BRASIL E MOÇAMBIQUE: ENCONTRO E DIALÉTICA DA FORMAÇÃO DE
ALFABETIZADORES
Maria Angélica Gomes Maia1
Vera Lúcia Catoto Dias2
Universidade do Vale do Paraíba - UNIVAP / SP
Resumo
O presente artigo trata de identificar elementos diferenciais desenvolvidos na formação de
alfabetizadores, no ano de 2002, em Moçambique, Maputo, buscando dialogar sobre a
função do formador, em sua dimensão político-histórica-cultural transpostas nas práticas de
alfabetização e letramento, desenvolvidas, e que, dêem conta de efetivamente contribuírem
na construção de uma alfabetização de jovens e adultos em contextos totalmente adversos
em relação aos aspectos: financeiros, políticas educacionais específicas de alfabetização de
jovens e adultos, metodologias de alfabetização e recursos humanos.
Palavras-Chave: Formação de Alfabetizadores, metodologia de alfabetização de jovens e
adultos, práticas pedagógicas.
Abstract
The present article proposes to identify differential elements developed in the first-grade
teachers formation, in the year 2002 at Maputo, Mozambique. It is tried to be described the
function of the teacher’s tutor, embedded in its political-historical-cultural dimension based
on its developed literacy teaching techniques, that could or could not effectively take care of
the daily practices to contribute in the construction for a consistent teenagers and adult
literacy. The students, receivers of this literacy education, dwell in an adverse ambient with
a total lack of policies for financial, literacy methodologies for teenagers and adults, and
human resources needs.
Key-words: Literacy tutors formation, methodology for literacy formation for teenagers
and adults, pedagogic practices.
1
Pedagoga; Psicopedagoga; Arte-educadora; Mestre em Semiótica: Tecnologias da Informação e
Educação pela UMC; Pesquisadora do Núcleo de Formação de Educadores: IP&D-UNIVAP; Docente de PósGraduação: Gestão Escolar; Docente de Graduação: Curso Normal Superior e Pedagogia; Formadora do
Programa Alfabetização Solidária no Brasil e na África.
2
Pedagoga; Psicopedagoga; Mestre em Educação pela UNISAL; Mestre em Educação pela UMESP;
Pesquisadora do Núcleo de Formação de Educadores: IP&D-UNIVAP; Docente de Pós-Graduação: Gestão
Escolar; Docente de Graduação: Curso Normal Superior e Pedagogia; Formadora do Programa Alfabetização
Solidária no Brasil e na África.
Introdução
A Universidade do Vale do Paraíba (UNIVAP) no setor de Ensino Superior, em
consonância com a atual Lei de Diretrizes e Bases da Educação no seu artigo 43 sobre as
finalidades deste setor da educação estabelece que o projeto político pedagógico deste órgão
de ensino atenda três áreas: ensino, pesquisa e extensão.
No seu projeto de extensão tendo como ponto relevante à pesquisa na área de
formação de professores tornou-se parceira do Programa de Alfabetização Solidária que foi
criado pelo Conselho da Comunidade Solidária em janeiro de 1997 com o objetivo de
reduzir os índices de analfabetismo no País.
Para ser um ato de conhecimento, o processo de alfabetização
de adultos deve, de um lado, necessariamente, envolver as
massas populares num esforço de mobilização e organização
em que elas se apropriam, como sujeitos, ao lado dos
educadores, do próprio processo. De outro, deve engajá-las na
problematização permanente de sua realidade ou de sua
prática nesta. (Freire, 1985).
Em 1998, foi criada a Associação de Apoio ao Programa Alfabetização Solidária,
uma organização não-governamental, sem fins lucrativos e de utilidade pública, com
estatuto próprio, que passou a ser responsável pela execução do projeto. Todo o trabalho é
realizado com bases em parcerias, mantidas com o Ministério da Educação (MEC),
empresas, universidades, municípios e pessoas físicas.
Diante dos resultados alcançados com o Programa no Brasil, em 2001 ele atinge
níveis internacionais e sendo assim os países africanos que falam a língua portuguesa,
dentre eles Moçambique, e que também enfrentam as questões do analfabetismo entre
jovens e adultos firmaram com o governo brasileiro uma parceria para que fossem
desenvolvidas ações de formação de alfabetizadores de adultos.
