Anais do III Simpósio Gênero e Políticas Públicas, ISSN 2177-8248
Universidade Estadual de Londrina, 27 a 29 de maio de 2014
GT10 - Teorias Feministas – Coord. Márcio Ferreira de Souza e Silvana Mariano
REFLEXÕES FEMINISTAS SOBRE POLÍTICAS
PÚBLICAS, GÊNERO E RAÇA
Anni de Novais Carneiro1
Resumo: Atualmente, fica evidente a importância de se discutir as políticas públicas,
desigualdades sociais e marcadores como gênero, raça e classe. Para melhor
compreensão do recorte proposto, faz-se necessário abarcar parte do processo histórico
e suas implicações. Questões sobre políticas públicas, necessariamente, abrangem
questões econômicas, políticas e sociais, que por sua vez estão ligadas de maneira
estreita às categorias gênero, raça/etnia e classe. Para tal, é imprescindível um percurso
que vai desde o entendimento do papel atual do Estado no Brasil, ao qual estão
relacionados desde a conjuntura internacional e o neoliberalismo, até as tensões e
dificuldades de implementação de políticas que favoreçam a supressão das
desigualdades de raça e gênero, no caso. É imprescindível também problematizar a
influência dos discursos hegemônicos sexista, racista e capitalista.
Palavras-chave: Políticas públicas, mulheres, feminismo, raça, tranversalidades.
1. Introdução
Segundo Scott (1994), gênero refere-se ao saber construído sobre as diferenças
sexuais; a autora usa o termo saber com base na concepção de Foucault, para quem o
saber é produzido de acordo com a cultura e suas relações humanas, portanto, é algo
relativo e não se pode considerar um verdadeiro ou mais legitimo do que outro. O saber
é construído a partir de constructos que possuem história própria e propósito político,
seus significados se dão em meio a relações de poder, de dominação e subordinação. É
um modo de organizar o mundo e produz a organização social, o que não parece ocorrer
de forma tão linear. Gênero seria então um marcador que promove um modo de
organização social mediante as diferenças sexuais, ou ainda, dos significados atribuídos
às diferenças sexuais. Esses significados variam de acordo com os grupos sociais, a
temporalidade e a espacialidade. A diferença sexual é uma construção do saber sobre o
corpo e é importante reiterar que o saber não é puro, é produzido por sujeitos e, por isso,
atende a interesses destes.
Da mesma forma, o conceito raça, que significa espécie, categoria, derivou
etimologicamente do italiano razza, e seu uso primeiro foi nas áreas da Biologia:
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Mestranda PPGNEIM/UFBA e Bolsista FAPESB
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Zoologia e Botânica, com o intuito de classificar animais e vegetais, enquanto no latim
medieval raça ganhou a conotação de linhagem ou descendência, o que produziria
características comuns entre as pessoas. Somente em 1684, na França, foi utilizado para
classificar
a
diversidade
de
características
humanas
em
grupos
supostamente/aparentemente diferenciados. Apenas nos idos do século XVII, o conceito
de raça aproxima-se do que é utilizado hoje para dividir a população em grupos e somar
isso ao juízo de valor do que é melhor, mais valorizado, puro e deve ser desvalorizado,
apresentando uma tensão entre classes. Fica evidenciado que o conceito de raça “pura”
foi recortado das ciências naturais e, passou a ser utilizado nas relações entre grupos de
classes distintas, – Nobreza em relação à Plebe –, para justificar a dominação destes,
mas sem nenhum respaldo cientifico, biológico (MUNANGA, 2003, p. 2).
Para Munanga (2003), as “descobertas” ocorridas no século XV geram uma
problemática: fariam parte da humanidade esses novos povos descobertos (como os
negros, ameríndios)? A teologia era o instrumento que definia verdades, as condutas,
logo esses “novos” povos precisavam estar citados na Escritura como descendentes de
Adão para serem reconhecidos como humanos. Conceitos e classificações são
construções humanas, consequentemente, determinadas pela cultura, para classificar,
organizar o pensamento. Dividir em grupos, classificar raças não constitui um problema
em si, a grande lástima foi que a essa divisão tenha sido atribuído juízo de valor, dando
conotação positiva para um padrão e negativa para todos que não correspondam a esse
modelo. A partir daí instaura-se uma hierarquização que abriu caminho para o
racialismo2 (MUNANGA, 2003, p. 2).
