O HARDCORE EM GOIÂNIA NA DÉCADA DE 90 UM ESTILO DE VIDA Luiz Eduardo de Jesus Fleury1 1. O início de tudo As circunstâncias que ocasionaram o desenvolvimento desse estilo de vida que é o Hardcore e os elementos que compõem seu ethos 2 em Goiânia é o foco dessa breve análise, remontando o final do século XX, a década de 90. Essa análise levará a um entendimento desse estilo de vida político 3 e social baseado numa postura antiestablishment4 que busca através de diversas formas – como a música, produção de zines e de uma estética visual e de comportamento – expressar essa ideologia/estilo de vida e uma nova maneira de relações sociais e éticas que denegam a estrutura vigente, criando um ambiente de pensamento e convivência alheia ao ditado pela sociedade de consumo desenfreado, ou até mesmo no universo da cidade (do urbano) resistindo com valores e identidades5 criadas a partir de elementos da própria história local. 1 2 3 4 5 Luiz Eduardo de Jesus Fleury é graduado em história pela Universidade Federal de Goiás e professor do Instituto Federal de Educação – Campus Ceres. É aluno da Especialização em História Cultural: Imaginários, Identidades e Narrativas (UFG) sob a orientação do Prof. Dr. Rafael Saddi. Essa palavra de origem grega que em seu sentido direto de tradução que dizer “caráter”, é tema de análise de vários autores, como Aristóteles, Bourdier, Geertz, Weber e inúmeros outros. Mas para esse trabalho, destaco a análise de Max Weber em sua obra ”A ética protestante e o espírito do capitalismo”, pelo fato de que ethos nessa obra vem para “...promover uma coerência ética e um estilo de vida que ajudariam a criar um ambiente cultural que legitimava e promovia todos os tipos de práticas e valores...” (Dicionário de sociologia: guia prático da linguagem sociológica / Allan G. Johnson; tradução, Ruy Jungmann; consultoria, Renato Lessa. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997). Cito o termo político pelo fato de que é possível perceber dentro do universo Hardcore pessoas e grupos com diversas concepções políticas e partidárias – com bastante referência à esquerda e até mesmo de caráter anarquista – logo seria muito reducionista tentar segmentá-lo a apenas uma convenção políticopartidária. Establishment é um termo bastante usual nas áreas de sociologia e da economia que se refere à autoridade, influência ou controle feito por um determinado(s) grupo(s) sociopolítico(s), para manter seus interesses e/ou privilégios usando de meios que perpassam pelo político, econômico e até ideológico. Para um melhor entendimento sobre a temática da identidade cultural ver: A identidade cultural na pósmodernidade / Stuart Hall; tradução Tomaz Tadeu da Silva, Guaracira Lopes Louro – 10. Ed. – Rio de Janeiro: DP&A, 2005. Nesse caso (história local), desde a antiga capital do Estado até a atual, Goiânia, o “goiano” por muitos momentos em sua história tem sido “caracterizado” como rural, sertanejo, agrário, caipira, country entre outros termos, além de que a imagem, tanto das vestimentas como do perfil arquitetônico da cidade, e a própria localização – Sertão – acabou por estigmatizá-lo com essas características citadas anteriormente. Isso serviu como forma de estereotipar o “goiano”, criando uma certa barreira cultural em nossa região e sobretudo enraizando elementos que perduram até o momento atual. Dentro dessa análise do Hardcore em Goiânia, termos serão utilizados e explicados, muitos de origem norte-americana ou mesmo neologismos – criados dentro do próprio universo do Hardcore, seja em caráter nacional ou internacional – para caracterizar fatos inerentes ao tema. Refiro-me a termos como: underground, zine, DIY (abreviação da expressão “do it yourself”, em tradução direta do inglês: faça você mesmo), demos, punk, brodage, contracultura 6 e outros que são termos utilizados pelos adeptos/militantes/ simpatizantes à causa para defender e lutar pelo espírito Hardcore. Ampliando o campo de análise, e não caindo no reducionismo de imaginar que o Hardcore refere-se apenas a uma ótica musical – de arranjos simples, poucas notas e com letras de cunho social (resistência e crítica social / crítica ao sistema), algo que remonta à musicalidade punk-rock do final dos anos 70 – adiante, será trabalhada de forma mais objetiva a definição de Hardcore, algo de amplitude ímpar. A abordagem sobre isso é bem mais ampla do que normalmente é exposta em certos veículos da mídia, em suas diferentes vertentes que frequentemente descaracterizam os valores ideológicos do cenário. A ideia desse trabalho é justamente estudar o Hardcore de forma que as