UNIVERSIDADE DE MARÍLIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO
CASSIA CALVO DO NASCIMENTO
Frida Kahlo:
das telas pictóricas às
telas cinematográficas
Orientação – Maria Cecília Guirado de Carvalho
UNIMAR
Marília - SP
2010
UNIVERSIDADE DE MARÍLIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO
CASSIA CALVO DO NASCIMENTO
Frida Kahlo:
das telas pictóricas às
telas cinematográficas
Dissertação de mestrado apresentada como
parte obrigatória para obtenção do Título de
Mestre no Programa de Pós-Graduação em
Comunicação da Universidade de Marília –
UNIMAR. Orientação da Profª Drª Maria Cecília
Guirado de Carvalho. Área de Concentração em
Mídia e Cultura.
UNIMAR
Marília - SP
2010
Nascimento, Cassia Calvo do.
Frida Kahlo: das telas pictóricas às telas
cinematográficas. Cassia Calvo do Nascimento – Marília:
UNIMAR, 2010.
162 f. : il.
Orientadora: Maria Cecília Guirado de Carvalho.
Dissertação (Mestrado em Comunicação, Mídia e Cultura) –
Faculdade de Comunicação, Educação e Turismo,
Universidade de Marília, Marília, 2010.
1. Mito 2. Cinema 3. Arte 4. Frida Kahlo. I. Nascimento,
Cassia Calvo do. II. Frida Kahlo: das telas pictóricas às
telas cinematográficas.
UNIMAR – UNIVERSIDADE DE MARÍLIA
NOTAS DA BANCA EXAMINADORA DA DEFESA DE MESTRADO
CASSIA CALVO DO NASCIMENTO
Frida Kahlo: das telas pictóricas às telas cinematográficas
Data da Defesa: ____/____/ 2010
Banca Examinadora
Profª. Drª. Maria Cecília Guirado de Carvalho.
ORIENTADORA
Avaliação: _______________________ Assinatura: ______________
Prof. Dr. Roberto Reis de Oliveira.
UNIMAR
Avaliação: _______________________ Assinatura: ______________
Profª. Drª. Maria Carmen Guimarães Possato.
UNIRP
Avaliação: _______________________ Assinatura: ______________
Marília / 2010
Dedico esse trabalho ao querido
artista plástico Marcos Sestini, pelo
seu amor a Arte.
AGRADECIMENTOS
Toda lista de agradecimentos, por mais extensa que seja, esquece de pessoas,
pois o trabalho é longo e a ajuda constante.
Começo pelos não nomeados, pois eles também estão nas entrelinhas. Meus
amigos, minha família, meus colegas. Minha gratidão aos meus amigos, Augusto
Vasconcelos e Luciana Leme e Silva, colegas de mestrado, de almoço, de dúvidas e de
sonhos. Para Dinamara Garcia, uma amiga em tudo e um incentivo constante.
Para minha querida orientadora Maria Cecília Guirado, um agradecimento que
vai
além
das
orientações,
indicações
e
dedicado
acompanhamento.
Mas,
especialmente, por ter acreditado em mim e ter me dado oportunidade e privilégio de
estudar ao seu lado. Obrigada, por ter feito de mim alguém melhor.
Obrigada ao meu companheiro Marcos Sestini, pelas horas a fio ao meu lado,
pelos sábios palpites e correções.
Obrigada a Bu, que nos fazia rir e relaxar, intercalando horas de trabalho
contínuo.
Obrigada também aos meus pais e filhas Heloisa e Natalia para os quais, depois
de tantas páginas, eu não encontro palavras, e talvez nunca venha a encontrar. Mas é
disto que são feitas as dissertações, da procura constante pela ideia resumida.
O selvagem adora ídolos de pau
e pedra; o homem civilizado,
ídolos de carne e sangue.
Bernard Shaw
Figura 1: Diego e Eu, 1949.
Fonte: Kettenmann, 1994
RESUMO
Esta dissertação de mestrado se propõe abordar a história de Frida Kahlo por meio de
sua produção artística, da obra biográfica, elaborada por Hayden Herrera e da obra
cinematográfica, produzida por Julie Taymor. A pesquisa tem como objetivo mostrar os
caminhos percorridos pela artista plástica mexicana na construção do seu próprio mito:
desde a escolha da vestimenta até a temática autobiográfica de suas pinturas. As
publicações de algumas biografias e do El Diário de Frida Kahlo: un íntimo autorretrato,
despertaram a curiosidade do público e da mídia sobre a pintora. Mas, foi o filme Frida,
no início deste século XXI, que divulgou a personagem Frida Kahlo. Os conflitos
pessoais, culturais e a relação entre oprimido/opressor são revistas neste trabalho por
meio da transcodificação e da análise da obra fílmica, literária e sobretudo da criação
mítica de Frida Kahlo.
Palavras chave: Frida Kahlo; Arte; Mídia; Cinema; Mito.
ABSTRACT
This master degree work focuses on Frida Kahlo‟s history taking into account her artistic
production, her biography written by Hayden Herrera and the movies production by Julie
Taymor. The research aims to show the ways that were followed by the Mexican artist in
order to build her own myth: from the choice of the dressing to the autobiographical
theme of her paintings. The publications of some biographies and El Diário de Frida
Kahlo: un íntimo autorretrato aroused the people‟s and the media‟s curiosity about the
painter. However Frida Kahlo‟s character was announced by the film Frida which was
produced at the beginning of the XXI century. The personal and cultural conflicts and the
relation between
the oppressed /oppressor
are reviewed in this paper through the
transcoding and analysis of the film work, the literary production and especially Frida Kahlo‟s
mythical creation.
