Anais do III Simpósio Gênero e Políticas Públicas, ISSN 2177-8248 Universidade Estadual de Londrina, 27 a 29 de maio de 2014 GT10 - Teorias Feministas – Coord. Márcio Ferreira de Souza e Silvana Mariano REFLEXÕES FEMINISTAS SOBRE POLÍTICAS PÚBLICAS, GÊNERO E RAÇA Anni de Novais Carneiro1 Resumo: Atualmente, fica evidente a importância de se discutir as políticas públicas, desigualdades sociais e marcadores como gênero, raça e classe. Para melhor compreensão do recorte proposto, faz-se necessário abarcar parte do processo histórico e suas implicações. Questões sobre políticas públicas, necessariamente, abrangem questões econômicas, políticas e sociais, que por sua vez estão ligadas de maneira estreita às categorias gênero, raça/etnia e classe. Para tal, é imprescindível um percurso que vai desde o entendimento do papel atual do Estado no Brasil, ao qual estão relacionados desde a conjuntura internacional e o neoliberalismo, até as tensões e dificuldades de implementação de políticas que favoreçam a supressão das desigualdades de raça e gênero, no caso. É imprescindível também problematizar a influência dos discursos hegemônicos sexista, racista e capitalista. Palavras-chave: Políticas públicas, mulheres, feminismo, raça, tranversalidades. 1. Introdução Segundo Scott (1994), gênero refere-se ao saber construído sobre as diferenças sexuais; a autora usa o termo saber com base na concepção de Foucault, para quem o saber é produzido de acordo com a cultura e suas relações humanas, portanto, é algo relativo e não se pode considerar um verdadeiro ou mais legitimo do que outro. O saber é construído a partir de constructos que possuem história própria e propósito político, seus significados se dão em meio a relações de poder, de dominação e subordinação. É um modo de organizar o mundo e produz a organização social, o que não parece ocorrer de forma tão linear. Gênero seria então um marcador que promove um modo de organização social mediante as diferenças sexuais, ou ainda, dos significados atribuídos às diferenças sexuais. Esses significados variam de acordo com os grupos sociais, a temporalidade e a espacialidade. A diferença sexual é uma construção do saber sobre o corpo e é importante reiterar que o saber não é puro, é produzido por sujeitos e, por isso, atende a interesses destes. Da mesma forma, o conceito raça, que significa espécie, categoria, derivou etimologicamente do italiano razza, e seu uso primeiro foi nas áreas da Biologia: 1 Mestranda PPGNEIM/UFBA e Bolsista FAPESB 1 Anais do III Simpósio Gênero e Políticas Públicas, ISSN 2177-8248 Universidade Estadual de Londrina, 27 a 29 de maio de 2014 GT10 - Teorias Feministas – Coord. Márcio Ferreira de Souza e Silvana Mariano Zoologia e Botânica, com o intuito de classificar animais e vegetais, enquanto no latim medieval raça ganhou a conotação de linhagem ou descendência, o que produziria características comuns entre as pessoas. Somente em 1684, na França, foi utilizado para classificar a diversidade de características humanas em grupos supostamente/aparentemente diferenciados. Apenas nos idos do século XVII, o conceito de raça aproxima-se do que é utilizado hoje para dividir a população em grupos e somar isso ao juízo de valor do que é melhor, mais valorizado, puro e deve ser desvalorizado, apresentando uma tensão entre classes. Fica evidenciado que o conceito de raça “pura” foi recortado das ciências naturais e, passou a ser utilizado nas relações entre grupos de classes distintas, – Nobreza em relação à Plebe –, para justificar a dominação destes, mas sem nenhum respaldo cientifico, biológico (MUNANGA, 2003, p. 2). Para Munanga (2003), as “descobertas” ocorridas no século XV geram uma problemática: fariam parte da humanidade esses novos povos descobertos (como os negros, ameríndios)? A teologia era o instrumento que definia verdades, as condutas, logo esses “novos” povos precisavam estar citados na Escritura como descendentes de Adão para serem reconhecidos como humanos. Conceitos e classificações são construções humanas, consequentemente, determinadas