FREI CANECA, O TYPHIS PERNAMBUCANO E A EDUCAÇÃO
Maria Madalena Sorato Gulla
Marcília Rosa Periotto
Universidade Estadual de Maringá
Este é um estudo preliminar sobre o pensamento de Frei Joaquim do Amor Divino
Caneca e de seu jornal Typhis Pernambucano (dezembro de 1823 - agosto de 1824), mais
precisamente do texto Bases para a formação do pacto social redigidas por uma
sociedade de homens de letras. De caráter liberal, o texto apresenta 32 itens nos quais
estão dispostos os eixos político e filosófico que guiariam a nova República e
expressavam, por sua vez, uma enérgica oposição ao governo de D. João VI e depois de
Pedro I. Esses princípios, inspirados nas idéias francesas, motivaram Frei Caneca a lutar
para impregná-los na consciência dos nordestinos, na tentativa de educá-los para uma
realidade diferente da vivida até então. O conflito entre revoltosos e governo não resultou
apenas de atitudes espontâneas do povo reclamante por liberdade, mas teve no Typhis um
instrumento da maior importância para levar a massa popular ao enfrentamento armado. O
objetivo do estudo é demonstrar esse caráter educativo, conscientemente impregnado nas
idéias propaladas pelo referido jornal quando da contestação dos novos rumos políticos
trazidos pela independência brasileira.
Em Pernambuco, na periferia do Recife em 1779, nasceu Frei Caneca, assim
conhecido por ser filho de um tanoeiro. Seu pai, Domingos da Silva Rabelo, português,
construía e consertava barris, tinas, barricas e canecas. Sua mãe, Francisca Alexandrina de
Siqueira, era filha e neta de portugueses. Caneca trazia em seu sangue a mestiçagem da
província, pois seu bisavô materno havia se casado com uma mestiça brasileira.
Ingressou nos estudos religiosos no convento do Carmo, no Recife, onde se ordenou
frade aos 22 anos de idade, provavelmente por opção da família, pois, além de um tio de
sua mãe ser carmelita, a ordenação religiosa era uma das atividades que ofereciam aos
menos abastados a possibilidade de uma sobrevivência segura e de certa promoção social.
Em suas atividades de religioso, depois como professor de geometria e gramática, de
escritor e de jornalista, procurou defender e propagar um ideário político de cunho liberal
avançado para a época no Brasil.
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Frei Caneca freqüentou a Academia Literária do Paraíso, uma associação de
ilustrados em que se lia e discutia obras científicas, políticas e filosóficas, algumas
proibidas pela Coroa. Ganhava destaque também nesse momento em Pernambuco as lojas
maçônicas que se tornaram ponto de reunião de interessados em tomar conhecimento e em
discutir aquelas idéias liberais propagadas pela Revolução Francesa.
As primeiras lojas maçônicas no Brasil tiveram como núcleo importante a cidade de
Recife devido à influência econômica que Pernambuco exercia como tradicional produtor
de cana-de-açúcar. Nessa cidade fundou-se a loja maçônica Areópago de Itambé, da qual
participavam, entre outros, os irmãos Cavalcanti, o padre Câmara, Miguelinho, João
Ribeiro e Frei Caneca.
Viana Filho elucidou, em parte, o mistério de como chegaram ao Brasil às
proclamações revolucionárias. Afirma o historiador baiano:
Que em 1796, o governo de Lisboa alertou o de Salvador, na Bahia, que a
espionagem lusa detectara a informação de que o Clube Cercles Social, de
Paris, enviara uma expedição por mar no sentido de que seus
propagandistas viessem a introduzir nas colônias estrangeiras, o mesmo
espírito de liberdade que reinava neste país (França) e dividir as forças dos
soberanos do Novo Mundo. (ANDRADE: FERNADES, 1992, p.92).
Manuel Arruda Câmara se encontrava estudando medicina em Montpellier, na
França, quando ocorreu a “Grande Revolução”. Ele foi discípulo, dentre outros, de
Lavoiser, que teve a cabeça cortada por causa de suas implicações com a corte de Luis
XVI, e Condorcet, notável filósofo, outro que acabou engolido pelo “Saturnismo” da
Revolução que ele próprio, com suas idéias avançadas, ajudou a desencadear na França.
Retornando a Pernambuco, pelos idos de1798, Manoel Arruda Câmara começou a
pregar no Nordeste brasileiro os ideais da Revolução Francesa. Para isso fundou na cidade
de Itambé, na divisa de Pernambuco com a Paraíba, uma sociedade secreta maçônica que
teve o significativo nome de Areópago, que, à maneira dos clubes franceses do século
XVIII, reunia os “patriotas” do Nordeste, principalmente os de Pernambuco. Sociedade
política, secreta, uma espécie de magistério que instruía e despertava entusiasmo pela
democracia republicana, cujo objetivo era doutrinar a população para a independência.
Suas idéias de república e federalismo eram mostradas através do Typhis Pernambucano,
jornal dirigido por Frei Caneca e o Sentinela da Liberdade, dirigido por Cipriano Barata.
Além da contribuição de Manoel de Arruda Câmara, o notável surto literário do
século XVIII no Brasil introduziu na colônia portuguesa as idéias novas que circulavam na
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Europa. Estudantes brasileiros que cursavam faculdade em Coimbra, Montpellier e em
outros centros culturais europeus interessavam-se entusiasticamente pelo pensamento
ocidental num século de intensa produção literária e de agitação de idéias.
Participando da vida universitária portuguesa ou francesa, os brasileiros iriam trazer,
ou já estavam trazendo para o Brasil, as doutrinas do pensamento europeu. Identificados
com o meio onde estavam estudando ou do qual participavam, os letrados brasileiros
teriam de imbuir-se do espírito do tempo e transladá-lo para o Brasil, onde o queriam vivo
e atuante como na Europa. João de Scantimburgo (1989) afirma que a ilustração
conquistou os brasileiros, como em geral a toda a intelectualidade do Ocidente europeu,
estendendo a sua influência até as remotas paragens da América espanhola e lusitana.