Com a luta dos movimentos sociais de mulheres e pessoas negras, as questões de
raça e gênero passam a ser mais visibilizadas, assim são aproximadas das políticas
públicas. Mas o quanto se tem de avanço? Há um real investimento para diminuição das
desigualdades sociais? É de interesse do Estado? Da conjuntura internacional? As
concepções de gênero e raça são discutidas a fundo? Há alguma transversalidade destas
questões nas políticas públicas? Quais impasses precisam ser superados e como superá-
2
Racialismo consiste em uma corrente que emerge na Europa, principalmente no final do século XX,
para contrapor os movimentos e discursos antirracistas. Defendia que a divisão do mundo era feita por
culturas e, por isso, também poderia ser feita por raças, considerando que existem raças inferiores e
superiores.
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los? São muitas as perguntas em torno das políticas públicas, da participação do Estado
para a melhoria das condições de vida da população.
Faz-se importante avaliar e monitorar as políticas públicas e ações
governamentais já implantadas, levando em conta sua eficiência, mas também os
discursos em torno delas, analisando se estas contribuem para a reprodução dos
discursos hegemônicos ou trazem novos discursos, desvencilhados do racismo e
sexismo. Para melhor compreender a conjuntura atual é importante fazer uma leitura das
influências nas políticas públicas, de como se dão as tensões entre sociedade e Estado,
demandas específicas e coletivas, o papel assumido pelo Estado, a economia
internacional, entre outros elementos. Neste artigo se reconhece que existem avanços
nas políticas públicas e na discussão acerca das questões de gênero e raça, entretanto, há
muito a se fazer, a necessidade de incremento das políticas públicas fica evidente,
considerando a importância das intersseccionalidades, da transversalização de raça e
gênero.
2. Políticas públicas e a transversalização de gênero, raça
2.1 Estado mínimo, economia e políticas no Brasil
Segundo Pereira (2012), a política social brasileira, definida pelos governos, tem
como idéia central transformar o Brasil em um país emergente desde os anos 1930,
através do processo de desenvolvimento, concepção muito mais ligada à economia do
que às questões sociais propriamente ditas. Isso porque as transformações nas políticas e
as concepções de desenvolvimento são extremamente dependentes do capital
internacional e da ideologia capitalista, neoliberal, consequentemente. Os períodos de
ditadura e o neoliberalismo que impera atualmente provocaram grande crescimento das
desigualdades sociais, e não permitem que as políticas sociais, as garantias conquistadas
pelos movimentos negros e de mulheres sejam materializadas. Os interesses de classe,
poder, seguem como elementos determinantes para a organização do Estado e políticas,
o modelo neodesenvolvimentista adotado pelo Brasil permitiu-lhe fazer parte do grupo
de países emergentes. Mas o que isso significa de fato? Isso muda a condição da
população? Há diminuição das desigualdades? Há melhora de qualidade de vida? Há
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melhora da condição econômica do país/população? Há desenvolvimento do país sem
que envolva a população?
A concepção neoliberal de política social não está dissociada de um
projeto de sociedade e de uma concepção de mundo. É, antes, parte
constitutiva de um projeto societário defendido pela classe dominante
dos países centrais do capitalismo, ou seja, pautado na exploração do
trabalho, o que, como será possível compreender mais à frente, em vez
de solucionar as contradições inerentes ao próprio sistema capitalista,
tenderá, em última instância, ao acirramento de suas contradições,
evidenciando cada vez mais e de maneira mais aguda a luta de classes
(TEIXEIRA, 2010, p. 654).
Os rumos das políticas, inclusive as sociais, no país, não ocorrem de modo
autônomo, sofrem influências das hegemonias, dos interesses e relações com os países
“mais ricos”, das agências e organizações internacionais, tendo em vista que tudo isso
se relaciona a um processo mundial de reestruturação capitalista, que teve inicio em
meados dos anos 1970 e que mantém até hoje a ideologia neoliberal como dominante.