demais áreas do conhecimento das ciências humanas, como a Sociologia, Filosofia e a própria História ainda não trabalharam, ou que abordaram de forma diferente. Isso porque muitos dos trabalhos já produzidos abordam a ethos do Punk, mas não o ethos do Hardcore. Dessa forma, apresenta-se aqui um novo foco, que é o Hardcore em Goiânia, no recorte geográfico/temporal citado, pois é possível encontrar trabalhos que por meio do 6 No decorrer do texto ao serem inseridos e trabalhados esses termos, seus respectivos significados serão esclarecidos. movimento Punk7 relacionam-se com o Hardcore. Mas até o presente momento não há trabalho (pronto ou em andamento) que especifique o Hardcore dentro da atual capital de Goiás. O recorte temporal desse trabalho é justificado pelas transformações tecnológicas, políticas e musicais que ocorriam no Brasil e no mundo que acabaram por influenciar e desenvolver o estilo de vida em Goiânia. Entre várias dessas transformações que ocorriam nesse momento, pode-se perceber: a popularização da internet em meados de 1995/96, que ajudaria a internacionalizar os contatos entre os adeptos à causa Hardcore (da cena8 nacional e da cena internacional). Também a chegada da emissora musical norteamericana MTV (Music Television), que apesar de ficar restrita ao Estado de São Paulo, serviria para poder aguçar mais as informações do que ocorria no cenário musical no mundo. Ainda nos EUA, com ênfase na cidade de Seattle, estourava o movimento Grunge, que para muitos críticos musicais da época trazia à tona elementos do Punk, como a sonoridade simples e agressiva – marcada por notas simples e letras com temas com um alto teor de crítica. Outro fator marcante dentro do movimento foi a questão da estética, a moda do uso de roupas xadrez no rock, quebrando a ideia que o uso de roupas xadrez era coisa de caipira ou sertanejo, ou até mesmo do country. Também há o movimento Straight Edge (que nasce no início da década de 80, dentro da crise pela qual o movimento Punk passava), o qual apresenta uma filosofia Hardcore de cara limpa, cujos adeptos não fazem uso de drogas lícitas ou ilícitas, ou seja, sem bebidas alcóolicas, sem cigarro, além da defesa da causa animal através do vegetarianismo e do veganismo. Essa vertente chega ao Brasil justamente nessa época, mais objetivamente em São Paulo, com um grupo de jovens 7 8 Destaco as obras que trabalharam segmentos ligados ao movimento Punk, e algumas citações e relações com o Hardcore (seja no Mundo ou no Brasil): Daniela Lemes Canhête, com sua dissertação de mestrado apresentada na Universidade Federal de Goiás, na faculdade de Ciências Humanas e Filosofia, sobre o movimento Punk: Ecos do Subterrâneo: A questão da juventude e do movimento punk como subcultura. Goiânia, 2004. 148f. il, enc., o trabalho Aldemir Leonardo Teixeira com sua dissertação de mestrado apresentada na Pontifica Universidade Católica de São Paulo com o título: O MOVIMENTO PUNK NO ABC PAULISTA. ANJOS: UMA VERTENTE RADICAL. São Paulo. PUC, 2007 (Dissertação – Pós-Graduação – Mestrado Stricto Sensu) e a tese de doutoramento apresentada na Universidade de Brasília, em 2008 por Rubens de Freitas Benevides, sob o título de: CENÁRIOS MODERNOS E PÓS-MODERNOS NO BRASIL, JUVENTUDE, POLÍTICA E ROCK AND ROLL. Entende-se por cena tudo que está envolvido e ocorre no universo Hardcore, como por exemplo: pessoas, produção artística /literária, bandas, manifestações entre outras atos e ações. Tudo que promove a resistência e a proliferação do ambiente Hardcore. que posteriormente acabaria montando a primeira banda de Hardcore/Straight Edge do Brasil: Personal Choice, a qual começou a tocar em fevereiro de 1993 e se separou em setembro de 19969. Mas que fique evidente que não é nesse momento que o Hardcore “chega” aqui em Goiânia. Sua “chegada” deu-se anteriormente à década de 90, suas origens remontam ao final da década de 80, porém com especificidades próprias – algo que é inerente ao Hardcore, adaptar-se a circunstâncias específicas – mantendo o espírito vivo. Porém o terreno que fertilizou definitivamente o Hardcore em Goiânia foi a década de 90, evidenciando-se pela enorme quantidade de bandas, zines10, manifestações, pessoas envolvidas na cena Hardcore em Goiânia, que serão mencionadas posteriormente. Outra questão relevante nessa construção do cenário Hardcore em Goiânia foi que em 1995 era idealizado o festival de música que se tornaria na atualidade o maior festival de música independente de Goiás e um dos maiores do Brasil: Goiânia Noise Festival11, que colocou Goiânia em evidência no cenário musical underground12 brasileiro. Realizado pelo jovem Leonardo Ribeiro, ou simplesmente Léo Bigode, que andava de skate e era vocalista de uma banda de Hardcore/Crossover chamada CFC (abreviação de 9 Informação retirada do CD “Days of trust”, da banda Personal Choice lançado pela gravadora independente Teenager in a box. O ano de lançamento desse material não é citado, mas é provável que esse material tenha sido lançado em 1997, pois foi nesse ano que nasceu a gravadora, e esse é o primeiro número de seu catálogo. 