BRASIL E MOÇAMBIQUE: ENCONTRO E DIALÉTICA DA FORMAÇÃO DE ALFABETIZADORES Maria Angélica Gomes Maia1 Vera Lúcia Catoto Dias2 Universidade do Vale do Paraíba - UNIVAP / SP Resumo O presente artigo trata de identificar elementos diferenciais desenvolvidos na formação de alfabetizadores, no ano de 2002, em Moçambique, Maputo, buscando dialogar sobre a função do formador, em sua dimensão político-histórica-cultural transpostas nas práticas de alfabetização e letramento, desenvolvidas, e que, dêem conta de efetivamente contribuírem na construção de uma alfabetização de jovens e adultos em contextos totalmente adversos em relação aos aspectos: financeiros, políticas educacionais específicas de alfabetização de jovens e adultos, metodologias de alfabetização e recursos humanos. Palavras-Chave: Formação de Alfabetizadores, metodologia de alfabetização de jovens e adultos, práticas pedagógicas. Abstract The present article proposes to identify differential elements developed in the first-grade teachers formation, in the year 2002 at Maputo, Mozambique. It is tried to be described the function of the teacher’s tutor, embedded in its political-historical-cultural dimension based on its developed literacy teaching techniques, that could or could not effectively take care of the daily practices to contribute in the construction for a consistent teenagers and adult literacy. The students, receivers of this literacy education, dwell in an adverse ambient with a total lack of policies for financial, literacy methodologies for teenagers and adults, and human resources needs. Key-words: Literacy tutors formation, methodology for literacy formation for teenagers and adults, pedagogic practices. 1 Pedagoga; Psicopedagoga; Arte-educadora; Mestre em Semiótica: Tecnologias da Informação e Educação pela UMC; Pesquisadora do Núcleo de Formação de Educadores: IP&D-UNIVAP; Docente de PósGraduação: Gestão Escolar; Docente de Graduação: Curso Normal Superior e Pedagogia; Formadora do Programa Alfabetização Solidária no Brasil e na África. 2 Pedagoga; Psicopedagoga; Mestre em Educação pela UNISAL; Mestre em Educação pela UMESP; Pesquisadora do Núcleo de Formação de Educadores: IP&D-UNIVAP; Docente de Pós-Graduação: Gestão Escolar; Docente de Graduação: Curso Normal Superior e Pedagogia; Formadora do Programa Alfabetização Solidária no Brasil e na África. Introdução A Universidade do Vale do Paraíba (UNIVAP) no setor de Ensino Superior, em consonância com a atual Lei de Diretrizes e Bases da Educação no seu artigo 43 sobre as finalidades deste setor da educação estabelece que o projeto político pedagógico deste órgão de ensino atenda três áreas: ensino, pesquisa e extensão. No seu projeto de extensão tendo como ponto relevante à pesquisa na área de formação de professores tornou-se parceira do Programa de Alfabetização Solidária que foi criado pelo Conselho da Comunidade Solidária em janeiro de 1997 com o objetivo de reduzir os índices de analfabetismo no País. Para ser um ato de conhecimento, o processo de alfabetização de adultos deve, de um lado, necessariamente, envolver as massas populares num esforço de mobilização e organização em que elas se apropriam, como sujeitos, ao lado dos educadores, do próprio processo. De outro, deve engajá-las na problematização permanente de sua realidade ou de sua prática nesta. (Freire, 1985). Em 1998, foi criada a Associação de Apoio ao Programa Alfabetização Solidária, uma organização não-governamental, sem fins lucrativos e de utilidade pública, com estatuto próprio, que passou a ser responsável pela execução do projeto. Todo o trabalho é realizado com bases em parcerias, mantidas com o Ministério da Educação (MEC), empresas, universidades, municípios e pessoas físicas. Diante dos resultados alcançados com o Programa no Brasil, em 2001 ele atinge níveis internacionais e sendo assim os países africanos que falam a língua portuguesa, dentre eles Moçambique, e que também enfrentam as questões do analfabetismo entre jovens e adultos firmaram com o governo brasileiro uma parceria para que fossem desenvolvidas ações de formação de alfabetizadores de adultos. O presente trabalho é resultado do curso de formação inicial de alfabetizadores de jovens e