IV Encontro Nacional de Estudos da Imagem I Encontro Internacional de Estudos da Imagem 07 a 10 de maio de 2013 – Londrina-PR Arte Projetada: Uma Análise a Partir dos Estudos Culturais Edgar Roberto Luiz Pereira Luciana Martha Silveira UTFPR – Curitiba, Paraná, Brasil – [email protected], +55 41 9616-8515. Resumo: Este artigo parte da hipótese de que a cultura ocupa papel central na maneira como percebemos o mundo que nos cerca, e, portanto, na forma como o representamos. Nesse sentido, a prática artística pode ser entendida enquanto processo "produtor "e "reprodutor" de significados culturais. Produtor, ao representar valores e práticas a partir da materialização artística da visão de um indivíduo - ou grupo de indivíduos. Reprodutor, ao utilizar os meios técnicos disponíveis para essa materialização, reforçando - ou questionando - os significados presentes no meio de expressão em si. Considerando que os aparelhos de produção, reprodução e manipulação de imagens técnicas estão profundamente inseridos na cultura ocidental contemporânea, serão apresentados alguns conceitos de cultura e de mediação tecnológica aplicados à observação do processo de produção da arte projetada, que vem a ser um formato de expressão artística mediado por equipamentos eletrônicos, e consiste na projeção de imagens em superfícies escultóricas ou arquitetônicas. Palavras-chave: ciclo eletrônico, estudos culturais, arte. Abstract: This article considers that culture plays a central role in the way we perceive the world around us, and, therefore, in the form we represent it. Hence, the artistic practice can be understood as "producer" and "re-producer" of cultural meanings. Producer, when we represent practices and values through artistic materialization. Re-producer, when we use technical means for this materialization, reinforcing - or questioning - the meanings brought in the media. Having in mind that the equipment used for technical image production, reproduction and manipulation form the contemporary western culture, concepts of culture and technological mediation will be presented and applied to observe the production process of projected art, which is an artistic format using electronic equipment, projecting images in architectonic or sculptural structures. Key-words: electronic cycle, cultural studies, arts. 1920 IV Encontro Nacional de Estudos da Imagem I Encontro Internacional de Estudos da Imagem 07 a 10 de maio de 2013 – Londrina-PR 1. Introdução É nítida a onipresença da imagem produzida por aparelhos na sociedade ocidental contemporânea. Os meios de reprodução de imagens atualmente disponíveis permitem intervenções que seriam inimagináveis no início do século passado, quando teve início o desenvolvimento e disseminação dessas tecnologias. Podemos dizer que os artefatos que servem para produzir, reproduzir e manipular imagens - a câmera fotográfica e filmadora, o projetor, o computador - fazem parte de nosso universo cultural (HALL 1997). A constatação parece óbvia, mas os processos pelos quais estes aparelhos - e seus respectivos discursos tecnológicos - ligam-se à maneira como vemos e representamos o mundo que nos rodeia estão imersos num emaranhado complexo de relações, com direito a nuances sutis que só uma análise mais atenta pode revelar. Em outras palavras, a apropriação dos aparelhos possui uma "cultura" em si. (DU GAY, et al. 1997) Um olhar sobre estas novas tecnologias, que utilize as lentes do senso comum, poderia destacar os aspectos meramente instrumentais dos meios, revelando com entusiasmo ou pessimismo os resultados provenientes da sua manipulação. No campo das artes, uma visão superficial iria se concentrar nos resultados estéticos, na imagem do autor que materializou a sua visão na obra de arte, no "automatismo" recorrente da utilização de mídias eletrônicas enquanto meio de representação, etc. O objetivo deste artigo é o de localizar a prática artística, mediada por equipamentos tecnológicos, no âmbito do que se pode considerar uma "cultura" (HALL 1997) do fazer artístico do ciclo eletrônico (LAURENTIZ 1991). Para tanto, utilizaremos as concepções sobre cultura adotadas por alguns dos autores que compõem a disciplina