pela cultura, para classificar, organizar o pensamento. Dividir em grupos, classificar raças não constitui um problema em si, a grande lástima foi que a essa divisão tenha sido atribuído juízo de valor, dando conotação positiva para um padrão e negativa para todos que não correspondam a esse modelo. A partir daí instaura-se uma hierarquização que abriu caminho para o racialismo2 (MUNANGA, 2003, p. 2). Com a luta dos movimentos sociais de mulheres e pessoas negras, as questões de raça e gênero passam a ser mais visibilizadas, assim são aproximadas das políticas públicas. Mas o quanto se tem de avanço? Há um real investimento para diminuição das desigualdades sociais? É de interesse do Estado? Da conjuntura internacional? As concepções de gênero e raça são discutidas a fundo? Há alguma transversalidade destas questões nas políticas públicas? Quais impasses precisam ser superados e como superá- 2 Racialismo consiste em uma corrente que emerge na Europa, principalmente no final do século XX, para contrapor os movimentos e discursos antirracistas. Defendia que a divisão do mundo era feita por culturas e, por isso, também poderia ser feita por raças, considerando que existem raças inferiores e superiores. 2 Anais do III Simpósio Gênero e Políticas Públicas, ISSN 2177-8248 Universidade Estadual de Londrina, 27 a 29 de maio de 2014 GT10 - Teorias Feministas – Coord. Márcio Ferreira de Souza e Silvana Mariano los? São muitas as perguntas em torno das políticas públicas, da participação do Estado para a melhoria das condições de vida da população. Faz-se importante avaliar e monitorar as políticas públicas e ações governamentais já implantadas, levando em conta sua eficiência, mas também os discursos em torno delas, analisando se estas contribuem para a reprodução dos discursos hegemônicos ou trazem novos discursos, desvencilhados do racismo e sexismo. Para melhor compreender a conjuntura atual é importante fazer uma leitura das influências nas políticas públicas, de como se dão as tensões entre sociedade e Estado, demandas específicas e coletivas, o papel assumido pelo Estado, a economia internacional, entre outros elementos. Neste artigo se reconhece que existem avanços nas políticas públicas e na discussão acerca das questões de gênero e raça, entretanto, há muito a se fazer, a necessidade de incremento das políticas públicas fica evidente, considerando a importância das intersseccionalidades, da transversalização de raça e gênero. 2. Políticas públicas e a transversalização de gênero, raça 2.1 Estado mínimo, economia e políticas no Brasil Segundo Pereira (2012), a política social brasileira, definida pelos governos, tem como idéia central transformar o Brasil em um país emergente desde os anos 1930, através do processo de desenvolvimento, concepção muito mais ligada à economia do que às questões sociais propriamente ditas. Isso porque as transformações nas políticas e as concepções de desenvolvimento são extremamente dependentes do capital internacional e da ideologia capitalista, neoliberal, consequentemente. Os períodos de ditadura e o neoliberalismo que impera atualmente provocaram grande crescimento das desigualdades sociais, e não permitem que as políticas sociais, as garantias conquistadas pelos movimentos negros e de mulheres sejam materializadas. Os interesses de classe, poder, seguem como elementos determinantes para a organização do Estado e políticas, o modelo neodesenvolvimentista adotado pelo Brasil permitiu-lhe fazer parte do grupo de países emergentes. Mas o que isso significa de fato? Isso muda a condição da população? Há diminuição das desigualdades? Há melhora de qualidade de vida? Há 3 Anais do III Simpósio Gênero e Políticas Públicas, ISSN 2177-8248 Universidade Estadual de Londrina, 27 a 29 de maio de 2014 GT10 - Teorias Feministas – Coord. Márcio Ferreira de Souza e Silvana Mariano melhora da condição econômica do país/população? Há desenvolvimento do país sem que envolva a população? A concepção neoliberal de política social não está dissociada de um projeto de sociedade e de uma concepção