O presente trabalho é resultado do curso de formação inicial de alfabetizadores de
jovens e adultos realizado em Maputo, Moçambique no período de setembro/outubro de
2001, onde as formadoras brasileiras por meio da metodologia do pedagogo e pensador
Celestin Freinet utilizaram a aula passeio sobre pontos e marcos históricos da cidade, tendo
como objetivo a construção de um olhar sensível de descoberta sobre a cidade e a cultura
2
moçambicana, para levantamento posterior de temas e conseqüente desenvolvimento de
estratégias curriculares.
Contexto sócio-político-cultural
Para a melhor compreensão deste trabalho é importante conhecer alguns dados sobre
o país onde se desenvolveram as atividades.
Moçambique, cuja capital é Maputo, está situado no sudeste do continente africano,
é constituído por 10 províncias (estados) e ocupa uma área de cerca de 779.000 km. O
parlamentarismo é o sistema de governo e a moeda é o Metical (HEDGES, 1999).
Com uma população de maioria negra, Moçambique é um país multiétnico,
multilíngue e multicultural, cuja maioria da população é de origem Bantu, mas encontramse também europeus e asiáticos. O mosaico lingüístico existente no país tem contribuído
para manter a exclusão e as desigualdades sociais, considerando que apenas 6,4 milhões dos
16.1 milhões de moçambicanos sabem ler e escrever na língua oficial do país que é o
português (HEDGES, 1999).
Os resultados das condições educacionais dos moçambicanos, de acordo com o
Relatório Nacional de Desenvolvimento Humano, indicam que, apesar do aumento
significativo do Índice de Desenvolvimento, 3% em relação ao ano de 1998, 65% da
população é iletrada. O governo de Moçambique tem em elaboração um plano estratégico
de educação, que tem como meta alfabetizar (01) um milhão de pessoas entre 2001 e 2005
(INSTITUTO NACIONAL DE EDUCAÇÃO - INDE, 1999).
Saída de uma guerra civil que durou 16 anos, Moçambique passou por 477 anos de
domínio português, experimentou o regime comunista e atualmente tem o parlamentarismo
como sistema de governo.
Dentre as religiões, a católica é que possui mais adeptos (23,8%), seguindo-se as
pessoas sem religião (23,1%), os mulçumanos (17,8%) e os praticantes da religião
sião/zione (17,5%) (INDE, 1999).
Considerado o quarto país mais populoso entre quatorze (14) dos que integram a
comunidade de Desenvolvimento da África Austral, Moçambique ocupa o último lugar no
Índice de Desenvolvimento Humano, IDH, na comunidade africana, como conseqüência
3
dos baixos indicadores sociais e humanos, tendo uma renda por pessoa por dia de meio
dólar americano. Esses dados determinam uma estimativa de vida para os moçambicanos de
pouco mais de 42 anos (NAÇÕES UNIDAS, 1999). A cidade de Maputo, capital do país é a
única com um IDH considerado de categoria média, como a do Egito e da Argélia, por
exemplo. (NAÇÕES UNIDAS, 1999).
Quanto aos indicadores de saúde, a AIDS é o que mais preocupa a população pelo
crescimento de casos a cada ano, além da mortalidade infantil, juvenil e materna.
A análise da situação histórica, educacional e sócio-econômica de Moçambique
apresentada aqui numa breve síntese aponta para a existência de um número muito grande
de cidadãos que não sabem a língua portuguesa, língua oficial do país, sendo este
considerado um dos fatores que contribuem para manter a exclusão e as desigualdades
sociais no país.
Sabe-se que os conhecimentos e tradições construídos por uma cultura oral são
importantes, no entanto o domínio da escrita tornou-se um bem necessário à interferência e
uma exigência dos iletrados que, de acordo com o Relatório de Desenvolvimento Humano.
Os moçambicanos buscam cada vez mais esse domínio, por razões das mais variadas, seja
para ascensão social, para ter acesso às informações, para conseguir emprego, para escrever
cartas, ler instruções, dentre outras.
Para atender a esse anseio o Ministério da Educação de Moçambique/Direção
Nacional de Alfabetização e Educação de Adultos, solicitou ao Programa Alfabetização
Solidária o apoio para a implantação do Programa Piloto Nacional de Alfabetização e à
Estrutura Política Nacional de Educação de Jovens e Adultos em Moçambique no sentido
de diminuir as taxas de analfabetismo no país.