conhecida como Estudos Culturais (Raymond Williams, Paul du Gay, Stuart Hall). Será explicitado o que se entende por "ciclo eletrônico", e como as relações do artista com os meios disponíveis na contemporaneidade estabelecem novos pontos de vista sobre uma base cultural e material que, de certa forma, já se encontra consolidada. Estabelecido este referencial teórico, partiremos para a observação dos procedimentos envolvidos na operacionalização do insight artístico a partir da técnica de se projetar imagens, geradas e/ou manipuladas por aparelhos, nas mais diversas superfícies, sejam elas construídas exclusivamente para a performance artística, sejam qualquer anteparo que encontramos 1921 IV Encontro Nacional de Estudos da Imagem I Encontro Internacional de Estudos da Imagem 07 a 10 de maio de 2013 – Londrina-PR em nosso cotidiano. O interesse, portanto, não está na operação dos equipamentos em si, mas na inter-relação entre o artista e os meios de suporte utilizados para a materialização da obra de arte. 2. A Arte Projetada No Ciclo Eletrônico Por arte projetada, entendemos a projeção de imagens em superfícies esculturais ou arquitetônicas como forma de expressão artística. Estruturas escultóricas são objetos complexos (naturais ou artificiais) que se apresentam na forma de um elemento isolado ou um grupo de elementos relacionados entre si. Se esse grupo de elementos tem um relacionamento de natureza"espacial", teremos então uma estrutura arquitetônica, que é formada a partir de elementos (escultóricos ou não) que "envolvem" o espectador e encerram um espaço aberto (figura 1) ou fechado. Figura 1 - Intervenção de arte projetada sobre fachada arquitetônica, realizada pelo coletivo holandês NuFormer (2009). O formato recente mais difundido de arte projetada consiste na manipulação de elementos gráficos em movimento que "modificam" a percepção da superfície que recebe a projeção, transformando-a numa espécie de janela para um universo lúdico, 1922 IV Encontro Nacional de Estudos da Imagem I Encontro Internacional de Estudos da Imagem 07 a 10 de maio de 2013 – Londrina-PR que brinca com as leis da física ao transportar elementos abstratos ou figurativos "mapeados" no anteparo estático (normalmente a fachada de um edifício, ou uma construção cenográfica). Esta projeção pode ocorrer também num espaço interno, constituindo uma instalação artística (é o caso das Cosmococas 1-5 de Hélio Oiticica e Neville d’Almeida - Figura 2), ou ainda associada à uma performance teatral ou de dança, interagindo com os atores ou dançarinos. Figura 2 - Cosmococas 1-5 de Hélio Oiticica e Neville d’Almeida, projeto iniciado nos anos 1970, hoje com espaço permanente no museu de Inhotim. 2.1 O Ciclo Eletrônico Paulo Laurentiz divide o pensamento operacional humano em três ciclos distintos, que se refletem e se refratam nas diferentes posturas de materialização da obra de arte: ciclo pré-industrial, ciclo mecânico e ciclo eletrônico, correspondentes ao período materialista industrial da civilização ocidental. "É nesse período que há a consagração dos valores materiais na cultura ocidental." (LAURENTIZ 1991) 1923 IV Encontro Nacional de Estudos da Imagem I Encontro Internacional de Estudos da Imagem 07 a 10 de maio de 2013 – Londrina-PR O ciclo eletrônico, no qual vivemos, é caracterizado não apenas pelas chamadas "novas tecnologias". "Coincide com a procura, pelo homem, de uma outra escala de valores extramaterial, a qual possibilita a própria espécie auto desenvolver-se, reorganizando e reorientando a sua participação na vida com o universo."