Após a segunda guerra mundial, o neoliberalismo passa a vigorar, os defensores do
capitalismo triunfaram, o que causou a supressão dos pilares essenciais pensados e
praticados pelos sociais democratas que sustentaram: o emprego para todos  todos já
que não incluía as mulheres  direitos sociais para todos  mais uma vez não incluía de
modo contundente as mulheres  e afirmação de um piso socioeconômico, o qual
garantia que a população estivesse acima da pobreza extrema.
A partir disto, a ética capitalista, regida pelo mercado, desmerece a proteção
pública, restringe o poder e dever do Estado e acirra a competitividade mundial. Não se
pode dizer que no Brasil viveram-se momentos de grandes conquistas sociais ou
econômicas até hoje. Com o final do ciclo expansivo da economia internacional, nos
anos 1970, ocorreu-se uma nova crise, cuja causa foi o desequilíbrio entre acumulação e
consumo, além da “transformação do excedente produzido pela economia real em
capital financeiro”, caracterizando-se como crise de ordem estrutural e que se estende
até a contemporaneidade (PEREIRA, 2012, p. 733). Atualmente, o Brasil retorna à
condição de produtor e exportador de bens primários, setor agrícola, corroborando uma
espécie de servidão financeira.
O foco das políticas públicas sociais tornou-se o capital, deixando à margem as
necessidades humanas. Para Fagnani (2005 apud PEREIRA, 2012), ocorreu um grande
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cerceamento das conquistas sociais apontadas na Carta Magna, como por exemplo, no
que refere à seguridade social. Dessa forma, o país não se caracteriza como um país
pobre, mas como um destaque na desigualdade social e nos poucos resultados sociais.
Sobre a questão de classes, Pereira provoca:
Diante dessa realidade, cabem as seguintes perguntas para se avançar
na reflexão: a quem os Estados nacionais capitalistas, movidos pela
sedução do desenvolvimento (incluindo o Brasil), mais assistem hoje:
aos ricos ou aos pobres? Porque a assistência aos ricos não causa a
perplexidade e a celeuma que a irrisória assistência aos pobres
provoca nos círculos midiáticos, intelectuais e políticos? E por que o
combate à concentração de riquezas não é alvo preferencial dos
governos, mas sim, a redução ou o alívio da pobreza? (PEREIRA,
2012, p. 737)
Ao desassistir a população, o Estado, alimentado pela ideologia neoliberal, usa o
artifício de autorresponsabilização das camadas populares, uma espécie de meritocracia
que responsabiliza o sujeito pelo seu sucesso ou fracasso, sem incluir na questão se esse
sujeito tem suas necessidades básicas garantidas, por exemplo. Assim, o Estado se
desresponsabiliza, e a condição das pessoas passa a ser de devedores, produtores de seu
insucesso, ao invés de serem cobradores de maior participação e responsabilidade social
do Estado.
Pereira (2012) denomina monetarização da política social, a prática da
meritocracia das pessoas pobres que inclui incentivos financeiros, ou melhor, créditos,
os quais permitirão maior consumo da população e, consequentemente, maior
endividamento. Não se fazem políticas para promover transformação, melhores
condições de educação, trabalho, salários, mas medidas que fortalecem o discurso
hegemônico, como a distribuição de dinheiro ou créditos. Além disso, há o incentivo ao
empreendedorismo, ao trabalho autônomo, tendo em vista a falta de espaço e
qualificação para o mercado formal e o baixo custo de projetos dessa ordem. Com o
adensamento da pobreza e a crise de legitimidade do sistema, o Banco Mundial, de
maneira estratégica, apresenta um discurso em prol da redução da pobreza, que abarca
uma “pseudoproteção” social com a proposta de aliviar e não erradicar a pobreza.
As políticas públicas são compreendidas como linhas de ação direcionadas à
coletividade e meios de concretização de direitos sociais declarados e garantidos em lei
(PEREIRA, 1994 apud REIS 2010), são bons indicadores do exercício da cidadania e
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reflexo do grau de democratização e, desta forma, é possível analisar as relações entre
Estado e sociedade. As políticas públicas correspondem ao produto de um contexto
cultural, o qual inclui a economia, estruturas de poder e, devem responder a uma
demanda coletiva, definida a partir de um longo processo envolvendo discussão da
temática, inclusão na agenda política, para então seguir os passos de formulação,
implementação, monitoramento e avaliação. No que se refere às políticas ligadas às
questões de gênero e raça, o processo para criação e implementação é demarcado por
tensões e, por atores sociais e instituições envolvidas na questão. A prioridade de uma
agenda de gênero depende basicamente da pressão social e vontade política, também se
vincula a um entendimento internacional no que diz respeito à importância de ser
executada.