De fato já não era possível conter a onda revolucionária da Revolução Francesa, a
qual mudou completamente a ordem das coisas na sociedade contemporânea ao século
XVIII, assentando um golpe destruidor no regime feudal e absolutista, não só na França,
como na Europa inteira. A Revolução Francesa acabou decididamente com a dependência
feudal dos camponeses que ainda persistia em vários países europeus, fortalecendo no
campo a pequena propriedade livre, extinguindo as corporações de oficio sufocadas pela
manufatura e liquidando com os entraves ao comércio. Poder-se-ia acrescentar mais: abriu
caminho à expansão da manufatura e do artesanato capitalista possibilitando o
desenvolvimento da produção fabril na Europa continental.
No âmbito do poder político houve profundas transformações, passando esse das
mãos da nobreza agrária à urbana, à qual reformou juridicamente as instituições, criando
um Estado Moderno segundo a concepção tripartite anunciada por Montesquieu – com
Executivo, um Judiciário e um Legislativo -, poderes harmônicos entre si e autônomos,
proclamando os Direitos Humanos, dotando os cidadãos de prerrogativas contidas em suas
Constituições democráticas, elaborando os Códigos Civil, Comercial e Penal. Enfim,
contribuiu para modernizar toda uma estrutura arcaica, vista como injusta e cruel, e tornou
o povo uma entidade política, cujas aspirações já não podiam ser ignoradas pelas
autoridades do Estado. De acordo com José Roberto Martins Ferreira:
A Revolução Francesa foi um dos grandes eventos históricos, que não
apenas alterou abruptamente a forma como a França era governada, mas
gerou mudanças no próprio modo de ser da sociedade francesa. A Europa,
como todo o Ocidente, teria sua história afetada pelos acontecimentos que
se iniciavam em Paris. A Revolução Francesa foi uma revolução política e
social de proporções gigantesca para o destino de todo o mundo. (1997, p.
11).
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Após a Revolução Francesa o absolutismo monárquico ainda persistente passou a ser
ameaçado pelos ideais de liberdade pregado mundo afora, o que obrigou os reis a se
juntarem em aliança para combater a perniciosa divulgação de tais conceitos. Com a
repressão a tais idéias subversivas à ordem vigente, os propagandistas dos ideais
revolucionários começaram a se reunir em sociedades secretas, como a maçonaria que no
Brasil tiveram papel ativo não só na organização de movimentos como na participação dos
governos. Foi uma das alavancas que impulsionou a Independência e um dos pivôs da crise
que levou mais tarde à Proclamação da República.
Nesse ambiente de rebeldia contra a ordem é que Frei Caneca aos poucos se formou
intelectualmente. Chegou a tentar matricular-se na Universidade de Coimbra, mas foi
impedido por dificuldades financeiras uma vez que a permanência nessa universidade era
mantida pelos pais e o seu, como é sabido, não era membro da camada abastada da
sociedade de então. Poderia ter se acomodado, porém não o fez: religioso contemplativo e
erudito se dispôs a mergulhar fundo nos mistérios humanos e divinos. Anos de estudos o
habilitaram nos mais altos conhecimentos científicos da época, tanto nas ciências exatas
quanto nas humanas. Na quietude do convento estudou incansavelmente, a ponto de ser
considerado um dos maiores letrados daquele tempo. Como professor seu forte era
Teologia, Geometria e Retórica. Lia de tudo, incluindo Rousseau, Montesquieu; não perdia
as descobertas naturalistas, nem descuidava de exercitar a lógica matemática e no campo
da física e da astronomia exaltava a obra de Galileu e sua concepção de universo.
Frei Caneca encotrava-se entre aqueles que apreciavam as novas descobertas, estava
sempre atento a tudo aquilo que representasse o novo: como intelectual erudito entendia
que para formar o homem ideal, aquele que questiona, era preciso partir em busca de
verdades lógicas. Segundo Morel, (1987) tal aparato erudito o punha no plano mais alto do
reduzidíssimo círculo de doutores num país escravista, onde até senhores eram analfabetos.
Inflamado, solidário, incandescente com os sofrimentos humanos, suas palavras
transmitiam esse mesmo calor, comoção e tinham penetrante poder de convencimento pela
sinceridade e limpidez com que eram ditas.
Diante de uma sociedade como a brasileira, tal personalidade, por mais que tentasse
atuar no plano das idéias, dificilmente poderia ter uma postura conciliatória. Frei Caneca
não estava sozinho, mas foi a principal expressão de setores da Igreja num momento
crucial do processo da Independência, na revolta de 1817 e sete anos depois na
Confederação do Equador, onde pelos menos 40 padres estiveram envolvidos.
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A atuação de Frei Caneca ocorreu num período de intensa agitação no Brasil em
função de tornar-se independente de Portugal e, em seguida a Independência, de formular
seus próprios preceitos e leis. O momento final e mais marcante de sua atuação jornalística
e política foram a Confederação do Equador, que eclodiu em 1824.
A independência política não provocou imediatamente profundas mudanças na
sociedade brasileira. Continuava a dependência econômica com a Inglaterra por meio de
sucessivos empréstimos, financiamentos e maior volume comercial; a aristocracia rural
mantinha a mentalidade conservadora dos tempos de colônia, lutando para preservar a
instituição do trabalho escravo. Além disso, a produção matinha-se organizada em função
do mercado internacional comandado pela Inglaterra e não das necessidades da maioria da
população brasileira. O modelo econômico da época colonial permaneceu intacto:
produção agrária, monocultura, escravista e exportadora.
O poder político ficou ao encargo dos grandes proprietários de terra, dos
comerciantes das cidades portuárias e dos altos funcionários da antiga Coroa. A chefia de
estado e do governo permaneceu nas mãos do Príncipe Regente, D. Pedro, herdeiro do
trono português. Deu-se assim uma ruptura política formal sem que, contudo, se atingisse
profundamente a formação social escravista num momento em que o número de escravos
era elevado nas áreas de maior expressão econômica do país, como as províncias do
Maranhão, Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro e Minas Gerais.
Portanto, a princípio, o grande feito da independência foi livrar-se da tutela política
dos portugueses e do mando absoluto que exerciam em todas as esferas sociais sem que
tivessem, no entanto, criadas condições para superar um tipo de vida econômica e social
que para muitos, deveria permanecer intacta.
Nestas condições não é difícil concluir que os grandes beneficiados pela
independência foram os grandes proprietários rurais, pois o Estado Brasileiro organizou-se
depois da independência em função dessa elite dominante que estabeleceu os limites do
liberalismo durante o Império, ou seja, um liberalismo que ao invés de defender o trabalho
livre usufruía, na pessoa dos seus propugnadores, dos benefícios do escravismo.