(LAURENTIZ 1991) Esta procura se dá com o questionamento da crença irrestrita e dogmática de que o conhecimento científico cartesiano seria o propulsor da evolução humana. Não que o cientificismo da passagem do século XIX para o XX fosse hegemônico e incontestável, ou que essa noção sobre desenvolvimento tenha desaparecido dos discursos dominantes, mas os acontecimentos provenientes das duas Grandes Guerras evidenciaram o "fato de o homem, apesar de estar no auge de sua sabedoria material, não apresentar o mesmo desenvolvimento em seu poder crítico, quase pondo fim a sua própria história." (LAURENTIZ 1991). O sistema eletrônico de produção, em substituição ao modelo mecânico, é caracterizado por: "(...)operações de maior precisão em relação à produção humana, uma cadência de produção ritmada e constante, a substituição do homem em atividades com alto grau de periculosidade ou complexidade de cálculos e a formação de um requintado banco de dados. " (LAURENTIZ 1991) Assim, localizar a arte projetada no ciclo eletrônico significa considerar as mudanças operacionais em relação ao comportamento do período precedente, o ciclo mecânico, que revelam maneiras diferentes do fazer artístico. Estas diferenças ficam evidentes na relação entre o artista e o suporte. No ciclo mecânico, a atuação do artista se dá sobre um meio considerado em princípio neutro, revelando o conceito de matéria. Esta noção de neutralidade começa a ser questionada na modernidade, a partir da compreensão de que os meios possuem em si potenciais expressivos. A nova relação do artista com os suportes utilizados abre caminho para a noção de materialidade, que envolve, além da preocupação com o potencial expressivo e a carga de informação dos meios, a extramaterialidade da informação (LAURENTIZ 1991): "Com a eletrônica, a produção tende a se iconizar no sentido de encontrar, nas qualidades materiais e energéticas do mundo, soluções em potencial que venham viabilizar a ação conjunta do homem e da natureza. As matériasprimas mudam de qualidade; a matéria bruta propriamente dita perde interesse em detrimento das relações extra-materiais vivas do universo: a informação substitui o bem durável. Esta iconização é esperada também na arte (...). A pesquisa da arte abandona as imagens visuais e começa a se interessar pelas imagens mentais não materiais (iconicidade). Segue nas 1924 IV Encontro Nacional de Estudos da Imagem I Encontro Internacional de Estudos da Imagem 07 a 10 de maio de 2013 – Londrina-PR mudanças dos valores centrados na relação olho-mão para os valores formulados na relação mente-mundo." Na arte projetada, o meio material não é negado, mas re-significado a partir dos princípios óticos e eletrônicos à disposição do artista. Este é um traço da produção pósmoderna, que atua a partir de uma base cultural previamente estabelecida, oferecendo novos olhares e formas de representação. A arte projetada está, portanto, inserida num contexto sócio-cultural amplo, formado por uma espécie de conjunto de "culturas" menores, diversas, não estáticas, interligadas de maneiras complexas, não-cartesianas. Partindo do princípio de que a cultura ocupa papel central na maneira como percebemos o mundo que nos cerca, e, portanto, na forma como o representamos(DU GAY, et al. 1997), a prática artística pode ser entendida enquanto processo "produtor" e "reprodutor" de significados culturais. Produtor, ao representar valores e práticas a partir da materialização artística da visão de um indivíduo - ou grupo de indivíduos. Reprodutor, ao utilizar os meios técnicos disponíveis para essa materialização, reforçando - ou questionando - os significados implícitos no meio de expressão em si. 3. A cultura e a constituição da vida social A importância da cultura nas ciências sociais ganhou amplo destaque nos últimos anos, e hoje a disciplina chamada "estudos culturais" pode ser encontrada numa diversidade de aplicações teóricas. Enquanto unidade de análise, a centralidade da cultura se contrapõe aos modelos acadêmicos tradicionais, que consideravam os fatores políticos e econômicos constituintes primordiais do mundo social, encarando as questões culturais - signos, imagens, linguagem - como manifestações dependentes e reflexivas destes processos. Hoje a cultura é concebida como tão constitutiva do mundo social quanto os processos político-econômicos (DU GAY, et al. 1997). Mas afinal, o que é cultura? O termo ganhou diferentes significados ao longo da história da civilização ocidental, mas, grosso modo, a sua origem está associada à idéia de desenvolvimento humano. Durante o Iluminismo, a palavra foi utilizada enquanto sinônimo de civilização (no sentido de "progresso" em relação a sociedades consideradas "menos evoluídas" em comparação à européia). O Romantismo do século XIX trouxe uma