O PROCESSO DE CRIAÇÃO LITERÁRIA EM CLARICE LISPECTOR, POR UMA FILOSOFIA DA LITERATURA Anderson Barbosa Camilo Departamento de Filosofia - UFRN Resumo: Entre muitos teóricos da literatura, pensar o problema da exigência literária é um assunto por demais rico que trás inúmeras reflexões. “Por que” escrever e “Para quem” escrever torna-se o eixo das atenções de vários pensadores a respeito da escrita, sobretudo os franceses. E vemos, por essa esteira, em Clarice Lispector a oportunidade de estudar essas questões que concernem ao processo de criação artística e literária, sobretudo porque sua literatura nos renderia, com todo o jogo dos elementos simbólicos envolvidos, muito o que pensar acerca da exigência da obra. Com o nome entre os mais importantes da literatura do século XX no Brasil, os livros de Clarice Lispector trazem aos leitores uma urgência que não é de um engajamento, mas sim de ficar a errar pelas margens de um deserto como horizonte de sentido, com a morte a rondar os movimentos das palavras. Palavras-chave: Clarice Lispector; Literatura; Exigência; Criação; Morte. Quando falamos de escritores brasileiros, lembramos de nomes canônicos como, por exemplo, Machado de Assis, Augusto dos Anjos, Guimarães Rosa, entre outros gigantes. Entretanto, se continuássemos a listar nomes grandiosos que constituíram o cenário da literatura brasileira, com quase 95% de nomes masculinos, inevitavelmente citaríamos uma mulher, nordestina, de origem ucraniana, e que morou no Rio de Janeiro durante muito tempo e lá faleceu, cuja literatura é repleta de simbolismos que desnorteiam qualquer leitor desavisado. Tal nome, que poderíamos colocar entre os tantos outros grandiosos escritores na história do Brasil, seria o de Clarice Lispector. De fato, Clarice é um dos maiores nomes da literatura brasileira do século XX, um momento histórico para a literatura, marcado por vários acontecimentos, guerras mundiais e crises econômicas, a nível global por exemplo, e no Brasil os anos da ditadura militar, que culminaram no exílio de alguns artistas, dentre eles o poeta Fernando Sabino. Então querer abarcar a noção do que seja a literatura, supostamente para muitas pessoas, se resumiria nessas circunstâncias políticas e econômicas. Pensaríamos, junto à elas, com Sartre, por uma literatura do engajamento. Alguns dos escritores brasileiros acreditam que “toda literatura é engajada”, diz Pablo Neruda numa entrevista à Clarice Lispector1. Entretanto, Clarice não acredita no engajamento, não acredita que 1 Cf. LISPECTOR, Clarice. Entrevistas. Rio de Janeiro: Rocco Editora, 2007, p. 73. É interessante salientar que esse livro de entrevistas não se trata de uma coletânea de entrevistas concedidas por Clarice, mas ao contrário, constitui várias entrevistas que diversas personalidades concederam à Clarice nas ocasiões em que exercia a função de entrevistadora. as palavras sejam armas carregadas que quando miradas e disparadas atinjam seu alvo2, ou que ao desvendar o mundo pela palavra (fala) é mudá-lo3. No entanto, pensar o que é literatura para Clarice é pensar numa literatura que pode retratar elementos culturais e econômico de determinado tipo de “classe”, como por exemplo, a anti-heroína Macabéa, do último romance da escritora, A hora da estrela. Esta obra delimita em seu horizonte os complexos da vida de uma nordestina sem qualquer perspectiva que vai viver no Rio de Janeiro e na sua vida acontecem alguns desenlaces. Entretanto, uma literatura como esta não quer dizer que vá mudar algo, não quer dizer que quando disparada atinja algo. Para Clarice as palavras são impotentes, e assim também é o escritor. Numa entrevista com José Carlos Oliveira, ela diz: “Carlinhos, nó dois escrevemos e não escolhemos propriamente essa função. Mas já que ela nos caiu nos braços, cada palavra nossa devia ser pão de se comer” (LISPECTOR, 2007: 81). De todo modo, como Clarice afirma numa outra entrevista, para um programa de televisão, Panorama Especial4, em 1977, quando o entrevistador interroga se ela acredita que sua literatura possa de algum modo alterar a realidade que aborda, Clarice diz que escreve sem esperança de que o que escreve altere alguma coisa. Vemos que, por parte da autora, a literatura não influencia na realidade, ela não se altera por conta da literatura, não há qualquer correspondência desse tipo. Para ela, na mesma entrevista, o que está em voga não é de querer alterar a realidade, até porque não acredita nisso, mas de que no fundo quer “desabrochar” pela e na escrita, de um modo ou de outro, e que o que escreve e comunica ao outro é, antes de mais nada, escrever e comunicar a si mesma. Percebemos, em Clarice Lispector, um caráter de uma literatura que advém de uma espécie de introspecção. De