É ainda parte da preocupação do programa a intenção de estimular com ações
significativas na área de Educação de Jovens e Adultos e afins, projetos de melhoria das
condições de vida que desencadeiem o desenvolvimento sustentável das comunidades.
Maputo por ser capital do país tem atraído moçambicanos de várias províncias,
fazendo com que uma de suas características seja um mosaico cultural e lingüístico. Devido
à luta armada o país sofreu fortemente com a destruição da malha rodoviária, impedindo
4
que muitas regiões sejam alcançadas por terra, dificultando também a circulação da
produção agrícola. A prática de guerra empregada pela implantação de minas terrestres fez
que mesmo com o tratado de paz se inviabilizasse a permanência de comunidades rurais em
seu local de origem. Numa tentativa de preservar a própria vida famílias inteiras
concentraram-se na periferia da cidade. (Dias, 2006)
Observa-se também que a cidade apresenta características comuns dos grandes
centros urbanos tais como: falta de moradia, desemprego, coleta de lixo deficiente,
abastecimento precário, falta de saneamento básico para todos e alto índice de
analfabetismo entre a população jovem e adulta. (INDE, 1999).
Basicamente a economia da província é constituída por indústrias nacionais e
multinacionais com grande ênfase no comércio.
Contexto educacional da capacitação
A primeira capacitação inicial de alfabetizadores de jovens e adultos realizou-se no
Centro de Formação de Professores da Machava, no Distrito de Maputo, sendo representado
por profissionais das províncias de: Cabo Delgado, Sofala, Manica, Nampula, Gaza e
Maputo. Num total de 68 moçambicanos, sendo eles: alfabetizadores, técnicos pedagógicos
do Ministério de Educação e representantes de Organizações Não Governamentais.
Os resultados de pesquisa exploratória desenvolvida nos primeiros dias da
capacitação identificaram como sendo as principais expectativas dos alfabetizadores em
relação á capacitação os seguintes indicadores.
Tabela 1 – Indicadores de expectativa
Alfabetizadores
Indicadores
Percentuais
32
Profissionalização
47
18
Trabalho remuneração
27
15
Aquisição de conhecimento de EJA
22
03
Diminuir o analfabetismo no país
4
Total: 68
100%
Fonte: pesquisa feita pelas autoras, 2001.
5
Os indicadores apresentados na tabela 1 orientaram como necessidade dos
alfabetizadores as questões relacionadas a empregabilidade, quando apontaram a
profissionalização como forma de inserir-se no mercado de trabalho, quer seja via trabalho
remunerado, quer seja pela aquisição de conhecimento específico, no caso o relativo a
alfabetização de jovens e adultos.
O processo de capacitação desses alunos-alfabetizadores teve como objetivo central
à inserção em metodologias possíveis de alfabetização de jovens e adultos em contextos
onde, a precariedade de recursos, bibliográficos, curriculares, metodológicos, didáticos,
materiais, tanto para o alfabetizador como para o alfabetizando são escassos e quando
existente sua elaboração descontextualizada. Estas não contemplam a diversidade cultural e
lingüística do país. A questão do processo ensino e aprendizagem, que na ausência de
material didático próprio, acaba restrita a oralidade, pois a cultura é oral e não gráfica.
Um dos objetivos centrais da capacitação, via o olhar das formadoras brasileiras, foi
o resgate da identidade moçambicana, frente a efervescência e recente construção da
história e memória do país, uma vez que anteriormente muitos dos alfabetizadores fizeram
parte da luta armada, na condição de cidadãos revolucionários lutando pela construção
efetiva da Nação.
Agora nesse momento de capacitação assumindo em tempos de paz a identidade do
alfabetizador, que na continuidade da consolidação e efetivação do Estado-Nação, luta,
questiona, instiga, fomenta, se expõe, ousa, aprende, ensina, compartilha, ressignifa, os
conhecimentos, a História, a memória, a identidade, a cultura, a beleza da diversidade
cultural e lingüística, como elemento de resistência, buscando construir a história pelo
maior legado que é a educação.