Entre os anos 1980 e 1990, deu-se o crescimento do neoliberalismo e da
globalização, enquanto ocorria também a propagação das ideologias feministas. Reis
(2010) salienta que, nesse período, mais especificamente nos anos 1990, há uma
integração da perspectiva de gênero, entretanto, de uma maneira rasa, o termo era usado
de modo técnico, mas não estavam envolvidas análises das relações de poder ou coisa
parecida. Hoje, o entendimento de desenvolvimento é mais amplo, engloba conceitos
como sustentabilidade, diminuição da desigualdade, entre outros, embora na prática, nas
Políticas Públicas, desenvolvimento parece continuar com o mesmo significado antigo,
sinônimo de crescimento econômico.
2.2 Gênero, raça e transversalização
Segundo Costa e Sardenberg (2008), as desigualdades de raça e gênero foram
construídas e entrelaçadas historicamente, na medida em que as “diferenças” raciais
foram utilizadas para explicar as diferenças de gênero e vice-versa. As raças
consideradas inferiores  as não brancas  tornaram-se o tipo “feminino” da espécie e as
mulheres foram consideradas pertencentes a raças “inferiores”, tendo em vista o gênero.
Assim, o racismo e sexismo retroalimentaram-se e se somaram, em outro momento, ao
capitalismo, o qual traz a referência de classes. O racismo e o sexismo tiveram suas
ideologias respaldadas pela ciência, que corroborou para a manutenção dessa ideologia,
ainda hoje. As lutas contra os discursos racistas e sexistas, as feministas e os
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movimentos sociais abolicionistas, hoje movimento negro, possuem ideologias que se
aproximam. Isso fica aparente desde o século XIX, quando as primeiras feministas
comprometeram-se em campanhas abolicionistas e,s quando em meado dos anos 1960,
o feminismo ressurgiu, assim como o movimento negro, estabelecendo-se pontes entre
os movimentos. Na contemporaneidade, os dois movimentos aproximam-se no campo
das lutas pelos direitos humanos, pelo fim das desigualdades de raça e gênero.
Vale ressaltar a existência, também, de distanciamentos intramovimentos, tendo
em vista que as feministas negras não se sentiram representadas por suas colegas
brancas, pois estas parecem ter incorrido em uma universalização das mulheres, ao não
considerarem de modo contundente as peculiaridades destas. Assim, as feministas
negras apresentam conexões entre as categorias raça e gênero, de modo mais complexo,
e ainda surgem as feministas latino-americanas, com a Epistemologia do Sul,
denunciando o eurocentrimo e as peculiaridades culturais. Ser mulher e negra significa
ser duplamente oprimida, discriminada, segundo as feministas negras (MUNANGA,
2010).
Entende-se a importância de categorias de análise raça e gênero, na políticas,
estas categorias devem estar contidas nas propostas, ações e na sua operacionalização.
Desse modo, pode-se pensar no conceito de transversalização, com referência à
integração do aporte de gênero ou outros marcadores à agenda política e processos
decisórios, “(...) por meio de ações políticas integradas, pressupondo intervenções
conjuntas no plano econômico, político, social ou cultural, seja em esfera nacional ou
em âmbitos regionais, estaduais, locais ou comunitários.” (REIS, 2010, p. 16). A
inclusão dos temas de gênero, assim como de raça, são conquistas dos movimentos
sociais, nesse caso, do movimento de mulheres.
Somada à transversalização, sugere-se a prática do Mainstreaming:
Mainstreaming é uma estratégia para integrar os interesses e
experiências, tanto de mulheres, quanto de homens, no desenho
implementação, monitoramento e avaliação de políticas e
programas em todas as esferas políticas econômicas e sociais,
de sorte que mulheres e homens beneficiem igualmente.
Igualdade e equidade de gênero são seus objetivos. O objetivo
mais amplo é o pleno exercício e benefício de todos os direitos
humanos (civis, políticos, sociais, econômicos e culturais) por
todas as mulheres, homens e crianças (Bedlington et al., 2004,
p. 4 apud COSTA; SARDENBERG, 2008).