nova concepção, utilizando a palavra no plural: "culturas" enquanto 1925 IV Encontro Nacional de Estudos da Imagem I Encontro Internacional de Estudos da Imagem 07 a 10 de maio de 2013 – Londrina-PR conjunto de práticas e costumes de diferentes países e pessoas. O livro Cultura e Anarquia, de Mathew Arnold's, apresenta uma definição mais restritiva, associando "cultura" a uma forma de refinamento intelectual a partir das artes, filosofia e aprendizado (WILLIAMS 1976). O conceito que será adotado neste texto, no entanto, e que é utilizado pelos estudos culturais, considera a "cultura" como a forma pela qual os seres humanos dão significado à sua realidade. "Os seres humanos são seres interpretativos, instituidores de sentido. A ação social é significativa tanto para aqueles que a praticam como para os que a observam: não em si mesma mas em razão dos muitos e variados sistemas de significado que os seres humanos utilizam para definir o que significam as coisas e para codificar, organizar e regular sua conduta uns em relação aos outros. Estes sistemas ou códigos de significação dão sentido às nossas ações. Eles nos permitem interpretar significativamente as ações alheias.Tomados em seu conjunto, eles constituem nossas 'culturas'. Contribuem para assegurar que toda ação social é 'cultural', que todas as práticas sociais expressam ou comunicam um significado e, neste sentido, são práticas de significação." (HALL 1997) O modo de análise teórica apresentado pelos estudos culturais considera que há uma série de articulações entre os processos definidores de um determinado artefato cultural. Tais articulações nada mais são do que formas de conexão entre diferentes elementos, transformando-os numa unidade temporária. Assim, a explicação de um artefato cultural provém de uma combinação de processos, num circuito cultural (figura 3). Os cinco processos desse circuito são: representação, identidade, produção, consumo e regulação (DU GAY, et al. 1997). 1926 IV Encontro Nacional de Estudos da Imagem I Encontro Internacional de Estudos da Imagem 07 a 10 de maio de 2013 – Londrina-PR Figura 3 - Circuito Cultural Tendo como ponto de partida esse modelo teórico, constata-se que cada um dos artefatos tecnológicos utilizados na materialização da arte projetada está inserido em seu próprio conjunto de processos culturais. Câmera fotográfica, filmadora, computador, projetor. O elo que os conecta é o fato de todos fazerem parte de uma série de novas tecnologias que mudaram a maneira como produzimos e consumimos conteúdos. Podemos pensar nestes aparelhos como meios de origem e reprodução de significados que foram absorvidos em nossas práticas sociais. Se antes dispúnhamos, em nossa realidade material, exclusivamente de desenhos, pinturas e da escrita como formas de circulação de mensagens, agora as tecnologias eletrônicas permitiram uma considerável expansão, em termos de volume e variedade, de significados a serem transportados. Este processo abriu "uma nova fronteira na vida cultural moderna e transformou completamente o processo de 'produção de significado' que (...) está no coração da 1927 IV Encontro Nacional de Estudos da Imagem I Encontro Internacional de Estudos da Imagem 07 a 10 de maio de 2013 – Londrina-PR cultura. A produção de significado repousa sobre a interface entre cultura e tecnologia." (DU GAY, et al. 1997) De fato, qualquer análise da produção artística da atualidade deve ter como parte fundamental a rápida disseminação das novas mídias. Cultura (significados e práticas que formam a base da vida contemporânea) e mídia (meios tecnológicos) estão profundamente conectados (DU GAY, et al. 1997). Assim, o universo de tecnologias apropriadas pela arte projetada demanda por conhecimentos específicos no seu processo de operacionalização - portanto, exigem uma série de práticas que sustentam e produzem / reproduzem culturas. A arte projetada, enquanto fenômeno cultural, também passa pelos cinco processos do circuito cultural. A ênfase dada na etapa de produção não significa a exclusão dos demais elementos, afinal este processo está intimamente relacionado ao consumo (a forma como a audiência irá ver e se apropriar da obra), à sua representação (a maneira pela qual o formato artístico é difundido e descrito nos meios de comunicação), à identidade dos entes envolvidos ("produtores" e "audiência"), e às regras de criação/circulação/exibição da performance (se é um evento público, patrocinado por uma empresa privada, se está em conjunto com outras manifestações artísticas, etc). A priorização da produção, portanto, é meramente analítica. 