CÁLCULO COMPUTACIONAL DA SÉRIE DE FOURIER Luiz Eduardo Ourique1 1. Resumo As séries de Fourier foram introduzidas pelo matemático francês Joseph Fourier ( 1768 – 1830 ) , a partir de um artigo publicado em 1807, descrevendo a teoria analítica do calor, ver Ramirez (1985) e Garbi (2006). A idéia central do trabalho de Fourier era a hipótese fundamental de que, satisfeitas certas condições, uma função pode ser representada por uma série, em que cada parcela desta série é uma combinação linear das funções trigonométricas seno e cosseno, cujos coeficientes são chamados de coeficientes de Fourier. Esta idéia não foi aceita de imediato; no entanto, mais tarde, com as contribuições de Dirichlet, foi possível estabelecer as condições de convergência das séries de Fourier, ver Hsu (1973). Com esta teoria, Fourier desenvolveu técnicas de resolução de problemas de contorno na condução de calor. Com o tempo, o trabalho de Fourier demonstrou ser de grande importância, tendo aplicações na Física e na Matemática, e mais modernamente em Teoria da Comunicação, Sistemas Lineares, entre outras áreas, ver Godunov (1984). Muitos cursos de graduação da área de Ciências Exatas prevêem em alguma de suas ementas um estudo, ainda que introdutório, das séries de Fourier. Aos 1 Doutor em Engenharia Mecânica pela UFRGS. Prof. da Faculdade de Matemática da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. 458 professores é dada a árdua tarefa de apresentar em algumas aulas as idéias gerais: os principais resultados e as técnicas de cálculos dos coeficientes, e a expansão de uma função periódica como uma soma de senos e cossenos. Em muitos casos, os professores não têm tempo de mostrar uma aplicação, como por exemplo, a resolução de um problema de valores de contorno, ver DiPrima (2002). A utilização de recursos computacionais em praticamente todas as áreas da atividade humana permite o acesso e a divulgação de informações numa escala muito maior do que aquela dos tempos em que Fourier viveu. Tal fenômeno chegou à Universidade: o uso de recursos computacionais permite facilidades de cálculo, deixando mais tempo para análise e interpretação de resultados. Neste contexto, este trabalho apresenta uma abordagem computacional de cálculo dos coeficientes de Fourier e das somas parciais da série de Fourier de uma dada função usando o programa Maple, disponível aos alunos e professores nos laboratórios da Faculdade de Matemática ( FAMAT ) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul ( PUCRS ), numa seqüência de gráficos que permitem a visualização da convergência. Os pré-requisitos para o entendimento desta teoria são: Cálculo Diferencial e Integral, Séries Infinitas, Bases Ortogonais de Espaços de Dimensão Infinita, Propriedades das Funções Trigonométricas, entre outros. Para dar uma base teórica, apresentamos na seção 2 alguns resultados sobre funções periódicas, definição da série de Fourier e as propriedades das funções ortogonais que motivam a expansão em série de Fourier de uma função periódica. Na seção 3, apresentamos exemplos de utilização do Maple para determinação dos coeficientes de Fourier e 459 das somas parciais da série. Na seção 4, apresentamos as conclusões do trabalho. Palavras-chave. Séries de Fourier. Convergência. 2. Funções periódicas e coeficientes de Fourier Uma função f = f( t) é periódica se existir um T tal que f(t) = f(t + T) (1) para qualquer t pertencente ao domínio de f. O menor T para o qual a igualdade (1) é válida é chamada de período de f. Quando existe T que satisfaz (1), dizemos que a função f(t) é T-periódica. Um exemplo clássico de função 2π-periódica é a função f(t) = cos(t). Propriedade 1. Se f (t +T) = f(t) , então a + T/2 T/2 a −T/2 − T/2 ∫ f(t)dt = ∫ f(t)dt (2) Isto é, a integral de uma função T periódica é invariante, num intervalo de comprimento igual a T. Em muitos problemas de valores de contorno, estamos procurando uma função que satisfaz certas condições, as quais permitem que a função possa ser representada por sua série de Fourier. Portanto, no que segue vamos admitir que f(t) satisfaz tais condições. Se f(t) é uma função periódica com período T, então f(t) pode ser representada pela série trigonométrica: 1 2 f(t)= a 0 +a1cos(ω0t)+a2cos(2ω0t)+...+b1sen(ω0t)+b2sen(ω0t) +... ou: 460 +∞ 1 f(t)= a 0 + ∑ (a n cos(nω 0 t) + b n sen(nω 0 t)) 2 n =1 (3) onde ω0 = 2π/T. A propriedade fundamental necessária para o desenvolvimento da teoria é a ortogonalidade das funções seno e cosseno, no intervalo [–T/2, T/2]. Podemos demonstrar que o conjunto de funções {1,cos(ω0t),cos(2ω0t),...,sen(ω0t),sen(2ω0t),...