10 Também chamados de Fanzine. Assim como outras inúmeras palavras que constituem o vocabulário do Hardcore, sua origem é da língua inglesa, da junção de duas palavras: Fanatic e Magazine. E fanzine, ou simplesmente zine, vem a ser toda produção materializada em papel, normalmente no formato A4, sendo que quem o faz não se apega às regras ortográficas e estéticas, a pretensão é poder expressar de forma subjetiva, sem censura, uma opinião ou questionamentos do cotidiano que, em muitas vezes, são tabus na sociedade e a grande mídia não trabalha e/ou trabalha de forma tendenciosa. O sentido marcante de quem produz um zine é a liberdade de expressar (que tanto pode ser na forma de textos, desenhos ou charges) sem barreiras. Acredita-se que os primeiros zines foram produzidos no final da década de 60, com referência à França, mas sua “popularização” se deu com o movimento Punk, já na década de 80. 11 Festival de música, com ênfase ao rock alternativo, que em 2012 comemorou seus 17 anos de existência, e que em todos esses anos de existência inúmeras bandas do Brasil e do exterior já tocaram. Sua repercussão atingiu até mesmo a imprensa estrangeira e toda grande mídia nacional especializada em rock. O jornalista goiano Pablo Kossa chegou a escrever um livro, lançado pela editora da Universidade Católica de Goiás chamado: “10 anos de Goiânia Noise. Em terra de cowboy quem toca guitarra é doido!”, que foi distribuído pelo selo Monstro Discos, organizadora atual do festival. 12 Termo oriundo da língua inglesa, que em sua tradução literal significa subterrâneo. Sua apropriação ao universo da música e produções artísticas remete a algo subversivo e a certos grupos específicos que passam a se apropriar do termo. Dessa forma, quando se se refere a algo underground, vincula-se a algo subversivo, de acesso difícil ou voltado a um público específico. Cash For Chaos), posteriormente teve outras bandas de relativa importância no cenário da música alternativa goiana como Jukes e Trissônicos, além de também fazer seu próprio zine (Colapso Utópico). 2. Definindo o que é hardcore Hardcore é uma palavra inglesa que, se traduzida de forma direta, significa núcleo duro. No entanto, vários outros significados são atribuídos à palavra Hardcore, de acordo com seu uso, o que pode se dar através de gíria, na língua portuguesa, significando algo próximo de casca grossa, e é possível encontrar também um gênero de filmes adulto (pornográfico), que também é conhecido por Hardcore, mas na especificidade do trabalho usar-se-á a definição mais próxima de casca grossa. O problema desse trabalho refere-se à própria definição do termo, pois ao fazer uma breve definição, o trabalho ficará bastante restrito. Desta forma devemos entender que Hardcore nasce do movimento Punk no final dos anos 70 e início dos anos 80, nos Estados Unidos e na Inglaterra (algumas bandas seriam expoentes desse movimento com destaque para as bandas Dead Kennedys e Discharge), em que nessa circunstância temporal o movimento Punk encara problemas ligados ao ganguismo, às drogas, à polícia e à mídia, a qual distorcia a imagem do movimento. Um exemplo desses acontecimentos junto ao movimento ocorria bastante com a banda inglesa Black Flag, ao ponto de nesse período serem “... odiados pelas autoridades, e tentavam esmagá-los cancelando shows de imediato ou os encerrando com a ajuda de policiais...” (SINKER, 2008, p.67). Em meio a todos esses fatos, alguns jovens mais politizados e preocupados com tudo o que vinha ocorrendo dentro e fora do movimento vão iniciar algo que o punk-rock já fazia anteriormente, ao ponto que “...o hardcore se tornou sinônimo para punk rock mais rápido e pesado, mas o movimento original foi um fenômeno mais ou menos restrito aos Estado Unidos...” (ALEXANDRE, 2004, p.57). Isso se deu com bandas com uma musicalidade mais agressiva, maior velocidade na batida da bateria, guitarra com mais distorção e letras com um teor mais agressivo e objetivo de afrontar o sistema político e social vigente nos Estados Unidos e no mundo da época13. Porém, agora seria com uma preocupação política