4. A relação texto-imagem: operacionalização artística mediada por um "programa" Vilém Flusser, em seu ensaio intitulado "Filosofia da Caixa Preta"(FLUSSER 2011), nos apresenta uma visão filosófica bastante interessante sobre a relação entre texto e imagem - e, posteriormente, a imagem técnica, produzida por aparelhos - que servem como base para a análise da interação artista - equipamento. Enquanto forma de mediação entre homem e mundo, as imagens têm o propósito de representar uma realidade que não é diretamente acessível pelas capacidades perceptivas humanas. Elas 1928 IV Encontro Nacional de Estudos da Imagem I Encontro Internacional de Estudos da Imagem 07 a 10 de maio de 2013 – Londrina-PR o fazem a partir da abstração de duas das quatro dimensões espaço-temporais. Os textos, por consequência, são uma forma de abstração de imagens, representando o mundo a partir de "imagens rasgadas", unidimensionais. Funcionam como uma espécie de "metacódigo da imagem". Assumindo que os aparelhos tecnológicos são "textos científicos aplicados", as imagens por eles produzidas - as imagens técnicas - representam um grau ainda maior de abstração: abstraem uma das dimensões da imagem tradicional, transformando-a em texto (captando ou manipulando a imagem a partir dos processos científicos presentes no funcionamento da câmera fotográfica, da filmadora, do computador), para depois reconstituir essa imagem (na projeção). Enquanto "textos científicos aplicados", estes artefatos tecnológicos carregam valores trazem consigo significados fixados em seu programa de funcionamento. Ou seja: os equipamentos, ao mesmo tempo que não podem ser encarados como determinantes das ações do artista, também não são "neutros". Essa é uma das discussões centrais do campo de Tecnologia e Sociedade, e aqui serão abordados sucintamente os fatores que se fazem relevantes à nossa análise. Artefatos tecnológicos podem ter embutidos formas específicas de poder e autoridade que ultrapassam suas características meramente funcionais, pois foram concebidos dentro de um sistema social, econômico e cultural específicos. Esta visão, que pode ser considerada o aspecto fundamental da teoria de determinação social da tecnologia, opõe-se à concepção do determinismo tecnológico, que pressupõe que a tecnologia se desenvolve a partir de uma lógica interna e, não sendo influenciado por qualquer outro aspecto externo, molda a sociedade segundo seus padrões, desconsiderando que também as tecnologias são moldadas por aspectos sociais, econômicos e culturais. Contudo, este argumento da determinação social da tecnologia, se tomado literalmente, acaba por afirmar que as coisas técnicas não importam em nada, ao contrário do que diversos exemplos apontam, o que indica que os modelos padrões da ciência social não são suficientes para analisar as problemáticas de tecnologia e sociedade (WINNER 1996). Assim, a adoção de um dado sistema técnico exige a criação e a manutenção de um conjunto particular de condições sociais (e culturais) como ambiente operacional do sistema. Este ambiente operacional pode ter graus diferentes de flexibilidade, de acordo com a natureza dos processos técnicos envolvidos. 