Cenas Soteropolitanas II Sáb, 18 de Junho de 2011 14:16 - por Cacilda Povoas Minha proposta nessa coluna é fazer comentários sobre peças de teatro, peças de música, peças de dança, me interessa a obra que se desenrola diante dos meus olhos, na minha presença e me interessa, sobretudo, para onde ela nos leva. Hoje espero que você leitor não pense que eu mudei de assunto, ainda estarei falando da platéia. Dia 10 de maio fui à palestra do presidente da Fundação Nacional das Artes, no Fórum de Políticas Públicas, promovido pela Secretaria de Cultura do Estado da Bahia. A Sala do Coro do Teatro Castro Alves estava repleta de artistas, produtores e gestores da cultura. No palco Antonio Grassi falou em efetivar o Sistema Nacional de Cultura e respondeu umas tantas perguntas. Dentre outras coisas, respondeu a Tainan sobre o Vale Cultura, a um representante da Cultura Afoxé sobre políticas para os Afoxés e a um outro que comentava sobre a ameaça 1/5 Cenas Soteropolitanas II Sáb, 18 de Junho de 2011 14:16 - de extinção de muitas manifestações culturais populares. Essas perguntas trazem muitas questões sobre cultura popular, mercado cultural, linguagens artísticas e tantos outros temas transversais, mas pouco ou nada se disse sobre tais questões. Como abarcar as múltiplas e diversas expressões culturais? Até que ponto pensar políticas de fomento para cada linguagem artística não é já uma maneira de colonizar as manifestações culturais daqueles que se encontram mais distantes dos modelos ocidentais de cultura? Visto que a própria idéia de arte e de linguagens artísticas pertence já a determinada cultura. O desafio é grande e a gestão de Gil e depois a de Juca caminharam no sentido de tentar responder a essa diversidade. Para onde vai nos levar a nova gestão eu não sei e a visita do presidente da Funarte não foi muito esclarecedora. Um amigo me disse, “tiramos nos dados e estava escrito, volte oito casas e fique uma vez sem jogar”. Na palestra sentei ao lado de Olga Gómez, diretora do espetáculo Pássaro do Sol. Com texto de Myriam Fraga, este espetáculo de bonecos ganhou o Prêmio Braskem de Melhor Espetáculo Infanto-Juvenil 2010. Assisti ano passado, no Teatro SESI Rio Vermelho, naveguei nas sombras dessa história com cheiro de floresta, história de homens, pássaros, fogo e saber. Tem tom de lenda, de história contada e recontada numa roda, ou ao pé da cama para fazer dormir a criança, história antiga, de terras distantes, localidades afastadas das cidades e dos nossos afazeres diários. Ainda não li o conto, ouvi a história anunciada pelos bonecos e contada pelas sombras e sons, os elementos desse espetáculo tramavam com delicadeza nos fazendo conhecer o homem pássaro do sol. Fiquei maravilhada com a sintonia fina entre os elementos. Gosto de histórias de homens pássaros, histórias antigas de encantamento, onde não há uma distância entre humano e animal, todos são gente, como nos mitos da origem de povos indígenas. Elas me remetem ao tempo quando as florestas recobriam toda a extensão do que hoje são as cidades e os pássaros dominavam os céus. 2/5 Cenas Soteropolitanas II Sáb, 18 de Junho de 2011 14:16 - Ainda em maio assisti Luz Negra, com texto de Álvaro Menén Desleal, traduzido e adaptado por Caica Alves e Rino Carvalho. Só mesmo grandes atores e um texto forte podem sustentar um espetáculo protagonizado por pedaços de corpos imóveis. Evelin Buchegger e Caica Alves nos enredam nos devaneios daqueles pedaços de corpos. Eles esperam ser vistos pelos que passam, esperam ser movidos por eles e ali permanecem imóveis. Da platéia pensamos no mistério e única certeza da vida, a morte. Saí do espetáculo querendo conhecer a obra deste dramaturgo salvadorenho. Dia 5 de junho revi Bença, papel e lápis na mão tomei nota de algumas falas. O espetáculo nos envolve numa onda, é uma louvação, um enaltecimento a experiência, a história acumulada de quem já viveu mais tempo. E Makota Valdina nos fala do tempo antes do tempo do ser humano, nos lembra que nas várias culturas se criam histórias e lendas para se falar desse tempo. Como não estávamos lá para presenciar tudo é história criada. Makota nos fala do tempo na cultura banto, a cultura do Congo. Nesse ponto lembro de Darcy Ribeiro nos alertando, na introdução de Maíra, que os povos indígenas com os quais teve contato não têm nenhum fanatismo da verdade única. “São completamente capazes de aceitar múltiplas versões de um mesmo evento, tomando