maior, e atitudes pessoais ou grupais mais diretas (como por exemplo manifestações contra o governo do presidente dos EUA da época Ronald Reagan devido a suas ações bélicas, num contexto ainda de Guerra Fria), quando estava se fundamentando um estilo de vida, o Hardcore. Com tudo isso que vinha ocorrendo nessa cisão do movimento Punk, essas novas referências éticas, (a)políticas e estéticas acerca de um discurso de atuação baseado em uma oposição aos padrões preestabelecidos (establishment), especialmente ao visual e ao musical, logo se espalhariam pelo mundo, “... já existia hardcore em 1979 no Brasil (...), as primeiras referências do HC (abreviação de Hardcore) nos fanzines começam a se tornar mais frequentes a partir de 1983...” (OLIVEIRA, 2006, p.82). É interessante perceber que, por mais que o Hardcore seja oriundo do movimento Punk, em termos da estética visual, não vai ter um visual tão carregado quanto o que o Punk tinha, como aspecto marcante seus moicanos coloridos, jaquetas de couro com patches, rebites, botons de protesto, coturnos e calças rasgadas. O visual Hardcore seria menos carregado, até mesmo (como um mecanismo de camuflagem) para poder ser menos perseguido por outros grupos, como a polícia e algumas gangues contrárias ao movimento Punk, como os Carecas,14 por exemplo, que no início dos anos 80 andavam junto com os punks, mas que posteriormente vão romper essa proximidade, ao ponto de ocorrer as primeiras agressões e mortes entre Punks e Carecas. Porém, ideologicamente, Punks e Hardcores sempre estiveram juntos. 3. Academia e hardcore Diferentemente de trabalhos já publicados nas áreas de História e de Sociologia que trabalham o movimento Punk como elemento que dá origem ao estilo Hardcore, esse 13 Na conjuntura citada da época poderíamos relevar alguns acontecimentos que vão ser inspiração para várias produções da cena Hardcore como: Guerra Fria, ditaduras militares na América Latina, Revolução Sandinista na Nicarágua, Revolução Islâmica no Irã entre outros acontecimentos. 14 O grupo dos Carecas é oriundo também do movimento Punk, porém com um aspecto visual marcado pelo uso de suspensórios, cabeças raspadas e ideologicamente nacionalista. Alguns desses membros acabariam por assumir posturas agressivas contras nordestinos, homossexuais e os próprios Punks. Um expoente desse movimento é a banda Vírus 27, que lançou vários discos (na forma de vinil), como: Parasitas Obrigatórios e Brasil Oi, que acabariam se tornando clássicos do movimento careca no Brasil. artigo tem o intuito de abordar, de forma específica, o Hardcore com sua ênfase em Goiânia e como seus desdobramentos, em muitos casos, entram em choque com o punk tradicional – entendendo que o termo grifado refere-se ao movimento punk na transição do final da década de 70 e início da década de 80 do século XX no Brasil. O movimento era muito ligado a ganguismo e drogas, como já citado anteriormente. As abordagens adiante vão articular que o advento de novos grupos dentro do universo Hardcore, como é o caso dos Straight Edges e a questão do veganismo, ou como o Homocore com sua postura sexual (na defesa das relações homoafetivas) além das garotas na cena com a defesa do feminismo no cenário internacional e nacional, gera uma sociabilidade em Goiânia dos anos 90 que não existia antes. Justamente nesse mesmo período é que Goiânia entraria nesse eixo de acontecimentos desenvolvendo sua cena, justamente numa sociedade que ainda convivia com traços conservadores15 que remontam ao século XVIII até esse final do século XX. Todas essas mudanças que ocorriam no Brasil e no mundo, agregadas ao fato de indivíduos estudarem fora de Estado de Goiás – destaco aqui a Universidade de Brasília (UnB), as universidades de Minas Gerais e as Universidades de São Paulo – também serviriam para ofertar mais materiais underground para Goiânia, pois muitos desses jovens acabariam trazendo materiais, que logo seriam passados a outras pessoas, e assim servindo de fomento para o surgimento das primeiras produções na forma de zines e bandas. Porém quanto ao visual, muita coisa seria feita de forma artesanal (silk screen), quando se produziram camisetas das bandas e cartazes de shows, ou simplesmente era preciso comprar por encomenda via correios, junto a algumas lojas do segmento de São Paulo. 