de mundo. É, antes, parte constitutiva de um projeto societário defendido pela classe dominante dos países centrais do capitalismo, ou seja, pautado na exploração do trabalho, o que, como será possível compreender mais à frente, em vez de solucionar as contradições inerentes ao próprio sistema capitalista, tenderá, em última instância, ao acirramento de suas contradições, evidenciando cada vez mais e de maneira mais aguda a luta de classes (TEIXEIRA, 2010, p. 654). Os rumos das políticas, inclusive as sociais, no país, não ocorrem de modo autônomo, sofrem influências das hegemonias, dos interesses e relações com os países “mais ricos”, das agências e organizações internacionais, tendo em vista que tudo isso se relaciona a um processo mundial de reestruturação capitalista, que teve inicio em meados dos anos 1970 e que mantém até hoje a ideologia neoliberal como dominante. Após a segunda guerra mundial, o neoliberalismo passa a vigorar, os defensores do capitalismo triunfaram, o que causou a supressão dos pilares essenciais pensados e praticados pelos sociais democratas que sustentaram: o emprego para todos todos já que não incluía as mulheres direitos sociais para todos mais uma vez não incluía de modo contundente as mulheres e afirmação de um piso socioeconômico, o qual garantia que a população estivesse acima da pobreza extrema. A partir disto, a ética capitalista, regida pelo mercado, desmerece a proteção pública, restringe o poder e dever do Estado e acirra a competitividade mundial. Não se pode dizer que no Brasil viveram-se momentos de grandes conquistas sociais ou econômicas até hoje. Com o final do ciclo expansivo da economia internacional, nos anos 1970, ocorreu-se uma nova crise, cuja causa foi o desequilíbrio entre acumulação e consumo, além da “transformação do excedente produzido pela economia real em capital financeiro”, caracterizando-se como crise de ordem estrutural e que se estende até a contemporaneidade (PEREIRA, 2012, p. 733). Atualmente, o Brasil retorna à condição de produtor e exportador de bens primários, setor agrícola, corroborando uma espécie de servidão financeira. O foco das políticas públicas sociais tornou-se o capital, deixando à margem as necessidades humanas. Para Fagnani (2005 apud PEREIRA, 2012), ocorreu um grande 4 Anais do III Simpósio Gênero e Políticas Públicas, ISSN 2177-8248 Universidade Estadual de Londrina, 27 a 29 de maio de 2014 GT10 - Teorias Feministas – Coord. Márcio Ferreira de Souza e Silvana Mariano cerceamento das conquistas sociais apontadas na Carta Magna, como por exemplo, no que refere à seguridade social. Dessa forma, o país não se caracteriza como um país pobre, mas como um destaque na desigualdade social e nos poucos resultados sociais. Sobre a questão de classes, Pereira provoca: Diante dessa realidade, cabem as seguintes perguntas para se avançar na reflexão: a quem os Estados nacionais capitalistas, movidos pela sedução do desenvolvimento (incluindo o Brasil), mais assistem hoje: aos ricos ou aos pobres? Porque a assistência aos ricos não causa a perplexidade e a celeuma que a irrisória assistência aos pobres provoca nos círculos midiáticos, intelectuais e políticos? E por que o combate à concentração de riquezas não é alvo preferencial dos governos, mas sim, a redução ou o alívio da pobreza? (PEREIRA, 2012, p. 737) Ao desassistir a população, o Estado, alimentado pela ideologia neoliberal, usa o artifício de autorresponsabilização das camadas populares, uma espécie de meritocracia que responsabiliza o sujeito pelo seu sucesso ou fracasso, sem incluir na questão se esse sujeito tem suas necessidades básicas garantidas, por exemplo. Assim, o Estado se desresponsabiliza, e a condição das pessoas passa a ser de devedores, produtores de seu insucesso, ao invés de serem cobradores de maior participação e responsabilidade social do Estado. Pereira (2012) denomina monetarização da política social, a prática da meritocracia das pessoas pobres que inclui incentivos financeiros, ou melhor, créditos, os quais permitirão maior consumo da população