A aristocracia expressava-se por um pensamento conservador. Isto não quer dizer que
durante o período imperial o Estado não houvesse tomado medidas liberais. Tomou, tanto
que Pedro II instituiu o revezamento do Gabinete Liberal e Conservador no poder, mas
esse liberalismo só ia até o ponto em que não prejudicasse os interesses da aristocracia.
Assim, o sistema político brasileiro a partir da independência passou a incorporar as idéias
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liberais de comércio e de representação política para a elite brasileira, cabendo aos
plantadores e os comerciantes reivindicarem o direito de serem representados no Estado.
Foram os ideais iluministas que influenciaram a Revolução Francesa e o movimento
de independência das Trezes Colônias Inglesas da América do Norte, bem como
movimentos independentista na América Latina, inclusive no Brasil. Idéias como as
defendidas por Rousseau, segundo o qual as leis devem expressar a vontade geral, ou seja,
a soberania popular é a base da vida nacional. Assim, se o governante não representa a
vontade geral, o povo não só pode como deve substituí-lo. Para Rousseau o homem é um
ser superior, capaz de autonomia e liberdade, ou seja, “O homem nasce bom, é a sociedade
que o corrompe. Por isso a solução era reformar a sociedade” (FERREIRA, 1997, p.220).
A partir da proliferação de idéias como as de Rousseau e de outros pensadores
iluministas de igual importância, bem como dos interesses conflitantes no Novo Mundo
construído pelos europeus, as relações que indispunham Metrópoles e colônias iriam se
romper. Não apenas elas, mas também o absolutismo e as práticas mercantilistas na
Europa. Desse modo, as idéias reformistas ou revolucionárias irrompiam em vários níveis.
Portugal e Brasil, em geral e a província de Pernambuco, em particular, como partes
integrantes do antigo sistema colonial, foram atingidos pela crise que se desenvolveu na
Europa, mas que encontrando terreno fértil na América também deixou suas marcas.
A coroa portuguesa, embora viesse adotando uma política colonial reformista, não se
preocupava em abrandar as tensões existentes entre a Metrópole e a sua maior colônia. Os
movimentos contra o vigente sistema de comércio abriram caminho para a independência
política. Os acontecimentos imediatamente posteriores a 1822, incluindo o movimento
rebelde de 1824, a Confederação do Equador em Pernambuco, representaram, entre outras
questões, momentos do processo de reorganização do fluxo interno de apropriação do
excedente econômico. Foi um momento de luta pela afirmação de lideranças políticas
regionais. Apesar dos negócios de exportação e importação continuarem após 1822 a ser
organizados segundo os critérios econômicos vigentes no mercado mundial, abria-se um
leque de opções comerciais que dependia de decisões internas. Havia, pois, necessidade de
definir os campos de ação dos diferentes grupos dominantes regionais.
No caso de Pernambuco, por exemplo, havia um grupo que, em função de rivalidades
dentro da própria província, se colocava em posição de apoio às medidas adotadas pelo
governo Imperial. Suas manobras giravam em torno de Francisco Paes Barreto. Já o outro
grupo que desde 1824 até o desencadeamento da repressão à Confederação do Equador
pelo governo do Rio de Janeiro dominava politicamente a província, colocava-se
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frontalmente contra as propostas do governo Imperial. Considerava Pernambuco uma das
províncias mais rendosas e acusava as do Sul de desfrutarem de privilégios junto ao
governo do Rio de Janeiro. Esse grupo, liderado por Manoel de Carvalho Paes de Andrade,
defendia uma prevalência das decisões tomadas na província, em especial, uma
modificação nas medidas tributárias.
A organização da produção até as primeiras décadas do século XIX continuava sem
nenhuma alteração, voltada prioritariamente para o mercado externo, utilizando-se da mãode-obra escrava. Em Pernambuco eram produzidos os principais produtos de exportação: o
algodão e o açúcar. Constituíam a fonte de renda nacional, portanto, esses dois únicos
produtos primários exportáveis e as importações freqüentemente absorviam e
ultrapassavam as rendas geradas pelas exportações do país, uma vez que o Estado Nacional
recém-instalado dependia das nações estrangeiras para o suprimento de artigos
manufaturados e mesmo agropecuários, necessários ao consumo da população.
Considerando-se que a produção de matérias-primas e dos gêneros alimentícios para
exportação restringia-se a áreas limitadas e contribuía para que determinadas regiões se
tornassem responsáveis pela maior parte dos produtos exportáveis, é possível entender esse
fato como gerador de problemas para o Império, na medida em que apenas algumas
províncias eram responsáveis pela sustentação econômica de todo o país.
Portanto, eram freqüentes os desentendimentos entre o poder central do Rio de
Janeiro e os governos provinciais, especialmente daqueles que estavam à frente na
produção para a exportação, como era o caso de Pernambuco. Também era grande o
descontentamento da população, pois, para contornar as dificuldades financeiras, o
governo Imperial recorria aos moradores da província no que diz respeito aos impostos e
taxas e aos donativos voluntários em favor da defesa do Império.
Com a independência agravaram-se ainda mais os desentendimentos entre as
lideranças pernambucanas e o governo do Rio de Janeiro, já que uma parte dos que
detinham o poder em Pernambuco intensificou a oposição às diretrizes estabelecidas pelo
governo Imperial ao considerar que as decisões tomadas visavam o atendimento dos
interesses da região sul, dos portugueses que ficaram no país e que continuavam ligados a
Portugal, além de tirarem tudo que era possível tirar das províncias do Norte.
As vantagens político-econômicas das regiões sulistas mais próximas à Corte eram
evidentes. Nas primeiras décadas do século XIX Pernambuco enfrentou sérias dificuldades
econômicas: as finanças estavam debilitadas devido à transferência da maior parte dos
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rendimentos da província para a Corte, fazendo com que as despesas públicas da Província
ultrapassassem, quase sempre, sua receita.
Em 20 de outubro de 1823, uma nova forma de governo para as províncias já havia
sido decretada por D. Pedro I em substituição às juntas governativas que atuavam nas
províncias, conforme decreto das cortes de Lisboa de 1821. De acordo com Glacyra
Lazzari Leite (1989, p. 59), o decreto de 1823 instituía o sistema de nomeação pelo
Imperador de um presidente, um secretário e cinco membros escolhidos pelo eleitorado de
cada província. Entretanto, as lideranças pernambucanas contrárias ao governo imperial
decidiram eleger, provisoriamente, como Presidente de Pernambuco Manuel de Carvalho
Paes de Andrade. Eram, assim, ignoradas as determinações Imperiais uma vez que Pedro I
havia nomeado Francisco Paes Barreto Presidente para a província de Pernambuco.