Educação, bem cultural tão importante, que ao mesmo tempo pode ser elemento de
inclusão e/ou exclusão, por isso tão sonegada em países miseráveis, ainda tão dependentes
das políticas internacionais, sob o direcionamento das agências de financiamento. Como se
fosse um bem a ser agraciado e não elemento de reivindicação e conquista.
Como formadoras concordamos com as orientações de mestre Paulo Freire. (1985)
onde de uma maneira sensível e poética registrou ao chegar as terras africanas à sensação
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que envolveu todo seu ser, a sensação de regresso e não de chegada.
Nós enquanto formadoras brasileiras, não iniciávamos, ali naquele momento de
capacitação, nenhuma prática pedagógica efêmera, milagrosa, descontextualizada, mas sim
dávamos continuidade as práticas pedagógicas dos mestres brasileiros que como militantes
políticos e pedagógicos iniciaram muito antes de nós, presentes nas práticas pedagógicas as
orientações de mestres como: Álvaro Veira Pinto e Paulo Freire.
Nos identificávamos muito com aquele contexto, adversidades, lutas, dificuldades
técnico-pedagógicas, uma vez que egressas como alunas e educadoras gestadas, no Brasil
pela escola pública, que a cada década se percebe alijada da descontinuidade das políticas
públicas. Presente na prática pedagógica a construção de uma escola pública de qualidade,
democrática, inclusiva, centrada nas classes populares e que valorize a linguagem e a
cultura de seus protagonistas e não o contrário.
A nossa atuação pautou-se no respeito em não nos colocarmos como elemento
estrangeiro, mas sim como formadoras que reconhecem seus pares, independente da
cultura, da língua, das condições histórico-politico-sociais e que assume e identifica nessa
relação a condição de parceria, onde a soma resulta, ainda que de forma lenta a real
possibilidade de superação dos desafios: a construção de uma Nação, tendo como uma dos
meios a educação da maioria da população.
A formação técnico-pedagógica centrada em especialistas moçambicanos, altamente
titulados, exemplo vivenciado durante a capacitação onde parte do agrupamento constituído
por uma pesquisadora moçambicana com titulação em nível de mestrado, na Inglaterra, que
desenvolvia um trabalho voltado à alfabetização de jovens e adultos, nas línguas
moçambicanas, porém por questões políticas ideológicas, não fazia parte de nenhum órgão
governamental. Fato que efetiva a realidade de países em desenvolvimento que enfrentam
escassez de recursos humanos e ao mesmo tempo só validam conhecimentos construídos
pelo estrangeiro, mas pela descentralização, pois na maioria das vezes alocados em
departamento desvinculados do MINED, desenvolvendo ações paralelas e repetitivas.
A capacitação de alfabetizadores visou promoveu todas as dimensões da
organização do fazer pedagógico, que inclui a escola e os conteúdos curriculares, e que
7
contribui na formação de alfabetizador crítico e reflexivo, capaz de resolver o lado técnico
de ensinar e ter sensibilidade para as avaliações que sejam de natureza subjetiva, humana.
Para isso, ele terá que vivenciar práticas pedagógicas que promovam a sua própria
subjetividade, tendo nisso um propósito particular, mas com total envolvimento voltado
para o coletivo.
Outro ponto importante no trabalho foi à ênfase dada na relação professor-aluno que
objetivou o estabelecimento de uma relação democrática tendo como perspectiva a
Educação Inclusiva.
A concepção metodológica que embasou a capacitação partiu do pressuposto de que
todos ao se inserirem no processo educacional, sejam alfabetizadores ou alfabetizandos,
trazem consigo conhecimentos construídos através de sua história de vida. Partir destes
conhecimentos adquiridos é condição primordial para problematizar e refletir as questões
centrais da alfabetização de jovens e adultos, porque segundo Paulo Freire “o fundamental é
fazer história e por ela serem feitos e refeitos e não ler histórias alienantes” (Freire, 1985,
p.33).
Também foi valorizada a cultura local transformando-se em conteúdos a serem
estudados e ressignificados. A inserção da competência oral como característica do povo
moçambicano foi ponto relevante. A consideração do mosaico lingüístico do país foi
enfatizada e identificou-se a língua local e a oralidade como ponto de partida no processo
de alfabetização de jovens e adultos.