todas como verdadeiras”. Bença, Makota Valdina. Nas palavras dela, a bença serve para quem toma, quem abençoa deseja boa sorte, proteção, felicidade. É muita coisa boa vibrando, é a palavra imprimindo sua marca. Essas culturas capazes de aceitar as histórias criadas por outras culturas são culturas com maior capacidade de diálogo, de encontro. Estive no TCA dia 7 de junho e ouvi José Eduardo Agualusa, segundo ele, quanto mais possibilidade de encontro houver no mundo, mais interessante ele será. Ele nos contou que quando veio ao Brasil, depois do lançamento de O ano em que Zumbi tomou o Rio, as pessoas de uma certa elite olhavam-no como se ele tivesse dito um palavrão. Para Agualusa literatura é pensamento, é reflexão, o escritor deve contribuir para o debate. O Teatro Castro Alves estava lotado para ouvir o escritor angolano falar de língua portuguesa, poder e diversidade cultural. 3/5 Cenas Soteropolitanas II Sáb, 18 de Junho de 2011 14:16 - Dia desses, enquanto jantava, ouvi a retumbante matéria sobre o ensino do português nas escolas públicas, fiquei pensando em mandar para o editor do jornal um exemplar de Policarpo Quaresma. Um pouco de Lima Barreto ajuda a pensar um pouco melhor, através de Policarpo ele propõe a mudança do idioma oficial do Brasil para o tupi-guarani, porque o falar e o escrever dos brasileiros sofrerem constantemente censura por parte dos “proprietários da língua”. Esta provocação de Lima Barreto de 1911 é muito boa. A língua é viva, é construída, riscada e rabiscada pelos grupos falantes, é diuturnamente misturada, é maturada e ajustada aos usos e sabores. Sim senhor, se eu disser que mandei concertar os meus sapatos e com eles fui ao concerto da OSBA você não venha me dizer que eu estou errada, porque do século XIV ao século XIX eu poderia concertar a vontade o meu sapato, depois inventaram que os sapatos só podiam ser consertados e aqui fico eu, em pleno século XXI, procurando no imenso livro do Houaiss com que letra irei reparar e harmonizar minha ignorância. É preciso ter olhos e coração bem abertos, já dizia Gilberto Gil. A matéria reverberou pelos jornais, rádios e tvs do Brasil. Dante Lucchesi, obrigada pelo artigo do Jornal A Tarde, foi muito bom ler seu texto publicado dia 4 de junho. Uma voz sensata nessa discussão sobre o português falado nos quatro cantos do Brasil e o ensino da norma culta. Nosso português caboclo, português tupinambá iorubá, português nosso cantado, trovado, dançado. Não devolvemos o português para os seus legítimos donos, como sugeriu Lima Barreto com Policarpo Quaresma, porque fizemos nossa 4/5 Cenas Soteropolitanas II Sáb, 18 de Junho de 2011 14:16 - língua portuguesa, em multifacetadas misturas, português atravessado por mais de 400 línguas, com força suficiente para re-configurar em cada canto o seu modo de falar, estabelecendo modos de falar, em cada local, capazes de dialogar com toda a nação. Estamos ligados de norte a sul, leste a oeste por essa nossa língua portuguesa imposta e transposta para novas geografias e necessidades, com ilhas de línguas diversas, cantadas e dançadas pelos povos da floresta, rodeadas por cidades de falantes do nosso português climatizado. O português imposto pela coroa foi tropicalizado de divinas maneiras. Nosso maior capital, essa diversidade realizada na conversa, na contação de historia, nos ritos, nas rezas, nas danças, nas peças musicais e teatrais e nos gritos. Para configurar essas expressões, nós, brasileiros munidos dessas diversas climatizações do português, reconfiguramos e refazemos a língua nossa de cada dia. Mas quando Paulo, o pedreiro, lindo negro, pedreiro caprichoso, temperado nos modos, quando Paulo, o pedreiro, nos diz que não fará o serviço porque a parede está merejando, pensamos de imediato que ele errou. Era um pedreiro preto quem falava, nós, formados em escolas privadas, desconhecíamos a palavra, portanto ela não existia, nem ele existia, só como função pedreiro, sem fala, um aprendiz da norma culta que abandonou os estudos. Leviana lógica capenga, improdutiva, insuflada por racismo disfarçado de saber. Um doutor fala em nome da ciência, entendo, a língua é viva, a língua é reinventada na conversa nossa de cada dia, constantemente remodelada nos modos e usos. Merejar teve muitos usos na comunidade quilombola de onde veio Paulo para fazer as casas das gentes de norma culta de cá dessa cidade encravada em Kirimuré Paraguaçu e ignorante dela. 5/5