Fatos como esses revelam a situação da crise existente entre o governo do Rio de
Janeiro e as lideranças pernambucanas, envolvendo os demais setores da sociedade. Além da
crise política particular à província devem ser consideradas, também, as contradições
vividas, nesse momento histórico, pela sociedade pernambucana. Com relação às diretrizes
seguidas pelo governo do Rio de Janeiro havia, em Pernambuco, algumas concordâncias,
mas também muitas divergências. As concordâncias diziam respeito, entre outras questões,
ao compromisso de preservar as condições estabelecidas em 1808 com a abertura dos portos
e a expansão da produção e a ativação do comércio.
Essas eram as condições que garantiam a inserção do país no contexto do
desenvolvimento do capitalismo. Além disso, havia também um consenso no que se referia à
necessidade de garantir a manutenção da estrutura social interna com relação ao trabalho
escravo e a dominação das classes populares. As divergências surgiram a partir das
contradições em atingir esses objetivos.
O governo do Rio de Janeiro assumiu caráter centralizador no intuito de garantir a
viabilização do Estado independente nos moldes propostos, fato que veio permitir a
sobreposição, nos negócios do Estado, de certos setores das lideranças nacionais e,
conseqüentemente, de seus objetivos. Esses acontecimentos culminaram em choques de
interesse entre o governo central e grupos que detinham o poder em diferentes regiões do
país como, por exemplo, Pernambuco, e entre os próprios grupos locais dessa província.
Segundo Leite (1989, p. 61), o movimento rebelde de 1824 em Pernambuco não pode
ser desvinculado do processo de Consolidação da Independência do Brasil. Portugal a
reconhecera em 1825, porém a ex-metrópole lutava com todas as armas disponíveis para
anular o desmembramento do seu Império. Naquela altura dos acontecimentos, uma
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rebelião de caráter republicano em uma das províncias mais ricas do Brasil representava
um perigo a mais a se abater sobre a Coroa Bragantina. A Rebelião de Pernambuco
representava a perda definitiva do Brasil que, por ser naquele momento a colônia mais rica
que possuía, era ainda o único elo capaz de propiciar a sonhada recomposição do Império
português através de D. Pedro I, herdeiro também do trono europeu.
Portanto, não convinha a Portugal criar mais obstáculos à estruturação do Império do
Brasil. Ao invés disso, a Coroa Portuguesa passou a propagar às nações européias, em
especial à Inglaterra, que a rebelião em Pernambuco inviabilizava a existência do Império
monárquico independente na América. Desse modo tentava impedir um possível
reconhecimento do governo brasileiro por parte dessas nações, ao mesmo tempo em que
tentava angariar simpatia à sua pretensão de retomar a posse da colônia.
Diante das dificuldades encontradas por Portugal na oposição à Independência do
Brasil, no que se refere a problemas militares como também econômicos, o caminho tomado
por Portugal foi lutar, via negociação, para conseguir maiores vantagens diante da inevitável
formalização da separação do Brasil (Cf. Leite, 1989, p. 62).
Ainda, segundo Leite, na Inglaterra a rebelião também não foi bem vista, pois não
havia sido garantida a confirmação pelo Brasil do Tratado do Comércio celebrado com
Portugal em 1810. A preocupação dos ingleses nesse momento era de que uma república no
Brasil aumentaria os perigos de penetração de outra nação no comércio brasileiro como, por
exemplo, os Estados Unidos, que era constantemente vigiado pela Inglaterra a ponto de o
não reconhecimento da independência do Brasil pela Grã-Bretanha ser deixado para um
segundo plano caso essa fosse reconhecida pelos Estados Unidos.
Esses acontecimentos não podiam deixar de repercutir nos rumos da política interna.
Em Pernambuco a forma de transição adotada pelo governo do Rio de Janeiro levou a uma
situação de rebelião entre a população, tanto nas regiões agrárias quanto na cidade do
Recife, o principal centro urbano, bem como dos pontos mais sensíveis aos conflitos.
Os desentendimentos com o governo imperial intensificaram-se ainda mais quando
Pedro I entrou em confronto direto com Assembléia Constituinte, encarregada de ordenar a
primeira Constituição brasileira. Foram convocados cerca de oitenta deputados,
representantes das províncias, para elaborá-la. Assim advogados, padres, proprietários
rurais e funcionários públicos formavam-na e, como muitos deles tinham lutado pela
independência, esperavam que D. Pedro I a aceitasse. Entretanto, o imperador julgava que
tinha direito de interferir na Constituição, ou melhor, pretendia estar acima dela.
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Insatisfeito, pois seus deputados estavam elaborando uma que limitava seus poderes, Pedro
I tomou uma atitude radical: convocou as Forças Armadas e mandou fechar a Assembléia.
Fechada a Assembléia, presos alguns deputados e outros expulsos do Brasil, Pedro I
nomeou um grupo de dez pessoas para fazer uma Constituição que atendesse seus
interesses. No dia 25 de março de 1824 outorgou a Carta que lhe concedia amplos poderes
e restringia a participação política a uma pequena parcela da população. Ela estabelecia
quatro poderes autônomos: Poder Legislativo, formado pelo Senado e pela Câmara dos
Deputados, Poder Judiciário, composto pelos juízes e tribunais, Poder Executivo, exercido
pelo imperador com a ajuda de ministros e o Poder Moderador que era exercido
exclusivamente por ele, podendo nomear o ministério, os presidentes das províncias e os
senadores e dissolver a Assembléia.
A Constituição de 1824 procurou garantir a liberdade individual, a
liberdade econômica e assegurar, plenamente, o direito à propriedade. Para
os homens que fizeram a independência, gente educada à moda européia e
representante das categorias dominantes os direitos a propriedade,
liberdade e segurança garantidos pela Constituição eram coisas bem reais.