Ao se realizar uma experiência de formação desta amplitude, considerando as
características específicas do contexto moçambicano, uma das questões que mais inquietava
era em relação à metodologia a ser desenvolvida ao longo do curso, atribuindo-lhe ênfase
onde pudesse de fato ser vivenciada, refletida e que fosse garantida a transposição didática
para o contexto muitas vezes inóspito da realidade cruel em termos de recursos matérias na
qual muitos destes alfabetizadores atuariam, pois a possibilidade da sala de aula existe onde
quer que existam alunos e professores, como por exemplo, embaixo de árvores.
Diante deste contexto resolveu-se utilizar a estratégia da aula passeio, proposta do educador
Célestein Freinet (1896-1966) uma vez que muitos dos alfabetizadores estavam vindo para
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a capital pela primeira vez... “como viajantes de seu próprio país seus olhares estavam
ávidos desta história e da beleza quase angelical deste país chamado Moçambique”.
A unidade dialética teoria e prática esteve permeando todo o tempo à formação de
alfabetizadores. Para que a vivência da aula passeio fosse possível dois ônibus foram
alugados, máquinas fotográficas foram disponibilizadas a dois alunos, um em cada ônibus,
assim como dois guias culturais foram selecionados, para que desempenhassem o papel de
guia histórico-cultural da cidade por estar familiarizado com o contexto histórico, sendo
que o roteiro cultural fora feito pela equipe de formadores, bem como um diário de bordo
para “repousar” e construir o “olhar viajante”.
A viagem transcorreu pelos contextos explícitos e implícitos da cidade de Maputo, o
que permitiu ir construindo e buscando o engajamento de forma consciente e crítica dos
registros históricos explícitos e implícitos nas paisagens urbanas, arquitetura, fauna, flora,
artesanato local, moda africana, o legado artístico, objetos e marcos identificados.
Presentificávamos e incorporávamos novamente o pensamento freireano:
Nestes caminhos de ida e volta é que se faz viável aos
oprimidos
assumir-se
como
“classe
para
si”,
esperançosamente utópicos. (...) Voltando à alfabetização,
insistiremos em reafirmar que jamais tomamos a palavra
como algo estático ou desconectado da realidade concreta dos
alfabetizando, mas como uma dimensão de sua linguagempensamento em torno de seu mundo. (Freire, 2001, p. 73).
Passeou-se pelos monumentos históricos, redescobrindo a arte popular, brincadeiras
de rua, as danças, a música, traduzida em cantos. O Oceano Índico capturado pelo olhar
viajante, saído magicamente dos mapas mundi, onde havia permanecido durante muito
tempo na memória do aluno de geografia. Observando as questões sociais que se
apresentavam sem nenhuma necessidade de estudo ou questionamento, tais como,
saneamento básico, o lixo que é jogado na rua, o aparthaid social e as questões referentes à
habitação, a precária condição de saúde da população, as condições sociais e econômicas
das pessoas que habitavam a periferia da capital, na sua maioria vindas de diferentes regiões
do país em busca de melhores condições de vida. Os registros culturais e artísticos dos
batiques como forma de denúncia social, uma entre tantas formas de expressão do povo
9
moçambicano. Tudo isso num mix de beleza e sofrimento inenarráveis.
Ao longo do percurso foi-se “lendo” aquela paisagem tão única e foi procurado
tirar os elementos que mais tarde se tornariam o tema gerador.
Entrelaçando metodologias: Freinet e Freire
No dia seguinte, quando os alunos chegaram para a continuação do curso
encontraram afixadas nas paredes, do prédio do Centro de Formação de Professores da
Machava, as fotografias tiradas por eles, como resultado da aula passeio, foi feita à roda de
apreciação e em seguida escolheu-se, após longo debate e reflexão, qual seria o tema
norteador do trabalho pedagógico. O tema mais instigante para o grupo foi o “LIXO”.
Procurou-se nas diversas áreas do conhecimento criar estratégias que respondessem
às inquietações do grupo frente ao tema. Assim, foram criadas as oficinas, enfocando a
áreas de Línguas Moçambicanas (Cantos e Histórias Orais), Língua Portuguesa (Linguagem
Oral e Escrita), Matemática, História, Geografia, Ciências Naturais e Sociais, Arte que
circundassem o tema em questão.