Keywords: Frida Kahlo; Art; Media; Movies; Myth.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1:
Diego e Eu, 1949.......................................................................
6
Figura 2:
Autorretrato com Trança, 1941..................................................
13
Figura 3:
Autorretrato com Colar de Espinhos, 1940................................
15
Figura 4:
Autorretrato com Cabelo Solto, 1947........................................
21
Figura 5:
Autorretrato, 1940......................................................................
23
Figura 6:
Autorretrato com mono Y perico, 1942......................................
23
Figura 7:
Recordação ou O coração, 1937...............................................
25
Figura 8:
A cama de Frida Kahlo com esqueleto preso ao dossel...........
25
Figura 9:
A Coluna Partida, 1944..............................................................
28
Figura 10
Retrato de Frida.........................................................................
37
Figura 11
Retrato de Frida.........................................................................
37
Figura 12
Retrato de Frida.........................................................................
37
Figura 13
Retrato de Frida.........................................................................
37
Figura 14
Retrato de Frida.........................................................................
37
Figura 15
Retrato de Frida.........................................................................
37
Figura 16
Retrato de Frida.........................................................................
38
Figura 17
Retrato de Frida.........................................................................
38
Figura 18
Retrato de Frida.........................................................................
38
Figura 19:
Frida vestida de Homem............................................................
39
Figura 20:
Frida vestida de homem............................................................
39
Figura 21:
Autorretrato, 1948......................................................................
40
Figura 22:
Autorretrato como Tehuana ou Diego no Meu pensamento ou
Pensando em Diego, 1943........................................................
Figura: 23
40
Diego e Frida 1929-1944 (I) ou Retrato Duplo, Diego e Eu (I),
1944..........................................................................................
49
Figura 24:
Retablo, por volta de l943..........................................................
51
Figura 25:
O Hospital Henry Ford ou A Cama Voadora, 1932...................
52
Figura 26:
Autorretrato com o Retrato do Dr. Farill, 1951...........................
55
Figura 27:
Autorretrato dedicado ao dr. Eloesser, 1940.............................
56
Figura 28:
O Marxismo Dará Saúde aos Doentes, 1954............................
57
Figura 29:
Frida e Estaline ou Autorretrato com Estaline, 1954.................
58
Figura 30:
Uns Quantos Golpes, 1935.......................................................
62
Figura 31:
Pensando na Morte,1943..........................................................
64
Figura 32:
Modelo de Field.........................................................................
68
Figura 33:
Quadros fílmico – imagens de 1 a 16........................................
69 a 73
Figura 34:
Sequência da viagem de Diego e Frida.....................................
79
Figura 35:
Mostrando a passagem do tempo.............................................
79 e 80
Figura 36:
Sequência dos quadros fílmicos de Frida na cama...................
80 e 81
Figura 37:
Animação - “Meu vestido está pendurado ali”...........................
83
Figura 38:
A casa de Frida..........................................................................
83 e 84
Figura 39:
Acidente de Frida.......................................................................
85
Figura 40:
Frida no hospital........................................................................
85
Figura 41:
Frida no espelho........................................................................
86
Figura 42:
Sequência de quando Frida procurou Diego.............................
86 e 87
Figura 43:
Diego Rivera no Hospital...........................................................
87
Figura 44:
Diego Rivera e Rockfeller..........................................................
89
Figura 45:
Sequência de quadros fílmico da capilla Riveriana com o
afresco Cântico à Terra e aos que Trabalham e Libertam,
Diego Rivera, 1926 -1927..........................................................
Figura 46:
90
Vista da nave, da cúpula, de algumas paredes pintadas por
Rivera. Cântico à Terra e aos que Trabalham e Libertam,
Diego Rivera, 1926 1927...........................................................
90
Figura 47:
Capela Sistina, Michelangelo, 1508 -1512................................
91
Figura 48:
Teto da Capela Sistina, Michelangelo, 1508 -1512...................
92
Figura 49:
Cena do cemitério......................................................................
94
Figura 50:
O Dia dos Mortos.......................................................................
94
Figura 51:
Cenas de proteção a Trotsky.....................................................
96
Figura 52:
As tias de Frida..........................................................................
96
Figura 53:
A morte e a representação em contra-plongée.........................
97
Figura 54:
O ateliê de Diego e Frida...........................................................
98
Figura 55:
Separação de Frida e Diego......................................................
99
Figura 56:
Frida na prisão...........................................................................
100
Figura 57:
Cenas do vernissage de Frida...................................................
101
Figura 58:
Frida em contra-plongée............................................................
102
Figura 59:
Frida em passeata pelo partido comunista................................
103
Figura 60:
Frida posando como modelo para Diego, vestida de
“camarada”................................................................................
Figura 61:
Frida vestida de noiva para seu casamento como índia
mexicana...................................................................................
Figura 62:
103
103
Frida fumando pensativa sentada em uma poltrona quando
esteve nos Estados Unidos.......................................................
103
Figura 63:
Frida e Diego no dia do casamento...........................................
103
Figura 64:
Frida almoçando com Diego Rivera na cozinha da casa azul...
103
Figura 65:
Frida no hospital divertindo-se com crianças............................
103
Figura 66:
Frida aconselhando Diego.........................................................
104
Figura 67:
Frida e sua criada......................................................................
104
Figura 68:
Frida posando como modelo para capa da revista Vogue........
104
Figura 69:
Casa azul onde viveu Frida Kahlo.............................................
106
Figura 70:
Frida e Diego na segunda lua-de-mel.......................................