Não importava a essa elite se a maioria da nação era composta de uma
massa humana para a qual os direitos constitucionais não tinham a menor
validade. A Constituição afirmava a liberdade e a igualdade de todos
perante a lei, mas a maioria da população permanecia escrava. Garantia-se
o direito a propriedade, mas 95% da população, quando não eram escravos,
compunham-se de moradores de fazendas, em terras alheias, que podiam
ser mandados embora a qualquer momento. Garantia-se a segurança
individual, mas podia-se matar um homem sem punições. Aboliam-se as
torturas, mas nas senzalas os instrumentos de castigo como o tronco, e a
gargalheira e o açoite continuavam sendo usados e, o senhor era o supremo
juiz da vida e da morte de seus homens. A elite de intelectuais do império,
porta-voz das categorias dominantes, criou todo um conjunto de idéias
liberais que mascarava as contradições sociais do país e ignorava a
distância entre a lei e a realidade. (COTRIM, 1998, p. 312).
A primeira reação contra o absolutismo de Pedro I surgiu em Pernambuco ao
provocar, com seu autoritarismo, grande revolta nos políticos de pensamento liberal,
expulsando deputados, censurando a imprensa e impondo a Constituição de 1824 e
instituindo o poder moderador, considerado um instrumento de opressão e tirania. A
resposta mais enérgica dos liberais às atitudes autoritárias de D. Pedro I explodiu no
Nordeste, em julho de 1824, liderada pela província de Pernambuco e teve o nome de
Confederação do Equador.
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Nessa época o Nordeste atravessava grave crise econômica provocada pela queda das
exportações de açúcar. Essa crise atingia não só a parcela pobre da população, pequenos
comerciantes, militares de baixa patente, mulatos, negros livres e escravos, mas também a
classe dominante. Os diferentes setores da sociedade uniram-se, momentaneamente, em
torno de idéias contrárias à monarquia e à centralização do poder.
O estopim da revolta foi a nomeação de um novo presidente para a província de
Pernambuco, feita pelo imperador, que descontentou as forças políticas locais.
No dia 2 julho de 1824 a revolta explodiu em Pernambuco. Os principais focos do
movimento eram as cidades de Recife e Olinda, e o líder de maior destaque foi Manuel de
Carvalho Pais de Andrade, o presidente de Pernambuco destituído pelo imperador. De
Pernambuco, a revolta espalhou-se para Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Alagoas.
As medidas tomadas pelos revoltosos tinham como alvo difundir a idéia de luta
contra o governo central, tanto em Pernambuco como nas demais províncias do norte. A
segurança de contar com o apoio da população vinha da suposição de que havia um
conhecimento geral sobre a situação precária pela qual passava aquelas províncias.
Essa certeza relacionava-se a todo um trabalho há muito tempo em desenvolvimento,
cujo sentido era demonstrar à população o descaso do governo do Rio de Janeiro para com
a região norte. Entre vários oponentes de envergadura deve-se creditar a Cipriano Barata
com o jornal Sentinela da Liberdade e a Frei Caneca e o Typhis Pernambucano papel
relevante na tarefa de conquistar apoio, notadamente dos mais pobres, para se indispor
contra a Coroa que só fazia submeter os territórios mais ao norte a um persistente
desprestígio, promovendo um quadro de agravada crise econômica.
Em 1823, quando da preparação da Carta a ser outorgada, o projeto foi enviado a
algumas Câmaras Municipais para a sua apreciação. Ao chegar à Câmara dos Deputados
do Recife Frei Caneca colocou-se contra a proposta, acusando o projeto de expressar
preceitos contrários ao liberalismo. Os preceitos liberais, típicos das tendências iluministas
que proliferaram na Europa no século XVIII, marcaram o comportamento e sua atuação
política e jornalística. Seu pensamento ganhou condições favoráveis para transformar-se
em práxis num contexto histórico em que Pernambuco sofria continuado prejuízo
financeiro e na qual a política permanecia favorável aos portugueses embora esses não
fossem mais os titulares da Coroa.
Foi nesse cenário de intensa agitação social que Frei Caneca buscou encontrar espaço
para a aplicação de suas idéias a favor de uma luta, no seu entender, contra a tirania dos
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interesses do sul contra os do nordeste e, principalmente, contra a proeminência dos
portugueses em detrimento dos brasileiros.
O Typhis Pernambucano surgiu em Recife em 25 de dezembro de 1823 e circulou até
agosto de 1824. O primeiro número do jornal refletia a situação de desconforto criada por
D. Pedro I para a província pernambucana, colocando-se, nesse contexto, como um
timoneiro de nau que deveria ser conduzida a um porto seguro, mas, que, para isso,
precisava de uma tripulação consciente dos desafios a serem enfrentados:
Quando a nau da pátria se acha combatida por ventos embravecidos;
quando, levada por furor dos euripos, feita do ludibrio dos mares, ela
ameaça naufrágio e morte, todo cidadão é marinheiro; um deve sustentar o
timão, outro por a cara ao astrolábio, ferrar o pano outro, outro, alijar ao
mar os fardos, que se sobrecarregam e afundam, cada um prestar a
diligência ao seu alcance e sacrificar-se pelos seus concidadãos em perigo.
(TYPHIS, 1984, p. 39).
A característica marcante do Typhis era o seu teor político, manifesto não apenas em
opinião, mas também em criticas pessoais, nos ideais revolucionários europeus e,
especialmente, na preocupação em tornar-se um instrumento para a libertação e cidadania
nacionais, proclamando concomitantemente a liberdade de expressão e de imprensa.
No seu jornal Frei Caneca tratou dos acontecimentos de Pernambuco e das outras
províncias em que explodiam manifestações contrárias ao Império. Usando de linguagem
enérgica, destacava os erros cometidos pelo monarca e atacava a prepotência dos
portugueses. Criticou, também, de forma muito severa, a escolha de Francisco Paes Barreto
para o cargo de presidente da província de Pernambuco. Alegava que o próprio reconhecera
sua inaptidão para o governo da província e que convocara um conselho de cidadãos com
representantes de todas as classes sociais para que fossem expostas por seu procurador as
razões pelas quais se demitira do governo de Pernambuco. Para que a província não ficasse
sem um dirigente elegeu-se um governo temporário que duraria enquanto não chegasse um
presidente nomeado pelo imperador.