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Logo, constitui-se uma estratégia que visa igualdade e equidade entre gêneros,
estendendo de forma ampla para outros marcadores e diferenças, inclusive a análise da
categoria gênero em pesquisas, perspectiva das mulheres. A transversalização de gênero
e raça relaciona-se a procedimentos técnicos e a outras práticas, enquanto estratégia
política com vistas à construção ou fortalecimento de vontade política. Para garantir a
eficácia da transversalização, esta deve ocorrer em dois níveis, sendo o primeiro o
institucional, que diz respeito às estruturas de organização e suas atividades internas
(procedimentos, políticas, programas), e o segundo o nível operacional, concernente às
ações e programas externos. Este possui relevância significativa, pois permite que as
desigualdades de gênero e raça, geralmente presentes no interior das instituições, nas
relações, sejam reproduzidas nas atividades cotidianas (COSTA; SARDENBERG,
2008, p.107).
Transversalizar gênero, incluindo transgêneros e raça no âmbito institucional e
das políticas públicas, requer grandes ajustes para a inclusão da diferença, das demandas
diversas, deslocar o modelo do homem-branco-heteronormativo. Faz-se necessário uma
série de equiparações  nas interações sociais, no trabalho, atividades, combate à
discriminação de mulheres e negros, por exemplo. A fim de que esses desafios, uma vez
conquistados, não sejam dissipados, pensa-se a importância de somar a essas estratégias
o empoderamento das mulheres, pois dessa forma elas poderão ser mais participativas
na tomada de decisões, poderão reconhecer condutas abusivas ou preconceituosas e
combatê-las, realizando um monitoramento das instituições.
Nesse meandro, inclui-se também o que é chamado de “caminho de mão dupla”,
twin-track approach, que deve ser implementado juntamente com a transversalização 
nesse caso de gênero  que consiste em projetos, programas que visem o
empoderamento3 de mulheres e a sensibilização de homens para questões relacionadas à
equidade de gênero. Esse conceito pode ser aplicado também com relação à raça, ou
ainda, de maneira articulada (COSTA; SARDENBERG, 2008, p.108).
3
A definição de empoderamento se aproxima do conceito de autonomia, que significa uma pessoa ou
grupo que possui capacidade decisória acerca de questões que estão relacionadas às suas vidas. Como
construir um projeto de vida, ter noção de seus direitos e deveres, demandar que suas necessidades
básicas sejam supridas pelas políticas públicas, por exemplo.
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As políticas públicas podem exercer um papel importante de mudança quanto às
desigualdades de gênero, raça, classe, como também podem ser um instrumento de
manutenção dessas desigualdades e de discursos sexistas, racistas, por exemplo.
Atualmente, percebe-se que as desigualdades estão sendo reforçadas por ações
governamentais, políticas públicas, por não alterarem o discurso dominante e, somado a
isso, parte da sociedade não está atenta a essas questões, participando ativamente.
Segundo Farah (2003), para que as políticas públicas contribuam com a redução da
desigualdade de gênero e raça faz-se necessário, inicialmente, reconhecer a existência
dessas desigualdades, que podem e devem ser reduzidas, possibilitar espaço para uma
agenda ampla de combate às desigualdades e, em seguida, realizar um diagnóstico das
desigualdades, como se manifestam, impactos, demandas e, além disso, incorporar a
todas as políticas um olhar para marcadores como gênero e raça.
Gênero, enquanto categoria de análise, propõe identificar as relações de poder
entre gêneros, e dessa forma, permite localizar as desigualdades entre homens e
mulheres, as diferentes construções sociais, o que pode apontar para caminhos rumo à
equidade de gênero, questionando assim as matrizes histórico-culturais, a naturalização
de comportamentos, o patriarcado, a subordinação das mulheres. Ao questionar essas
ordens, estruturas, é possível e necessário incluir outros marcadores nas discussões,
como raça/etnia, classe, orientação sexual, geração, religião, localização geográfica,
entre outros, os quais geram mosaicos de marcadores geradores de sobreposição ao
preconceito (REIS, 2010, p. 82). Ao associar feminismo, gênero e movimento negro a
políticas públicas tem-se uma expressiva contribuição, com destaque para a
epistemologia feminista e o modo de fazer pesquisa das feministas, uma vez que trazem
indicadores e instrumentos de medida, além de permitirem um monitoramento eficiente
e avaliação destas políticas.