1929 IV Encontro Nacional de Estudos da Imagem I Encontro Internacional de Estudos da Imagem 07 a 10 de maio de 2013 – Londrina-PR A evolução das chamadas "novas tecnologias", frutos do período industrial do final do século XIX, forma o meio material e cultural com que trabalham os "artistas eletrônicos". Portanto, a materialização do insight, na arte projetada, está diretamente ligada aos conceitos tecnológicos dos equipamentos, num processo em que o artista produz sua obra assumindo a postura de um criador que conversa com as qualidades e características dos fenômenos universais (LAURENTIZ 1991): "Este diálogo entre homem e natureza, que proporciona a nova visão de produção, só é possibilitado pelos sensores e extensores eletrônicos, que assumem o papel de transdutores entre o conhecimento do homem (realidade) e o potencial dos fenômenos universais (real). Portanto, qualquer ato produtivo deve ser entendido como uma decisão conjunta a partir do grau de conhecimento interativo entre homem e universo, na confluência das suas ações, discriminadas pelo perfil de inteligência destes transdutores." Os conhecimentos em ótica, eletrônica e informática, que foram aplicados no desenvolvimento dos equipamentos apropriados pela operacionalização da arte projetada, são o "texto científico" por trás do discurso artístico. Certamente o artista não domina todos esses conhecimentos produtivos do artefato em si, pois não é esse seu objetivo. O artista não produz os aparelhos: ele "brinca" contra os aparelhos, descobrindo suas potencialidades, na tentativa de esgotar o programa neles embutido e revelar possibilidades escondidas (FLUSSER 2011). 5. O fazer artístico na arte projetada O processo de materialização de uma performance de arte projetada obedece a determinados fundamentos comuns às manifestações artísticas do ciclo eletrônico. "O caminho oferecido por esse tipo de produção é trilhado por dois hábitos operacionais: repetição e decisão, comuns a todos os sistemas informatizados. A conclusão é formalizada ao final de um trajeto com endereço específico, dentre os milhares possíveis, e executados pela corrente elétrica na velocidade da luz. Portanto, operações complexas tais como as de formatação e animação de imagens podem ser rapidamente conseguidas." O trabalho do artista, ou coletivo de artistas, não é mais o de esculpir ou pintar com as próprias mãos, utilizando ferramentas, ou de realizar edições a partir de recursos mecânicos. Agora, os modelos físicos (construídos pelas técnicas préindustriais e/ou mecânicas) servem como computadorizadas do ciclo eletrônico (figura 4). 1930 anteparo para as intervenções IV Encontro Nacional de Estudos da Imagem I Encontro Internacional de Estudos da Imagem 07 a 10 de maio de 2013 – Londrina-PR Figura 4 - Instalação de projeção de vídeo sobre estruturas escultóricas prismáticas. AntiVJ (2009) O primeiro passo do artista que irá produzir a performance corresponde à captação de uma imagem do anteparo receptor da projeção. Uma atividade bastante simples, realizada com uma câmera fotográfica, mas de importância fundamental, pois a imagem obtida por esse equipamento servirá como o suporte da intervenção (não o suporte em si, mas o suporte transformado em informação, numa representação fidedigna do original). O ponto exato a partir do qual esta imagem será obtida corresponde à posição na qual será instalado o projetor - deve ser uma das primeiras decisões a serem tomadas, levando em conta fatores técnicos e de intencionalidade artística. Logo, este é o primeiro e único contato que o criador terá com a superfície material durante o processo criativo - todo o trabalho posterior se dará não sobre o anteparo, mas sobre o seu mapeamento, e o artista só irá entrar novamente em contato com a superfície física na ocasião da exibição do conteúdo visual. É um processo inverso de projeção - a estrutura que receberá a intervenção é traduzida para o formato eletrônico, constituindo uma representação, uma abstração das dimensões reais do objeto. E é sobre essa abstração que o artista irá materializar suas intencionalidades (figura 5). 1931 IV Encontro Nacional de Estudos da Imagem I Encontro Internacional de Estudos da Imagem 07 a 10 de maio de 2013 – Londrina-PR Figura 5 - Janela de software para a manipulação do conteúdo a ser projetado na performance. As etapas de criação em si dizem respeito a operações de captação / edição de vídeo e de computação gráfica. Essas operações são processadas em equipamentos eletrônicos, dentro de suas condições internas, segundo operações matemáticas. As informações obtidas a partir da destes meios "fazem corresponder as suas operações internas às situações observáveis ou supostamente existentes no real, não mais ficando à mercê das idiossincrasias dos meios utilizados para o registro desse real, onde há necessariamente perda e ganho de informações, como em todo ato mecânico".