e, consequentemente, maior endividamento. Não se fazem políticas para promover transformação, melhores condições de educação, trabalho, salários, mas medidas que fortalecem o discurso hegemônico, como a distribuição de dinheiro ou créditos. Além disso, há o incentivo ao empreendedorismo, ao trabalho autônomo, tendo em vista a falta de espaço e qualificação para o mercado formal e o baixo custo de projetos dessa ordem. Com o adensamento da pobreza e a crise de legitimidade do sistema, o Banco Mundial, de maneira estratégica, apresenta um discurso em prol da redução da pobreza, que abarca uma “pseudoproteção” social com a proposta de aliviar e não erradicar a pobreza. As políticas públicas são compreendidas como linhas de ação direcionadas à coletividade e meios de concretização de direitos sociais declarados e garantidos em lei (PEREIRA, 1994 apud REIS 2010), são bons indicadores do exercício da cidadania e 5 Anais do III Simpósio Gênero e Políticas Públicas, ISSN 2177-8248 Universidade Estadual de Londrina, 27 a 29 de maio de 2014 GT10 - Teorias Feministas – Coord. Márcio Ferreira de Souza e Silvana Mariano reflexo do grau de democratização e, desta forma, é possível analisar as relações entre Estado e sociedade. As políticas públicas correspondem ao produto de um contexto cultural, o qual inclui a economia, estruturas de poder e, devem responder a uma demanda coletiva, definida a partir de um longo processo envolvendo discussão da temática, inclusão na agenda política, para então seguir os passos de formulação, implementação, monitoramento e avaliação. No que se refere às políticas ligadas às questões de gênero e raça, o processo para criação e implementação é demarcado por tensões e, por atores sociais e instituições envolvidas na questão. A prioridade de uma agenda de gênero depende basicamente da pressão social e vontade política, também se vincula a um entendimento internacional no que diz respeito à importância de ser executada. Entre os anos 1980 e 1990, deu-se o crescimento do neoliberalismo e da globalização, enquanto ocorria também a propagação das ideologias feministas. Reis (2010) salienta que, nesse período, mais especificamente nos anos 1990, há uma integração da perspectiva de gênero, entretanto, de uma maneira rasa, o termo era usado de modo técnico, mas não estavam envolvidas análises das relações de poder ou coisa parecida. Hoje, o entendimento de desenvolvimento é mais amplo, engloba conceitos como sustentabilidade, diminuição da desigualdade, entre outros, embora na prática, nas Políticas Públicas, desenvolvimento parece continuar com o mesmo significado antigo, sinônimo de crescimento econômico. 2.2 Gênero, raça e transversalização Segundo Costa e Sardenberg (2008), as desigualdades de raça e gênero foram construídas e entrelaçadas historicamente, na medida em que as “diferenças” raciais foram utilizadas para explicar as diferenças de gênero e vice-versa. As raças consideradas inferiores as não brancas tornaram-se o tipo “feminino” da espécie e as mulheres foram consideradas pertencentes a raças “inferiores”, tendo em vista o gênero. Assim, o racismo e sexismo retroalimentaram-se e se somaram, em outro momento, ao capitalismo, o qual traz a referência de classes. O racismo e o sexismo tiveram suas ideologias respaldadas pela ciência, que corroborou para a manutenção dessa ideologia, ainda hoje. As lutas contra os discursos racistas e sexistas, as feministas e os 6 Anais do III Simpósio Gênero e Políticas Públicas, ISSN 2177-8248 Universidade Estadual de Londrina, 27 a 29 de maio de 2014 GT10 - Teorias Feministas – Coord. Márcio Ferreira de Souza e Silvana Mariano movimentos sociais abolicionistas, hoje movimento negro, possuem ideologias que se aproximam. Isso fica aparente desde o século XIX, quando as primeiras feministas comprometeram-se em campanhas abolicionistas e,s quando em meado dos anos 1960, o feminismo ressurgiu, assim como o movimento negro, estabelecendo-se pontes entre os movimentos. Na contemporaneidade, os dois movimentos aproximam-se no campo das lutas pelos direitos