JUÍZES DE BATINA – REFLEXÕES SOBRE A RELAÇÃO ENTRE A MAGISTRATURA E O DIVINO NA FORMAÇÃO DO ARQUÉTIPO DO JUIZ1 Mariana Pereira de Queiroz Carraro Maria Aparecida Penso Resumo Este artigo tem como objetivo refletir sobre a forma como a coletividade vê e o que espera de um juiz, bem como a maneira com que este profissional corresponde às expectativas que lhe são lançadas pela sociedade. Para tanto, busca suporte na teoria junguiana para definir qual seria o arquétipo do juiz e demonstrar, através dos símbolos e dos mitos ligados à atividade jurisdicional, a correlação existente entre a magistratura e o divino. Assim, ao apontar o perfil psicológico destes profissionais, este artigo também possui a pretensão de demonstrar a necessidade de instituição organizacional de suporte psicológico para os magistrados. Palavras-chave: Arquétipo do Juiz. Mitologia. Simbologia. Introdução No meio jurídico existe um jargão bastante conhecido que diz: “a magistratura é um sacerdócio”. Pode-se dizer que a comparação entre os dois ofícios se deve, principalmente, à extremada dedicação profissional exigida desses sujeitos e à severa cobrança social de observância de normas de conduta a que são submetidos, uma vez 1 Artigo apresentado no Curso de Especialização em Psicologia Jurídica da Universidade Católica de Brasília, como requisito para obtenção ao título de Especialista em Psicologia Jurídica. Artigo aprovado por Profa Dra Maria Aparecida Penso – Orientadora e Profa Dra Tânia Mara Campos de Almeida. Brasília, 06, abril de 2010. que tanto os juízes como os religiosos servem como referência de retidão moral e comportamental para toda a coletividade. Curiosamente, ao olhar o tema mais de perto, percebe-se que as semelhanças entre juízes e sacerdotes são ainda mais profundas. Ambos têm permissão social para um contato privilegiado com o divino, atuando como “procuradores de Deus na Terra”, na medida em que fazem o que só a Ele é permitido: julgar, condenar e também redimir o pecador de sua culpa. A atuação do magistrado como representante divino está enraizada na psique da humanidade e pode ser manifesta pelos símbolos carregados de mensagem subliminar até hoje presentes no cotidiano forense, como o uso de togas e de crucifixos nas salas de audiência. Quais são as consequências psicológicas sentidas pelo homem que escolhe seguir o caminho “divino” da magistratura? Como a sociedade se comporta e o que espera desse homem? Com o suporte da teoria junguiana e seus conceitos de arquétipo e inconsciente coletivo, tentaremos compreender como a busca do ser humano pela conexão com a divindade permaneceu mesmo após diminuição do poder da Igreja e a laicização do Estado, estando presente hoje no poder jurisdicional. Estas são questões que pretendemos discutir neste trabalho. 1. História O surgimento da magistratura se deu com a formação do Estado. Antes da organização do homem em sociedade, isto é, nas sociedades pré-estatais, não havia solução formal dos conflitos jurídicos. Neste período, as faltas mais graves cometidas dentro do grupo eram punidas diretamente pelas almas dos mortos, em virtude da forte crença no sobrenatural. Segundo Sampaio (2006, p. 423): O homem primitivo geralmente evitava prejudicar o próprio grupo por causa do temor que vivia de tais punições, chamadas, pelo mesmo jurista [Hans Kelsen], de sanções transcendentes. As sanções imanentes, na terminologia do mesmo autor, ou sanções aplicadas pela sociedade, seriam exercidas por um clã ofendido contra o ofensor pertencente a outro clã ou contra qualquer membro do último grupo, uma vez que existia uma espécie de responsabilidade coletiva do clã. Mas, não existindo juízes nem policiais, como se exerce a punição da sociedade contra os infratores da ordem? – Essa missão é deixada à vítima ou aos seus parentes, que agem com aprovação da comunidade. A história da formação do Estado no Ocidente começa na Antiguidade Clássica. Na Grécia antiga, o título “magistrado” era conferido ao cidadão que exercesse algum tipo de poder de comando no interesse público, de forma que somente os membros da classe dominante poderiam ser magistrados, o que demonstrava ser uma posição de destaque social. (DALLARI, 2007) Em Roma, os juízes eram eleitos pelos membros da respectiva classe social, de maneira que existiam magistrados patrícios e plebeus. Com o surgimento do Império, a magistratura sofreu grandes modificações, pois perdeu o caráter representativo e transformou os juízes em funcionários do imperador, do qual dependiam diretamente, agindo como sua longa manus. “Talvez se possa ver aí, embora com espírito diverso, um antecedente do ‘juiz funcionário’ ou profissional, estando aí, também, uma antecipação do juiz agente do rei, como será conhecido no final da Idade Média”. (DALLARI, 2007, p. 11) Durante a Idade Média, com o aumento do poder da Igreja Católica e com as alianças dos senhores feudais em torno do soberano, surgiram os primeiros tribunais corporativos e eclesiásticos, nos quais os julgamentos eram conduzidos pelas autoridades religiosas. Na França dos séculos XVII e XVIII, “a magistratura surgiu como um dos privilégios da nobreza e uma vez que fazia parte da propriedade, podia ser vendida, alugada e mesmo transmitida por herança”. (PRADO, 2008, p. 47) Há informação histórica, inclusive, de que neste período as próprias decisões judiciais eram vendidas e que sairia vencedora de uma demanda aquela parte que oferecesse a maior soma de dinheiro para o juiz. (DALLARI, 2010) Esse contexto começa a ser modificado com a queda do Antigo Regime (marcado pela subordinação da justiça ao clero e à nobreza) e, por meio da Revolução Francesa, surgiu um movimento de afirmação da supremacia absoluta da lei como forma de manutenção do tratamento jurídico