107
Figura 71:
Série de panorâmicas do filme Frida nas pirâmides..................
108
Figura 72:
Quadro fílmico do desenho que Diego fez para Frida
representando uma pomba e um sapo enorme........................
110
Figura 73:
Frida no dia se de seu casamento.............................................
112
Figura 74:
As duas Fridas, 1939.................................................................
112
Figura 75:
Frida com sua criada.................................................................
112
Figura 76:
Frida apresentando-se à Diego.................................................
112
Figura 77:
Quadros filmicos com Lupe levantando as próprias saias e as
de Frida para comparar as pernas de ambas...........................
113
Figura 78:
Lupe ensinando Frida a cozinhar..............................................
113
Figura 79:
Autorretrato com vestido de veludo, 1926.................................
114
Figura 80:
Quadros fílmico do primeiro beijo com Diego............................
115
Figura 81:
Autorretrato, 1938......................................................................
117
Figura 82:
Sequência dos quadros fílmicos do acidente de Frida..............
122 e 123
Figura 83:
Quadro fílmico da animação de caveiras e olhos com caveira.
124 e 125
Figura 84:
Sequência dos quadros fílmicos no hospital.............................
126
Figura 85:
Pai de Frida preparando o Cavalete para que ela começasse
a pintar e Frida pintando seu retrato mirando-se em um
espelho, colocado no dossel de sua cama...............................
Figura 86:
128
Quadros fílmico da sequência de Alejandro. Tomada de
câmera única e continua............................................................ 129 e 130
Figura 87:
Sequência do assassinato de Trotsky.......................................
131 e 132
Figura 88:
Cena da festa do casamento de Frida e Rivera........................
133
Figura 89:
Sequência dos quadros fílmicos de Frida cortando cabelos.....
134
Figura 90:
Autorretrato com Cabelo Cortado, 1940....................................
135
Figura 91:
Página do diário de Frida com os dizeres em inglês na obra
fílmica (à esquerda) e com os dizeres em espanhol no diário
original (à direita).......................................................................
137
Figura 92:
Frida na cama com a perna amputada......................................
138
Figura 93:
Sequência fílmica: La columna rota..........................................
139
Figura 94:
Sequência em que lágrimas reais escorrem da tela enquanto
Frida pinta..................................................................................
140
Figura 95:
Cadeira de rodas de Frida.........................................................
140
Figura 96:
Quadros fílmicos da morte de Frida..........................................
141 e 142
Figura 97:
Trecho da música, pintado na parede, tirado da obra
Autorretrato com Cabelo Cortado.............................................
144
Figura 98:
Página do diário de Frida...........................................................
145
Figura 99:
El sueño, 1940...........................................................................
147
Figura 100:
Quarto de Van Gogh, 1889........................................................
147
Figura 101:
O pássaro azul...........................................................................
148
Figura 102:
Autorretratos com Macacos, 1943.............................................
150
Figura 103:
Autorretrato, 1930......................................................................
155
Figura 2: Autorretrato com Trança, 1941
Fonte: Kettenmann, 1994
SUMÁRIO:
Introdução......................................................................................................................
16
1. Construção do mito.................................................................................................
22
1.1.
O poder de Frida...................................................................................
22
1.2.
Trajes do trágico....................................................................................
33
1.3.
Dois acidentes graves...........................................................................
45
1.4.
Quadros votivos....................................................................................
50
1.5.
Identidade nacional...............................................................................
59
2. Narrando Frida por quadros em movimentos..........................................................
65
2.1.
A passagem do tempo..........................................................................
78
2.2.
Posições de câmera revelam a personagem........................................
85
2.3.
Locações mexicanas.............................................................................
105
2.4.
O sapo e a pomba.................................................................................
110
3. A simbiose da vida e da arte...................................................................................
118
3.1.
O acidente e suas sequelas..................................................................
121
3.2.
Efeitos especiais...................................................................................
130
3.3.
Trilha sonora.........................................................................................
143
3.4.
As cores de Frida..................................................................................
144
Considerações finais.....................................................................................................
151
Referências...................................................................................................................
156
1.
Bibliográficas.......................................................................................... 156 à 159
2.
Periódicos...............................................................................................
159
3.
Documentos eletrônicos........................................................................
160
Anexo 1.........................................................................................................................
161
Anexo 2.........................................................................................................................
162
Figura 3: Autorretrato com Colar de Espinhos, 1940
Fonte: Kettenmann, 1994
INTRODUÇÃO
As concepções artísticas, de um modo geral, costumam apresentar formas
singulares de expressão do íntimo humano, revelando seus diversos matizes
emocionais. Permitem refletir sobre diversos aspectos que são comunicados pelo seu
autor, ao mesmo tempo, intrigam e despertam sentimentos.
Conhecer a vida de um artista envolve diversos estudos e pesquisas sobre
circunstâncias peculiares de sua trajetória. Frida Kahlo como mulher e intelectual, atuou
em lutas políticas pelo socialismo no México. A convivência com artistas de vanguarda
de sua época, a relação amorosa conturbada com o pintor Diego Rivera e a construção
de sua própria imagem já mereceram muitos escritos especializados; mas Frida ainda
estava resguardada do grande público.
Na última década, a pintora caiu nas redes globais da mídia. Passou a ser
conhecida e valorizada. Sua imagem com trajes indígenas mexicanos, com
sobrancelhas grossas e olhar penetrante é um dos ícones da arte do século 20.
Personagem de biografias, estudos estéticos e até psicanalíticos, Frida só explodiu nos
meios de comunicação depois da cinebiografia estrelada por Salma Hayek no papel
principal.