algo que sai de “si” e vai para “si”. Que a “arte é uma busca” 5. E assim fala à Érico Veríssimo, ao entrevistá-lo: “Você se sente realizado como escritor, Érico? Eu, por exemplo, ainda não me sinto, e tenho a impressão de que será assim até eu morrer.” (Cf. ibid.: 39). Para Clarice a literatura é, portanto, uma busca, ela a sente como tal, como uma busca de realização, e sabe que essa busca nunca irá acabar, nunca será plenamente realizada, e que a cada novo exercício de escrever com um propósito de se realizar acaba que por abrir mais e mais esse espaço de realização nunca contemplado inteiramente. A noção desse espaço de realização para Clarice, de que sua busca é ao mesmo tempo seu distanciamento e conjuração, assemelha-se à noção de literatura e obra em Foucault quando [...] palavras que nos conduzem ao limiar de uma perpétua ausência que será a literatura [...] é característico da literatura ter se dado como – desde que existe, no século XIX, e oferece à cultura ocidental essa figura estranha sobre a qual nós nos interrogamos – como tarefa, precisamente, o assassinato da literatura. (Cf. FOUCAULT, 2001:142-143) 2 Cf. SARTRE, Jean-Paul. Que é a literatura ?. São Paulo: Ática, 1993, p. 21. Cf. Ibid. p. 20. 4 Tal entrevista encontra-se disponível no Youtube, site de gerenciamento e hospedagem de vídeos. O endereço eletrônico do site é WWW.youtube.com. Acessando-o e nele procurando por CLARICE LISPECTOR na barra de busca, será possível encontrar a entrevista em questão. 5 Cf. LISPECTOR, Clarice. Entrevistas. Rio de Janeiro: Rocco Editora, 2007, p. 14. 3 Sobre a obra, Foucault afirma: [...] a obra só existe na medida em que, a cada instante, todas as palavras estão voltadas para a literatura, são iluminadas por ela e, ao mesmo tempo, porque a literatura é conjurada e profanada. Pode-se dizer, em suma, que a obra como irrupção desaparece e se dissolve no murmúrio da repetição continua da literatura. (Cf. Ibidem:144). No sentido em que a literatura, para Foucault, se faz, ela ao mesmo tempo se desfaz, se assassina, e a obra quando aparece, dissolve-se na literatura; e quando a realização está a se realizar, para Clarice, ela se desrealiza, de modo que nunca se realizará. Então, uma vez que, no pensar de Lispector, a literatura não altera nada na realidade, é impotente, e que é uma busca, mas que nunca realiza o autor e nem se realiza, que seu espaço ao ser percorrido cada vez se torna maior para percorrer, nos resta uma pergunta: porque escrever, Clarice? Carlos Oliveira lhe pergunta isso e então nossa autora responde: “Escrevo porque não posso ficar muda” (Cf. LISPECTOR, 2007:81). Nesse horizonte, devemos pensar que Clarice não poder ficar muda não é dizer e alterar qualquer coisa, mas porque não pode não falar, é uma necessidade de “desabrochar”. Ela, ao entrevistar o escritor Fernando Sabino, diz: “Fernando Sabino, por que é que você escreve? Eu não sei por que eu escrevo, de modo que o que você disser talvez sirva pra mim” (Cf. Ibidem:32). Se Clarice acreditasse no engajamento, e isso fosse seu objetivo, saberia por que escreve. Mas ela não sabe, sabe apenas que não pode ficar muda, não pode deixar de falar, de se exprimir, mesmo não acreditando que o que fale vá mudar a realidade. De todo modo, vemos que há uma exigência da obra, da escrita, em Clarice. E ela, na entrevista ao programa Panorama Especial, de 1977, afirma que quando escreve algum romance está “morta”. E que no momento da realização desta entrevista está “morta”, pois acabou de concluir um romance, e que está ali a falar pela sua “tumba”. Nós a entendemos quando lemos o que Blanchot afirma: A obra exige do escritor que ele perca toda a ‘natureza’, todo o caráter, e que, ao deixar de relacionar-se com os outros e consigo mesmo pela decisão que o faz ‘eu’, converta-se no lugar vazio onde se anuncia a afirmação impessoal. Exigência que não é uma, porquanto nada exige, é desprovida de conteúdo, não obriga, é tão só o ar que se deve respirar. (Cf. BLANCHOT, 1987: 50) Fazendo uma analogia com a figura do poeta e sua relação com a poesia, sobre uma tal experiência da escrita, Blanchot dirá que A poesia não é dada ao poeta como uma verdade e uma certeza de que ele poderia aproximar-se; ele não sabe se é poeta, mas tampouco sabe o que é a poesia, nem mesmo se ela é; ela depende dele, de sua busca, dependência que, entretanto, não o torna senhor do que busca mas torna-o incerto de si mesmo e como que inexistente. (Cf. Ibidem:83) Percebemos que Clarice e Blanchot estão em consonância nesse ponto, e que, para nossa autora, escrever é a busca de uma realização, mas que escrever também é morrer, como há de realizar-se dessa forma? Seria como ir em busca da Terra Prometida, mas sabendo que nunca irá