isonômico aos cidadãos. Em 1791, foi publicada a primeira constituição da França contendo os principais ideais sustentados pelos revolucionários do período. A igualdade jurídica passou a ser prevista expressamente quando se estabeleceu no texto constitucional “que ninguém seria obrigado a fazer ou proibido de fazer alguma coisa, a não ser com base na lei”, tornando a lei o principal fundamento para a tomada de decisões judiciais, em detrimento da importância do poderio político-econômico das partes litigantes. A partir de então, deu-se início à possibilidade de a atividade jurisdicional ser livre e independente de apelos políticos, econômicos ou religiosos. Já no Brasil, na época da Colônia, a atividade judicante era exercida por meio de delegados do rei, a fim de que fosse dada sustentação ao poder da Coroa. Como a função jurisdicional era exercida juntamente com as funções fiscal e militar, os juízes não podiam se dedicar em tempo integral aos processos, sendo este o embrião da morosidade do Poder Judiciário brasileiro. Além disso, tais juízes se mostravam despreparados para o exercício da profissão, além de frequentemente utilizarem a “máquina administrativa” em proveito próprio. (ALVES, 2010) No período do Império, ainda segundo lição de Alves (2010), a seleção de magistrados passa a ser pautada pela posição social ocupada pelo candidato, de forma que os cargos eram ocupados pelos mais abastados na sociedade. Além disso, o juiz poderia exercer a atividade política juntamente com a magistratura, o que agravava ainda mais a lentidão dos andamentos processuais. Com a República, os magistrados ficaram impedidos de se candidatar a cargos eletivos e, em movimento inverso ao da fase do Brasil Império, tornam-se profissionais apolitizados. Em sendo meros aplicadores de leis editadas, muitas vezes agiram em detrimento aos direitos humanos, assim como o que ocorreu no período da ditadura militar, sob alegação de que “tais atos eram a lei naquele momento, e que as injustiças contidas nas decisões eram da lei e não do juiz”. (DALLARI apud ALVES, 2010) Com a promulgação da Constituição Federal de 1934, houve a primeira previsão de seleção de juízes por meio de concurso público. Posteriormente, com o advento da Constituição Federal de 1988, o processo seletivo tem sido aberto a qualquer bacharel em Direito com mais de três anos de comprovada prática jurídica. Os aprovados gozam de garantias constitucionais de vitaliceidade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos – tudo isso para garantia de independência da carreira. É possível notar, portanto, que a atividade jurisdicional esteve reservada, há até pouco tempo, para indivíduos especiais no corpo social, fossem eles reis, sacerdotes ou nobres. Dallari (2007, p. 10) observa que: É relativamente recente, e ainda longe da aceitação universal, a ideia da atividade do juiz como profissão. O que tem prevalecido é a concepção do juiz como representante do povo ou de um segmento da sociedade ou, então, como auxiliar do governo para tarefas específicas, consideradas de grande relevância. Não se pode negar que permaneceu em nossa cultura um legado histórico de privilégio no tratamento oferecido aos magistrados, muito embora o critério de seleção atualmente utilizado seja objetivo e almeje a escolha dos candidatos com maior conhecimento jurídico. O reconhecimento da magistratura como uma profissão respeitável, porém de relevância similar às demais existentes em nossa sociedade, esvaziaria todo o conteúdo histórico de veneração quase sagrada aos indivíduos detentores da função de julgar e decidir o destino dos demais membros dessa mesma sociedade. 2. Mitologia Não só a história tem a habilidade de trazer significação para grande parte dos hábitos e costumes de uma determinada cultura, como também o estudo da mitologia elucida o teor do que é transmitido de geração em geração, uma vez que o mito tem a capacidade de expressar a natureza humana. O mito não funciona através da lógica: ao contrário, é ilógico e irracional. “Decifrar o mito é, pois, decifrar-se. Assim, não se há de definir o mito pelo objeto de sua mensagem, mas pelo modo como a profere”. (BRANDÃO, 1986, p. 36) Carl Jung e a Escola da Psicologia Analítica contribuíram para demonstrar que os mitos estão carregados de simbolismo com a função de servir de espelho à consciência coletiva humana. Os pais ensinam aos filhos como é a vida, relatando-lhes as experiências pelas quais passaram. Os mitos fazem a mesma coisa num sentido muito mais amplo, pois delineiam padrões para a caminhada existencial através da dimensão imaginária. Com o recurso da imagem e da fantasia, os mitos abrem para a Consciência o acesso direto ao Inconsciente Coletivo. Até mesmo os mitos hediondos e cruéis são da maior utilidade, pois nos ensinam através da tragédia os grandes perigos do processo existencial. (BYINGTON, 1986, p. 9) Nesse sentido, todos os símbolos existentes numa cultura têm o papel de trazer para o consciente a informação que está guardada no inconsciente coletivo. Estes símbolos podem ser expressos pelas crenças, costumes, leis, obras de arte e por todas as atividades que formam a identidade cultural de um povo. “Dentre estes símbolos, os mitos têm lugar de destaque devido à profundidade e abrangência com que funcionam no grande e difícil processo de formação da Consciência Coletiva”. (BYINGTON, 1986) Com o objetivo de conhecer melhor as informações que estão contidas no inconsciente coletivo do homem sobre o magistrado, é preciso que se entenda um pouco mais sobre Zeus que, na mitologia grega, era apontado como o principal deus do Olimpo. Da leitura dos hinos homéricos, extrai-se que Zeus tinha a responsabilidade de julgar os humanos e também seus pares, caso houvesse desobediência das regras por ele estabelecidas para a manutenção da ordem no universo (MASSI, 2006). Dessa forma, ao contrário de várias outras atividades que foram delegadas para os demais deuses do Olimpo, Zeus avocou para si a função julgadora, provavelmente em razão da relevância da posse do poder de sanção para sua permanência no poder. Mais de um especialista em mitologia grega (JONES, 1973; MASSI, 2006) correlaciona o papel de Zeus ao de magistrado, na medida em que era portador do poder de decidir o destino dos mortais e imortais, além de ter como atributo primordial a proteção dos princípios de direito por ele estabelecidos. Estando caracterizada, portanto, a figura de Zeus como a de um juiz dentro dos mitos gregos, vejamos algumas de suas histórias e características para a formação do modelo universal de magistrado. 