humanos, pelo fim das desigualdades de raça e gênero. Vale ressaltar a existência, também, de distanciamentos intramovimentos, tendo em vista que as feministas negras não se sentiram representadas por suas colegas brancas, pois estas parecem ter incorrido em uma universalização das mulheres, ao não considerarem de modo contundente as peculiaridades destas. Assim, as feministas negras apresentam conexões entre as categorias raça e gênero, de modo mais complexo, e ainda surgem as feministas latino-americanas, com a Epistemologia do Sul, denunciando o eurocentrimo e as peculiaridades culturais. Ser mulher e negra significa ser duplamente oprimida, discriminada, segundo as feministas negras (MUNANGA, 2010). Entende-se a importância de categorias de análise raça e gênero, na políticas, estas categorias devem estar contidas nas propostas, ações e na sua operacionalização. Desse modo, pode-se pensar no conceito de transversalização, com referência à integração do aporte de gênero ou outros marcadores à agenda política e processos decisórios, “(...) por meio de ações políticas integradas, pressupondo intervenções conjuntas no plano econômico, político, social ou cultural, seja em esfera nacional ou em âmbitos regionais, estaduais, locais ou comunitários.” (REIS, 2010, p. 16). A inclusão dos temas de gênero, assim como de raça, são conquistas dos movimentos sociais, nesse caso, do movimento de mulheres. Somada à transversalização, sugere-se a prática do Mainstreaming: Mainstreaming é uma estratégia para integrar os interesses e experiências, tanto de mulheres, quanto de homens, no desenho implementação, monitoramento e avaliação de políticas e programas em todas as esferas políticas econômicas e sociais, de sorte que mulheres e homens beneficiem igualmente. Igualdade e equidade de gênero são seus objetivos. O objetivo mais amplo é o pleno exercício e benefício de todos os direitos humanos (civis, políticos, sociais, econômicos e culturais) por todas as mulheres, homens e crianças (Bedlington et al., 2004, p. 4 apud COSTA; SARDENBERG, 2008). 7 Anais do III Simpósio Gênero e Políticas Públicas, ISSN 2177-8248 Universidade Estadual de Londrina, 27 a 29 de maio de 2014 GT10 - Teorias Feministas – Coord. Márcio Ferreira de Souza e Silvana Mariano Logo, constitui-se uma estratégia que visa igualdade e equidade entre gêneros, estendendo de forma ampla para outros marcadores e diferenças, inclusive a análise da categoria gênero em pesquisas, perspectiva das mulheres. A transversalização de gênero e raça relaciona-se a procedimentos técnicos e a outras práticas, enquanto estratégia política com vistas à construção ou fortalecimento de vontade política. Para garantir a eficácia da transversalização, esta deve ocorrer em dois níveis, sendo o primeiro o institucional, que diz respeito às estruturas de organização e suas atividades internas (procedimentos, políticas, programas), e o segundo o nível operacional, concernente às ações e programas externos. Este possui relevância significativa, pois permite que as desigualdades de gênero e raça, geralmente presentes no interior das instituições, nas relações, sejam reproduzidas nas atividades cotidianas (COSTA; SARDENBERG, 2008, p.107). Transversalizar gênero, incluindo transgêneros e raça no âmbito institucional e das políticas públicas, requer grandes ajustes para a inclusão da diferença, das demandas diversas, deslocar o modelo do homem-branco-heteronormativo. Faz-se necessário uma série de equiparações nas interações sociais, no trabalho, atividades, combate à discriminação de mulheres e negros, por exemplo. A fim de que esses desafios, uma vez conquistados, não sejam dissipados, pensa-se a importância de somar a essas estratégias o empoderamento das mulheres, pois dessa forma elas poderão ser mais participativas na tomada de decisões, poderão reconhecer condutas abusivas ou preconceituosas e combatê-las, realizando um monitoramento das instituições. Nesse meandro, inclui-se também o que é chamado de “caminho de mão dupla”, twin-track approach, que deve ser implementado juntamente com a transversalização nesse caso de gênero que consiste em projetos, programas que visem o empoderamento3 de mulheres e a sensibilização de homens para questões relacionadas à equidade de gênero. Esse conceito pode ser aplicado também com relação à raça, ou ainda, de maneira articulada (COSTA; SARDENBERG, 2008, p.108). 