, o olhar do pesquisador do presente, captura ou seduz despertando
suposições sobre os sentimentos do personagem analisado.
Procurou-se na interseção das fontes esclarecer lacunas, ausências e
imprecisões, fazendo o máximo para seguir o rastro do personagem na perspectiva do
presente para o passado e compreender o mundo vivido pelo Visconde de Guarapuava.
Seu comportamento, sua personalidade e a influência do meio circundante o
tornaram um homem do século XIX, um “homem de bem”. Detentor dessa
característica, teve condições de implantar, na localidade, as determinações do
imperador, de fazê-la progredir, garantindo a posse do território, e expandir a
ocupação dos Campos de Guarapuava, mantendo a hierarquia social. Construiu sua
trajetória de vida pautada na honra, no autoritarismo, na caridade, nas idéias
progressistas e civilizadoras, entre outras. Essas características o qualificaram como
um modelo ideal de indivíduo atendendo às necessidades e às aspirações da sociedade
paranaense, no final do século XIX e meados do XX, ao ser eleito como um dos seus
representantes da memória histórica paranaense para ser rememorado e celebrado.
A imagem do Visconde de Guarapuava, nos meados do século XX, foi
construída pelas manifestações que celebraram o cinqüentenário da sua morte.
Expressões como “Ilustre paranaense”, “Progressista entusiasta - destemido
bandeirante”, “Poderoso fazendeiro”, “natural entusiasmo suscitado pelo espírito de
provincialismo”, “Modesto Visconde” e “Velhinho monarquista” são alguns exemplos
de aclamações que Antonio de Sá e Camargo recebeu.
162
Ao reconstruir a trajetória de Antonio de Sá e Camargo, buscando uma
alternativa para entender a microconflitualidade local, desvendaram-se outros
personagens que compartilharam de sua história. A rede de parentela, reforçada com
os casamentos no grupo familiar, evidencia as conexões entre a política, a riqueza e a
administração em níveis que se articulam do local ao nacional. Seus parentes
desempenharam cargos na ocupação dos sertões da 5ª Comarca de São Paulo, depois
de 1853, Província do Paraná; nas igrejas, o irmão e também os primos atuaram como
vigários em Palmeira, Castro, Guarapuava e Palmas; como membros da Guarda
Nacional o irmão, cunhado, primos, sobrinhos, exerceram funções; na direção política
e administrativa da província do Paraná, o primo e cunhado; na Assembléia
Legislativa o irmão, primo e cunhado; no comércio das tropas na Província do Paraná
em especial nas cidades de Palmeira; Palmas, Castro, Guarapuava, Curitiba e também
nas províncias de São Paulo e Rio Grande do Sul, os avôs, pai, irmãos, tios e primos;
na política do império, o seu primo e cunhado, Jesuíno Marcondes de Oliveira e Sá foi
nomeado pelo imperador Pedro II, como ministro da Agricultura, Comércio e obras
públicas.
Na releitura do seu passado, o detalhamento e o cruzamento da documentação
selecionada permitiram percebê-lo na prática de suas funções públicas: como
administrador dos caminhos da Vila de Guarapuava, administrador das obras da igreja
matriz, diretor do aldeamento dos índios Kaingangue que habitavam a região, membro
da comissão inspetora das primeiras letras, juiz de paz, delegado, comandante da
Guarda Nacional de Guarapuava, chefe local do Partido Liberal, vereador da Câmara,
deputado provincial, vice-presidente da Província do Paraná, e já no final de sua
existência um velho conselheiro local que atendia à população com conselhos,
empréstimos de dinheiro e financista de idéias, entre estas, a navegação do rio Iguaçu e
a ajuda prestada ao juiz Francisco Peixoto de Lacerda Werneck para montar o batalhão
revolucionário em defesa dos ideais de republicano que ousou defender.
No universo privado, sofreu as coerções inevitáveis do meio, como a decisão
de romper seu casamento, mas manter o vínculo religioso, não se separar judicialmente
e respeitar o jogo social, comparecendo acompanhado da esposa nas festas religiosas e
163
nos batizados. A esposa mesmo não vivendo junto, participava da continuidade dos
seus negócios. A decisão tomada ultrapassou qualquer sentimento que porventura
tivesse existido entre ele e sua mulher. Essas questões evidenciam a relação intrínseca
dos universos - íntimo, privado e o público -, que se articularam, na trajetória do
personagem.