}, denotado por {1, cos(nω0t),sen(nω0t)}n , é um conjunto ortogonal de funções, no intervalo [– T/2 , T/2 ], onde ω0 = 2π/T. Resumindo, podemos escrever as fórmulas de cálculos dos coeficientes de Fourier, conforme Hsu (1973): an = bn = 2 T 2 T T/2 ∫ f(t)cos(nω t)dt , 0 n = 0,1,2,... (4) n = 1,2,... (5) − T/2 T/2 ∫ f(t)sen(nω t)dt , 0 − T/2 Em função da propriedade da integral definida expressa na fórmula (2), não é necessário que o intervalo de integração em (4) e (5) seja simétrico em relação à origem, mas sim que a integral seja considerada em um intervalo igual a um período, ver Courant (1970). Com as fórmulas acima, podemos determinar computacionalmente os coeficientes de Fourier de uma dada função T-periódica, bastando para isto definir a freqüência angular fundamental ω0=2π/T, e implementar as fórmulas (4) e (5). Como último resultado teórico importante desta seção, destaco as condições de Dirichlet, mediante as quais uma função admite representação em série de Fourier. Condições de Dirichlet. São as seguintes: 1.A função f(t) tem número finito de descontinuidades num período. 461 2. A função f(t) tem um número finito de máximos e mínimos num período. 3. A função f(t) é absolutamente integrável num período, isto é, T/2 ∫ | f(t) | dt < ∞ (6) −T/2 Se uma função satisfaz as três condições acima, então, num ponto de descontinuidade, digamos t = t1, a série de Fourier converge para f(t 1 + ) + f(t1 −) 2 (7) onde f(t1+) e f(t1–) são os limites laterais à direita e à esquerda, respectivamente, de f(t) em t1. Na próxima seção, vamos mostrar um exemplo de como calcular os coeficientes de Fourier no Maple, fazer a definição das somas parciais da série e sua análise gráfica. 3. Cálculo dos coeficientes de Fourier e das somas parciais no Maple Para implementar as fórmulas de cálculo dos coeficientes an e bn, inicialmente devemos definir a função, o período T e a freqüência fundamental. Mostremos com um exemplo. Exemplo 1. Calcular os coeficientes de Fourier da onda − 1, se − 1 < t < 0 f(t) = e f(t+2) = f(t), cujo gráfico está 1, se 0 < t < 1 esboçado abaixo na figura 1. Para obter este gráfico, uma solução é usar os comando abaixo no Maple, onde definimos a função, esboçamos o gráfico e calculamos os coeficientes: > and f:=t->piecewise(-1<t t<1,1,t>1 and t<0,-1,t>0 and t<2,-1,t>-2 and t<- 1,1); 462 > with(plots): > graf1:=textplot([0.5,1.5,`f(t)`]): >graf2:=plot(f(t),t=-2..2,discont=true, thickness=2): > display(graf1,graf2); O commando piecewise define uma função com mais de uma lei; with(plots) carrega uma bilbioteca, graf1 e graf2 definem dois gráficos e display mostra estes gráficos. Fig.1 Onda quadrada do exemplo 1. Para definirmos o coeficiente a0, entramos com os comandos abaixo: > T:=2; > omega0:=2*Pi/T; > a0:=2/T*Int(f(t),t=-T/2..T/2); Para calcular o coeficiente a0, escrevemos: > a0:=2/T*int(f(t),t=-T/2..T/2); Agora, definimos os coeficientes an como funções de n, para n =1,2...: 463 >an:=n-> 2/T*int(f(t)*cos(n*omega0*t), t=-T/2..T/2); Verificamos diretamente que os coeficientes an são iguais a zero, para todo n=0,1,2,... . Agora, definimos os coeficientes bn como funções de n, para n = 1,2,...: >bn:=n->2/T*int(f(t)*sin(n*omega0*t), t=-T/2..T/2); Como n é um número inteiro positivo, vemos que os coeficientes pares são iguais a zero. A fórmula geral é, portanto, 0, n par bn= 4 . A série de Fourier, neste , n ímpar nπ caso, é uma série de senos. Igualando a função à sua série de Fourier, obtemos: 4 f(t) = = π sen(πt)+ 4 4 4 sen(3πt)+ sen(5πt)+ sen(7πt) + ... π 3π 5π sen((2n + 1)πt) π n =0 2n + 1 4 +∞ ∑ n Definindo sn(t) = a0/2 + ∑ (a k =1 k cos(kω 0 t) + b k sen(kω 0 t)) como a n-ésima soma parcial da série de Fourier, as primeiras somas parciais da série obtida acima são: s1(t) = s5(t)= 4 π sen(πt), s3(t) = 4 π ( sen(πt) + 1 sen(3πt) ) e 3 4 1 1 (sen(πt)+ sen(3πt)+ sen(5πt)). Os gráficos de π 3 5 f(t) e das duas primeiras somas parciais estão esboçados na figura 1. Como podemos ver, não há uma proximidade muito grande entre os gráficos, a não ser em um pequeno número de pontos. De fato, s1(t) e f(t) coincidem em quatro pontos, enquanto s3(t) e f(t) coincidem em nove pontos. 