Porém, como não apareceu nenhum presidente indicado pelo governo central e por
haver o colégio eleitoral se reunido, instituíram presidente Manuel de Carvalho Paes de
Andrade e comunicaram ao imperador terem assim procedido devido à necessidade em que
a província de Pernambuco se achava, uma vez que Francisco Paes Barreto não foi capaz
de resolver os problemas provinciais e tornara-se impopular entre o povo. Segundo o que
os fatos comprovavam, em lugar de procurar conservar a boa ordem dos negócios, a
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tranqüilidade do povo e sua felicidade, Paes Barreto causava a desordem, perturbava-lhes a
paz promovendo a ruína da província e temiam pelo desastroso sucesso da dissolução da
assembléia constituinte que poderia restabelecer o antigo despotismo a que tanto
desprezavam e que, por isso, haviam escolhido para presidente uma pessoa que gozava da
inteira confiança de todos e esperavam, outrossim, que o imperador não estranhasse tal
procedimento e os apoiasse.
No entanto, não foi essa a atitude de D. Pedro I ao insistir em dar posse de presidente
da província a Francisco Paes Barreto, contrariando a vontade dos pernambucanos. Diante
dessa atitude Frei Caneca vociferou nas páginas do Typhis :
Pode S. M. dar padrões do tensas, título de barões, viscondes, condes,
marqueses; porém dar ciências a um tolo, valor a um covarde, virtude a um
vicioso, honra a um patife, amor da pátria a um traidor, não pode sua
majestade. (Ibid., p. 87).
O público lia no jornal de Frei Caneca coisas desse teor. O princípio da autonomia
provincial era um dos pontos fundamentais a ser respeitado pela constituição e da qual não
se podia tergiversar, enfatizava:
Nós queremos um império Constitucional e o ministério um absoluto. Nós
queremos uma Constituição feita pela nação soberana; o ministério um
projeto feito por ele, que não tem soberania. Nós, como racionais,
queremos jurar uma Constituição, com conhecimento do que juramos,
livremente, sem coação, para o juramento do poder ligar-nos; o ministério
quer que abjuremos da razão, o Dom mais precioso que recebemos do
Criador e que nos diferencia dos demais animais que a natureza criou,
propensos para a terra e sujeitos aos apetites do ventre; e que juremos o
projeto, porque o Senado do Rio de Janeiro o qualificou de obra-prima em
política, e que o juremos com um bloqueio na barra, fazendo-nos todas as
hostilidades. Nós queremos uma Constituição que afiance e sustente a
nossa independência, a união das províncias, a integridade do Império, a
liberdade política, a igualdade civil, e todos os direitos inalienáveis do
homem em sociedade; o ministério quer que, à força de armas, aceitemos
um fantasma ilusório e irrisório da nossa segurança e felicidade, e mesmo
indecoroso ao Brasil. (Ibid., p. 178-180).
As questões debatidas por Frei Caneca cuidavam de alertar para a constante à
independência. Segundo Leite (1989, p. 119), ele afirmava “[...] haver um plano
concentrado pela alcatéia portuguesa contra a Independência do Brasil, ou para o
estabelecimento do absolutismo”, deixando clara a intenção de re-colonização do Brasil
por parte de Portugal e no qual a dissolução da Assembléia Constituinte se fazia
necessária, pois representava obstáculo para atingir tal objetivo.
14
Frei Caneca, a princípio, não acusava diretamente o Imperador. Dizia ter sido a
“perversa facção portuguesa que tivera a habilidade de iludir S.M.I. para acabar com a
soberana Assembléia Constituinte Brasiliense”, chegando a proclamar Pedro I de
“barrocamente príncipe justo, magnânimo, incomparável”, afirmando confiança no
“Império Constitucional” e se “[...] colocado entre a Monarquia e o governo democrático
reúne em si as vantagens de uma e de outra forma, e repulsa para longe os males de ambas.
Agrilhoa o despotismo, e estanca os furores do povo indiscreto e volúvel” (CHACON:
LEITE, 1984, p. 23).
Porém, quando Pedro I dissolveu a Assembléia Nacional Constituinte em 1823 para
outorgar uma Constituição que fosse de seu gosto e interesse, na qual o poder ficava ainda
mais centralizado em suas mãos e na região Sudeste em detrimento do resto do país, Frei
Caneca passou a ter atitudes mais radicais e a pregar abertamente em seu jornal a
revolução. Segundo Morel (1987, p. 36), lia-se no Typhis frases como: “Um monarca,
quando incorre na desconfiança da nação é imediatamente reputado um inimigo interno”,
ou “Os governos querem fundar o seu poder sobre a pretendida ignorância dos povos, ou
sobre antigos erros e abusos”.
Caneca propunha um projeto de Constituição participativo e libertador diante da
opressão existente. Dizia que “Hoje não há homem do sertão mais interior que deixe de
conhecer a dignidade do homem, seus direitos, seus deveres, sua liberdade; e origens do
poder dos que governam” (Ibid., p. 37). Dessa maneira se referia a toda uma região que
cansada da intransigência imperial, começava a organizar a revolta armada. Naquele
momento, a luta se afigurava numa radical tentativa de transformar profundamente a
realidade do país que surgia, rompendo de uma vez por todas com as amarras coloniais.
O número 24 do Typhis Pernambucano, na página 213, trouxe um comunicado
contendo as bases para a formação do pacto social e redigido por uma sociedade de
homens de letras. O material constitui um conjunto de condutas que defendem a igualdade,
a segurança, a propriedade, a resistência à opressão, o fim da escravidão, a soberania
nacional e o direito do povo rever a Constituição, pois é ela que diz como o povo
participará do poder; quais são os seus direitos e deveres e de que maneira o governo
promoverá o bem-estar social. Em princípio, cabe a Constituição a tarefa de garantir que
não existirão injustiças sociais e políticas. Priorizava entre os seus 32 itens os seguintes
princípios, os quais se constituem os mais significativos:
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Art.1º. Os direitos naturais, civis e políticos do homem são a liberdade, a
igualdade, a segurança, a propriedade e a resistência à opressão.
Art.3 º. A conservação da liberdade depende da submissão à lei, que é a
expressão da vontade geral. Tudo o que não é proibido pela lei, não pode
ser impedido, e ninguém pode ser obrigado a fazer o que ela não ordena.
Art. 5º. A liberdade da imprensa, ou outro qualquer meio de publicar estes
sentimentos, não pode ser proibido, suspenso nem limitado.
Art.6º. A igualdade consiste em que cada um possa gozar dos mesmos
direitos.
Art. 8º. Todos os cidadãos são admissíveis a todos os lugares, empregos e
funções públicas. Os povos livres não conhecem outros motivos de
preferência, senão os talentos e virtudes.
