O sacrifício do imperador AUTOR: Maria de Lourdes Bairão Sanchez Pedro de Alcântara, segundo e último monarca brasileiro, educado para ser imperador do Brasil, do mesmo modo que eram os monarcas das cortes europeias do século XIX. Homem curioso, com conhecimentos precisos sobre astronomia , artes e letras. Pedro de Alcântara era um Habsburgo perdido nos trópicos: 1,90, louro, olhos azuis, que, se pudesse, teria escolhido as áreas das ciências e das letras para desenvolver seus talentos. Precocemente teve que deixar de lado suas ilusões adolescentes para ser imperador do Brasil aos 14 anos. O processo de individuação por ele vivido foi efetivamente um opus contra naturan. Formado por valores que preconizavam primordialmente o desenvolvimento do corpo e da alma do homem teve muitas vezes que se indispor com interesses áulicos, abrindo um contínuo abismo entre Pedro de Alcântara e o Imperador. O processo de individuaçāo de Pedro de Alcântara consistiu num sacro ofício tendo como finalidade uma transformação maior, a transformação de uma coletividade, de uma nação. Carvalho, no seu livro, D.Pedro II, página 82, comenta: " Revelava com clareza o conflito entre duas identidades, as de d.Pedro II e de Pedro de Alcântara. Este tinha paixão pelos livros, leituras, conversas com sábios, considerava o ofício de imperador um destino ingrato, uma pesada cruz, os rituais do poder uma grande maçada. Era o Pedro que emergia com força assim que o monarca transpunha as fronteiras do país, transmutado num viajante comum. O outro, d. Pedro II, dizia que, uma vez que o destino lhe reservara o papel de imperador, ele o cumpriria rigorosamente de acordo com a constituição e as leis do país." Quantos de nossos pacientes não vivem conflitos semelhantes? Filhos de empresários com talentos artísticos que passam a vida se desenvolvendo num projeto que não é o seu e conseguindo em algum momento, articular um e outro ofício. Entretanto muitas vezes tais situações transformam-se na presença de fatos inesperados, como por exemplo uma morte repentina de alguém imprescindível, cuja substituição tem que ocorrer de imediato, frustrando planos até então cabíveis. Por outro lado, poetas como Carlos Drumond de Andrade e Fernando Pessoa, para garantir sua sobrevivência, passaram grande parte da vida como funcionários públicos: grandes artistas que tiveram também a experiência de homem comum, ampliando deste modo suas conexões com o ambiente circundante, engrandecendo-se como poetas. Em Símbolos da Transformação, § 657, Jung comenta. que , pelo sacrifício o homem se aproxima dos deuses, à medida em que renuncia a ligações infantis, criando uma nova condição como homem, ou será como herói? " Desta forma, todo aquele que renasce torna-se um herói, uma espécie de ser semidivino." § 49 Várias são as características de Pedro de Alcântara associadas ao arquétipo do herói e a principal delas ter se transformado em órfão da nação. A outra, uma realeza que vem de além mar e que tem que dialogar com representações locais. A rainha que vem do outro lado do oceano, da Sicília, embora manca, baixinha e deselegante, conhecia arqueologia como ninguém, e propiciou a D Pedro II, além dos filhos, uma confiança maior nas funções oficiais e na vida social. Entretanto, a verdadeira soror mystica do Imperador foi a Condessa Barral, tutora das Princesas Isabel e Leopoldina. A principal das musas inspiradoras de Pedro, figura de Ânima, com quem teve realmente uma experiência de coniunctio, destacada pelas palavras de José Murilo de Carvalho, " A paixão por Barral foi diferente, ultrapassou a atração física, foi eterna, sem deixar de ser chama." D. Pedro fascinou-se pela inteligência e cultura de Barral, ofuscando a imperatriz de cultura modesta e sem atrativos. Nas cartas trocadas pela vida e guardadas por Barral, sem o consentimento de D Pedro, esta relação adepto e soror aparece com grande clareza e sensibilidade. 