464 >graf0:=plot(f(t),t=-..1,discont=true): >graf1:=plot(s(1,t),t=-1..1,color=red): >graf2:=plot(s(3,t),t=1..1,color=blue,thickness=3): >graf3:=textplot([0.5,1.2,`s1(t)`],color =red): >graf4:=textplot([0.5,0.75,`s3(t)`],colo r=blue): Fig. 2. As somas parciais s1(t) e s3(t) de f(t). Para valores mais elevados de n, podemos definir uma soma parcial como uma função de duas variáveis no Maple: >s:=(n,t)->sum(bn(k)*sin(k*omega0*t), k=1..n); Assim, se quisermos definir e ver todos os termos de uma soma parcial, podemos usar o comando expand: > expand(s(5,t)); 465 A execução deste comando define a soma parcial s5(t) com os cinco primeiro harmônicos ( neste exemplo, temos uma série de senos ), só que escrita numa forma diferente da usual. Aumentando o número de parcelas da soma parcial, vemos que esta tende a se aproximar de f(t), num “número maior de pontos“, como podemos ver no gráfico 2, onde está esboçado o gráfico da soma parcial s30(t). Vemos graficamente que nos pontos de descontinuidade, por maior que seja o valor de n, a soma parcial sn(t) → f(t +) + f(t −) , 2 conforme estabelece o teorema da convergência das séries de Fourier, satisfeitas as condições de Dirichlet. De fato, para a função f(t) do gráfico acima, nos pontos de descontinuidade, como por exemplo em t = 0, os limites laterais são f(0+)= lim f(t) =1 e f(0–)= lim f(t) = –1, logo, t →0 + sn(0) → t →0 − f(0+) + f(0−) = 0. Para obter o gráfico da figura 3, 2 devemos usar os comandos: >graf5:=plot(f(t),t=-2..2,discont=true, thickness=2, color=red): >graf6:=plot(s(30,t),t=-2..2,color=blue ,thickness=2): >graf7:=textplot([0.5,1.2,`f(t)`],color= red): >graf8:=textplot([0.5,0.8,`s30(t)`],colo r=blue): >display(graf5,graf6,graf7,graf8); 466 Fig. 3. A soma parcial s30(t). De fato, podemos visualizar a convergência graficamente, através de uma seqüência de gráficos animados, através do comando abaixo: >animate(plot,[{s(n,t),f(t)},t=-2..2, discont=true],n=1..60,frames=60); Tal comando produz uma animação que pode ser vista no Maple ou no Powerpoint. Nos pontos t = 0, ± 1, ± 2, ± 3,... a função f(t) definida acima tem uma descontinuidade. Na vizinhança destes pontos, a medida que n cresce para infinito, a soma parcial sn(t) tende a uma valor que difere aproximadamente 9% de f(t), sendo que tal diferença não pode ser eliminada, e que é conhecida como fenômeno de Gibb, ver O’Neill (1995). Por exemplo, se t → 0+, então f(t) → 1, mas sn(t) → 1.09, quando n → + ∞ . O que se observa é que o pico da soma parcial sn(t) se aproxima cada vez mais de zero, à medida que aumentamos o valor de n, mas este pico não pode ser eliminado. 467 4. Conclusões: neste trabalho, apresentamos a dedução da fórmula dos coeficientes de Fourier, o cálculo dos coeficientes num caso particular (onda quadrada), e a definição das somas parciais da série de Fourier. Mostramos que é possível visualizar a convergência das somas parciais, usando os recursos gráficos do Maple, o que significa pouco esforço nos cálculos “manuais”, deixando mais tempo para a interpretação dos resultados. Acreditamos que esta possa ser uma prática a ser utilizada em cursos de graduação no ensino de séries de Fourier, com este programa (Maple) ou outro similar, que permita uma melhor visualização dos gráficos das somas parciais da série de Fourier de f(t), o que permite uma compreensão mais precisa do significado da convergência da série de Fourier e o fenômeno de Gibb. Outras aplicações das séries de Fourier, relacionadas com o resolução de problemas de valores de contorno e o Teorema de Parseval, que pode ser usado na determinação da soma de séries numéricas convergentes,ver Abdounur (1999) e DiPrima (2002), também podem ser exploradas, e deixadas para um futuro trabalho. Referências: Abdounur, O. J. Matemática e Música. O pensamento analógico na construção de significados. São Paulo, Escrituras Editora, 1999. Brigham, E. O. The Fast Fourier Transform and its Applications. New Jersey, Prentice Hall, 1988. Boyce, W. , e DiPrima, R. Equações Diferenciais Elementares e Problemas de Valores de Contorno. Rio de Janeiro, LTC Editora, 2002. 468 Courant, Cálculo Diferencial e Integral, Vol. 1. Porto Alegre, Editora Globo, 1970. Garbi, G. G. A rainha das ciências. São Paulo, Editora Livraria da Física, 2006. Godunov, S. K. Ecuaciones de la física matemática. Moscou, Editora Mir, 1984. Hsu, H. P. Análise de Fourier. Rio de Janeiro, Livros Técnicos e Científicos Editora, 1973. O’Neill, Peter. Advanced engineering mathematics. 4. ed. Pacific Grove : Brooks/Cole, 1995. Ramirez, Robert W. The FFT : Fundamentals and concepts. Prentice Hall. New Jersey. 1985. 469