O filme Frida, dirigido por Julie Taymor, lançado no Brasil em 2003, trouxe a
pintora mexicana para a berlinda. Pessoas comuns passaram a comentar a seu
respeito, em especial sobre o amor dela por Diego. Na maioria das vezes, a perspectiva
das observações recai sobre a história dramática de Frida, deixando sua arte para
segundo plano.
Frida, mulher, latino-americana, deficiente física e artista plástica fez um mito de
si mesma? De que modo ela reaparece em nosso contexto contemporâneo, e como as
pessoas recebem suas mensagens? O filme de Taymor reforça e reitera a imagem da
mulher oprimida do México, que por extensão, evoca as mulheres que se identificam
com a personagem?
17
A metodologia empregada foi a partir da abordagem fenomenológica
hermenêutica, utilizou-se de levantamento bibliográfico e cinematográficas, fazendo uso
do método comparativo.
Na tentativa de buscar possíveis respostas para este trabalho, apoiou-se em
autores que auxiliam a discussão no âmbito da comunicação, das artes, da moda, da
literatura, da antropologia e até da história.
É extensa a lista de teóricos que auxiliaram na realização e sustentação deste
trabalho, sem o qual não teria sido possível, alguns tiveram destaque maior. Como:
Campbell e Eliade para falar do mito; Freire sobre a questão do oprimido; Chevalier e
Guimarães ofereceram teoria sobre de símbolos e cores; Aristóteles, Gancho e Cabral,
quanto à narrativa; Field e Martin, sustentam teorias cinematográficas; Cortez, Morais e
Mota, na história do México; Gömbrich, Chilvers, Gibson e Wölfflin para auxiliarem na
análise das obras de arte de Frida Kahlo. Quando o assunto a tratar é mídia; MartinBarbero e Thompson foram uma ajuda importante. Kettenmann e Herrera com a
biografia definitiva de Frida Kahlo, foram constantemente consultado.
Explora-se nesta dissertação as obras de três mulheres como elementos de
ligação transdiciplinar, acompanhando a transcodificação da tinta da tela para o texto
impresso, que é depois traduzido por imagens em movimento. Para dar conta de três
linguagens diferentes, recorreu-se a diferentes olhares: 1º - Frida Kahlo, protagonista de
uma linguagem visual pictórica, comunica não só uma mensagem autobiográfica, mas
simboliza os conflitos da mulher do século XX. 2º - Haydem Herrera, que transcodifica
essa linguagem visual de Frida juntamente com diversos documentos e depoimentos
coletados para uma obra literária biográfica “Frida: Una biografía de Frida Kahlo”; e, por
fim, 3º - Julie Taymor, que, juntando e adaptando a obra pictórica de Frida com a obra
literária de Herrera, expõe os acontecimentos, usando a linguagem cinematográfica,
que narra a história de amor entre dois artistas plásticos mexicanos: Frida Kahlo e
Diego Rivera, um casal controverso, em meio a separações e reconciliações.
O filme de Taymor leva às telas cinematográficas a história de Frida Kahlo, tendo
como protagonista a atriz Salma Hayek, que desde os 12 anos de idade ambicionava
interpretar a famosa pintora. A película conta com a participação de um grande elenco
18
com Alfred Molina, no papel de Diego Rivera, Geoffrey Rush, como Leon Trotsky,
Antonio Banderas, interpretando o muralista Siqueiros, Ashley Judd como a fotógrafa
Tina Modotti e a atuação de Edward Norton no papel de Nelson Rocckfeller. Vencedor
de dois Oscars: trilha sonora e melhor maquiagem, a trilha foi composta por Elliot
Goldenthal, responsável pela amarração sonora do longa-metragem, que conta com a
participação de Caetano Veloso, Lila Downs e Chavela Vargas. A maquiagem é de
John E. Jackson e Beatriz De Alba. Com duração de 123 minutos, o drama foi lançado
nos Estados Unidos, em 2002, pela produtora Miramax Films, realizado inteiramente no
México em 2001.
Ao contrário de muitos artistas, Frida não começou a pintar por vocação, mas por
necessidade. Depois de um grave acidente de trânsito, quando tinha apenas 17 anos
de idade - devido a problemas financeiros acarretados por este fato - a alternativa
encontrada para ajudar os pais, foi a pintura. Anos mais tarde, casa-se com o muralista
Diego Rivera, que a levou por uma vida de sofrimentos, devido a inúmeros casos fora
do casamento, inclusive com Cristina, irmã de Frida.
Na narrativa que se desenrola no filme, Frida tem um caso amoroso com Leon
Trotsky, em um período em que o casal dá abrigo ao russo e sua esposa, perseguidos
por Stalin. Trotsky é assassinado e Frida é presa e interrogada, para se descobrir o
paradeiro de Diego. É quando sofre gangrena tendo os dedos de um dos pés
amputados. Depois ficara dependente de morfina e impossibilitada de andar, pois teria
também uma das pernas amputadas.
Frida faz a última aparição em público na inauguração de sua exposição, indo ao
vernissage deitada e carregada em sua própria cama. Nesse evento, Diego - comovido
- reconhecerá a artista e companheira como o maior acontecimento de sua vida. Ela
entrega de presente para Diego um anel pelos seus 25 anos de casados. Rivera fica
sem entender o fato, sendo que faltavam ainda duas semanas para completar as bodas
de prata. Mas a artista sabia de algum modo que não lhe restava muito tempo de vida.