Foi uma agradável surpresa verificar a qualidade dos materiais elaborados,
ressignificados e construídos artesanalmente, uma vez que considerado os lugares inóspitos
de atuação (entenda-se a sala de aula embaixo de sombras de mangueiras, onde as
capulanas3 tornavam-se carteiras) as intervenções e a metodologia, nas qual estes “alunosalfabetizadores”, muitos sem nenhuma experiência formal profissional iam tecendo e
incorporando de forma própria e autêntica conceitos tais como:
•
Partir de aprendizagens do ambiente real no qual o alfabetizando está
inserido;
•
O nível de participação e criatividade através da oralidade;
•
A seriedade com que construíram seu percurso como alfabetizadores ávidos
de teoria e prática;
•
A pertinência entre as condições ideais para construção de uma intervenção
pedagógica e a realidade.
3
Panos africanos, peça do vestuário moçambicano, as mulheres as utilizam como saias.
10
Estas áreas do conhecimento foram trabalhadas de forma sensível, utilizando-se o
resgate da cultura e da língua materna, pois como educadoras-pesquisadoras acreditamos
que nenhuma prática educativa pode ser imposta, o que poderia permitir o enfraquecimento
ou descaracterização dos aspectos socialmente construídos ao longo da formação das
comunidades.
Uma das características do povo moçambicano é a expressão artística, é como se
possuíssem uma natureza marcadamente voltada para a arte na sua expressão mais forte, a
dança, a expressão musical, a voz, o timbre próprio que flui de forma bela e magistral em
seus cantos, a sua maneira própria de criarem coreografias para suas músicas, a energia
forte e soberba que esbanjam ao dançarem o Mapico4, de criarem formas incomparáveis
para dimensionar o que a alma e o belo despertam.
Sua arte estampada nos batiques e nas capulanas, uma forma de escritura do que são
hoje, ontem e, como serão no futuro, a tradução da mistura das cores que saindo dos tons
ocres, descobrem o azul, influência de outros olhares navegantes, que todos os dias pisam o
solo africano em busca de suas belezas naturais.
Muitos destes alunos vivem em contextos sociais extremamente precários, resta-lhes
como forma de lazer a música, os cantos, as danças populares, o brincar, as brincadeiras de
rua, os jogos, as festas ancestrais cultivadas até hoje, preservadas pelas gerações, via cultura
oral pelas línguas moçambicanas, transmissão feita pelos mais velhos aos mais jovens.
Os sentidos do Programa Alfabetização Solidária no Brasil
Os resultados de atendimento do programa forma disponibilizados pelo Censo
Escolar 2002, divulgados pelo INEP (Instituto nacional de estudos e Pesquisa
educacionais), entre 2000 e 2002 foi constatado que houve um aumento de 254,75% nas
matrículas de EJA, nos municípios atendidos pelo Programa Alfabetização Solidária. Em
contrapartida, no mesmo período, o percentual no restante do Brasil ficou em 41,25%.
(Dias, 2006, p.45)
A tabela a seguir elaborada segundo dados disponibilizados pelo Programa
4
Dança religiosa cultural tipicamente masculino, corpo ornamentado e utilização de máscara,
pertencente a cultura maconde.
11
Alfabetização Solidária, para o ano de 2005, confirmou os objetivos alcançados ao longo
dos oito anos de atuação no Brasil. (Dias, 2006, p. 45).
Tabela 2 – Dados gerais de atendimento do programa no Brasil
4,9 milhões
Número de alunos atendidos
212
Instituições de Ensino Superior Parceiras
166
Empresas Parceiras
2066
Municípios Parceiros
Fonte http:/www.alfabetizacao.br
Os sentidos do Programa Alfabetização Solidária em Moçambique
A implantação do Programa em Moçambique envolveu duas fases, nas quais foram
capacitados alfabetizadores de jovens e adultos e salas de alfabetização foram implantadas,
nos municípios, das cinco províncias, Cabo Delgado, Sofala, Manica, Gaza e Maputo, no
país.
As ações desenvolvidas durante o período 2001-2003 envolveram profissionais das
diversas universidades parceiras do programa, cujo desempenho e profissionalismo
garantiram o cumprimento das metas presentes no acordo firmado entre os governos do
Brasil e de Moçambique.
Os resultados apresentados na tabela a seguir expressam as práticas propostas
descritas pelo Programa.