2.1 - Zeus Zeus era o filho de Réia e Crono, deus conhecido por devorar seus filhos à medida que nasciam. Zeus sobreviveu graças à estratégia da mãe, que ofereceu uma pedra enfaixada ao marido no lugar do filho para ser engolido. Já adolescente, ele se associou à deusa Métis, e fez com que Crono tomasse um líquido para que vomitasse os filhos que engolira. Assim, com o auxílio de seus irmãos renascidos, Zeus resolveu, em vingança, destronar o pai. (COMMELIN, sem data) Seu primeiro ato como novo rei do Olimpo foi expulsar seu pai Crono da sociedade dos deuses. Zeus era conhecido pela rigidez e violência dos seus atos e comumente era representado nas artes com um raio destruidor em uma de suas mãos. Santos (2010) ressalta alguns aspectos da personalidade de Zeus, tais como a intransigência e a falta de clemência, ao relatar a história de Prometeu – um titã a quem Zeus confiou a criação do homem. Diz o mito que Prometeu, após ter criado os homens, resolveu presenteá-los com o fogo, a fim de que pudessem iluminar a Terra durante a noite. Ocorre que Zeus não fora consultado previamente sobre tal possibilidade e esta traição o deixou profundamente irado. Assim, Zeus decidiu condenar Prometeu a uma pena eterna: amarrou-o a um rochedo para que, durante o dia seu fígado fosse devorado por uma águia e, à noite, o órgão se recompusesse para que a tortura se eternizasse. Somente depois de milênios Hércules salvou Prometeu da pena aplicada por Zeus. Naturalmente que a vingança de Zeus não somente o desveste de qualquer divindade como também decreta a ostensiva falibilidade dos seus valores e das suas atitudes. Denota uma postura vingativa, cruel e desprovida de senso de justiça. Seguramente a grande figura do Olimpo não fora apresentado aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, dentre outros inibidores de arbítrio e de injustiça. (SANTOS, 2010) Por outro lado, é recorrente na literatura a informação sobre a preocupação do grande deus do Olimpo com a manutenção dos princípios de direito e da justiça entre seus subordinados. Massi (2006) relata que Zeus casou-se pela segunda vez com a deusa Thêmis - deusa da Justiça - visando a estabilidade e previsibilidade necessárias para que seu reino fosse a representação perfeita da ordem. Diz, ainda, que Zeus era considerado um distribuidor da justiça e, portanto, um promotor da paz entre os imortais, desestimulando neles qualquer possibilidade de censura contra suas ações. Há, nos hinos homéricos, uma passagem em que Zeus pensa em intervir na data de morte de Sarpedon, seu filho, mas desiste para não perturbar a ordem do mundo. Não intervém porque, mantendo as leis deste universo, acata a parte que coubera a cada ser na sua partilha. É justo que morram Heitor e Sarpeidon, pois que prevê essa morte a lei da Sina, a cada um equanimente distribuída. Como poderia Zeus punir os reis violadores da justiça, se ele próprio privasse os mortais daquilo que mais os define, a morte? Se interferisse, tornar-se-ia injusto e não mais caberia em sua própria essência, por isso não intercede. Mestre dos reis, conserva Zeus as sociedades protegendo as leis sobre as quais elas repousam, leis do Destino, sobretudo. (MASSI, 2006, p. 64) Todas essas informações levam à compreensão de Zeus como o grande juiz do Olimpo, sendo portador tanto de virtudes, como senso de justiça e retidão ética, quanto de defeitos, como intransigência e excesso de rigor em seus julgamentos. Considerando que o conteúdo dos textos mitológicos revela muito mais do que um olhar desavisado pode vislumbrar, pode-se perquirir se o conjunto de atributos da personalidade de Zeus forma um modelo de magistrado ideal, isto é, aquele que seria procurado por toda a coletividade ainda nos tempos modernos. Tais características, portanto, não são características individuais daqueles que ocupam o cargo de magistrado, nem fazem parte de um determinado momento da história, mas compõem uma predisposição psíquica humana de repetição de uma imagem universal ancestral, segundo o conceito de arquétipo, conforme se verá a seguir. 3. Inconsciente Coletivo e Arquétipo Carl Gustav Jung, psiquiatra suíço nascido no final do século XIX, desenvolveu uma das mais fascinantes teorias da psicologia, com referências a mitologia, fenômenos espirituais e antropologia. Era um estudioso em filosofia e literatura e um pesquisador sobre a história da humanidade. Jung vê a personalidade como um produto e como um continente do passado ancestral. O homem moderno foi concebido e moldado em sua forma presente pelas experiências acumuladas de gerações passadas, recuando até as origens obscuras e desconhecidas do homem. Os fundamentos da personalidade são arcaicos, primitivos, inatos, inconscientes e provavelmente universais. Freud acentua a origem infantil da personalidade, enquanto Jung dá ênfase às origens raciais da personalidade. O homem nasceu com muitas predisposições, que lhe foram legadas pelos ancestrais. (...) Em