Frida morre nesta mesma noite. É este o enredo do filme baseado na obra de Hayden
Herrera “Frida: Una biografia de Frida Kahlo”.
19
Ela fazia a leitura de seu próprio universo, mas também identificava seu mundo
interior e particular com o mundo exterior, ou seja, o México oprimido. Ela também tinha
seus opressores pessoais, no caso a morte sempre à espreita, a dor sempre constante,
a poliomielite que já lhe dera um golpe ainda criança, deixando-a marcada pelo resto da
vida, além do amor doentio e obsessivo que sentia por Diego Rivera. Esses fantasmas
de Frida também são uma constante na vida do ser humano: a morte, o sofrimento
emocional e a dor física.
Esse trabalho dissertativo estrutura-se em três capítulos organizados da seguinte
maneira:
O primeiro capítulo traz as investigações sobre as maneiras com as quais Frida
constrói um mito de si mesma. Desnuda a imagem da artista, vista por ela mesma e
pelos outros, sua capacidade de comunicar conceitos, valores e ideias, por meio de
suas obras e de seus trajes indígenas; revela, ainda, como sua história e sua dor se
confundem com a do México. Trata dos dois graves acidentes ocorridos com a pintora e
mostra como ela passa pelo mito do herói para renascer. São feitas breves análises
sobre algumas obras pictóricas de Frida como, por exemplo, os quadros votivos. Nesse
capítulo encontra-se também demonstrado como Diego torna-se motivo de suas obras.
O segundo capítulo demonstra as transcodificações do filme de Julie Taymor a
partir da obra literária e pictórica. Traz a análise dos posicionamentos de câmera para
uma linguagem própria dentro de uma narrativa fílmica e o uso de tomadas em plongée
e contra-plongée, que denotam o olhar do oprimido e do opressor, evidenciando o
relacionamento de Frida e Diego. Destaca-se ainda a utilização de outros recursos para
pontuar a passagem do tempo e o tratamento que foi dispensado no uso das locações
mexicanas.
O terceiro capítulo estuda o acidente de Frida e suas consequências. Vê-se
também o uso da animação e de efeitos especiais como recurso para transformar obras
pictóricas em verdadeiros quadros vivos, fazendo como diz Trigo (2009), crítico de
cinema, a simbiose entre vida e arte. Analisa-se o uso simbólico das cores de Frida e
como se adaptaram na produção cinematográfica. Examinam-se as sequências de
quadros fílmicos para perceber que a diretora arquiteta a mensagem textual, visual e
20
sonora com o propósito não só de informar, mas, acima de tudo, emocionar o
espectador.
As interpretações feitas aqui; não esgotam as possibilidades de leituras das
obras, objetos de estudo, mas oferecem um novo olhar que permite enveredar-se por
diversas perspectivas, uma vez que a obra está sempre aberta.
21
Figura 4: Autorretrato com Cabelo Solto, 1947
Fonte: Kettenmann, 1994
CAPÍTULO 1
1 A construção do mito
O primeiro capítulo é a base para o desenvolvimento dos capítulos seguintes.
Faz-se aqui uma leitura fundamental da imagem como objeto simbólico de comunicação
na criação do mito e, de que maneira, a artista Frida Kahlo trabalhou tais elementos da
imagem na busca da identidade e significados de sua obra.
1.1 O poder de Frida
Falar de Frida Kahlo é o mesmo que contar uma lenda que irá ensinar algo de
valioso para a vida. O exemplo de luta e coragem diante dos ditames do destino e dos
entraves que ele insiste em colocar no caminho. Frida encontrou um meio de dar
sentido a sua vida: a pintura.
Sua obra ilustra a dor e o vazio de seu mundo particular e solitário, de forma tão
real e crua que hipnotiza e chega causar incômodo.
A obra de Frida Kahlo, cerca de mais de 200 telas, é totalmente biográfica. Foi
escolhida parte destas obras para melhor elucidar sua história que, na verdade, se
mistura com a história do México. Criando assim um belo tecido; uma trama feita de fios
de seda e fios rústicos com nós e defeitos, resultando assim, em um belo xale.
Mergulhar na obra de Frida é experimentar o privilégio de acompanhar o seu
desenvolvimento passo a passo e o seu amadurecimento como artista e como pessoa,
pois de certa forma, toda a trajetória de sua vida é documentada em suas pinturas. De
alguma maneira, somos intimados pelo olhar retratado em suas telas e, em um dado
momento, somos colhidos por certa identificação com a obra.
23
Figura 5: Autorretrato, 1940
Fonte: Herrera, 1998
Figura 6: Autorretrato com mono y perico, 1942
Fonte: Herrera, 1998
A artista olha para o espectador de retrato a retrato, e resulta desconcertante:
parece querer algo do observador. Há uma urgência muito peculiar em relação ao seu
desejo por ser vista e conhecida.
O poeta surrealista1 André Breton disse, certa vez, sobre a arte de Frida: [...]
“uma fita que envolve uma bomba” (t.n.)2, tamanha eram a intensidade, a força e
energia que emanavam de sua pintura.