adultos realizado em Maputo, Moçambique no período de setembro/outubro de 2001, onde as formadoras brasileiras por meio da metodologia do pedagogo e pensador Celestin Freinet utilizaram a aula passeio sobre pontos e marcos históricos da cidade, tendo como objetivo a construção de um olhar sensível de descoberta sobre a cidade e a cultura 2 moçambicana, para levantamento posterior de temas e conseqüente desenvolvimento de estratégias curriculares. Contexto sócio-político-cultural Para a melhor compreensão deste trabalho é importante conhecer alguns dados sobre o país onde se desenvolveram as atividades. Moçambique, cuja capital é Maputo, está situado no sudeste do continente africano, é constituído por 10 províncias (estados) e ocupa uma área de cerca de 779.000 km. O parlamentarismo é o sistema de governo e a moeda é o Metical (HEDGES, 1999). Com uma população de maioria negra, Moçambique é um país multiétnico, multilíngue e multicultural, cuja maioria da população é de origem Bantu, mas encontramse também europeus e asiáticos. O mosaico lingüístico existente no país tem contribuído para manter a exclusão e as desigualdades sociais, considerando que apenas 6,4 milhões dos 16.1 milhões de moçambicanos sabem ler e escrever na língua oficial do país que é o português (HEDGES, 1999). Os resultados das condições educacionais dos moçambicanos, de acordo com o Relatório Nacional de Desenvolvimento Humano, indicam que, apesar do aumento significativo do Índice de Desenvolvimento, 3% em relação ao ano de 1998, 65% da população é iletrada. O governo de Moçambique tem em elaboração um plano estratégico de educação, que tem como meta alfabetizar (01) um milhão de pessoas entre 2001 e 2005 (INSTITUTO NACIONAL DE EDUCAÇÃO - INDE, 1999). Saída de uma guerra civil que durou 16 anos, Moçambique passou por 477 anos de domínio português, experimentou o regime comunista e atualmente tem o parlamentarismo como sistema de governo. Dentre as religiões, a católica é que possui mais adeptos (23,8%), seguindo-se as pessoas sem religião (23,1%), os mulçumanos (17,8%) e os praticantes da religião sião/zione (17,5%) (INDE, 1999). Considerado o quarto país mais populoso entre quatorze (14) dos que integram a comunidade de Desenvolvimento da África Austral, Moçambique ocupa o último lugar no Índice de Desenvolvimento Humano, IDH, na comunidade africana, como conseqüência 3 dos baixos indicadores sociais e humanos, tendo uma renda por pessoa por dia de meio dólar americano. Esses dados determinam uma estimativa de vida para os moçambicanos de pouco mais de 42 anos (NAÇÕES UNIDAS, 1999). A cidade de Maputo, capital do país é a única com um IDH considerado de categoria média, como a do Egito e da Argélia, por exemplo. (NAÇÕES UNIDAS, 1999). Quanto aos indicadores de saúde, a AIDS é o que mais preocupa a população pelo crescimento de casos a cada ano, além da mortalidade infantil, juvenil e materna. A análise da situação histórica, educacional e sócio-econômica de Moçambique apresentada aqui numa breve síntese aponta para a existência de um número muito grande de cidadãos que não sabem a língua portuguesa, língua oficial do país, sendo este considerado um dos fatores que contribuem para manter a exclusão e as desigualdades sociais no país. Sabe-se que os conhecimentos e tradições construídos por uma cultura oral são importantes, no entanto o domínio da escrita tornou-se um bem necessário à interferência e uma exigência dos iletrados que, de acordo com o Relatório de Desenvolvimento Humano. Os moçambicanos buscam cada vez mais esse domínio, por razões das mais variadas, seja para ascensão social, para ter acesso às informações, para conseguir emprego, para escrever cartas, ler instruções, dentre outras. Para atender a esse anseio o Ministério da Educação de Moçambique/Direção Nacional de Alfabetização e Educação de Adultos, solicitou ao Programa Alfabetização Solidária o apoio para a implantação do Programa Piloto Nacional de Alfabetização e à Estrutura Política Nacional de Educação de Jovens e Adultos em Moçambique no sentido de diminuir as taxas de analfabetismo no país. É ainda parte da preocupação do programa a intenção de estimular com ações significativas na área de Educação de Jovens