3 A definição de empoderamento se aproxima do conceito de autonomia, que significa uma pessoa ou grupo que possui capacidade decisória acerca de questões que estão relacionadas às suas vidas. Como construir um projeto de vida, ter noção de seus direitos e deveres, demandar que suas necessidades básicas sejam supridas pelas políticas públicas, por exemplo. 8 Anais do III Simpósio Gênero e Políticas Públicas, ISSN 2177-8248 Universidade Estadual de Londrina, 27 a 29 de maio de 2014 GT10 - Teorias Feministas – Coord. Márcio Ferreira de Souza e Silvana Mariano As políticas públicas podem exercer um papel importante de mudança quanto às desigualdades de gênero, raça, classe, como também podem ser um instrumento de manutenção dessas desigualdades e de discursos sexistas, racistas, por exemplo. Atualmente, percebe-se que as desigualdades estão sendo reforçadas por ações governamentais, políticas públicas, por não alterarem o discurso dominante e, somado a isso, parte da sociedade não está atenta a essas questões, participando ativamente. Segundo Farah (2003), para que as políticas públicas contribuam com a redução da desigualdade de gênero e raça faz-se necessário, inicialmente, reconhecer a existência dessas desigualdades, que podem e devem ser reduzidas, possibilitar espaço para uma agenda ampla de combate às desigualdades e, em seguida, realizar um diagnóstico das desigualdades, como se manifestam, impactos, demandas e, além disso, incorporar a todas as políticas um olhar para marcadores como gênero e raça. Gênero, enquanto categoria de análise, propõe identificar as relações de poder entre gêneros, e dessa forma, permite localizar as desigualdades entre homens e mulheres, as diferentes construções sociais, o que pode apontar para caminhos rumo à equidade de gênero, questionando assim as matrizes histórico-culturais, a naturalização de comportamentos, o patriarcado, a subordinação das mulheres. Ao questionar essas ordens, estruturas, é possível e necessário incluir outros marcadores nas discussões, como raça/etnia, classe, orientação sexual, geração, religião, localização geográfica, entre outros, os quais geram mosaicos de marcadores geradores de sobreposição ao preconceito (REIS, 2010, p. 82). Ao associar feminismo, gênero e movimento negro a políticas públicas tem-se uma expressiva contribuição, com destaque para a epistemologia feminista e o modo de fazer pesquisa das feministas, uma vez que trazem indicadores e instrumentos de medida, além de permitirem um monitoramento eficiente e avaliação destas políticas. Quando se pensa em raça e racismo, é importante contextualizar historicamente, o que tem enorme influencia nas questões vividas atualmente por negras e negros no Brasil. A identidade negra, ou ainda, a reafirmação dessa identidade, surge em decorrência do processo histórico de luta, de resistência contra a desvalorização, colonização, submissão e opressão que tiveram início com o período da escravidão e, hoje circulam discursos de afirmação identitária negra. Enquanto isso não procede para outros grupos de outras cores de pele, Munanga (s/d) salienta que nenhum outro grupo 9 Anais do III Simpósio Gênero e Políticas Públicas, ISSN 2177-8248 Universidade Estadual de Londrina, 27 a 29 de maio de 2014 GT10 - Teorias Feministas – Coord. Márcio Ferreira de Souza e Silvana Mariano precisou organizar-se desta forma, não há um discurso sobre identidade branca ou amarela. Outros grupos, como imigrantes ou latinos, sofrem preconceitos, não de forma tão contundente, tão enraizada, a cor da pele negra e outras características, foram e seguem relacionadas a representações negativas. Sobre a diversidade, Munanga afirma: Todos nós, homens e mulheres somos feitos de diversidade. Embora esconda