André Breton classifica Frida como sendo Surrealista, classificação que ela
rechaça veemente ao descrever: “Surrealismo é abrir a porta do guarda-roupa e
encontrar um leão, onde deveriam se encontrar camisas” e acrescenta “nunca pintei
sonhos, pinto o que vivi”. (HERRERA, 2007, p.295). Motivo pelo qual Frida Kahlo não
pode ser considerada surrealista, uma vez que os surrealistas tendiam a resolver os
problemas em conjunto, pois eles tinham um forte sentimento de grupo. (KLINGSÖHRLEROY, 2004). No entanto, a obra de Frida é muito individual, tudo calculado
cuidadosamente: cada objeto, cada cor, cada pincelada; nenhum detalhe ali está
colocado aleatoriamente. Tudo parece ter sido estudado anteriormente e, tendo um
significado premeditado, também nos relata um fato vivido por ela. Sua pintura não é o
1
Surrealismo, s.m. Puro automatismo psíquico, por meio do qual se pretende expressar, verbalmente ou por escrito, o verdadeiro
funcionamento do pensamento. O pensamento ditado na ausência de todo o controle exercido pela razão, e à margem de qualquer
preocupação estética ou moral (STANGOS, 2000, p.91).
2
[...] “una cinta que envuelve una bomba” (HERRERA, 1998, p.3).
24
produto de uma cultura europeia desiludida, buscando uma saída dos limites impostos
pela lógica, mediante a sondagem do subconsciente. Em lugar disso, a fantasia de
Frida é resultado de seu temperamento, vida e condição; representa uma maneira de
adaptar-se à realidade, e não de passar desta para outra esfera. Seu simbolismo quase
sempre é autobiográfico e relativamente simples. A magia de sua arte não tem origem
em relógios que se derretem, se destina ao que as imagens significam com certa
eficácia, como acontecem com os ex-votos: deviam emocionar a vida. Frida explorou a
surpresa e o enigma da experiência imediata e das sensações reais. Por várias vezes,
houve citações no livro de Haydem Herrera (2007) a respeito da obra de Frida, que
apontava como tendo um cunho popular ou primitivo/naïf, outras vezes como simbolista,
ou até mesmo como a classificou certa vez Rivera: ela seria realista.
Conceituando
esses
estilos,
talvez
possamos
entender
melhor
essas
classificações. Assim o artista Naïf é nitidamente individualista em suas manifestações
mais legítimas, muito embora até nesses casos, seja invariavelmente possível
descobrir-lhe a origem de inspiração ou motivação na iconografia popular das
ilustrações de antigos livros, das festinhas em subúrbios ou das imagens de santos.
Não se trata, portanto, de uma criação totalmente subjetiva, sem nenhuma referência
cultural. Neste ponto, vale dizer que Frida era uma mulher que tinha essa referência
cultural muito forte em seu âmago. O artista naïf não se preocupa em preservar as
proporções naturais nem os dados anatômicos corretos das figuras que representa.
Com uma maneira muito particular de pintar, Kahlo deixa registradas em suas
telas todas as situações ocorridas em sua vida, descritas por meio de símbolos. O
objetivo do simbolismo era a resolução do conflito entre os universos, material e
espiritual. Na medida em que os poetas simbolistas viam a linguagem poética,
sobretudo como expressão simbólica de uma vida interior, exigia-se dos pintores que
dessem expressão visual ao que é místico e oculto. E, assim como os poetas viam uma
íntima correspondência entre o som e o ritmo das palavras que empregavam e seu
significado, também os pintores simbolistas pensavam que a cor e a linha em si
mesmas podiam exprimir ideias. (CHILVERS, 2007, p.493).
25
Figura 8: A cama de Frida Kahlo com esqueleto preso
ao dossel.
Fonte: Kettenmann, 1994
Figura 7: Recordação
ou O coração, 1937
Fonte: Kettenmann, 1994
Ela pintou a si mesma com o corpo aberto, chorando junto a seu coração que
havia sido extraído (figura 7), esvaindo em sangue durante um aborto, e
anestesiada em uma cama de hospital, dormindo com um esqueleto (figura 8),
e sempre – e ainda quando aparece junto a seus mascotes e esposo, o
3
muralista Diego Rivera – se mostra dolorosamente solitaria (t.n.) .
Oprimida,
Frida
buscava
uma
saída.
“Os
oprimidos
só
começam
a
desenvolverem-se quando superam a contradição em que se acham, se fazem “seres
para si” (FREIRE, 2009, p.184). Kahlo disse em certa ocasião: “Retrato a mim mesma
porque passo muito tempo sozinha e sou o assunto que melhor conheço” (t.n.)4. E ela
teve muito tempo para conhecer a si mesma. Quando tinha dezessete anos, um
trólebus (ônibus elétrico) bateu no bonde em que ela viajava da escola para casa,
deixando-a parcialmente inválida. Enquanto a artista se recuperava do acidente,
começou a pintar e, desde o primeiro auto-retrato, feito diante de um espelho, já revela
uma autoexploração de sua imagem assim como uma súplica por atenção (HERRERA,
1998).
3
Ella se pintó a si misma agrietada, llorando junto al corazón que le há sido extraído, desangrándose durante un aborto,
anestesiada en una camilla de hospital, durmiendo con un esqueleto, y siempre – aun cuando aparece junto a sus mascotas o a su
esposo, el muralista Diego Rivera - se muestra dolorosamente sola. (HERRERA, 1998, p.3)
4
“Me retrato a mi misma porque paso mucho tiempo sola, porque soy el motivo que mejor conozco” (HERRERA, 1998, p.3)
26
Na obra literária Frida – Una biografia de Frida Kahlo, de Haydem Herrera
(2007), fala-se muito da artista como sendo uma lenda, um mito, o que leva de certa
forma a buscar repostas para alguns questionamentos que apareceram. Por que Frida
tornara-se um mito? Como aconteceu? O que é um mito? No livro de Joseph Campbell
(2008), O poder do mito, é possível encontrar algumas respostas muito esclarecedoras
em relação à história de Frida. Porém, antes de prosseguir este estudo com Campbell,
observam-se algumas considerações sobre a retrospectiva de Frida, feitas por Herrera.