4. Apresentação Esse artigo abordará a definição e a fundamentação desse estilo de vida – o Hardcore – como uma referência ética, política e estética acerca de um discurso de atuação baseado em uma oposição aos padrões preestabelecidos, especialmente ao visual, ao musical e à liberdade de poder expressar oralmente e na escrita contra tudo que (para o movimento) é visto como elementos destrutivos do homem, como machismo, homofobia, 15 Nessa questão dos traços conservadores, sem dúvida, o mais explícito é o musical, com o gênero Sertanejo. xenofobia, religião (principalmente na questão do fanatismo) entre outras questões geradoras de conflitos e mortes. No universo Hardcore existem várias tendências, com diferentes formas de atuação, expressão e ideologias. Esse trabalho não abordará uma identificação e caracterização de todos os principais grupos que se manifestaram em Goiânia, mas de uma maneira geral, mesmo com suas diferenças – por maior ou menor que sejam essas diferenças – como demonstram uma ideologia política e seus preceitos éticos, bem como a inter-relação destes grupos16 que marca a cena local. Dentre esses grupos e suas respectivas diferenças, podemos apontar, a título de exemplo, os straight edges, os punks, os vegetarianos/veganos e as feministas, que juntos compõem o universo Hardcore. Os grupos são definidos a partir de sua produção musical, literária, visual e ideológica/política, mas que no final se encontram dentro de um mesmo contexto de vivência e resistência. O que nos leva a estudar o estilo de vida Hardcore em Goiânia é o fato de ele ter criado seus próprios meios de existência e resistência ou sobrevivência, baseado em um discurso de oposição ao sistema conservador (anti-establishment); isto nos chama a atenção para um afastamento entre o plano ideal de um discurso utópico e o plano da práxis, já que esta não consegue se aproximar por completo do teor “revolucionário” do discurso. Dada esta distinção, é o plano do discurso que irá nos interessar em primeira instância nesse artigo. 5. Produzir e agir Com as produções da época como zines, discos e demos17 de bandas, cartazes de eventos e letras de músicas e a própria música, é possível entender os mecanismos de resistência e crítica aos padrões preestabelecidos da sociedade goiana, e que esse 16 Cada grupo que integra o Hardcore possui alguns códigos de comportamento, ideologia e valores, mas que se integram na cena, a adesão (que pode ocorrer em diversos níveis e momentos) desses diversos grupos com seus códigos é que garante o funcionamento da estrutura de produção, ação e atuação desses grupos na cena. 17 Demo é a abreviação de fita demonstração, que eram as antigas fitas k7, na época um meio barato e prático das bandas poderem reproduzir suas músicas e passarem aos interessados em conhecer a sonoridade e as ideias das bandas, sem o interesse ou intuito do lucro nesse processo. estabelecimento de uma cena goiana gerou uma sociabilidade entre os envolvidos nessas diversas produções, uniformizando o teor de criticidade aos padrões e valores locais. Dessa forma, podemos – que não seja interpretado como uma visão simplista e/ou reducionista – sintetizar essa proposta de entendimento do Hardcore como resistência utópica. Mas que seja vista como uma resistência cotidiana e individual, sem descartar a luta coletiva, contra padrões e valores, é uma resistência não armada (no sentido bélico), mas armada de ânsia, ideologias 18 , vontades e sentimentos humanos com o sentido de manter a resistência viva (resistência essa chamada de “chama” no universo Hardcore), que todas essas ações constituem a cena. Um importante questionamento que permeia o Hardcore é o da caracterização de uma crença que norteie o código que “normatiza”, apesar de que o grande valor do Hardcore é não ficar preso a padrões, indiferente do local ou do momento histórico o Hardcore supera todos os mecanismos que tentam normatizálo. Mas isto é só uma parte da questão e não se faz pertinente para este trabalho. A outra questão é a de que tal crença pode funcionar como uma força mantenedora da aura em oposição à tendência para sua destruição, levantada por Walter Benjamin, como sendo uma característica do desenvolvimento da reprodução – e massificação – dos meios técnicos de reprodução da produção artística 19 , lembrando novamente que não ficaremos presos apenas ao aspecto artístico, até porque evitaremos usar o termo arte para conceituar os elementos do Hardcore. Ainda nessa análise, uma comprovação empírica dessa questão levantada por Walter Benjamin é perceptível na questão da produtividade advinda do Hardcore, como demos, camisetas, discos (de vinil), CDs, patches, bottons e outros apetrechos que não visam o lucro, mas visam um processo de socializar elementos constituidores do Hardcore mantendo esse cenário ativo, e sobretudo evitando a mercantilização desses materiais. 