e Adultos e afins, projetos de melhoria das condições de vida que desencadeiem o desenvolvimento sustentável das comunidades. Maputo por ser capital do país tem atraído moçambicanos de várias províncias, fazendo com que uma de suas características seja um mosaico cultural e lingüístico. Devido à luta armada o país sofreu fortemente com a destruição da malha rodoviária, impedindo 4 que muitas regiões sejam alcançadas por terra, dificultando também a circulação da produção agrícola. A prática de guerra empregada pela implantação de minas terrestres fez que mesmo com o tratado de paz se inviabilizasse a permanência de comunidades rurais em seu local de origem. Numa tentativa de preservar a própria vida famílias inteiras concentraram-se na periferia da cidade. (Dias, 2006) Observa-se também que a cidade apresenta características comuns dos grandes centros urbanos tais como: falta de moradia, desemprego, coleta de lixo deficiente, abastecimento precário, falta de saneamento básico para todos e alto índice de analfabetismo entre a população jovem e adulta. (INDE, 1999). Basicamente a economia da província é constituída por indústrias nacionais e multinacionais com grande ênfase no comércio. Contexto educacional da capacitação A primeira capacitação inicial de alfabetizadores de jovens e adultos realizou-se no Centro de Formação de Professores da Machava, no Distrito de Maputo, sendo representado por profissionais das províncias de: Cabo Delgado, Sofala, Manica, Nampula, Gaza e Maputo. Num total de 68 moçambicanos, sendo eles: alfabetizadores, técnicos pedagógicos do Ministério de Educação e representantes de Organizações Não Governamentais. Os resultados de pesquisa exploratória desenvolvida nos primeiros dias da capacitação identificaram como sendo as principais expectativas dos alfabetizadores em relação á capacitação os seguintes indicadores. Tabela 1 – Indicadores de expectativa Alfabetizadores Indicadores Percentuais 32 Profissionalização 47 18 Trabalho remuneração 27 15 Aquisição de conhecimento de EJA 22 03 Diminuir o analfabetismo no país 4 Total: 68 100% Fonte: pesquisa feita pelas autoras, 2001. 5 Os indicadores apresentados na tabela 1 orientaram como necessidade dos alfabetizadores as questões relacionadas a empregabilidade, quando apontaram a profissionalização como forma de inserir-se no mercado de trabalho, quer seja via trabalho remunerado, quer seja pela aquisição de conhecimento específico, no caso o relativo a alfabetização de jovens e adultos. O processo de capacitação desses alunos-alfabetizadores teve como objetivo central à inserção em metodologias possíveis de alfabetização de jovens e adultos em contextos onde, a precariedade de recursos, bibliográficos, curriculares, metodológicos, didáticos, materiais, tanto para o alfabetizador como para o alfabetizando são escassos e quando existente sua elaboração descontextualizada. Estas não contemplam a diversidade cultural e lingüística do país. A questão do processo ensino e aprendizagem, que na ausência de material didático próprio, acaba restrita a oralidade, pois a cultura é oral e não gráfica. Um dos objetivos centrais da capacitação, via o olhar das formadoras brasileiras, foi o resgate da identidade moçambicana, frente a efervescência e recente construção da história e memória do país, uma vez que anteriormente muitos dos alfabetizadores fizeram parte da luta armada, na condição de cidadãos revolucionários lutando pela construção efetiva da Nação. Agora nesse momento de capacitação assumindo em tempos de paz a identidade do alfabetizador, que na continuidade da consolidação e efetivação do Estado-Nação, luta, questiona, instiga, fomenta, se expõe, ousa, aprende, ensina, compartilha, ressignifa, os conhecimentos, a História, a memória, a identidade, a cultura, a beleza da diversidade cultural e lingüística, como elemento de resistência, buscando construir a história pelo maior legado que é a educação. Educação, bem cultural tão importante, que ao mesmo tempo pode ser elemento de inclusão e/ou exclusão, por isso tão sonegada em países miseráveis, ainda tão dependentes das políticas internacionais, sob o direcionamento das agências de financiamento. Como se fosse um bem a ser agraciado