Art. 22º. A instrução elementar é necessária, a todos, e a sociedade a deve
prestar igualmente a todos os seus membros.
Art.32º. Um povo tem sempre o direito de rever, reformar e mudar a sua
Constituição. Uma geração não tem o direito de sujeitar às suas leis as
gerações futuras e toda a herança as funções é absurda e tirânica.
No de número 22 manifesta preocupação com a instrução do povo tomando-a como
princípio para a formação do novo Estado Nacional. Defendia o equilíbrio dos poderes, do
respeito à Constituição e, sobretudo, do fortalecimento da civilização pela educação, do
esclarecimento, da propagação das luzes do saber. A esse respeito defendia, em sua
Dissertação sobre o que se deve entender por Pátria do cidadão e deveres deste para com
a mesma Pátria, redigida em 1822, que
O primeiro cuidado do governo, a respeito dos cidadãos e súditos, é
procurar iluminá-los com as luzes das ciências, artes e ofícios, dispartindo
esta tarefa aos cidadãos mais sábios e eruditos, não se poupando a gastos
por maiores, pois está assentado entre todos que um povo ignorante é um
povo selvagem e bárbaro. (FREI CANECA, 2001, p. 55).
Para ele a instrução daria ao homem o entendimento necessário ao seu
desenvolvimento intelectual e às suas escolhas, pois um homem sem uma boa formação
corria o risco de cometer erros bem maiores, já que a falta de conhecimento produz idéias
falsas e inexatas e que uma sociedade que não valoriza a formação do povo pode produzir
juízo falsos, incoerências, crimes, atentados, perturbações e até sua ruína final. Acreditava
que a imperfeição das idéias produzia efeitos prejudiciais e funestos na moral e nos
costumes dos povos. Portanto, defendia a idéia de que uma república bem constituída é
aquela em que o governo prioriza a instrução do povo.
Ao ter em mente essa preocupação Frei Caneca se dedicava a elucidar matérias em
que via não se pensar com a devida retidão, utilizando o Typhis como instrumento para a
propagação de um conteúdo que julgava correto para a formação do homem. Atuava,
16
assim, como uma espécie de intelectual orgânico, procurando discutir formulações para
uma nova sociedade. Através dele suas idéias chegavam até o povo, se constituindo num
dos principais fatores de animação e orientação dos indivíduos contrários ao governo
imperial, lido com muito entusiasmo pelos rebeldes, apesar de atingir somente a parcela de
leitores da população com acesso aos jornais. Atuava também nas grandes assembléias
públicas, suas palavras inflamadas e sensatas eram as mais ouvidas. Ele buscava por todos
os meios sintetizar as tendências contraditórias no interior do movimento, sem perder a
perspectiva revolucionária, afirmando que
Governe quem governar, seja nobre ou mecânico, rico ou pobre, sábio ou
ignorante, da praça ou do mato, branco ou preto, pardo ou caboclo, só há
um partido que é o da liberdade civil e da felicidade do povo; e tudo o que
não for isso há de ser repulsado a ferro e fogo. (CANECA apud MOREL,
1987, p. 39).
Embora existisse no Brasil uma imprensa de oposição ardente e corajosa, como foi o
Typhis, pouco se alcançava em relação ao povo. Nesse momento, a atuação de Frei Caneca
no papel de religioso pode levar a ele as palavras com as quais contestava o poder
despótico de Pedro I e a política voltada, ainda, para os interesses portugueses:
Além de ser um religioso com acesso ao Púlpito da Igreja e, portanto, com
possibilidade de levar seu pensamento a um público amplo e de
constituição muito heterogênea, era regente da cadeira de Geometria
Elementar, o que o colocava em contato com outro tipo de clientela. Essas
eram algumas das vias de acesso que tinha o Carmelita para divulgar suas
idéias. Outro meio muito eficaz utilizado por Frei Caneca era as reuniões
políticas, em especial as Reuniões do Grande Conselho. Aí ele se fazia
presente como membro do “Corpo Literário” da cidade do Recife. A
opinião manifestada em seus votos era aquelas que sempre conseguia ser
referendada. (LEITE, 1989, p. 119).
Por meio desses mecanismos propagava as novas idéias possibilitando a que se
almejassem o fim dos privilégios da metrópole, aos pobres que enxergassem o fim da
aristocracia ociosa, aos mulatos perceberem um ponto final para os preconceitos, aos
negros o fim da escravidão. Quanto às transformações sociais mais profundas, como por
exemplo, a organização da sociedade, suas manifestações não se distanciavam da realidade
então vivida pelo povo. Para ele, a defesa do direito de propriedade sobrepunha-se à defesa
do direito de liberdade, asseverando que “Nenhuma pessoa pode ser privada da menor
porção da sua propriedade sem seu consentimento, só no caso de haver necessidade
17
pública, e esta legalmente contestada, que exija evidentemente e debaixo de uma justa e
prévia indenização” (CANECA apud LEITE, 1989, p. 120).
Frei Caneca, expressando as questões de sua época por muitas vezes se contradizia ao
defender a liberdade de todos afirmando que “todo homem pode entrar no serviço de outro
pelo tempo que quiser, porém não pode vender-se, nem ser vendido” (Idem, p.120), mas
contraditoriamente sobrepunha ao direito de liberdade o direito de propriedade, exatamente
como a burguesia havia consolidado no seu processo de desenvolvimento. Percebe-se
dessa forma que era de tendência radical no nível político uma vez que defendia uma
posição de rompimento em relação ao governo do Rio de Janeiro, mas com relação à
estrutura social, ou seja, a forma como a sociedade se organizava para a produção de
riqueza, vê-se nele a figura de um frei reformista.
Para compreender tal postura é preciso entender que as idéias liberais que
predominaram entre os letrados brasileiros eram as mesmas que nortearam a Revolução
Francesa, um liberalismo que nem sempre estava vinculado às aspirações e aos
movimentos das camadas pobres da população.
Segundo Morel (2000, p. 40), a idéia de revolução é uma idéia da modernidade
política, elaborada ou assumida, sobretudo, pelas elites urbanas letradas em fins do século
XVIII. No Brasil e não só nele, por exemplo, a condenação da escravidão vinha seguida de
uma certa tolerância e era atitude comum entre os liberais da primeira metade do século
XIX. Esta posição contraditória diante da abolição do trabalho escravo era característica da
maioria dos revolucionários franceses, inclusive os tidos como mais radicais.