1 "O mundo se origina quando o homem o descobre . E ele o descobre quando sacrifica sua condição de envolto pela mãe original, pelo estado inicial inconsciente."( vol V, § 652 ) Ou seja, quando a libido ligada à mãe é sacrificada e o homem se sente capaz de se expressar como um ser inteiro: foi o que ocorreu no encontro com Barral, livre dos salamaleques de seu papel de Imperador. Como grande introvertido que era elaborou e metabolizou seus conhecimentos mais sofisticados para se tornar um grande estadista ,que pôde ao mesmo tempo ,transformar o Brasil numa nação reconhecida e trazer ao Brasil os ares da mundialização, conduzindo a alma brasileira colonial em uma alma em busca de seu próprio centro, em busca de sua unidade. O sacrifício consistiu em entrar em contato consigo mesmo, olhar para dentro numa grande introspecção e mergulhar nos conteúdos vindos do inconsciente, para poder trazer à tona uma ação criativa. A reflexão mais abrangente que se pode fazer neste momento é que o envolvimento de Pedro com os objetivos e propostas do país poderiam tê-lo feito desenvolver uma Persona que não condiziria com suas necessidades mais profundas. Entretanto, soube, por exemplo, aproveitar as viagens que fazia ao exterior para encontrar seus amigos cientistas, artistas e filósofos. Estes encontros em além mar, também tiveram um caráter político pois revertiam em transformações tecnológicas e culturais para o país e eram custeados com empréstimos porque D.Pedro se recusava a usar dinheiro público. Experiência bastante inusitada se nos reportarmos aos dias atuais! Em 1876, na comemoração do centenário da Independência dos Estados Unidos, o Imperador além de participar de várias comemorações, como a visita à feira de Filadélfia , acabou por trazer a telefonia ao país. Pedro II esteve na exposição de Filadélfia na ocasião em que Alexander Graham Bell demonstrou a sua nova invenção: o telefone. Provavelmente, Pedro II foi o primeiro brasileiro a usar um telefone. Na ocasião, ele citou o clássico de William Shakespeare em Hamlet: Ser ou não ser, para em seguida exclamar: Esta coisa fala! Consta que teve relevante participação na divulgação e no posterior financiamento do invento. O telefone chega ao Brasil portanto um ano após a exposição da Filadélfia. Bell fabricou o primeiro aparelho especialmente para Pedro II, que o instalou no Palácio Imperial de São Cristóvão, na Quinta da Boa Vista, hoje Museu Nacional, no Rio. Em 13 de outubro de 1880, nasce a primeira companhia telefônica do País, a Telephone Company of Brazil. Em 1883, o Rio já tem cinco estações, com mil assinantes. Nessa época, inicia-se a concessão para outros Estados. Este aparelho telefônico que foi instalado no Paço de São Cristóvão (Quinta da Boa Vista), a mando de Dom Pedro II foi um dos primeiros aparelhos de telefone do mundo. O Brasil foi o segundo país do mundo a ter telefone, depois claro, dos Estados Unidos. Todas estas inovações trazidas ao Brasil, bem como as que aparecem a seguir, revelam o caráter hermético do nosso Imperador: um pai hermético mais do que um monarca impositivo. Pedro II financiou pesquisas de Louis Pasteur, muito antes que o cientista fosse reconhecido na França, tendo inclusive convidando-o para morar no Brasil. Apaixonado pela arqueologia, visitou as ruínas de Tróia e do Egito, tendo sido recebido e conduzido nessas ocasiões pelos próprios Schliemann e Mariette. Também foi amigo e protetor do famoso neurologista Jean Charcot, de quem foi grande amigo e paciente, e, a partir disto, influenciou o aparecimento da Neurologia no Brasil. Charcot, inclusive, foi quem assinou seu atestado de óbito. 