18 Apesar de o movimento Punk sempre manter sua característica agnóstica, no Hardcore é possível encontrar certos grupos ligados à religião, (mas não algo corriqueiro) em destaque, nesse recorte cronológico trabalhado nesse artigo, a relação com a religião Hare Krishina. Um dos expoentes dessa ligação foi a banda Shelter, dos EUA, que chegou a tocar em Goiânia em 1996, no Clube Jaó. 19 Ao tomarmos a obra de arte como uma crença, entendemos que esta crença sacraliza uma tradição, uma narrativa acerca de estilo de produção cultural que justifica e sustenta. Neste sentido, a crença não apenas confere valor simbólico ao produto inserido em sua tradição, mas este valor é atribuído justamente pelo papel de “relicário” da crença no estilo, que guarda aí a força da aura que envolve sua produção. Para o conceito de aura em Walter Benjamin (BENJAMIN, Walter. ”A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica”. In LIMA, Luiz Costa(org.) Teoria da Cultura de Massa. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra,2000.). Dentro do Hardcore alguns termos são fundamentais para se entender esse ethos e, também, como funciona sua atuação prática. Dentre vários, podemos destacar: atitude, “do it yourself” ou DIY20, underground, “brodagem” 21. Apesar de alguns termos terem origem na língua inglesa, existe um certo internacionalismo nessas palavras, o que gera uma dinâmica de integração nas diversas cenas de Hardcore pelo mundo, como é o caso do termo DIY. A relevância deste trabalho está na tentativa de recolocar a questão da resistência na contracultura22 no mundo pós-moderno, ao demonstrar a hipótese de que o Hardcore promove a resistência em favor da aura dos objetos e conceitos que o circundam, através de um discurso anti-estabilishment, levantar a questão da resistência em outros termos que não os ligados apenas à luta de classes ou ao ideal revolucionário, embora estes elementos estejam presentes neste discurso utópico, onde desta forma também pretende-se com este trabalho apontar novos rumos para os estudos acerca da contracultura, em específico no estilo de vida Hardcore, no ambiente tipicamente conservador goiano. 6. O Hardcore Made in go A proposição de Hardcore como locus de resistência está ligada à percepção de que na era da reprodutibilidade técnica a autenticidade de algo permanece importante, vivo e atuante em todo o mundo. Assim, a concepção de resistência que é adotada deve ser entendida não só como uma resistência ligada diretamente à luta de classes – apesar de origem marxista do termo, esse mesmo termo é um clichê bastante citado em publicações do movimento Punk, mesmo o Punk não sendo de caráter marxista – ou a uma ação deliberada e plenamente racionalizada contra uma noção de establishment ou “sistema”, mas também uma resistência a uma ideia de massificação ou estandardização dos valores; uma ação de 20 Expressão inglesa que significa: Faça você mesmo. Essa expressão, pertencente ao universo Hardcore, caracteriza toda e qualquer ação promovida por indivíduos (mas que também pode ser feita de forma coletiva) para confrontar certos valores combatidos pelos adeptos da causa Hardcore, essa manifestação do DIY é praticada principalmente na produção de zines e atitudes de certas bandas, tanto no palco como nas letras de músicas, por exemplo. 21 Neologismo interno da cena Hardcore, que é oriundo da palavra de origem inglesa brother (irmão). Seu significado remete a algo próximo à irmandade ou confiança. 22 É possível encontrar certas definições de contracultura até como microgrupos. Refere-se a um (ou mais) grupo social, que através de um conjunto de manifestações, que pode ser pela música, pela estética visual, performances cênicas, textos e outras formas diversas, que se manifestam contrários às artes e ideologias dominantes de uma determinada época. Como exemplos dessa contracultura podem ser citados os grupos como Beatniks, Hippies e os Punks. defesa do valor de culto dos objetos, “uma ação em defesa da aura”. Utilizamos aqui a noção de “aura” utilizada por Walter Benjamin e entendida como “aparição de uma realidade longínqua” 23. Esta aparição venerável está impregnada de um poder originalmente mágico, conferido a um objeto – material ou não material – de culto. O valor de culto está presente na fruição da obra de arte pelo grupo e lhe confere autenticidade, autoridade, raridade ou originalidade. Desta forma, o Hardcore é entendido, por aqueles que o definem em sua vivência social, como um reduto de resistência contra conceitos e preconceitos, especialmente na música, no visual e na literatura, elementos que