(LAURENTIZ 1991) O artista está em permanente relação com os equipamentos; homem e aparelho são dois elementos distintos, com suas regras de funcionamento e conhecimentos específicos, mas que atuam conjuntamente no processo de criação. A interação homem - aparelho está inserida, portanto, numa espécie de cultura própria, sendo produtora e re-produtora de significados. Sobre a prática da fotografia, escreve Flusser: 1932 IV Encontro Nacional de Estudos da Imagem I Encontro Internacional de Estudos da Imagem 07 a 10 de maio de 2013 – Londrina-PR "As possibilidades fotográficas são praticamente inesgotáveis. Tudo o que é fotografável pode ser fotografado. A imaginação do aparelho é praticamente infinita. A imaginação do fotógrafo, por maior que seja, está inscrita nessa enorme imaginação do aparelho. Aqui está, precisamente, o desafio. (...) O fotógrafo caça, a fim de descobrir visões até então jamais percebidas. E quer descobri-las no interior do aparelho".(FLUSSER 2011) Nos procedimentos operacionais materializadores da arte projetada, o hardware (equipamento) ,e seu respectivo software (programa), formam a base do vocabulário poético da obra de arte, numa combinação praticamente infinita de possibilidades. O desafio está, como propõe Flusser, em transpor a mera demonstração de virtualidade técnica dos meios. Ou, como sugere Laurentiz: "O pensamento artístico em relação ao modo de produção muda quando se objetiva o abrandamento do potencial de linguagem da tecnologia. Abrandar tecnologia significa, em termos de pensamento operativo, encontrar funções similares entre as organizações sintáticas dos equipamentos (hardware e software) e as forças universais explícitas no 'insight'. Desta maneira, não há uma interferência interna de uma linguagem sobre as qualidades da outra linguagem. Os discursos se equivalem, gerando sentimentos similares diante do fenômeno em si ou da manifestação cultural produzida." (LAURENTIZ 1991) Mesmo possibilitando novas formas de abordagem e de mediação com o mundo material e cultural estabelecidos, as novas tecnologias à disposição do artista contemporâneo estão, a rigor, submetidas ao seu controle. Ainda que esse controle esteja simplesmente na operação dos programas inerentes aos aparelhos, e considerando que esses programas são produto de (e produzem) relações culturais complexas (sintetizadas nas articulações propostas pelo circuito cultural), é a sensibilidade própria do pensamento artístico que, em última instância, deve transparecer no resultado final. No caso da arte projetada, como dito anteriormente, o meio material é re-significado a partir do discurso técnico/científico que está embutido nos aparelhos operados. Discurso este carregado de fatores sociais, culturais, econômicos, políticos. Não se trata dos afrescos do interior da igreja barroca, que transportam novos significados para as paredes nuas, nem da intervenção sobre imagens ícones da cultura "pop", que resgatam elementos do cotidiano, elevando-os à categoria "arte". A arte projetada é, talvez, uma mistura disso tudo, com a adição do "elemento surpresa" presente nas infindáveis possibilidades estéticas dos equipamentos em cooperação com seu "operador", o artista. 1933 IV Encontro Nacional de Estudos da Imagem I Encontro Internacional de Estudos da Imagem 07 a 10 de maio de 2013 – Londrina-PR 6. Bibliografia DU GAY, Paul, Stuart HALL, Linda JANES, Hugh MACKAY, e Keith. NEGUS. Doing Cultural Studies - The Story of the Sony Walkman. London: SAGE Publications, 1997. FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. São Paulo: Annablume, 2011. HALL, Stuart. A Centralidade da Cultura: notas sobre as revoluções culturais do nosso tempo. Revista Educação e Realidade, 22 (2), jul./dez. Porto Alegre, 1997. LAURENTIZ, Paulo. A Holarquia do Pensamento Artístico. Campinas, SP: UNICAMP, 1991. WILLIAMS, Raymond. Keywords. London: Fontana, 1976. WINNER, Langdon. Do artifacts have politics? In: Mackenzie, Donald & Wajcman, Judy. The Social Shaping of Technology. Buckingham, Philadelphia.: Open University Press, 1996. 1934