Não conseguiu seguir a norma de constituir uma família, de deixar
descendentes para perpetuar seu nome, regra básica do período para um “homem de
bem”. Seus irmãos e irmãs deixaram muitos descendentes, e até o irmão que, seguindo
as regras familiares tornou-se padre, posteriormente abandonou a batina para se casar e
constituir família.
A interdependência com os parentes garantiu aos filhos menores de seu irmão
Francisco de Paula Camargo parte de suas terras e, após sua morte, as duas filhas de
Mathilde Umberlina de Camargo, sobrinha do Visconde, mediante testamento tiveram
direito à metade da sua riqueza, a outra de direito foi para Zeferina, esposa. Talvez a
tragédia de perder seu único filho tenha feito com que passasse a se dedicar à caridade,
fazendo inúmeras doações para asilos, Santa Casa de Misericórdia e orfanatos, nas
Províncias do Paraná e São Paulo e mesmo na Corte ou para manter sua imagem de
“homem de bem”.
Após a queda do Império Brasileiro e o advento da República, o velho
Visconde de Guarapuava, político e representante de sua comunidade no governo
monarquista, aceitou a nova ordem e manteve-se como respeitável conselheiro,
sintetizando a memória coletiva de sua região.
Do exposto ao longo desta tese, conclui-se que, entre os paranaenses que
nasceram e viveram no século XIX, Antonio de Sá e Camargo, Barão e Visconde de
Guarapuava, foi neste universo de geração um dos escolhidos por essa sociedade para
ser rememorado. Seu contemporâneo Taunay deu-lhe a credibilidade de “um brasileiro
que honra o Brasil inteiro”. Essa escolha permaneceu no século XX, como indivíduo
que continuou atendendo às aspirações coletivas de modelo de homem a ser celebrado
como representante da memória e da identidade paranaense. Exemplificando esse
permanente retorno ao modelo de homem criado em torno da imagem de Antonio de
164
Sá e Camargo - Visconde de Guarapuava em 2004, o memorialista Luiz Romaguerra
Netto em artigo no jornal Gazeta do Povo, colocou-o como “O maior homem do
Paraná”, e em Guarapuava o 26º Grupo da Artilharia e Campanha atribuiu-lhe o nome
a sua corporação.
A abordagem da micro-história apresenta-se como procedimento prático,
capaz de revelar a trama do jogo das relações sociais em que os personagens são
inseridos. Permite evidenciar as múltiplas relações entre íntimo, privado e público num
constante entrelaçamento onde os limites são praticamente indemarcáveis. Essas
amplas estruturas encontram-se articuladas, construindo e sendo construídas pelos
personagens que não fazem uma leitura mecânica das suas vidas, porque representam
papéis, em constante mudança. A micro-história coloca, portanto, os personagens
como atores e espectadores, tanto na atualização das regras como na sua superação,
conforme se demonstra no estudo histórico-biográfico, sustentado teoricamente pela
micro-história, do personagem Visconde de Guarapuava.
Em relação à reconstrução da trajetória de Antonio de Sá e Camargo – ator
histórico – pode-se concluir que a sua participação simultaneamente nos universos
econômico, do social, do político, do religioso, do cultural e familiar, intermediando os
contextos que variaram do local ao nacional, revelou uma modulação particular e
diferente da História do Paraná, que em grande parte deve ser atribuída à história do
Visconde de Guarapuava.
165
REFERÊNCIAS
FONTES MANUSCRITAS
ARQUIVO DA BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ
OLIVEIRA. J. C. Doença Zeferina. Paranaguá, 2 de out. 1861. Arquivo da Biblioteca
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Paraná – Divisão Paranaense.
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Paraná – Divisão Paranaense.
SÁ, J. M. O. Recordações familiares. Suíça, 2 out. 1898. Arquivo da Biblioteca
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_____. Sessão extraordinária de 18 out. 1834. Castro. Livro n.5, p.97-98.
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_____. Guarapuava, Ata da sessão realizada no dia 10 de nov de 1853. Livro 01,
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_____. Guarapuava, Ata da sessão realizada 13 abr. 1853. Livro 01.
_____. Guarapuava. Ata da sessão realizada no dia 20 mai. 1853. Livro 01.
166
_____. Guarapuava. Ata da sessão realizada no dia 21 mai. 1853. Livro 01.
_____. Guarapuava. Ata da sessão realizada no dia 06 nov. 1853. Livro 01.
_____. Guarapuava. Ata da sessão realizada no dia 10 fev. 1854. Livro 01
_____. Guarapuava. Ata da sessão realizada no dia 12 nov, 1854. Livro 01.
_____. Guarapuava. Ata da sessão realizada no dia 16 nov, 1854. Livro 01.
_____. Guarapuava. Ata da sessão realizada no dia 22 jan, 1855. Livro 01.
_____. Guarapuava. Ata da sessão realizada no dia 3 fev. 1855. Livro 01.
_____. Guarapuava. Ata da sessão realizada no dia 23 fev. 1855. Livro 01.
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_____. Guarapuava. Ata da sessão realizada no dia 29 mar, 1855. Livro 01.