outras palavras, há uma personalidade coletiva, racialmente pré-formada, que atua seletivamente no mundo da experiência e é modificada e elaborada pelas experiências que recebe. Uma personalidade individual é o resultado da interação das forças externas e internas”. (HALL; LINDZEY, 1984, p. 87) Com base em seus estudos sobre a herança biológica e psicológica do homem, Jung criou a teoria do inconsciente coletivo, segundo a qual toda a humanidade possui os mesmos resíduos psicológicos que são passados adiante de geração em geração. Não se trata, portanto, de uma aquisição individual, mas de um conhecimento que é compartilhado por todos na raça humana. O arquétipo, por sua vez, seria uma predisposição humana típica para agir, pensar e sentir. Assim, existiriam tantos arquétipos quantas são as situações típicas na existência da humanidade, ou seja, o número é ilimitado. (PRADO, 2008) A obra de Jung demonstrou fartamente que o Inconsciente não é somente a origem da Consciência, mas, também, a sua fonte permanente de reabastecimento. Da mesma forma que a noite permite às plantas prepararem-se para cada novo dia e o sono descansa e reabastece o corpo, assim, também, o Inconsciente renova a Consciência. Das trevas fez-se a luz que, através delas, se mantém. De noite, por meio dos sonhos; de dia, através da fantasia, os arquétipos produzem e revigoram os símbolos. A interação do Consciente com o Inconsciente Coletivo, através dos símbolos, forma, então, um relacionamento dinâmico, extraordinariamente criativo, cujo todo podemos denominar de Self Cultural. (BYINGTON, 1986) Portanto, o conceito de inconsciente trazido por Jung ultrapassa a noção individual proposta por Sigmund Freud, na qual o inconsciente seria o local em que os conteúdos recalcados seriam depositados (lembranças traumáticas reprimidas ou impulsos inaceitáveis socialmente), e que são revelados ao consciente por meio dos sonhos, dos atos falhos etc. A inovação está justamente no rompimento da crença de que o homem é uma criatura isolada e separada das demais, passando a interpretá-lo como um ser contextualizado, necessariamente integrante de um sistema maior, que é a própria humanidade. É como se cada ser humano estivesse invisivelmente ligado a todos os demais e, de forma inconsciente, pudesse desde o nascimento acessar tudo o que já foi vivido e sentido por seus ancestrais. Eis as palavras de Jung (2000, pags. 15-18) sobre as bases de sua teoria: Uma camada mais ou menos superficial do inconsciente é indubitavelmente pessoal. Nós a denominamos de inconsciente pessoal. Este porém repousa sobre uma camada mais profunda, que já não tem sua origem em experiências ou aquisições pessoais, sendo inata. Esta camada mais profunda é o que chamamos de inconsciente coletivo. Eu optei pelo termo ‘coletivo’ pelo fato de o inconsciente não ser de natureza individual, mas universal; isto é, contrariamente à psique pessoal ele possui conteúdos e modos de comportamento, os quais são ‘cum grano salis’ os mesmos em toda parte e em todos os indivíduos. Em outras palavras, são idênticos em todos os seres humanos, constituindo portanto um substrato psíquico comum de natureza psíquica suprapessoal que existe em cada indivíduo. (…) Minha tese é a seguinte: à diferença da natureza pessoal da psique consciente, existe um segundo sistema psíquico, de caráter coletivo, não-pessoal, ao lado do nosso consciente, que por sua vez é de natureza inteiramente pessoal e que – mesmo quando lhe acrescentamos como apêndice o inconsciente pessoal – consideramos a única psique passível de experiência. O inconsciente coletivo não se desenvolve individulamente, mas é herdado. Ele consiste de formas preexistentes, arquétipos, que só secundariamente podem tornar-se conscientes, conferindo uma forma definida aos conteúdos da consciência. 4. Os mitos do Juiz e seus símbolos Trazendo os conceitos de Jung para o presente trabalho, podemos afirmar que, assim como qualquer ser humano, o juiz tem em seu inconsciente pessoal os elementos do inconsciente coletivo e também a imagem arquetípica do que seria o “juiz universal”. Com efeito, as informações sobre o aspecto divino do papel do julgador e o modelo de comportamento irrepreensível que seria de um magistrado típico são pertencentes a toda a coletividade, não variando de cultura para cultura, e, portanto, repassados de forma inconsciente para as gerações seguintes. Jung teria afirmado que a autoridade civil corre o grave risco de assumir o arquétipo do rei, da mesma forma que Luís XIV assumiu o arquétipo do Estado com sua célebre frase “L’état ce moi” (o Estado sou eu). Segundo Costa (2008, p. 267), “o resultado é desastroso, pois ao adotar o arquétipo do rei, o juiz é fatalmente digerido por ele, sendo esta a base psíquica, em regra, do crime de abuso de autoridade e dos acessos neuróticos de vaidade funcional.” Portanto, a ideia de inconsciente coletivo, arquétipo e, também, os símbolos que os representam são orientadores do movimento psíquico do qual a humanidade faz parte e, no caso específico dos magistrados, apontam indubitavelmente para a ligação entre a atividade jurisdicional e o seu papel divino. 