encontrá-la, que só irá deparar-se com o deserto, com essa realidade do deserto, mas que crer que ainda se possa ir ou estar em Canaã, mesmo sabendo que os seus passos só irão pisar nas areias da errância, e que quer fixar o pé no solo da Terra Prometida. Assim como em Kafka, nos diz Blanchot: Ele já pertence à outra margem, e sua migração não consiste em aproximar-se de Canaã mas em acercar-se do deserto, da verdade do deserto, de ir sempre mais longe do lado de lá, mesmo quando, desgraçado também nesse outro mundo e tentado ainda pelas alegrias, [...] tenta persuadir-se de que permanece ainda em Canaã. (Cf. Ibidem: 66) Escrever, para Clarice Lispector, é algo com muitas nuanças e muitos lados contrários. Para ela, o início do momento de criação é como uma “inspiração”, algo não planejado, uma coisa “que não é de modo algum deliberada” (Cf. LISPECTOR, 2007:32). Com relação ao início da criação, Lispector pergunta à Sabino: “É sempre deliberado seu ato criador? Ou você de repente se vê escrevendo? Comigo é uma mistura” (Cf. Ibidem). Em primeira instância é assim que ocorre, confusamente, seu ato criador, sendo deliberado ou não, e Clarice o teme6. Ela tem medo da grandeza do ato criador frente a si mesma, e na entrevista com Fernando Sabino, afirma: “Fernando, você tem medo antes e durante o ato criador? Eu tenho: acho-o grande demais para mim. E cada novo livro meu é tão hesitante e assustado quanto o primeiro livro” (Cf. Ibidem:35) Clarice Lispector fala de um medo do ato criador, que o acha demais para si. Mas que tipo de medo é esse? Em que consiste esse medo do tamanho grandioso do ato criador, face à sua, “pequenez”? Entretanto a palavra “pequenez” parece não trazer o sentido correto para o que estamos falando. Não pensemos em “pequenez”, pensemos em “impessoalidade”. Pensemos que esse medo consiste em ela, através do ato criador na obra, tornar-se impessoal, morrer para além da obra, para além do universo ficcional. Na entrevista ao programa Panorama Especial, o entrevistador, falando sobre coisas que ela escreve e depois rasga, pergunta por que ela assim o faz, e Clarice responde que é porque estava cansada de si mesma, num momento de “raiva”. Escrever, nessa instância, mesmo que os manuscritos sejam rasgados posteriormente, não seria uma espécie de remediação contra aquilo que a está lhe tocando e lhe trazendo ruins afecções? Remediar a si mesma, pois algo lhe traz más afecções? Não sabemos ao certo, são momentos muito raros em que Clarice aborda ou norteia algo nessa direção. Em todo caso, escrever para ela está no âmbito do misterioso, e o ato criador é assombroso pra si. Portanto, nada seria de assombroso e misterioso se ela tivesse algo a “comunicar” para alterar a realidade. Nada seria misterioso se houvesse engajamento. Escrever para Clarice, como já dissemos, é uma busca de realização que não se realiza ao passo que busca, é uma ida à Canaã, analogicamente ao pensamento de Blanchot sobre Kafka, que só irá deparar-se com o deserto. Mesmo sabendo da impossibilidade 6 Cf. Ibidem:32. daquilo que almeja realizar-se, Clarice ainda continua a escrever, pois sente uma necessidade de escrever. Ela não pode ficar “muda”, tem que falar, mas não com o intuito de atrair uma atenção para modificar as coisas ao seu redor, e sim porque acredita que na verdade nada queremos mudar, que queremos somente falar, “desabrochar”. Por isso que sua literatura é tão marcada por simbolismos, de uma sensibilidade, além de feminina, se é que podemos dizer isso no âmbito da literatura, de alguém que viajou e morou em vários lugares, tendo vivenciado diversas realidades. E é no meio da vivência que surgem os lampejos para escrever para Clarice, a “inspiração”, algo que foge de toda causa e racionalidade, que desemboca numa tarefa de matar a si próprio no ato escrita. Eis o que poderíamos descrever o que é a literatura para Clarice Lispector: exigência de falar para se esvaziar, se remediar, se realizar sem realização, continuar nessa exigência, e por fim, morrer pela palavra. Referências Bibliográficas: BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco Editora, 1987. FOUCAULT, Michel. Linguagem e Literatura. In: MACHADO, Roberto. Foucault, a filosofia e a literatura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Edtora, 2001. LISPECTOR, Clarice. Entrevistas. Rio de Janeiro: Rocco Editora, 2007. _____________. Clarice Lispector: Panorama Especial. Entrevistador: J. Lerner. São Paulo: TV Cultura, 1977. Entrevista concedida ao programa Panorama Especial e reapresentado no programa 30 Anos Incríveis da emissora TV cultura. Disponível em: < http://www.youtube.com/watch?v=9ad7b6kqyok > Acesso em: 21 jun. 2011. SARTRE, Jean-Paul. Que é a literatura?. São Paulo: Ática, 1993.