CARTA AO EDITOR
Senhor Editor:
O eminente colega Dr. Marco Antônio Becker, em sua gestão pregressa do CREMERS, publicou
um texto o qual emitia conceitos pessoais sobre a interrupção da gravidez de fetos acometidos por anencefalia. Ao discordar, em parte, dos mesmos, escrevi uma respeitosa carta ao jornal de nossa entidade
associativa máxima, a qual, carta, jamais foi publicada, embora os sucessivos pedidos para que minhas
justas contestações viessem a lume.
Diante de nova manifestação do colega Marco Antônio Becker sobre o mesmo tema (1), agora em
nossa prestigiosa revista dirigida brilhantemente por V.Sa., a qual tive a honra de dirigir durante três anos
e que tem como apanágio a democrática livre expressão de idéias, venho, respeitosamente, solicitar aos
prezados colegas que permitam reproduzir minha carta na mesma publicação e com o mesmo destaque
proporcionado ao texto do colega Dr. Becker.
Antecipadamente agradeço a execução pronta deste meu justo pleito.
A VIDA E A MORTE NO ATO MÉDICO
Na última edição da Revista da AMRIGS (1), o Dr. Marco Antônio Becker, como presidente do nosso
Conselho Regional, emitiu opinião favorável à interrupção da gestação de fetos presumivelmente anencéfalos e afirma que “É um direito da mãe solicitar a antecipação do parto. Além do risco inerente à
gestação, a sua manutenção pode significar um sacrifício sem finalidade”. E segue, adiante: “O diagnóstico seguro de anancefalia é realizado durante a gestação pelos exames de ultra-sonografia e dosagens da alfafetoproteína”. E mais: “Não há por que a mãe, contra sua vontade, correr o risco de morte
ao levar uma gestação a termo com um feto cerebralmente morto no seu ventre”.
As afirmações do Dr. Becker, que cremos equivocadas, são de várias ordens.
Em primeiro lugar, as atinentes à conduta obstétrica: a menos recomendável e mais iatrogênica é a
interrupção de uma gravidez em evolução, seja por estimuladores das contrações uterinas, seja por cesariana. São consideráveis os riscos de ruptura uterina, com suas graves conseqüências na atual e nas
futuras gestações.
Segundo: o diagnóstico da anencefalia não está isento de erros de interpretação, mesmo com os
exames citados; já observamos tanto falsos positivos como falsos negativos.
Terceiro: gestações de fetos anencéfalos não aumentam sequer um ponto nas taxas de mortalidade
materna. Não há nada na literatura médica nem nunca vimos mortes de gestantes por serem apenas
portadoras de fetos com esse tipo de malformação.
Antes da era da ultra-sonografia, as gestações e os partos de fetos anencéfalos decorriam normalmente, e nos defrontávamos, quase sempre, com duas surpresas: a primeira com a constatação da malformação; a segunda, com o vínculo, o apego e o afeto que se estabelecia entre as mães e seus recémnascidos quando estes viviam por semanas e até meses. Eles eram batizados, recebiam um nome, não
raras vezes os pais os registravam em cartório e morriam agarrados às mãos da mãe entre choro e lágrimas dos familiares, os quais ficavam com a sensação reconfortante e inculpada de ter amado seu filho
mesmo pelo breve tempo de vida “que Deus lhe tinha dado” (sic).
E assim podiam pensar e dizer: “Não matamos nosso filho, ele morreu”.
Assim, acreditamos que diante de uma constatação segura de um feto anencéfalo, obtida através da
tecnologia atual, nossa conduta deve ser preventiva, não através da eliminação física do feto, mas sim no
sentido de acompanhar e preparar a família para o necessário luto que sempre acompanha esse desagradável evento. Esta é, cremos, a legítima e hipocrática arte obstétrica que nossos mestres nos ensinaram.
Em recente palestra, o Dr. Wambert Di Lorenzo, Professor de Filosofia do Direito, e a Dra. Lívia
Haigert Pithan, membro da Sociedade Brasileira de Bioética, ambos Mestres em Direito, confirmaram o
que já afirmavam inúmeros pensadores preocupados com políticas seletivamente controladoras de vidas
humanas, principalmente as praticadas durante a Segunda Guerra Mundial por um psicopata genocida:
“que os critérios utilitaristas e as tentativas de definição de vidas viáveis são a mais pura definição de
princípios eugênicos e obedecem a orientações político-ideológicas”. E mais – na feliz expressão da
Professora Lívia: “O perigo de se usarem argumentos para desqualificar a vida humana nos situa numa
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ladeira escorregadia, donde se pode deslizar para tudo”, como a trágica experiência do Terceiro Reich
nos demonstrou e, penso, nos tenha convencido do contrário com o fortíssimo argumento representado
por quarenta milhões de mortos.
Enfim, nosso presidente do CREMERS, que nos consta ser um competente oftalmologista, como
cidadão, pode e deve expressar suas opiniões e inquietações em qualquer fórum. No entanto, seus julgamentos relativos a uma área que lhe é estranha merecem ser questionados, pois, diante de eventos envolvendo malformações fetais e na vigência dos debates sobre o Ato Médico, cabe uma pergunta: estará
dentro das atribuições dos médicos, irredutíveis agentes da vida, decidir sobre a morte de seres humanos?
PS: Notícias recentes (2) da imprensa do centro do país (3) informam que um feto anencéfalo vive
há sete meses, no interior de São Paulo, sob os estremados e amorosos cuidados de sua mãe.
Com minhas respeitosas saudações.
FRANKLIN CUNHA
CREMERS 3254
TEGO 256/69
Ex-Diretor da AMRIGS
Ex-Editor Chefe da Revista da AMRIGS
REFERÊNCIAS
1. Becker MA. Anencefalia e a possibilidade de interrupção da gravidez. Revista da AMRIGS, 2007; 51 (3): 220-221.
2. Bebê anencéfala completa um ano na próxima terça-feira. Folha Online. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/
folha/cotidiano/ult95u346112.shtml. Acessada em 16 de novembro de 2007.
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