4.1 Símbolos Um símbolo, na teoria de Jung, tem a função de personificar o material arquetípico, sendo uma representação do inconsciente coletivo. Ele expressa a sabedoria da humanidade armazenada pela raça, mas seu conteúdo não é diretamente compreendido pelo homem, pois é preciso que seja decifrado para que se descubra a sua mensagem. (LINDZEY, p. 105). Os símbolos são um produto espontâneo da psique arquetípica. Não é possível fabricar um símbolo; só é possível descobri-lo. Os símbolos são portadores de energia psíquica. Eis por que convém considerá-los vivos. Eles transmitem ao ego, consciente ou inconsciente, a energia vital que apóia, orienta e motiva o indivíduo. (…) A proposição básica é: um símbolo inconsciente é vivido, mas não é percebido. (…) O ego, identificado com a imagem simbólica, torna-se vítima dessa imagem, condenado a viver concretamente o significado do símbolo, em vez de entendê-lo conscientemente. (EDINGER, 1972, p. 158) É interessante notar que alguns símbolos ligados à prática religiosa são utilizados livremente na atividade jurídica. Trata-se das togas dos magistrados – historicamente relacionadas com as becas dos sacerdotes – e dos crucifixos – utilizados em templos cristãos e em todos os recintos de julgamentos do Brasil e de outros países do mundo. Observemos a seguir a relação que há entre os símbolos listados e a imagem arquetípica divinal do magistrado. a – Toga A toga é uma veste talar de origem romana, cujo nome significa “roupa comprida até o tornozelo” e funcionava, na Antiguidade Clássica, como elemento diferencial dos homens de destaque social, dentre eles os magistrados e senadores. Com o passar do tempo, a toga passou a ser cada vez menos utilizada até que seu uso habitual foi completamente abandonado, sobrevivendo, porém, como roupa ritual da religião e do Direito. A batina, as togas e as becas têm essa origem. (RIBEIRO, 2010) A capa preta que cobre o corpo dos juízes é um símbolo remanescente do histórico de tratamento divino a eles oferecido. Vale transcrever a ponderação do antropólogo Joseph Campbell (apud PRADO, 2008, p. 35): Quando um juiz adentra o recinto de um tribunal e todos se levantam, não estão se levantado para o indivíduo, mas para a toga que ele veste e para o papel que ele vai desempenhar. (…) Quando se torna juiz um homem deixa de ser o que era e passa a ser o representante de uma função eterna. As pessoas percebem que estão diante de uma personalidade mitológica. Dessa forma, ao mesmo tempo em que este símbolo serve para demonstrar à sociedade a nobreza de quem a veste, vale também para confirmar nos próprios magistrados a sua distinção e seu caráter especial. “A toga, pela suja tradição e seu prestígio, é mais do que um distintivo; é um símbolo que alerta, no juiz, a lembrança de seu sacerdócio, e incute no povo, pela solenidade, respeito maior aos atos judiciários”. (LÉVAY, 2010) Assim, ao olhar criticamente para o percurso histórico deste símbolo, resta o questionamento: por que a capa preta deixou de ser elemento de diferenciação dos senadores e demais pessoas de proeminência social e sobreviveu como insígnia dos padres e dos magistrados? Qual seria a interseção entre as duas ocupações para que tivessem um símbolo comum? Jung (2002, p. 20) ensinou que o símbolo é uma imagem que pode ser familiar na vida diária, mas que possui “conotações especiais além do seu significado evidente e convencional. Implica alguma coisa vaga, desconhecida ou oculta para nós. (…) O que simboliza exatamente ainda é motivo de controversas suposições”. Considerando, então, que o significado de um símbolo está encoberto ao observador desavisado e que, para aquele que tenta decifrá-lo, restam apenas conjecturas, este trabalho busca indicar a ilação mais provável para este enigma: a capa preta simbolizaria a união do homem com a divindade e tem a função de inspirar quem a veste a adotar uma conduta livre de inexatidões e desvios, que são naturais para o homem comum, mas inadmissíveis para os magistrados e os religiosos, pois a estes não é dado o direito de errar. b – Crucifixo Outro símbolo usado há séculos no contexto judiciário é o crucifixo, que costuma ser afixado atrás da cabeça do magistrado nas salas de audiência e de sessão dos órgãos colegiados do Brasil e do mundo. Embora a separação oficial entre Igreja e Estado tenha ocorrido há mais de cem anos no Brasil – com o advento da Constituição de 1891 – e o Estado tenha se tornado declaradamente laico, o principal símbolo religioso cristão continuou a ser utilizado de forma natural em ambientes oficiais. As poucas tentativas de retirada do crucifixo das salas de julgamento foram prontamente rechaçadas pelo próprio corpo de magistrados, que vêem na cruz a função de lembrar os juízes e os membros do conselho de jurados do erro judiciário cometido há mais de dois mil anos contra Jesus Cristo, e, com isso, fazer com que decidam com ponderação e baseados na lei. (LÉVAY, 2010) A imprensa divulgou uma notícia inquietante sobre a condenação, em 2006, do juiz italiano Luigi Tosti a um ano de prisão e outro de suspensão de carreira por este haver sobrestado três audiências devido à existência de um crucifixo na sala. Sua intenção era denunciar o conflito de atribuições entre poderes do Estado, uma vez que o Estado italiano se declara laico e, portanto, não deveria ostentar um símbolo religioso num órgão público. No Brasil, o juiz gaúcho Roberto Arriada Lorea propôs ao Conselho Nacional de Justiça a retirada dos crucifixos das salas de audiência, sob argumento de que a presença de tal símbolo poderia constranger os seguidores de outras religiões. O CNJ, por sua vez, manifestou-se pela possibilidade de os tribunais do país continuarem ostentando o crucifixo, uma vez que tal símbolo constituiria um traço cultural da sociedade brasileira e, segundo o órgão, em nada agride a liberdade de credo2. No Supremo Tribunal Federal, dois ministros já se manifestaram contra a manutenção do crucifixo localizado no plenário: Celso de Mello e Marco Aurélio. Embora respeitem a Igreja Católica, os ministros entendem que, desde que Igreja e 2 Extraído de notícia publicada no site (http://187.48.40.183/portalcnj/index.php?option=com_content&view=article&catid=1:notas&id=302 6:cnj-encerra-julgamento-sobre-solos-religiosos-no-poder-judicio&Itemid=675). Acesso em 18.fev.2010. Estado se separaram, não faz sentido