e não elemento de reivindicação e conquista. Como formadoras concordamos com as orientações de mestre Paulo Freire. (1985) onde de uma maneira sensível e poética registrou ao chegar as terras africanas à sensação 6 que envolveu todo seu ser, a sensação de regresso e não de chegada. Nós enquanto formadoras brasileiras, não iniciávamos, ali naquele momento de capacitação, nenhuma prática pedagógica efêmera, milagrosa, descontextualizada, mas sim dávamos continuidade as práticas pedagógicas dos mestres brasileiros que como militantes políticos e pedagógicos iniciaram muito antes de nós, presentes nas práticas pedagógicas as orientações de mestres como: Álvaro Veira Pinto e Paulo Freire. Nos identificávamos muito com aquele contexto, adversidades, lutas, dificuldades técnico-pedagógicas, uma vez que egressas como alunas e educadoras gestadas, no Brasil pela escola pública, que a cada década se percebe alijada da descontinuidade das políticas públicas. Presente na prática pedagógica a construção de uma escola pública de qualidade, democrática, inclusiva, centrada nas classes populares e que valorize a linguagem e a cultura de seus protagonistas e não o contrário. A nossa atuação pautou-se no respeito em não nos colocarmos como elemento estrangeiro, mas sim como formadoras que reconhecem seus pares, independente da cultura, da língua, das condições histórico-politico-sociais e que assume e identifica nessa relação a condição de parceria, onde a soma resulta, ainda que de forma lenta a real possibilidade de superação dos desafios: a construção de uma Nação, tendo como uma dos meios a educação da maioria da população. A formação técnico-pedagógica centrada em especialistas moçambicanos, altamente titulados, exemplo vivenciado durante a capacitação onde parte do agrupamento constituído por uma pesquisadora moçambicana com titulação em nível de mestrado, na Inglaterra, que desenvolvia um trabalho voltado à alfabetização de jovens e adultos, nas línguas moçambicanas, porém por questões políticas ideológicas, não fazia parte de nenhum órgão governamental. Fato que efetiva a realidade de países em desenvolvimento que enfrentam escassez de recursos humanos e ao mesmo tempo só validam conhecimentos construídos pelo estrangeiro, mas pela descentralização, pois na maioria das vezes alocados em departamento desvinculados do MINED, desenvolvendo ações paralelas e repetitivas. A capacitação de alfabetizadores visou promoveu todas as dimensões da organização do fazer pedagógico, que inclui a escola e os conteúdos curriculares, e que 7 contribui na formação de alfabetizador crítico e reflexivo, capaz de resolver o lado técnico de ensinar e ter sensibilidade para as avaliações que sejam de natureza subjetiva, humana. Para isso, ele terá que vivenciar práticas pedagógicas que promovam a sua própria subjetividade, tendo nisso um propósito particular, mas com total envolvimento voltado para o coletivo. Outro ponto importante no trabalho foi à ênfase dada na relação professor-aluno que objetivou o estabelecimento de uma relação democrática tendo como perspectiva a Educação Inclusiva. A concepção metodológica que embasou a capacitação partiu do pressuposto de que todos ao se inserirem no processo educacional, sejam alfabetizadores ou alfabetizandos, trazem consigo conhecimentos construídos através de sua história de vida. Partir destes conhecimentos adquiridos é condição primordial para problematizar e refletir as questões centrais da alfabetização de jovens e adultos, porque segundo Paulo Freire “o fundamental é fazer história e por ela serem feitos e refeitos e não ler histórias alienantes” (Freire, 1985, p.33). Também foi valorizada a cultura local transformando-se em conteúdos a serem estudados e ressignificados. A inserção da competência oral como característica do povo moçambicano foi ponto relevante. A consideração do mosaico lingüístico do país foi enfatizada e identificou-se a língua local e a oralidade como ponto de partida no processo de alfabetização de jovens e adultos. Ao se realizar uma experiência de formação desta amplitude, considerando as características específicas do contexto moçambicano, uma das questões que mais inquietava era em relação à metodologia a ser