Quando se pensa em raça e racismo, é importante contextualizar historicamente,
o que tem enorme influencia nas questões vividas atualmente por negras e negros no
Brasil. A identidade negra, ou ainda, a reafirmação dessa identidade, surge em
decorrência do processo histórico de luta, de resistência contra a desvalorização,
colonização, submissão e opressão que tiveram início com o período da escravidão e,
hoje circulam discursos de afirmação identitária negra. Enquanto isso não procede para
outros grupos de outras cores de pele, Munanga (s/d) salienta que nenhum outro grupo
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precisou organizar-se desta forma, não há um discurso sobre identidade branca ou
amarela. Outros grupos, como imigrantes ou latinos, sofrem preconceitos, não de forma
tão contundente, tão enraizada, a cor da pele negra e outras características, foram e
seguem relacionadas a representações negativas. Sobre a diversidade, Munanga afirma:
Todos nós, homens e mulheres somos feitos de diversidade. Embora
esconda também a semelhança, é geralmente traduzida em diferenças
de raças, de culturas, de classe, de sexo ou de gênero, de religião, de
idade, etc. A diferença está na base de diversos fenômenos que
atormentam as sociedades humanas. As construções racistas,
machistas, classistas e tantas outras não teriam outro embasamento
material, a não ser as diferenças e as relações diferenciais entre seres e
grupos humanos. As diferenças unem e desunem; são fontes de
conflitos e de manipulações sócio-econômicas e político-ideológicas
(MUNANGA, s/d, p. 8).
Com o distanciamento dos interesses coletivos e o não entendimento das
diferenças, o etnocentrismo, desigualdades, estereótipos, relações de subordinação são
alimentadas. Assim como o sexismo, o racismo permeia o tecido social e a cultura e,
para pensar em cidadania, equidade e políticas públicas, é imprescindível incluir essas
discussões. No que tange ao racismo e questões referentes à raça, políticas públicas
afirmativas fazem-se extremamente necessárias, afirmativas, compensatórias, mas
também de base, que provoquem mudanças profundas.
Segundo Delgado e Tavares (2012), apesar dos avanços, ao incluir nas políticas
públicas questões referentes a gênero e raça, isso ainda é pouco representativo. No que
concerne à defesa dos direitos específicos e da assistência, por exemplo, o papel
feminino tradicional é reforçado, principalmente responsabilizando a mulher pela
família. A mulher é basicamente “assistida” nas políticas públicas, na qualidade de mãe,
chefe de família e reprodutora, isso tem ligação com o entendimento das relações entre
público e privado, entendimento antigo e retrógrado desses espaços e das relações.
Ainda se percebe uma dificuldade de constituição de mulheres, negros e pobres como
pessoas de direito. Pautas que parecem simples precisam ser discutidas, como “quem
tem ou não o direito de trabalhar, quem deve suprir as necessidades de quem, quem
deve cuidar e receber cuidado” (DELGADO; TAVARES, 2012, p.82).
O entendimento de que todas as categorias e as diferenças são compreendidas
através da lente da cultura enquanto produtos de construção social-política-econômica é
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de suma importância para desnaturalizar concepções acerca de categorias como gênero,
raça, classe, geração, entre outras. Logo, classe, gênero, raça e geração, por exemplo,
são categorias que nos permitem analisar as relações e formações de pessoas,
subjetividades, práticas, interesses, tudo o que logicamente tem especificidades
individuais. Tudo isso deve ser levado em conta ao se pensar em políticas públicas para
garantir o atendimento das diversas demandas e garantir o diálogo entre as políticas, as
transversalidades de conceitos, marcadores, as interseccionalidades e intersetorialidades.
Para ser política pública é necessário atender a uma demanda coletiva, porém
garantindo também contemplar as especificidades, diferenças (DELGADO; TAVARES,
2012, p.83).