ajudam a delimitar este estilo de vida. Assim, no Hardcore, o valor de culto dos objetos é protegido com zelo contra sua massificação e desvalorização simbólica inerente ao mundo atual que mercantiliza tudo que possa ser representado como ameaça ao establishment. Nas músicas Hardcore orientadas por uma temática contracultural, ainda que executadas por bandas que se encontram no mainstream24 de seu estilo, valoriza-se o chamado underground como o local de irmandade e pureza (entendida como pureza em relação ao mercado ou ao “sistema”). Atitudes venais ou a falta de compromisso com os padrões do estilo também estão entre os temas referentes do imaginário contracultural do Hardcore. Dentro do plano de estudo desse trabalho, é necessário encontrar os meios e materiais que possam comprovar essas resistências num plano local, ou seja, na produção feita em Goiânia no período recortado que demonstre a adaptação do Hardcore à especificidade local. Por isso mesmo, podemos dar como exemplo a letra da música Made in GO25 da banda HC-13726, que foi lançada no 2º disco27 (em vinil) da banda lançado em 1992 23 Cf. BENJAMIN, p. 227. Termo bastante comum quando usado nos setores da arte de uma forma geral. Essa palavra de origem inglesa tem como tradução: corrente principal, e que é utilizada para referir-se a algo que vai ao encontro do gosto popular (cultura popular). 25 A autoria das músicas Hardcore é feita de forma coletiva pelos membros das bandas, que é diferente de Domínio Público que não tem autor (des)conhecido(s). Dessa forma não encontramos a ideia de Direito Autoral. 26 Essa banda nasce em 1988, com o nome de Horrores do Césio 137, ou simplesmente HC-137. E acabaria por se tornar o grande ícone do Hardcore/Punk em Goiânia, e para muitos foi a primeira banda desse segmento no Estado, porém através de muitas conversas e materiais ainda existentes, hoje se acredita que a primeira banda desse segmento foi a Psicose, que nasceu em meados de 1986/87 na cidade de Araguaína onde hoje e o atual Estado do Tocantins, mas que infelizmente é raro encontrar algum material dessa banda, a não ser alguns releases e a memória dos antigos membros da banda e pessoas que frequentaram alguns shows da banda. 27 O primeiro registro fonográfico da banda, deu-se um ano antes, em 1991, com o lançamento do Split 12” com a também banda goiana Morte Lenta. O lado do HC-137 teve o titulo de “Nas coxas”, devido à precariedade no processo de gravação, na simplicidade das músicas e a falta de recursos financeiros, mas que apesar de 24 pelo selo independente Subway Records – de propriedade de Cláudio de Castro, fundador da banda. Essa letra relata, de forma crítica, elementos do pós-acidente radiológico ocorrido em Goiânia em setembro de 1987, e as festas feitas pela elite econômica goiana regradas a bebidas e drogas. Made, made, made in Go – radiação Made, made, made in Go – lixo reciclável Temos pra vender, você vai comprar Produtos de última geração Não espero os U.S.A. Apertar o botão, provoque você mesmo Uma grande explosão. Só bebe Coca-Cola Quem não experimentou A grande sensação. Só algumas gramas para uma festinha, Para mais de um milhão Para mais de um milhão. Outro momento que marca essa emergência do Hardcore em Goiânia, surge em meados de 1998/99 quando um grupo de jovens 28 decide procurar um local para organização de eventos e também onde as diversas manifestações ligadas à cena (emergente) naquele momento pudessem se ocorrer. O local encontrado foi um espaço que funcionava para eventos musicais conhecido por Cantoria29, e o dia e horário cedido pelo proprietário para que o plano fosse colocado em prática, seria o último domingo de cada mês, no horário das 13 até às 18hs. A partir daquele momento era evidente o início de um marco na cena de Goiânia porque inúmeras bandas nasceriam, ou mesmo que já existiam, tocariam naquele evento. todas essas dificuldades, a repercussão desse material chegou até mesmo na Europa, sendo que zines e até revistas especializadas elogiaram bastante esse material. 28 Esses encontros é que deram origem ao que ficou conhecido como Liga Hardcore de Goiânia. Entre os que idealizaram tal ideia, destaque para: Luiz Eduardo de Jesus Fleury, Luís Gustavo Valente Brandão, Érica Isabel de Melo, Janderjans Alves Monteiro, Lúcio Webert de Brito e Zilda Simas. 