desenvolvida ao longo do curso, atribuindo-lhe ênfase onde pudesse de fato ser vivenciada, refletida e que fosse garantida a transposição didática para o contexto muitas vezes inóspito da realidade cruel em termos de recursos matérias na qual muitos destes alfabetizadores atuariam, pois a possibilidade da sala de aula existe onde quer que existam alunos e professores, como por exemplo, embaixo de árvores. Diante deste contexto resolveu-se utilizar a estratégia da aula passeio, proposta do educador Célestein Freinet (1896-1966) uma vez que muitos dos alfabetizadores estavam vindo para 8 a capital pela primeira vez... “como viajantes de seu próprio país seus olhares estavam ávidos desta história e da beleza quase angelical deste país chamado Moçambique”. A unidade dialética teoria e prática esteve permeando todo o tempo à formação de alfabetizadores. Para que a vivência da aula passeio fosse possível dois ônibus foram alugados, máquinas fotográficas foram disponibilizadas a dois alunos, um em cada ônibus, assim como dois guias culturais foram selecionados, para que desempenhassem o papel de guia histórico-cultural da cidade por estar familiarizado com o contexto histórico, sendo que o roteiro cultural fora feito pela equipe de formadores, bem como um diário de bordo para “repousar” e construir o “olhar viajante”. A viagem transcorreu pelos contextos explícitos e implícitos da cidade de Maputo, o que permitiu ir construindo e buscando o engajamento de forma consciente e crítica dos registros históricos explícitos e implícitos nas paisagens urbanas, arquitetura, fauna, flora, artesanato local, moda africana, o legado artístico, objetos e marcos identificados. Presentificávamos e incorporávamos novamente o pensamento freireano: Nestes caminhos de ida e volta é que se faz viável aos oprimidos assumir-se como “classe para si”, esperançosamente utópicos. (...) Voltando à alfabetização, insistiremos em reafirmar que jamais tomamos a palavra como algo estático ou desconectado da realidade concreta dos alfabetizando, mas como uma dimensão de sua linguagempensamento em torno de seu mundo. (Freire, 2001, p. 73). Passeou-se pelos monumentos históricos, redescobrindo a arte popular, brincadeiras de rua, as danças, a música, traduzida em cantos. O Oceano Índico capturado pelo olhar viajante, saído magicamente dos mapas mundi, onde havia permanecido durante muito tempo na memória do aluno de geografia. Observando as questões sociais que se apresentavam sem nenhuma necessidade de estudo ou questionamento, tais como, saneamento básico, o lixo que é jogado na rua, o aparthaid social e as questões referentes à habitação, a precária condição de saúde da população, as condições sociais e econômicas das pessoas que habitavam a periferia da capital, na sua maioria vindas de diferentes regiões do país em busca de melhores condições de vida. Os registros culturais e artísticos dos batiques como forma de denúncia social, uma entre tantas formas de expressão do povo 9 moçambicano. Tudo isso num mix de beleza e sofrimento inenarráveis. Ao longo do percurso foi-se “lendo” aquela paisagem tão única e foi procurado tirar os elementos que mais tarde se tornariam o tema gerador. Entrelaçando metodologias: Freinet e Freire No dia seguinte, quando os alunos chegaram para a continuação do curso encontraram afixadas nas paredes, do prédio do Centro de Formação de Professores da Machava, as fotografias tiradas por eles, como resultado da aula passeio, foi feita à roda de apreciação e em seguida escolheu-se, após longo debate e reflexão, qual seria o tema norteador do trabalho pedagógico. O tema mais instigante para o grupo foi o “LIXO”. Procurou-se nas diversas áreas do conhecimento criar estratégias que respondessem às inquietações do grupo frente ao tema. Assim, foram criadas as oficinas, enfocando a áreas de Línguas Moçambicanas (Cantos e Histórias Orais), Língua Portuguesa (Linguagem Oral e Escrita), Matemática, História, Geografia, Ciências Naturais e Sociais, Arte que circundassem o tema em questão. Foi uma agradável surpresa verificar a qualidade dos materiais elaborados, ressignificados e construídos artesanalmente, uma vez que considerado os lugares inóspitos de atuação (entenda-se