No outono de 1977, o governo mexicano dedicou uma exposição retrospectiva
da obra de Frida Kahlo na maior e mais prestigiada Galeria do Palácio de Bellas Artes.
Foi uma homenagem estranha, porque parecia celebrar a personalidade exótica e a
história da artista, mais do que honrar sua arte. Nas grandiosas salas com pés-direitos
altíssimos, dominaram as enormes fotografias ampliadas de alguns incidentes de sua
vida. Os quadros, no entanto, eram como joias e pareciam pontuar a exposição.
Sem dúvida, ao final triunfou a arte, a lenda que Frida criou dela mesma. Devido
aos quadros serem tão pequenos, em relação às fotografias e ao espaço total da
exposição, o espectador deveria estar a menos de um metro de cada obra para poder
vê-la melhor.
A essa distância, o estranho magnetismo dos quadros exercia sua força de
atração. Baseados em diferentes momentos-chave de sua vida, cada um era como um
grito abafado, o núcleo de emoção tão denso, que parecia estar a ponto de explodir.
Os quadros reduziam os painéis fotográficos, montados em uma estrutura arquitetônica
no centro da sala, a algo tão precário e pouco estável como uma casa de cartas de
baralho. Com certeza era uma concorrência desleal, mesmo sendo imenso o tamanho
das fotografias, era a fotografia de Frida concorrendo com a alma de Frida, que estava
na verdade, no âmago de suas obras.
Frida se alegrava muito por ter deixado tantas recordações. E foi ela uma das
criadoras de sua fabulosa lenda de pessoa intrinsecamente complicada e consciente de
si mesma. Seu mito é cheio de tangentes, ambiguidades e contradições, como é
verificado em Herrera (2007). Por isso um vacilo em revelar os aspectos de sua
realidade poderia destruir a imagem que ela criou de si mesma. Sem dúvida, a verdade
27
não dissipa o mito. Inclusive, depois de examinar, observar com cuidado a história de
Frida, segue tão extraordinária como é sua fábula.
Diego Rivera demonstra um grande fascínio pela imperfeição. Sendo esse fato
constatado no filme Frida (EUA, 2002) da diretora Julie Taymor, quando o muralista
declara amar as imperfeições e cicatrizes de Frida, causada por doenças, pelo acidente
e constantes sequelas que a artista sofreu durante sua vida. Campbell (2008) também
revela que ama as pessoas por suas imperfeições. Segundo ele, as crianças são
adoráveis porque caem a todo instante e porque têm o corpo pequeno e a cabeça
grande.
Seria desumano. O umbilical, a humanidade, aquilo que se faz humano e não o
sobrenatural e imortal – isso é adorável. É por essa razão que algumas pessoas
têm dificuldade em amar a Deus; nele não há imperfeição alguma. Você pode
sentir reverencia, mas isso não é amor. É Cristo na cruz que desperta nosso
amor. Quando ele se faz homem e habita entre nós, quando ele se faz humano,
com nossas imperfeições, sofre dores, humilhações, conseguimos despertar
para esse amor a Deus, porque existe uma identificação nossa com ele.
Sofrimento, Sofrimento é imperfeição. A história do sofrimento humano, a luta, a
vida... (CAMPBELL, 2008, p. 5)
Com o passar do tempo, o sofrimento e o papel de vítima heroica se converteu
em parte integrante do caráter de Frida: a máscara se converteu em seu rosto. A
dramatização da dor se tornou mais importante para a imagem de si mesma, pelos
exageros dos acontecimentos lastimosos do passado. Declarou por exemplo, que havia
passado três meses no hospital da Cruz Vermelha em vez de um. Ela criou para si
mesma uma personalidade que foi bastante forte para suportar e sobreviver aos golpes
que a vida lhe acertava, tendo ainda que transformar seu desolado mundo particular.
Segundo Eliade (2007), o mito é o último estágio no desenvolvimento de um
herói, pois, a lembrança de um personagem real ou de um fato histórico perdura na
memória popular, no máximo, por um período de dois ou três séculos.
“E isto porque a memória popular encontra dificuldade em guardar a imagem de
acontecimentos individuais e figuras reais. As estruturas por meio das quais ela
funciona são diferentes: categorias, ao invés de episódios, arquétipos, em lugar
28
de personagens históricos. Um personagem histórico se confunde com seu
modelo mítico (herói, etc.), enquanto que o evento acaba sendo identificado
com a categoria de ações míticas (luta contra um monstro, irmãos inimigos,
etc.)” (ELIADE, 2007, p.43 e 44).
Tanto a força como a insistência no sofrimento impregnam os quadros de Frida.
Quando se representa machucada e chorando, equivale à ladainha das feridas morais e
físicas, a chamada de atenção, que enchem suas cartas.
Sem dúvida, inclusive o mais doloroso dos seus autorretratos, não é piegas nem
manifesta lástima de si mesma. Sua dignidade e determinação de “aguentar” se fazem
presentes em seu majestoso porte e em seu semblante estoico. Esta mescla de
fraqueza e artifício, de integridade e invenção de si mesma, dá aos seus autorretratos
sua urgência particular e inflexível força, características reconhecíveis de imediato.
Figura 9: A Coluna Partida, 1944
Fonte: Kettenmann, 1994
Entre todos os quadros de Frida, o que exemplifica essas qualidades com mais
intensidade é A Coluna Partida (figura 9) pintado em 1944, pouco tempo depois de
sofrer uma intervenção cirúrgica que a deixou presa em um “aparato”, do mesmo modo
que em l927.