Segundo Bandeira (2005 apud DELGADO; TAVARES, 2012) parte dos
Ministérios, secretarias, órgãos estaduais, municipais, ou ainda, seus membros não têm
aproximação com o conceito de gênero, apropriam-se e fazem uso sem ter
conhecimento do significado do conceito. Muitas vezes, as políticas são dirigidas para
mulheres, mas não contemplam necessariamente a perspectiva de gênero, já que esta
focaliza as relações entre homens e mulheres, relações de poder, há maior complexidade
e envolvimento de atores sociais. Um exemplo é a assistência social, que tem como eixo
central a família, chamado de neo-familismo, dotando-a de papéis cuja responsabilidade
é do Estado, somado a isso, a mulher é a representante da família nas políticas públicas,
ela é responsabilizada por essa instituição, e assume os papéis que lhe cabem como
mulher, numa visão “maternalista”, de ser mãe, esposa, dona de casa, reprodutora,
trabalhadora, reforçando, assim, os papéis tradicionalmente atribuídos às mulheres.
3. Alguns arremates
A sociedade brasileira tem como um dos princípios de sua Constituição Federal,
a igualdade, dividida em igualdade formal – todos possuem os mesmos direitos e
deveres perante a lei – e igualdade material – todos são iguais na medida de sua
igualdade, entretanto, o que se vê é o não cumprimento dos dois tipos de igualdade. A
reprodução das desigualdades se dá na sociedade, no Estado e governo. (DELGADO;
TAVARES, 2012, p. 93). Por isso, faz-se necessário garantir as conquistas e buscar
ampliar as ações, as políticas públicas, monitoramento e avaliação destas para que sejam
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mais efetivas e, correspondam às demandas da coletividade, levando em conta as
especificidades.
Importante afirmar a necessidade de políticas públicas e campanhas de
comunicação social, que propaguem um discurso mais igualitário com relação à divisão
do trabalho doméstico, à responsabilidade com a família, que favoreçam a inclusão dos
homens no espaço doméstico. A valorização do trabalho doméstico seria muito
importante para a diminuição de desigualdades, por gerar maior participação de homens
nesse espaço e a maior valorização do setor de trabalho doméstico, no qual a maioria
das trabalhadoras são mulheres e negras.
Vale ressaltar que o Estado é uma estrutura e é formado por pessoas, que as
políticas públicas dependem de vontade política que, decorre também de pessoas,
portanto, faz-se importante discutir como essas pessoas compreendem as questões de
raça, gênero, classe, interesses pessoais e coletivos, sustentabilidade, igualdade,
equidade, economia, capital, desenvolvimento humano, para que aí então se possa
favorecer um entendimento mais profundo acerca destas questões, favorecendo talvez
um entendimento mais crítico da conjuntura e uma mudança de interesse. Além dessa
discussão entre trabalhadores e trabalhadoras públicas, faz-se necessário travar uma
discussão com toda a sociedade, o que certamente promoverá uma maior participação
da mesma nas políticas e ações governamentais. E, em caráter mais estrutural, um
incremento da educação pública e de base que permitirá uma visão mais critica da
realidade.
A epistemologia feminista tem muito a contribuir com as políticas públicas,
desde o diagnóstico, apresentando a necessidade de implementação até o
monitoramento e avaliação, a partir de análises complexas sobre as relações de gênero,
a cultura, incluindo também leituras criticas e políticas acerca de indicadores, o que para
Reis (2010), garante o fortalecimento da democracia, a supressão das desigualdades
sociais, incentivando a participação social, favorecendo o exercício da cidadania, justiça
social e, finalmente, o desenvolvimento humano, de fato.
Tanto no que diz respeito à questão de raça/racismo, quanto à questão de gênero,
mulheres negras e de outras “raças” e homens negros sofrem com uma discriminação e
a exclusão histórica, com toda luta já sabida. É importante valorizar os avanços, os
espaços garantidos, o aumento das discussões nessa área, porém ainda não foram
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Anais do III Simpósio Gênero e Políticas Públicas, ISSN 2177-8248
Universidade Estadual de Londrina, 27 a 29 de maio de 2014
GT10 - Teorias Feministas – Coord. Márcio Ferreira de Souza e Silvana Mariano
eliminadas as tensões, resistências à participação e a garantia de direitos dessa grande
parcela da população. Portanto, o desafio é grande e, transversalizar é imperativo.
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reflexões feministas sobre políticas públicas, gênero e raça