a sala de aula embaixo de sombras de mangueiras, onde as capulanas3 tornavam-se carteiras) as intervenções e a metodologia, nas qual estes “alunosalfabetizadores”, muitos sem nenhuma experiência formal profissional iam tecendo e incorporando de forma própria e autêntica conceitos tais como: • Partir de aprendizagens do ambiente real no qual o alfabetizando está inserido; • O nível de participação e criatividade através da oralidade; • A seriedade com que construíram seu percurso como alfabetizadores ávidos de teoria e prática; • A pertinência entre as condições ideais para construção de uma intervenção pedagógica e a realidade. 3 Panos africanos, peça do vestuário moçambicano, as mulheres as utilizam como saias. 10 Estas áreas do conhecimento foram trabalhadas de forma sensível, utilizando-se o resgate da cultura e da língua materna, pois como educadoras-pesquisadoras acreditamos que nenhuma prática educativa pode ser imposta, o que poderia permitir o enfraquecimento ou descaracterização dos aspectos socialmente construídos ao longo da formação das comunidades. Uma das características do povo moçambicano é a expressão artística, é como se possuíssem uma natureza marcadamente voltada para a arte na sua expressão mais forte, a dança, a expressão musical, a voz, o timbre próprio que flui de forma bela e magistral em seus cantos, a sua maneira própria de criarem coreografias para suas músicas, a energia forte e soberba que esbanjam ao dançarem o Mapico4, de criarem formas incomparáveis para dimensionar o que a alma e o belo despertam. Sua arte estampada nos batiques e nas capulanas, uma forma de escritura do que são hoje, ontem e, como serão no futuro, a tradução da mistura das cores que saindo dos tons ocres, descobrem o azul, influência de outros olhares navegantes, que todos os dias pisam o solo africano em busca de suas belezas naturais. Muitos destes alunos vivem em contextos sociais extremamente precários, resta-lhes como forma de lazer a música, os cantos, as danças populares, o brincar, as brincadeiras de rua, os jogos, as festas ancestrais cultivadas até hoje, preservadas pelas gerações, via cultura oral pelas línguas moçambicanas, transmissão feita pelos mais velhos aos mais jovens. Os sentidos do Programa Alfabetização Solidária no Brasil Os resultados de atendimento do programa forma disponibilizados pelo Censo Escolar 2002, divulgados pelo INEP (Instituto nacional de estudos e Pesquisa educacionais), entre 2000 e 2002 foi constatado que houve um aumento de 254,75% nas matrículas de EJA, nos municípios atendidos pelo Programa Alfabetização Solidária. Em contrapartida, no mesmo período, o percentual no restante do Brasil ficou em 41,25%. (Dias, 2006, p.45) A tabela a seguir elaborada segundo dados disponibilizados pelo Programa 4 Dança religiosa cultural tipicamente masculino, corpo ornamentado e utilização de máscara, pertencente a cultura maconde. 11 Alfabetização Solidária, para o ano de 2005, confirmou os objetivos alcançados ao longo dos oito anos de atuação no Brasil. (Dias, 2006, p. 45). Tabela 2 – Dados gerais de atendimento do programa no Brasil 4,9 milhões Número de alunos atendidos 212 Instituições de Ensino Superior Parceiras 166 Empresas Parceiras 2066 Municípios Parceiros Fonte http:/www.alfabetizacao.br Os sentidos do Programa Alfabetização Solidária em Moçambique A implantação do Programa em Moçambique envolveu duas fases, nas quais foram capacitados alfabetizadores de jovens e adultos e salas de alfabetização foram implantadas, nos municípios, das cinco províncias, Cabo Delgado, Sofala, Manica, Gaza e Maputo, no país. As ações desenvolvidas durante o período 2001-2003 envolveram profissionais das diversas universidades parceiras do programa, cujo desempenho e profissionalismo garantiram o cumprimento das metas presentes no acordo firmado entre os governos do Brasil e de Moçambique. Os resultados apresentados na tabela a seguir expressam as práticas propostas descritas pelo Programa. Tabela 3 – Dados do Programa em Moçambique Fase Alfabetizadores(as) Salas de aula Alfabetizandos(as) Fase I 40 40 1207 Fase II 200 200 5906 Total 240 240 7113 Fonte: (Dias, 2006) O resultado da tabela acima torna possível identificar o alcance da atuação