Tabela 3 – Dados do Programa em Moçambique
Fase
Alfabetizadores(as)
Salas de aula
Alfabetizandos(as)
Fase I
40
40
1207
Fase II
200
200
5906
Total
240
240
7113
Fonte: (Dias, 2006)
O resultado da tabela acima torna possível identificar o alcance da atuação do
PASMO em curto espaço de tempo, uma vez que a implantação de programas que
culminaram em campanhas de alfabetização, não é recente, antecedidas por outras
12
propostas estrangeiras naquele país. Talvez a nossa atuação tenha sido acrescida de um
diferencial, pois convivemos e atuamos na superação dos mesmos problemas de
analfabetismo de jovens e adultos, sentimos na pele as dificuldades da falta de material
didático, descaracterizado, provenientes de propostas descontextualizadas, distantes da
cultura e história da população. Procede ainda analisar a qualidade dessa formação
pensando criticamente em médio e longo espaço de tempo, tendo como objetivo a
continuidade do Brasil, representado pelo Programa, na parceria entre profissionais de
educação brasileiros e moçambicanos.
À guisa de algumas ponderações
O curso não teve como intenção apresentar receitas metodológicas prontas e
acabadas, como tantas vezes ocorre em países onde os índices alarmantes de analfabetismo,
encanta Nações poderosas, detentores de saberes historicamente construídos e que por
diversas vezes, são chamadas a intervirem e solucionarem, sem sucesso, os problemas
educacionais que afetam os países que beiram a condição de pobreza absoluta, pertencente
à África e a América Latina.
A proposta teve como ponto de partida a reflexão do papel da educação e da atuação
do formador, como profissional crítico, reflexivo, sensível e consciente do seu
compromisso político, social e cultural. É que como formadoras brasileiras pertencentes a
contextos históricos similares, também identificamos não ser ainda possível reverter os
altos índices de analfabetismo em nosso país, mas na atuação constante, frente às realidades
nas quais atuamos têm sido possível, por meio de propostas de alfabetização de jovens e
adultos, minimizar e interferir de forma positiva, inclusiva e efetiva em realidades locais.
Assim sendo nesse contato direto com o outro a construção metodológica foi
pautada pela reflexão, análise e identificação de situações e conteúdos significativos,
criteriosamente e cuidadosamente selecionados, tecidos e aliados que unidos puderam ser
efetivamente aplicados e desenvolvidos nas práticas de alfabetização dos alfabetizadores
moçambicanos, sendo adequados em sala de aula, sem esgotar as questões relacionadas ao
tema, mas sim viabilizar a reflexão do processo de alfabetização para que os alfabetizadores
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de forma criativa pudessem construir a sua prática pedagógica, uma vez que esta construção
exige um trabalho coletivo e que parta da realidade na qual o alfabetizando está inserido.
O refletir sobre a construção da prática de sala de aula a ser desenvolvida teve como
ponto de partida a realidade de cada um, a oralidade representada pela língua materna, a
cultura preservada como ato de resistência pelas gerações mais velhas, a história de vida de
cada um, como parte da história da comunidade, visualizada e identificada na história da
Nação moçambicana que se constrói, pois a independência faz pouco tempo foi
conquistada. Identidade, Independência, construção da Nação, sujeitos em busca constante
de significado, partes e co-participes dessa construção.
Ao longo da capacitação foi-se reafirmando e construindo saberes metodológicos e
educacionais que partiram da cultura deste povo que, embora com um longo e árduo
caminho a percorrer, na reconstrução de aspectos sociais básicos que validam o direito a
cidadania, tais como, educação, saúde, moradia, vêem na educação, entendida aqui a
educação como um processo amplo de aumento de participação crítica e ativa na sociedade,
um dos instrumentos na reconstrução do país.
Nesse momento as palavras de (Caparelli, 2003, p. 23) expressam os sentidos da
formação de alfabetizadores em Moçambique, a força tamanha do encontro entre
educadores, do Brasil e de Moçambique, encontro permeado pela palavra compartilhada
entre ambos.
Na minha pele
Ninguém vê
O que vejo
Faz
O que faço
Sente
O que sinto
Porque eu
Sou eu
De pedaço
Em pedaço.
Ninguém veste
A pele que visto
Por isso
Eu sou eu
E apenas eu
Desde que existo.
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Referências
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BRASIL E MOÇAMBIQUE: ENCONTRO E DIALÉTICA DA