sustentar a ideia de que um tribunal que se pretende neutro em relação aos movimentos e manifestações sociais do país projete a noção de que se subordina a algum deles.3 É interessante notar como um símbolo tão claro de religiosidade e fé cristã está há tanto tempo exposto em salas de julgamento e associado diretamente à figura do julgador, sem que a população e os próprios magistrados, de forma ordenada, se manifestassem pela incompatibilidade entre tal símbolo e o recinto estatal. Fica claro que se a aceitação é universal é porque incompatibilidade não há. Na realidade, o símbolo de fé e a própria toga vêm reforçar a divinização inconsciente do papel do magistrado e do ambiente que o cerca. “Pode-se, assim, imaginar o Tribunal como uma espaço sagrado, que influencia o inconsciente das pessoas e do próprio juiz. Quando o magistrado põe as vestes talares, ele entra no arquétipo”. (PRADO, 2008) 5. Manifestações da relação entre a magistratura e o divino Piero Calamandrei (1997, p. 257), famoso advogado e doutrinador italiano, fez uma percuciente análise do perfil moral dos magistrados em sua famosa obra “Eles, os juízes, vistos por um advogado” (cuja primeira edição se deu em 1935), onde apontou as semelhanças existentes entre o ritual judiciário e o religioso: Estou cada vez mais convencido de que entre o rito judiciário e o rito religioso existem parentescos históricos muito mais próximos do que a igualdade da palavra indica. Quem fizesse um estudo comparativo do cerimonial litúrgico e das formas processuais perceberia na história certo paralelismo de evolução. Dallari (2007), ao seu turno, afirma que a magistratura foi envolvida numa aura de sacralidade, na qual os juízes adquiriram a imagem de seres perfeitos, livres de necessidades e limitações, superiores a todos os mortais e merecedores de um respeito próximo à veneração religiosa4. O autor prossegue dizendo que “os próprios 3 Extraído de notícia publicada no site (http://www.oab.org.br/noticia.asp?id=12663). Acesso em 18.fev.2010. 4 No mesmo sentido: “Os juízes são como os membros de uma ordem religiosa: é preciso que cada um deles seja um exemplo de virtude, se não quiser que os crentes percam a fé.” (CALAMANDREI, 1997, p. 264) magistrados acabaram sendo vítimas dessa superestimação, pois nem mesmo se admitia que se falasse publicamente de suas necessidades humanas e profissionais.”5 Diversos autores relatam o alto grau de compromentimento psicológico dos magistrados com a crença de possuírem atributos divinos, ao exibirem comportamento de superioridade, onipotência e intangibilidade. A arrogância de muitos juízes passou a ser compreendida como característica inerente ao cargo, chegando a ser apelidada pelos operadores do Direito de “juizite” – comportamento este que gera desconforto e temor nos advogados, nas partes dos processos e nos serventuários da Justiça que trabalham diretamente com tais magistrados. Grave defeito num juiz é a soberba; mas talvez seja uma doença profissional. Não sei se há juízes que, quando julgam, se crêem infalíveis; mas, se há, é justo reconhecer que nosso rito judiciário e, além dele, nosso costume forense parecem feitos de propósito para induzir o juiz à tentação do orgulho. A solenidade da audiência, as togas com as bordas douradas, o segredo místico da câmara de conselho, a unanimidade institucional da decisão, bem como as fórmulas de deferência tradicional pelas quais os advogados chamam os juízes de ‘excelentíssimos’ e suas frases de exagerada humildade – ‘vós me ensinais’, ‘lembro de mim mesmo’, ‘vossa iluminada sapiência’, e assim por diante -, tudo isso concorre para dar aos juízes uma opinião de si talvez um pouco superior à realidade. Sem querer, todas aquelas cerimônias produzem em torno deles uma atmosfera de oráculos. (CALAMANDREI, 1997, p. 62). Note-se a opinião de quatro juízes sobre o caráter supra-humano da atividade judicante por eles exercida: Como outrora, ao passarem os Sacerdotes da religião de Deus, o povo se inclinava leve e reverentemente por devoção e respeito, assim tenho a minha recôndita esperança de que dia virá em que o povo saberá reverenciar o juiz que passa, em sinal de respeito e acatamento à grandeza da missão de que a divina Providência o encarregou para o bem dos homens. (ROSA, 1999, p. 52). Nas nações civilizadas não há função mais elevada e digna que a do juiz. Grande é o seu poder e ao mesmo tempo temível, porque ele tem em suas 5 No mesmo sentido: “Quando um indivíduo (juiz) ainda jovem é submetido a pressões internas (o prestígio e a honorabilidade do cargo), ele dirige a maior parte de suas energias, no sentido de se transformar num ser absolutamente perfeito (e, portanto, infenso a críticas), por meio de um sistema rígido de normas íntimas. A imagem idealizada que faz de si próprio e o orgulho que experimenta por causa dos extraordinários predicados que (assim o sente) tem, que poderia ou deveria ter, só ficam satisfeitos com uma perfeição divina.” (RODRIGUES, 2007, p. 144). mãos a tranquilidade, a fortuna, o crédito, a honra, a liberdade e a própria vida de seus concidadãos. (LIMA, 2006, p. 49) Quando o julgador fala de si mesmo aparece com um discurso efetivamente alienado, transformando a si próprio com ares de divindade. O exemplo palmar desta ótica (aqui manifestada com todo o respeito) é a ‘Prece de um Juiz’, do magistrado aposentado JOÃO ALFREDO MEDEIROS VIEIRA, vertida para quinze línguas, alcançando, pois, a fama. E assim começa a prece: ‘Senhor! Eu sou o único ser na terra a quem tu deste uma parcela da tua onipotência: o poder de condenar ou absolver meus semelhantes. Diante de mim as pessoas se inclinam; à minha voz acorrem, à minha palavra obedecem, ao meu mandado se entregam… Ao meu aceno as portas das prisões se fecham… Quão pesado e terrível é o fardo que puseste em meus ombros!... E quando um dia, finalmente, eu sucumbir e já então como réu comparecer à tua Augusta Presença para o último juízo, olha compassivo para mim. Dita, senhor, a tua sentença. Julga-me como um Deus. Eu julguei como um homem.’ O texto explica-se por si só. E o que é pior: nós (juízes e povo) acreditamos na ideia do mito-juiz-divindade. (CARVALHO, 1993, p. 248). A liberdade de decisão e a consciência interior situam o juiz dentro do mundo, em um lugar especial que o converte em um ser absoluto e incomparavelmente superior a qualquer outro ser material. A autonomia de que goza, quanto à formação de seu pensamento e de suas decisões, lhe confere, ademais, uma dignidade especialíssima. Ele é alguém em frente aos demais e em frente à natureza; é, portanto, um sujeito capaz, por si mesmo, de perceber, julgar e resolver acerca de si em relação com tudo o que o rodeia. Pode chegar à autoformação de sua própria vida e, de modo apreciável, pode influir, por sua conduta, nos acontecimentos que lhe são exteriores. (Juíza Adriana Sette da Rocha Raposo, em decisão proferida nos autos do processo no. 01227.2007.027.13.00-5 da Única Vara do Trabalho de Santa Rita – PB6). Acima estão colacionados apenas alguns exemplares da auto-divinização dos juízes no exercício de suas atribuições. Como se vê, a correlação existente entre a função julgadora e os poderes divinos é absolutamente presente na psique de grande parcela de magistrados que pensam, agem, e julgam como seres superiores aos demais. 6 A decisão está publicada na íntegra no site (http://www.endividado.com.br/materias_det.php?id=19140). Acesso em 01.abr.2010. Além disso, a postura da população em relação aos juízes é de uma reverência próxima à veneração. A adulação dispensada repetidas vezes pelos advogados, servidores públicos e pessoas em geral tem o papel de reafirmar a crença no caráter especial possuído por estes profissionais e tal comportamento popular retroalimenta a conduta viciada7. Com isto, o conceito existente no inconsciente coletivo sobre o aspecto divinal da magistratura se mantém intacto e indiferente ao passar do tempo e à evolução da humanidade. A superstição da autoridade cria um círculo vicioso, em que o povo perdura nessa adoração primitiva (levando o pai a querer fazer do filho um ‘doutor’) e a ‘autoridade’ surgente exige o mesmo tratamento cerimonial e medroso dispensado aos que lhe antecederam. Ou seja, todo neófito juiz herda logo de cara, esse vício moral de se sentir acima do bem e do mal, e de ter um direito quase divino de ser adorado como ser superior e irresponsável. (RODRIGUES, 2007, p. 170). Além de o “arquétipo do juiz” estar atuante nas situações apontadas, é preciso lembrar que o próprio poder estatal conferido aos magistrados é fator igualmente relevante para promover modificação na personalidade daquele que possui os meios de subjugação. Como o poder jurisdicional está ligado à aplicação de sanções e à coerção de vontades, ter a posse desse poder é sinal da força que o juiz tem sobre os demais cidadãos e o que também é importante para fazer compreender o temor e a cerimônia dispensada aos magistrados. Segundo Eugène Enriquez (2007), a sanção não é um simples meio de organização do grupo social, no qual uma pessoa poderia expressar seu poder diretamente sobre outras pessoas. A sanção tem um papel de suma relevância para o homem e “alguns chegam a ver na força a essência do poder, ou pelo menos um elemento essencial para compreendê-lo”. (p. 23) Dessa maneira, a capacidade de poder impor a sua vontade no julgamento de uma demanda comumente mostra-se transformadora do psiquismo do juiz, que pode ser 7 No mesmo sentido: “Acatado pelos subalternos, respeitado pelos advogados, bem tratado pelas partes e demais autoridades, o juiz desprovido de maturidade tende a nutrir avantajado apreço por sua própria importância.” (NALINI, 2008, p. 102). tomado pela sensação de onipotência e superioridade, justamente em função de sua atribuição funcional. Quanto ao poder, diz Lacan que, quando alguém se vê ‘rei’, muda sua personalidade. Adão quando sobe ao poder, altera seu psiquismo. Estar no poder muda as paixões do sujeito. As coisas ao seu redor também mudarão, tudo agora gira ao seu redor, seus subordinados, por terem sido educados para servir ou por vontade de participar do poder, são levados a assumir uma nova posição diante dele. (LACAN apud HORTA, 2008, p. 317) Em contrapartida, é preciso ressaltar que a expectativa de perfeição lançada sobre os ombros dos magistrados lhes gera o peso de uma cobrança interna extremamente forte. A responsabilidade de bem julgar somada à constante vigilância da sociedade para medir se este juiz é suficientemente íntegro, culto, honrado, dentre outros atributos, faz com que muitos sofram pelo isolamento social e pela solidão. Há um interessante artigo de um juiz, Sidnei Beneti (2008), com orientações sobre a conduta recomendável para um magistrado em exercício no interior do país, que bem demonstra o grau de exigência de retidão comportamental incidente sobre esses profissionais. Dentre as exigências listadas estão: frequentar seletivamente as atividades sociais; evitar integração em grupos restritos de churrascos, pescarias, esportes, jantares, evitando a cumplicidade grupal; cuidar que os membros da família ajam da mesma forma, porque são evidências externas da formação do juiz. Em razão da pressão social sofrida pelo magistrado no sentido de submeter sua conduta ao modelo divinizado contido no “arquétipo do juiz”, a tendência de comportamento mais comum é a do isolamento social. Ao evitar a convivência, o juiz procura não expor os aspectos imperfeitos de sua personalidade e, com isso, manter a aparência de ser cumpridor do