Após a conquista da independência, o grupo social que herdou o poder no Brasil
representava os interesses dos grandes proprietários de terra, ligados a uma economia agroexportadora, dependente do trabalho escravo. Portanto, nele, o discurso liberal
revolucionário e conservador foram ao mesmo tempo revolucionários no que se refere à
emancipação política e destruição de instituições político-administrativa tradicional, mas
conservador quando se tratava de manter a ordem interna vigente. Na visão de Heitor
Ferreira Lima
O pensamento liberal do século XVIII, que na Europa serviu para realizar a
revolução democrática - burguesa, na América Latina foi utilizado para
cumprir somente uma de suas tarefas: a independência política. Os
argumentos da burguesia européia, contra o feudalismo, foram adaptados
pela burguesia nacional no caso do Brasil para lutar contra a opressão
Monárquica. Na Europa, o pensamento liberal foi a bandeira da burguesia
industrial, na América Latina foi a ideologia dos latifundiários, dos
mineiros e comerciantes. (1978, p. 82).
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Portanto as facções políticas construtoras do Estado brasileiro, embora influenciadas
pelos princípios do liberalismo europeu, não o praticaram, mas sim uma espécie de
liberalismo conservadora, cuja natureza era patriarcal e escravocrata e muito específica ao
modo de ser da sociedade brasileira e de suas necessidades.
Vale ressaltar ainda que, embora a idéia de democracia fosse muito utilizada nas
fontes ligadas à Confederação do Equador, não se deve esquecer dos limites práticos
estabelecidos por uma relação social ainda impregnada de colonialismo, que não se
dissiparia de uma hora para outra. A base da sociedade em Pernambuco, como em todo o
Brasil, era eminentemente escravista, lotada de escravos, senhores, comerciantes de
escravos e mulatos ascendentes. Sendo assim, o sentido de democracia, de liberdade,
igualdade presente nos mais variados discursos ligados ao movimento rebelde, via de
regra, restringia-se a uma reivindicação por maior liberdade em relação ao governo central
e por uma autonomia provincial, não se estendendo a abalar os pilares sociais ligados à
propriedade daquela sociedade, talvez somente de estremece-los como o fizeram os
movimentos sociais do período.
É importante destacar que as idéias liberais que circulavam no Brasil, oriundas do
continente europeu, foram aqui adaptadas em razão da estrutura econômico-social
diferente da vicejante na Europa: enquanto lá existia uma classe comercial forte, no Brasil
predominava a propriedade fundiária e politicamente latifundiária. Não existia em
princípios do século XIX sequer uma camada de comerciantes que gozasse de reconhecida
importância já que o grande comércio era monopólio da metrópole, motivo que alçou os
senhores agrícolas ao posto de classe com maior dominância:
A escravidão consistia ainda a mola mestra da vida do país. Nela
repousavam todas as suas atividades econômicas; e não havia
aparentemente substitutivo possível. Efetivamente, é preciso reconhecer
que as condições da época ainda não estavam maduras para a abolição
imediata do trabalho servil. A posição escravista reforçar-se-á, aliás, depois
da independência, com a ascensão ao poder e à direção política do novo
Estado, da classe mais diretamente interessada na conservação do regime:
os proprietários rurais que se tornaram sob o império a força política
socialmente dominadora. (CAIO PRADO JUNIOR, 1994, p. 143).
Uma outra questão deriva da manutenção do trabalho escravo. O latifúndio
monocultor no Brasil exigia uma mão-de-obra permanente. Era inviável a utilização de
portugueses assalariados, uma vez que a intenção não era vir para trabalhar e sim para
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enriquecer no Brasil, além do mais o sistema capitalista nascente não tinha como pagar
salário para milhares de trabalhadores, sem contar, que a população portuguesa era
considerada reduzida para oferecer assalariados em grande quantidade. A escassez de
braços para o trabalho tornou-se um ponto crucial para a produção da riqueza na colônia
brasileira, portanto, o único recurso foi viabilizá-la traficando escravos feitos prisioneiros
nas excursões tribais no continente africano. Em suma, pode-se dizer que o trabalho
escravo permitiu a viabilização das forças capitalistas no Novo Mundo.
Assim, pode-se concluir que embora Frei Caneca tivesse sido um militante rebelde e
implacável na defesa de seu ideário político liberal, o Estado Nacional Brasileiro se
constituiu sob a pressão de estruturas sociais arcaicas que, consolidadas, conseguiram
impedir o estabelecimento de posições consideradas mais avançadas para a época. No
entanto, o problema tomado sob a luz da perspectiva histórica, aponta para o fato de que o
Brasil historicamente realizou-se por meio das condições concretas possíveis, não pôde ir
além do que a natureza das relações existentes permitia.
As questões aqui apresentadas assinalam um momento histórico relevante para o
Brasil, pois nele se deu o rompimento dos laços políticos entre Brasil e Portugal e do que
deveria ser o fim do regime absoluto. Dessa feita, se faz oportuno o estudo de um
personagem histórico tão emblemático na luta pela difusão das idéias liberais e da proposta
de uma forma de governo em que os interesses nacionais predominassem, além de que o
caráter educativo circunscrito ao Typhis enseja uma análise capaz de elucidar como uma
época histórica realizou as tarefas impostas pelo movimento dos homens na cruzada para
fazer penetrar o pensamento inerente ao capitalismo nas áreas até então coloniais.
Frei Caneca, ao questionar e recusar os valores dominantes e seus vieses ideológicos,
estabeleceu um estilo de jornalismo caracterizado por uma atuação fundamentada na crítica
e na reflexão. Resgatar a herança política do líder popular, cujas palavras convenciam e
instruíam o povo para a luta social e que marcou a história brasileira a ponto de ser
impossível ignorar a sua contribuição para a constituição da Nação Brasileira é tarefa de
sobeja envergadura.
Entretanto, o estudo não deve ficar restrito a sua vida, tampouco à sua atuação direta
como líder revolucionário. Muito mais importa é demonstrar à luz do método histórico
como influenciou uma boa parcela de indivíduos a combater as forças que lhes pareciam
inóspitas aos interesses nacionais e, daí, retirar os fundamentos educativos com os quais
incentivou e conduziu esses homens para a luta contra o governo central.
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Frei Caneca, o typhis pernambucano e a educação