também a semelhança, é geralmente traduzida em diferenças de raças, de culturas, de classe, de sexo ou de gênero, de religião, de idade, etc. A diferença está na base de diversos fenômenos que atormentam as sociedades humanas. As construções racistas, machistas, classistas e tantas outras não teriam outro embasamento material, a não ser as diferenças e as relações diferenciais entre seres e grupos humanos. As diferenças unem e desunem; são fontes de conflitos e de manipulações sócio-econômicas e político-ideológicas (MUNANGA, s/d, p. 8). Com o distanciamento dos interesses coletivos e o não entendimento das diferenças, o etnocentrismo, desigualdades, estereótipos, relações de subordinação são alimentadas. Assim como o sexismo, o racismo permeia o tecido social e a cultura e, para pensar em cidadania, equidade e políticas públicas, é imprescindível incluir essas discussões. No que tange ao racismo e questões referentes à raça, políticas públicas afirmativas fazem-se extremamente necessárias, afirmativas, compensatórias, mas também de base, que provoquem mudanças profundas. Segundo Delgado e Tavares (2012), apesar dos avanços, ao incluir nas políticas públicas questões referentes a gênero e raça, isso ainda é pouco representativo. No que concerne à defesa dos direitos específicos e da assistência, por exemplo, o papel feminino tradicional é reforçado, principalmente responsabilizando a mulher pela família. A mulher é basicamente “assistida” nas políticas públicas, na qualidade de mãe, chefe de família e reprodutora, isso tem ligação com o entendimento das relações entre público e privado, entendimento antigo e retrógrado desses espaços e das relações. Ainda se percebe uma dificuldade de constituição de mulheres, negros e pobres como pessoas de direito. Pautas que parecem simples precisam ser discutidas, como “quem tem ou não o direito de trabalhar, quem deve suprir as necessidades de quem, quem deve cuidar e receber cuidado” (DELGADO; TAVARES, 2012, p.82). O entendimento de que todas as categorias e as diferenças são compreendidas através da lente da cultura enquanto produtos de construção social-política-econômica é 10 Anais do III Simpósio Gênero e Políticas Públicas, ISSN 2177-8248 Universidade Estadual de Londrina, 27 a 29 de maio de 2014 GT10 - Teorias Feministas – Coord. Márcio Ferreira de Souza e Silvana Mariano de suma importância para desnaturalizar concepções acerca de categorias como gênero, raça, classe, geração, entre outras. Logo, classe, gênero, raça e geração, por exemplo, são categorias que nos permitem analisar as relações e formações de pessoas, subjetividades, práticas, interesses, tudo o que logicamente tem especificidades individuais. Tudo isso deve ser levado em conta ao se pensar em políticas públicas para garantir o atendimento das diversas demandas e garantir o diálogo entre as políticas, as transversalidades de conceitos, marcadores, as interseccionalidades e intersetorialidades. Para ser política pública é necessário atender a uma demanda coletiva, porém garantindo também contemplar as especificidades, diferenças (DELGADO; TAVARES, 2012, p.83). Segundo Bandeira (2005 apud DELGADO; TAVARES, 2012) parte dos Ministérios, secretarias, órgãos estaduais, municipais, ou ainda, seus membros não têm aproximação com o conceito de gênero, apropriam-se e fazem uso sem ter conhecimento do significado do conceito. Muitas vezes, as políticas são dirigidas para mulheres, mas não contemplam necessariamente a perspectiva de gênero, já que esta focaliza as relações entre homens e mulheres, relações de poder, há maior complexidade e envolvimento de atores sociais. Um exemplo é a assistência social, que tem como eixo central a família, chamado de neo-familismo, dotando-a de papéis cuja responsabilidade é do Estado, somado a isso, a mulher é a representante da família nas políticas públicas, ela é responsabilizada por essa instituição, e assume os papéis que lhe cabem como mulher, numa visão “maternalista”, de ser mãe, esposa, dona de casa, reprodutora, trabalhadora, reforçando, assim, os papéis tradicionalmente atribuídos às mulheres. 