2 O imperador ajudou na industrialização do país, sendo o responsável pela introdução do trem no Brasil, através da concessão dada ao Visconde de Mauá para a construção da primeira ferrovia brasileira, a Estrada de Ferro Dom Pedro II (que após a proclamação da república foi renomeada Estrada de Ferro Central do Brasil). Relato todas estas façanhas porque conhecia uma ou outra delas e à medida em que as fui descobrindo fui impelida a ser arauto delas em nosso meio. Continuando... Pioneiro das preocupações ecológicas, pode-se citar a ordem que deu em 1861, para o replantio com espécies nativas da Mata Atlântica da área da Floresta da Tijuca, devastada pelo cultivo de café. Fato pouco conhecido, financiou a primeira expedição brasileira à Antártida, em 1882, em que a corveta Parayba atingiu os arredores do estreito de Drake, com propósitos de coletar informações científicas, o que causou grande protesto da imprensa e de diversos políticos. Foi o fundador, mantenedor e incentivador de inúmeras instituições científicas no Brasil, entre as quais se destacam, além do já citado observatório astronômico, o Instituto Baiano de Agricultura, o Instituto Agronômico de Campinas, o Museu Paraense, o Instituto Histórico e Geográfico do Brasil, a Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional e a Escola de Minas de Ouro Preto. Critica-se o imperador pelo fato de seu apoio ter-se dado no plano do mecenato, tendo auxiliado essas instituições com seus recursos privados, sem procurar vinculá-las ao aparelho do Estado, o que fez com que perdessem a continuidade com a sua deposição e somente muito mais tarde tenham podido se recuperar. Não se deve esquecer, entretanto, que tais iniciativas não tinham um segmento social que o apoiasse, diferentemente do caso dos Estados Unidos e da Europa. As contínuas viagens de mula pelo Brasil do Rio de Janeiro para o Sul e depois para o norte transformou o país num país de dimensões continentais, fato presente na alma do brasileiro desde sempre. Viajou de SP ao RGS na primeira vez em que saiu da corte, com o objetivo de selar a paz com os líderes da Revolta Farroupilha.(1845-1846) Viajou durante um ano pela província do Rio de Janeiro , pelos engenhos de açúcar de Campos e pelas plantações de café do Vale do Paraíba. (1847-1848) Em 1859 partiu para o Norte, na época, da Bahia para cima: 4 meses de andança do Espírito Santo à Paraíba, tendo tido uma recepção triunfal em Salvador. " Livre das cerimonias oficiais, que mal suportava, o imperador dedicou-se ao que se tornou a marca registrada de todas as suas viagens pelo Brasil e no exterior, com o devido registro no diário: visitas a igrejas, conventos, hospitais, fábricas, cemitérios, escolas, prisões, quartéis. Em cada local, anotava as condições dos prédios, a situação do pessoal, a qualidade da administração, a eficiência do administrador." Murilo de Carvalho, pag141" Tantos talentos, tanta dedicação e um vazio , em geral, para valorizar a presença desta figura que foi tão constituinte para este enorme país, inclusive para que se tornasse uma república. D. Pedro dizia que quando os brasileiros não o quisessem mais como imperador, se sentiria muito honrado em ser professor. No Liber Primus , do Livro Vermelho, O caminho daquele que virá, vem um comentário ampliando esta ideias: " Ninguém pode nem deve impedir o sacrifício. Sacrifício não é destruição. Sacrifício é pedra angular do que virá." D Pedro II sacrificou seus projetos por uma meta maior: a constituição da nação brasileira, conectando- se também com seu próprio centro no ato de transformação. 