legado de Zeus. O preço que se paga por este isolamento é a solidão, conforme observou Calamandrei (1997, p. 355): O drama do juiz é a solidão, porque ele, que para julgar deve estar livre de afetos humanos e situado um degrau acima de seus semelhantes, raramente encontra a doce amizade que requer espíritos no mesmo nível e, quando a vê aproximar-se, tem o dever de esquivá-la com desconfiança, antes de ter de perceber que era movida apenas pela esperança de seus favores ou de ouvir recriminarem-na como traição à sua imparcialidade. Ademais, a falta de convívio social pode ainda trazer prejuízo maior ao juiz que é a perda de parâmetro de razoabilidade nos seus julgamentos. Considerando que sua vida segue pautada por rígidas normas de conduta, é por meio desta lente que o magistrado passa a visualizar o comportamento alheio. Com isso, o excessivo rigor no momento de proferir uma decisão judicial pode se tornar uma tônica profissional, seja ao evitar uma posição jurisprudencial mais branda, seja ao aplicar uma pena demasiadamente dura a um criminoso. 6. Necessidade de suporte psicológico Em razão de todas as dificuldades vivenciadas pelo magistrado no exercício de sua profissão (cobrança social de perfeição de conduta; peso da responsabilidade; sofrimento decorrente do isolamento social; bem como transtornos advindos do sentimento de superioridade e onipotência), é que o acompanhamento psicológico deveria ser instituído de forma permanente em todos os tribunais do país. Como a função de dirimir conflitos é muito desgastante, Nalini sugere que implantação de um serviço de acompanhamento psicológico ao juiz. Tal providência seria muito útil para a Justiça, pois permitiria ao julgador entrar em contato com os próprios preconceitos e vulnerabilidades, percebendo-se um ser sensível. Muitos problemas resultantes de disponibilidades dos magistrados seriam evitados se os juízes tivessem recebido orientação psiquiátrica, terapia psicanalítica ou um acompanhamento profissional. (PRADO, 2008, p. 22) Há até pouco tempo, o candidato ao concurso de juiz costumava ser submetido a exame psicotécnico, de caráter eliminatório, antes do ingresso na magistratura. Esta avaliação sempre foi alvo de irresignação por parte dos candidatos, sob alegação de não possuir critério objetivo na seleção, além de não estar devidamente regulamentada em lei. O Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento (Súmula de Jurisprudência no. 686) de que, ante a inexistência de lei específica, o candidato a concurso público não será obrigado a se submeter a exame psicotécnico. Em razão desse entendimento, vários tribunais deixaram de incluir o teste psicotécnico como etapa do concurso público para seleção de juízes. A relevância da avaliação psicológica dos magistrados não se limita ao momento da seleção dos candidatos. Ao contrário: ela cresce em importância durante a prática profissional, pois é quando emergem os conflitos internos decorrentes do exercício da função judicante. A criação de um suporte psicológico constante para os juízes seria um instrumento valioso não só para dar vazão à pressão social sentida, mas principalmente para servir como indutor do auto-conhecimento indispensável para o exercício da profissão livre da influência de paixões e convicções pessoais, advindas da formação cultural, familiar e religiosa do magistrado. 7. Considerações finais Como se viu, a interpretação dos mitos e símbolos presentes na cultura jurídica são fundamentais para a compreensão do material existente no inconsciente coletivo da humanidade sobre o papel do magistrado e sobre a necessidade de esse profissional preencher todos os atributos divinos que comporiam o “arquétipo do juiz”. A existência de símbolos comuns entre as atividades religiosa e jurisdicional; o fato de a atribuição de julgar – por sua importância – ter sido avocada pelo principal deus grego, Zeus; bem como pela exigência social de adoção de conduta livre de imperfeições pelos juízes são indicações da ligação entre a magistratura e o divino. Esta ligação com o divino é manifesta, de forma inconsciente, pela postura de onipotência e arrogância ostentada por magistrados de várias culturas, conforme nos relata o doutrinador italiano Calamandrei, em obra publicada há quase um século, o que só confirma a tese da existência de uma imagem arquetípica do que seria o “juiz universal” que não oscila com o passar do tempo nem de sociedade para sociedade. Sabendo que o magistrado, ao tomar posse no cargo de juiz, além de desempenhar uma relevante função pública, também ocupará um lugar de referência no imaginário social, é salutar que a ele esteja disponibilizado, pela própria insituição, um acompanhamento psicológico permanente, a fim de que o processo de autoconhecimento lhe dê suporte emocional para enfrentamento da cobrança social e reconhecimento de sua falibilidade humana. Referências Bibliográficas ALVES, Fábio Wellington Ataíde. O Juiz: retrospectiva e perspectivas. Disponível em (http://www.clubjus.com.br/?artigos&ver=2.17607&hl=no). Acesso em 31.03.2010. BENETI, Sidnei Agostinho. O Juiz no Interior: a função social da personalidade do juiz. In: Zimerman, David e Coltro, Antonio Carlos Mathias (org.). Aspectos Psicológicos na Prática Judiciária. 2ª edição. Campinas: Millennium, 2008. BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega, Volume I. Petrópolis: Vozes, 1986. BYINGTON, Carlos. In prefácio de Brandão, Junito de Souza. 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Thus, by pointing out the psychological profile of these professionals, this article also has the intention to demonstrate the need for the establishment of organizational psychological support for the judges. Keywords: Archetype of the judge. Mythology. Symbology.