_____. Guarapuava. Ata da sessão realizada no dia 5 jul. 1855. Livro 01.
_____. Guarapuava. Ata da sessão realizada no dia 8 mar. 1865. Livro 02..
_____. Guarapuava, Ata da sessão realizada no dia 26 jun. 1865. Livro 02.
_____. Guarapuava. Ata da sessão extraordinária dos vereadores no dia 23 nov.
1889.
_____. Relatório dos vereadores ao presidente da Província Antonio Barbosa de
Oliveira. Guarapuava, 8 jan. 1862.
_____. Relatório dos vereadores ao presidente da Província Augusto de Padua
Fleury. Guarapuava, dez, 1865.
_____. Relatório dos vereadores ao vice - presidente da Província Agostinho de
Emiliano de Leão. Guarapuava, dez, 1870.
_____. Relatório dos vereadores ao presidente da Província Joaquim Bento de
Oliveira Junior. Guarapuava, dez, 1877.
_____. Relatório dos vereadores ao presidente da Província Luiz Alves de
Oliveira Belo. Guarapuava, dez, 1883.
167
CAMARGO, A de S. e. Agradecimento ao presidente da província homenagem
guarda nacional. Guarapuava. 12 jul. 1870. Arquivo da Câmara Municipal de
Guarapuava. Livro de Expediente da Guarda Nacional de Guarapuava.
_____. Comunicado de licença. Guarapuava. 05 jun. 1871. Arquivo da Câmara
Municipal de Guarapuava. Livro de Expediente da Guarda Nacional de Guarapuava.
_____. Comunicado ao Presidente da Província. Guarapuava. 14 nov. 1865.
Arquivo da Câmara Municipal de Guarapuava. Livro de Expediente da Guarda
Nacional de Guarapuava.
_____. Informações a respeito dos guardas para o serviço da guerra. Guarapuava,
25 nov. 1865. Arquivo da Câmara Municipal de Guarapuava. Livro de Expediente da
Guarda Nacional de Guarapuava.
_____. Informações dos guardas nacionais de Guarapuava. Guarapuava. 06 jan.
1866. Arquivo da Câmara Municipal de Guarapuava. Livro de Expediente da Guarda
Nacional de Guarapuava.
_____. Ofício ao Presidente da Província do Paraná. Guarapuava, 5 fev. 1865.
Arquivo da Câmara Municipal, Livro de Expediente da Guarda Nacional de
Guarapuava.
_____. Ordens para seus comandados. Guarapuava. 19 dez. 1865. Arquivo da
Câmara Municipal de Guarapuava. Livro de Expediente da Guarda Nacional de
Guarapuava.
_____. Pedido ao capitão Estevão Ribeiro do Nascimento. Guarapuava. 24 jan.
1866. Arquivo da Câmara Municipal de Guarapuava. Livro de Expediente da Guarda
Nacional de Guarapuava.
_____. Reclamações familiares guardas destacados. Guarapuava. 20 dez. 1865.
Arquivo da Câmara Municipal de Guarapuava. Livro de Expediente da Guarda
Nacional de Guarapuava.
_____. Reclamações com o pagamento dos praças destacados. Guarapuava. 02 jan.
1866. Arquivo da Câmara Municipal de Guarapuava. Livro de Expediente da Guarda
Nacional de Guarapuava.
_____. Solicitação aos seus comandados. Guarapuava. 21 nov. 1865. Arquivo da
Câmara Municipal de Guarapuava. Livro de Expediente da Guarda Nacional de
Guarapuava.
LOURES, F. F. da R. Ata com informações a respeito de eleições. Guarapuava, 14
jan. 1854. Arquivo Câmara Municipal de Guarapuava. Livro 01, p.22-23.
168
_____. Informações qualificação corpos destacados Guarapuava. Guarapuava, 24
fev. 1865. Arquivo da Câmara Municipal de Guarapuava. Livro de Expediente da
Guarda Nacional de Guarapuava.
_____. Informações sobre problemas internos do comando. Guarapuava. 10 jul.
1865. Arquivo da Câmara Municipal de Guarapuava. Livro de Expediente da Guarda
Nacional de Guarapuava.