29 Essa casa de eventos ficava no final da Avenida Araguaia no Centro de Goiânia, ao lado do Parque Mutirama, funcionava de terça a domingo, onde havia bailes da 3ª idade (forró), apresentação de artistas do Hip Hop e música sertaneja. O proprietário, Sr. Eduardo, gostou da ideia de levar o evento para seu recinto, pois um dos seus planos era justamente transformar o local num espaço para outras manifestações artísticas, além da música. Infelizmente, por motivos de revitalização no centro de Goiânia, o local foi destruído no final de 2012 para ampliar a área verde do Parque Mutirama. Destacam-se as seguintes bandas: Ímpeto, C(h)oice, Corja, Desastre, Señores, Èlet, O.S.N.I., Kundaline, Neurose Urbana além de algumas convidadas de Brasília. Mas sem dúvida que dentre todas as produções feitas os zines, foram os que mais chamaram a atenção, não apenas pela quantidade, mas sobretudo pelo poder de fazer o intercâmbio com várias partes do Brasil e do mundo. Dessa forma alguns tornaram-se marcantes pelas suas temáticas: E3, Menarca e Flor Zine (todos esses zines abordavam questões ligadas à temática feminina/feminista) 30 , Existir (poesia), Amadeus, Tráfico, Da Life, Balburdia, Razia (voltado todo ele à vivência do Punk), Tudo É entre outros. É importante citar que havia também outras formas de ação que mostravam essa recém-nascida cena Hardcore, pode-se destacar o intercâmbio com bandas, fanzineiros31 e pessoas de Brasília que fortaleceu mais a nascente cena goiana de Hardcore (houve até um evento chamado de “Conexão Pequi”, idealizada pelo brasiliense Felipe CDC, que organizava os shows e trocas de materiais entre Goiânia – Brasília e Brasília – Goiânia), também as manifestações e boicotes a empresas que faziam uso de trabalho forçados (análogo à escravidão) ou mesmo de empresas que faziam testes e/ou crueldade (vivisecção) com animais. E partindo para a questão dos espaços físicos – que poderiam ser cedidos ou locados – para a realização de eventos diversos ligados ao Hardcore, citamos alguns desses locais: DCE-UFG, DCE-UCG, Bar do Broder, Centro Cultural Martin Cêrere, Praça do Sol e em alguns casos até mesmo residências que serviram para a realização de alguns atos. A partir de todos os fatos evidenciados, muitos eventos, bandas, pessoas, zines, manifestações e até festivais de música (destaque para: Miscelânea e Marmelada32) seriam produzidos, e que muitos ainda hoje ainda perduram, mesmo já se passando um período de 30 Recentemente foi realizada, nas dependências da Universidade Federal de Goiás (Campus Samambaia), dos dias 27 a 30 de novembro de 2012, a “XI Semana de História”, sendo que um dos trabalhos apresentados foi: “Os fanzines produzidos por mulheres em Goiânia na década de 90”, apresentado por Luiz Eduardo de Jesus Fleury. Isso corrobora a defesa de uma cena Hardcore em Goiânia. 31 Assim são chamadas as pessoas que produzem zines (não deve ser entendido como uma profissão, até porque não existe um interesse de lucrar nessa produção, o grande intuito é apenas difusão de ideias). 32 Esse festival foi idealizado por Wander Segundo como uma afronta a outro grande festival de música alternativa goiana, o Bananada, porém esse festival, Marmelada, tinha por concepção dar oportunidade para bandas novas do cenário goiano se apresentarem, foi realizado em locais de pequeno e médio porte (em suas poucas edições) e não visava o lucro. Tudo dentro do espírito DIY. quase 20 anos desse cenário, o espírito Hardcore ainda vive, intercâmbios com pessoas e bandas de diversas partes do mundo (como Japão, República Tcheca, Finlândia e Suécia) mostraram seus trabalhos e ações em Goiânia. Mas isso é tema para um outro trabalho. Para a construção desse artigo não houve a utilização da abordagem da História Oral. Mas é possível encontrar alguns trabalhos mais aprofundados (mas que remontam diretamente ao Punk), que contêm entrevistas com militantes do cenário Hardcore goiano, mas não buscaram traçar o perfil desse estilo de vida (ethos), seus processos iniciáticos, como enxergam o mundo (no plano goiano, brasileiro e até mundial), sua relação com outros movimentos urbanos contraculturais e como constroem sua identidade, mas identificando-os no cenário do movimento Punk, algo que esse artigo se distancia (não é uma negação do Punk, mas evitar colocar o Punk em primeiro plano de estudo). 7. Referências bibliográficas ALEXANDRE, Ricardo. Punk. São Paulo: Editora Abril, 2004. (Coleção Para Saber Mais, v. 30). BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutividade técnica. In: Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1983. DEMOS TAPES. Produzidas em Goiânia entre 1991 a 1999. OLIVEIRA, Antônio Carlos de. Os fanzine contam uma história sobre punks. Rio de Janeiro: Achiamé, 2006. SINKER, Daniel. Não devemos nada a você. [S.I.]: Edições Ideal, 2008. ZINES. Produzidos em Goiânia entre 1992 a 1999.