3. Alguns arremates A sociedade brasileira tem como um dos princípios de sua Constituição Federal, a igualdade, dividida em igualdade formal – todos possuem os mesmos direitos e deveres perante a lei – e igualdade material – todos são iguais na medida de sua igualdade, entretanto, o que se vê é o não cumprimento dos dois tipos de igualdade. A reprodução das desigualdades se dá na sociedade, no Estado e governo. (DELGADO; TAVARES, 2012, p. 93). Por isso, faz-se necessário garantir as conquistas e buscar ampliar as ações, as políticas públicas, monitoramento e avaliação destas para que sejam 11 Anais do III Simpósio Gênero e Políticas Públicas, ISSN 2177-8248 Universidade Estadual de Londrina, 27 a 29 de maio de 2014 GT10 - Teorias Feministas – Coord. Márcio Ferreira de Souza e Silvana Mariano mais efetivas e, correspondam às demandas da coletividade, levando em conta as especificidades. Importante afirmar a necessidade de políticas públicas e campanhas de comunicação social, que propaguem um discurso mais igualitário com relação à divisão do trabalho doméstico, à responsabilidade com a família, que favoreçam a inclusão dos homens no espaço doméstico. A valorização do trabalho doméstico seria muito importante para a diminuição de desigualdades, por gerar maior participação de homens nesse espaço e a maior valorização do setor de trabalho doméstico, no qual a maioria das trabalhadoras são mulheres e negras. Vale ressaltar que o Estado é uma estrutura e é formado por pessoas, que as políticas públicas dependem de vontade política que, decorre também de pessoas, portanto, faz-se importante discutir como essas pessoas compreendem as questões de raça, gênero, classe, interesses pessoais e coletivos, sustentabilidade, igualdade, equidade, economia, capital, desenvolvimento humano, para que aí então se possa favorecer um entendimento mais profundo acerca destas questões, favorecendo talvez um entendimento mais crítico da conjuntura e uma mudança de interesse. Além dessa discussão entre trabalhadores e trabalhadoras públicas, faz-se necessário travar uma discussão com toda a sociedade, o que certamente promoverá uma maior participação da mesma nas políticas e ações governamentais. E, em caráter mais estrutural, um incremento da educação pública e de base que permitirá uma visão mais critica da realidade. A epistemologia feminista tem muito a contribuir com as políticas públicas, desde o diagnóstico, apresentando a necessidade de implementação até o monitoramento e avaliação, a partir de análises complexas sobre as relações de gênero, a cultura, incluindo também leituras criticas e políticas acerca de indicadores, o que para Reis (2010), garante o fortalecimento da democracia, a supressão das desigualdades sociais, incentivando a participação social, favorecendo o exercício da cidadania, justiça social e, finalmente, o desenvolvimento humano, de fato. Tanto no que diz respeito à questão de raça/racismo, quanto à questão de gênero, mulheres negras e de outras “raças” e homens negros sofrem com uma discriminação e a exclusão histórica, com toda luta já sabida. É importante valorizar os avanços, os espaços garantidos, o aumento das discussões nessa área, porém ainda não foram 12 Anais do III Simpósio Gênero e Políticas Públicas, ISSN 2177-8248 Universidade Estadual de Londrina, 27 a 29 de maio de 2014 GT10 - Teorias Feministas – Coord. Márcio Ferreira de Souza e Silvana Mariano eliminadas as tensões, resistências à participação e a garantia de direitos dessa grande parcela da população. Portanto, o desafio é grande e, transversalizar é imperativo. Referências bibliográficas DELGADO, Josimara; TAVARES, Márcia Santana. (Trans)versalidades de gênero e geração nas políticas sociais: o lugar de mulheres e idosos. Caderno Espaço Feminino. Uberlândia-MG - v. 25, n. 2 - Jul./Dez. 2012, p. 79-97. Disponível em: http://www.seer.ufu.br/index.php/neguem/article/view/17694. Acesso em: 04 out 2013. FARAH, Martha. Políticas Públicas e Gênero. 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