do PASMO em curto espaço de tempo, uma vez que a implantação de programas que culminaram em campanhas de alfabetização, não é recente, antecedidas por outras 12 propostas estrangeiras naquele país. Talvez a nossa atuação tenha sido acrescida de um diferencial, pois convivemos e atuamos na superação dos mesmos problemas de analfabetismo de jovens e adultos, sentimos na pele as dificuldades da falta de material didático, descaracterizado, provenientes de propostas descontextualizadas, distantes da cultura e história da população. Procede ainda analisar a qualidade dessa formação pensando criticamente em médio e longo espaço de tempo, tendo como objetivo a continuidade do Brasil, representado pelo Programa, na parceria entre profissionais de educação brasileiros e moçambicanos. À guisa de algumas ponderações O curso não teve como intenção apresentar receitas metodológicas prontas e acabadas, como tantas vezes ocorre em países onde os índices alarmantes de analfabetismo, encanta Nações poderosas, detentores de saberes historicamente construídos e que por diversas vezes, são chamadas a intervirem e solucionarem, sem sucesso, os problemas educacionais que afetam os países que beiram a condição de pobreza absoluta, pertencente à África e a América Latina. A proposta teve como ponto de partida a reflexão do papel da educação e da atuação do formador, como profissional crítico, reflexivo, sensível e consciente do seu compromisso político, social e cultural. É que como formadoras brasileiras pertencentes a contextos históricos similares, também identificamos não ser ainda possível reverter os altos índices de analfabetismo em nosso país, mas na atuação constante, frente às realidades nas quais atuamos têm sido possível, por meio de propostas de alfabetização de jovens e adultos, minimizar e interferir de forma positiva, inclusiva e efetiva em realidades locais. Assim sendo nesse contato direto com o outro a construção metodológica foi pautada pela reflexão, análise e identificação de situações e conteúdos significativos, criteriosamente e cuidadosamente selecionados, tecidos e aliados que unidos puderam ser efetivamente aplicados e desenvolvidos nas práticas de alfabetização dos alfabetizadores moçambicanos, sendo adequados em sala de aula, sem esgotar as questões relacionadas ao tema, mas sim viabilizar a reflexão do processo de alfabetização para que os alfabetizadores 13 de forma criativa pudessem construir a sua prática pedagógica, uma vez que esta construção exige um trabalho coletivo e que parta da realidade na qual o alfabetizando está inserido. O refletir sobre a construção da prática de sala de aula a ser desenvolvida teve como ponto de partida a realidade de cada um, a oralidade representada pela língua materna, a cultura preservada como ato de resistência pelas gerações mais velhas, a história de vida de cada um, como parte da história da comunidade, visualizada e identificada na história da Nação moçambicana que se constrói, pois a independência faz pouco tempo foi conquistada. Identidade, Independência, construção da Nação, sujeitos em busca constante de significado, partes e co-participes dessa construção. Ao longo da capacitação foi-se reafirmando e construindo saberes metodológicos e educacionais que partiram da cultura deste povo que, embora com um longo e árduo caminho a percorrer, na reconstrução de aspectos sociais básicos que validam o direito a cidadania, tais como, educação, saúde, moradia, vêem na educação, entendida aqui a educação como um processo amplo de aumento de participação crítica e ativa na sociedade, um dos instrumentos na reconstrução do país. Nesse momento as palavras de (Caparelli, 2003, p. 23) expressam os sentidos da formação de alfabetizadores em Moçambique, a força tamanha do encontro entre educadores, do Brasil e de Moçambique, encontro permeado pela palavra compartilhada entre ambos. Na minha pele Ninguém vê O que vejo Faz O que faço Sente O que sinto Porque eu Sou eu De pedaço Em pedaço. Ninguém veste A pele que visto Por isso Eu sou eu E apenas eu Desde que existo. 14 Referências CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO/CÂMARA DE EDUCAÇÃO BÁSICA. 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