_____. Ofício informações corpos destacados. Guarapuava. 25 fev. 1865. Arquivo
da Câmara Municipal de Guarapuava. Livro de Expediente da Guarda Nacional de
Guarapuava.
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CATEDRAL
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VICENTE, Domingos. Registro de óbito de Antonio de Sá e Camargo. Livro de
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33.
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Viscondessa de Guarapuava, Inventariante Dr. Affonso Alves de Camargo. Palmeira,
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169
ARQUIVO CARTÓRIO DA 1ª VARA CIVIL DO FÓRUM DE GUARAPUAVA
Autos de inventário dos bens deixados por falecimento de Manoel Mendes de Araujo.
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170
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CAMARGO, A de S. Administração estrada da Mata. Guarapuava, 26 maio. 1850,
Arquivo Estado de São Paulo.
_____. Dispensa da comissão inspetora das aulas de primeiras Letras.
Guarapuava, 2 fev. 1850, Arquivo Estado de São Paulo.
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São Paulo.
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Estado de São Paulo.
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CARNEIRO, J. N. Demissão do alferes da 1ªsecção. Guarapuava, 30 abr. 1849,
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171
LOURES, A da R. Carta ao presidente da Província de São Paulo. Guarapuava, 8
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172
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Guarapuava, 24 jan. 1887, livro 29, folha 40.
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183
ANEXOS
ANEXO 1 – LISTA DE PARTICIPANTES DAS COMEMORAÇÕES DO
CINQUENTÁRIO
DE
MORTE
DO
VISCONDE
DE
GUARAPUAVA. .......................................................................................184
ANEXO 2 REGISTRO DE ÓBITO DE FIRMINO......................................................1877
ANEXO 3 – TESTAMENTO DO VISCONDE DE GUARAPUAVA.........................1888
ANEXO 4 – JORNAL O GUAYRA DE GUARAPUAVA. ...........................................1922
ANEXO 5 – OFÍCIO AO COMANDO SUPERIOR DA GUARDA NACIONAL
DA COMARCA DE CASTRO – ENCAMINHADO PELO MAJOR
ANTONIO DE SÁ CAMARGO, COMANDANTE DO 4º
ESQUADRÃO DA GUARDA NACIONAL DE GUARAPUAVA. ......1944
ANEXO 6 – MARCA DE GADO DO MUNICÍPIO DE GUARAPUAVA. ................1966
ANEXO 7 TÍTULOS IMPERIAIS DE ANTONIO DE SÁ E CAMARGO ................1977
184
ANEXO 1 – LISTA
DE
PARTICIPANTES
DAS
COMEMORAÇÕES
DO
CINQUENTÁRIO DE MORTE DO VISCONDE DE GUARAPUAVA.
185
186
FONTE: BOLETIM DO INSTITUTO HISTÓRICO GEOGRÁFICO E ETNOGRÁFICO
PARANAENSE. Vol. IV, abril 1950.
187
ANEXO 2 - REGISTRO DE ÓBITO DE FIRMINO.
FONTE: ARAUJO, Antonio Braga de. Registro de óbito de Firmino. Livro de assentos de óbitos. Guarapuava,
23 ago. 1867, livro n.1B, p.8 verso.
188
ANEXO 3 – TESTAMENTO DO VISCONDE DE GUARAPUAVA.
189
190
191
FONTE: Autos do inventário e partilha de bens deixados pelo Visconde de Guarapuava. Guarapuava, 1ºdez.
1896, n.463. Cartório Civil do Fórum de Guarapuava.
192
ANEXO 4 – JORNAL O GUAYRA DE GUARAPUAVA.
193
FONTE: Biblioteca Pública do Paraná
194
ANEXO 5 – OFÍCIO AO COMANDO SUPERIOR DA GUARDA NACIONAL DA
COMARCA DE CASTRO – ENCAMINHADO PELO MAJOR
ANTONIO
DE
SÁ
CAMARGO,
COMANDANTE
DO
ESQUADRÃO DA GUARDA NACIONAL DE GUARAPUAVA.
4º
195
FONTE: Arquivo Histórico Municipal de Guarapuava.
196
ANEXO 6 – MARCA DE GADO DO MUNICÍPIO DE GUARAPUAVA.
FONTE: CORREIA, L; OLIVERO, M. F. Guarapuava. 2.ed. Curitiba: Olivero, 1928.
197
ANEXO 7 - TÍTULOS IMPERIAIS DE ANTONIO DE SÁ E CAMARGO
FONTE: RHEINGANTZ, G. C. Titulares do Império. Rio de Janeiro: 1960.
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