3 A proposta de buscar na História e Antropologia a justificativa para conectar este vazio na alma brasileira apresenta-se aqui de modo sintético. Lilia Moritz Schwarcz, em As barbas do Imperador, relata um mito Jê-Timbira , mito de origem do homem branco, o mito de Aukê, filho de Amcukwei, que conta a história do homem branco. Amcukwei estava grávida e tomava banho com outras raparigas e ouviu um grito de preá e percebeu que o grito vinha de sua barriga e outras vezes ouviu também. E a criança perguntou à mãe se ela não estava cansada de carregá-lo ao que Amcukwei respondeu que sim. Logo vieram as dores do parto e ela foi para o mato e disse: "Se fores menino te matarei, se fores menina te criarei." Então sepultou seu filho ainda vivo. A avó veio e desenterrou a criança e depois de lavá-la trouxe para casa e como Amcukwei não quis amamentar a avó a substituiu. Decidiu criar a criança a pedido desta. Aukê tinha o dom de se transformar em muitos animais mas o tio materno resolveu matá-lo jogando-o num abismo mas, Aukê transformou-se em folha seca e desceu vagarosamente. Então abateu Aukê pelas costas , queimou-lhe o corpo e o grupo tribal abandonou a aldeia. Para sobreviver ao matricídio, Aukê transforma-se continuamente até que a mãe, pensando que ele finalmente havia morrido pediu que buscassem suas cinzas. Amcukwei descobre que Aukê tinha se transformado em homem branco, construíra uma casa grande e criava negros. Aukê chamou os enviados da mãe, mandou chamá-la para que morasse com ele tendo se tornado D. Pedro II, como o pai dos brancos. O mito trata de um ritual de passagem desde o nascimento biológico até o encontro das cinzas, da essência de Aukê , que a partir deste momento passa a ser visto como Imperador. Amplificando o mito a partir do Rosarium Philosophorum onde o alquimista diz: " não desprezes a cinza pois ela é o diadema de teu coração" e no comentário de Jung ( Vol XVI/ 2 § 495 a 497 ) , a cinza é o produto do morto destruído pelo calcinatio do corpo que contém o coração, a alma. Por outro lado o diadema é o adorno da cabeça do rei e expressão simbólica da coroação. O branco identificado com o poder: a minoria que domina a maioria negra, mestiça e índia . Mas que entretanto é discriminado em sua origem pelo próprio mito. O homem branco que nasceu para morrer mas que ao se transformar , a morte como símbolo de transformação, acaba se destacando entre os negros e índios. O branco que , no próprio mito, tem o poder de se transformar mais do que de dominar, integrando-se aos negros e índios. Como explica Lilia Moritz Schwarcz: " Imperador que empresta o nome à festa do Divino - na feliz tradução de José Bonifácio- , d. Pedro II compactuou com uma cultura que, ao mesmo tempo que se europeizou com sua presença, tornouse mestiça, negra e indígena no convívio, por certo desigual, de tantas culturas. Na dinâmica entre estas vingaram a reelaboração e a criação de novas imagens e rituais." Pag 13 Por aonde anda este pai mítico que instituiu nosso país? Ficou em nossos bancos escolares? Poderia A simplicidade do Imperador bem como de sua corte tê-los afastado deste caráter mítico? O último baile oferecido pelo imperador foi em 1852. Por aonde anda o estadista confundido com o pai que a partir de seus sofisticados conhecimentos expressou de modo criativo a arte de governar? Lembrando a frase do vol XIII, Estudos Alquímicos, § 25: "O indivíduo deve entregar-se ao caminho com toda sua energia, pois só mediante sua integridade poderá prosseguir e só ela será uma garantia de que tal caminho não se torne uma aventura absurda." Deste modo, Pedro II governou o Brasil , com grande energia, por 49 longos anos.... 4 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: Carvalho , JM-D Pedro II- Companhia das Letras 2007 Edinger, E.F.- Anatomia da Psique- cultrix,1995 Jung,C.G.- vol V- Símbolos da Transformação, vol V Jung,C.J.- vol IX/1- Arquétipos e Inconsciente Coletivo,2000 Jung,C.G.- vol X- Civilização em Transição-1993 Jung,C.G.- vol XIII- Estudos Alquímicos Jung,C.G.- vol. XVI/2 - Ab-reação, Análise dos Sonhos, Transferência-1987 Jung, C.G.- Livro Vermelho Schwartz, Lilia Moritz- As Barbas do Imperador- companhia das Letras- 2013 Archives of Neuropsychiatry 2001;59(2-A):295-299 CHARCOT AND BRAZIL Hélio A. Ghizoni Teive1, Sérgio M. Almeida2, Walter Oleschko Arruda1, Daniel S. Sá3, Lineu C. Werneck 5