29
A impassibilidade decidida de Frida cria uma tensão quase insuportável, uma
sensação de paralisia. A angústia cobra vida pelos pregos que perfuram seu corpo nu.
Uma brecha, parecida com a greta causada por um terremoto, separa seu dorso, cujas
duas partes se mantêm unidas pelo colete ortopédico de aço que simboliza o
confinamento de um inválido. O corpo aberto indica a cirurgia sofrida e a sensação que
Frida tem, literalmente, que cairia em pedaços sem o colete de aço. Dentro do dorso se
vê uma coluna jônica quebrada, em lugar de sua própria espinha dorsal deteriorada: a
vida substituída por uma ruína. A coluna afiada cruelmente invade a greta vermelha do
corpo de Frida desde os flancos até a cabeça, onde um capitel de duas volutas apóia o
queixo. Segundo alguns observadores, a coluna é parecida com um falo e alude ao
vínculo existente na inteligência da artista, entre o sexo e a dor, ao recordar a barra de
aço que atravessou sua vagina no acidente. Em uma anotação desarticulada em seu
diário Frida disse: “Esperar com angústia guardada, a coluna quebrada, e o infinito
olhar, imóvel, no extenso caminho... levando minha vida cercada de aço” (t.n.) 5. As
tiras brancas do colete, com presilhas de metal, acentuam a delicada vulnerabilidade
dos seios nus de Frida, cuja beleza perfeita torna ainda mais terrível a fenda brutal de
seu corpo, desde o pescoço até os flancos; com os quadris envoltos em um tecido, os
quais evocam os lençóis enrolados em Cristo, a pintora exibe suas feridas como um
mártir cristão; como um são Sebastião mexicano. Utiliza a dor física, a nudez e a
sexualidade para comunicar a mensagem de seu sofrimento espiritual.
Sem dúvida, Frida não é nenhuma santa. Valoriza sua situação com agressivo
materialismo, em lugar de implorar consolo ao céu. Dirige seu olhar fixamente ao longe,
como se quisesse desafiar a si mesma (em um espelho), e ao público, para fazer frente
ao seu apuro sem alterar-se. Lágrimas salpicam de seu rosto, do mesmo modo como
em tantas representações mexicanas de La Madona, porém, seu rosto se nega a
chorar, formando uma máscara tão impávida como as feições de um ídolo indígena.
Para sugerir a solidão do sofrimento físico e emocional, Frida se retrata isolada,
diante de um imenso e árido plano. Barrancos dividem a paisagem, uma metáfora de
seu corpo ferido, como o deserto, privado da capacidade de criar vida. Ao longe,
5
“Esperar con la angustia guardada, la columna rota, y la inmensa mirada, sin andar, en el vasto sendero... moviendo mi vida
cercada de acero” (KAHLO, 2008, p.273).
30
debaixo de um céu sem nuvens, nota-se uma faixa de mar azul, que parece encarnar a
esperança de outras possibilidades. Porém, a artista se encontra tão debilitada, que
está completamente fora de seu alcance tais probabilidades. É relevante observar a
existência de uma narrativa simbólica em forma de pintura nessa obra de Frida; que
vem reforçar a questão do mito sendo pertinente citar o comentário de Moyers com
Campbell (2008, p.5):
[...] vim a compreender que aquilo que os seres humanos têm em comum se
revela nos mitos. Mitos são histórias de nossa busca da verdade, de sentido, de
significação, através dos tempos. Todos nós precisamos contar nossa história.
Frida está muito próxima das vontades, dos desejos das pessoas de felicidade e
de sentido da existência. Ela acaba por se tornar um modelo, para muitos oprimidos, a
respeito de como suportar a dor e olhar de frente o sofrimento, não fugir, cair e levantar,
porque isso faz parte do ser humano e todos precisam de modelos (mitos) para dar
força e coragem para prosseguir a jornada. “Quando se torna modelo para a vida dos
outros, a pessoa se move para uma esfera tal que se torna passível de ser
mitologizada.” (CAMPBELL, 2008, p.16). Isto é muito comum acontecer com ídolos de
cinema, a partir dos quais se criam muitos dos modelos a serem seguidos pelos
cinéfilos.
Ao se pesquisar mito em um dicionário, encontra-se a definição de história sobre
deuses, mas esta resposta nos leva a perguntar que é um deus? E assim:
Um deus é a personificação de um poder motivador ou de um sistema de
valores que funciona para a vida humana e para o universo – os poderes de
seu próprio corpo e da natureza. Os mitos são metáforas da potencialidade
espiritual do ser humano, e os mesmos poderes que animam nossa vida,
animam a vida do mundo. (CAMPBELL, 2008, p.24)
Frida cria uma metáfora do México, dos nativos, dos deuses mexicanos, por
meio de seus trajes, de suas obras e de suas feridas físicas, morais, espirituais, com os
quais o povo mexicano é capaz de se identificar, criando um vínculo que a mitifica.
31
Em uma exposição ocorrida em 02 de novembro de 1978, a Galería de la Raza
en Mission inaugurou sua própria “homenagem a Frida Kahlo” para celebrar o dia dos
mortos, um dos dias mais festivos e importantes no México. Sua pessoa foi
representada como heroína política e combatente revolucionária, mulher sofrida e sem
filhos, esposa maltratada e “Ofélia Mexicana”. Uma artista (sem referência ao nome)
que estava presente e que reverenciava a pintora comenta: “Para as mexicanas, Frida,
personifica todo o conceito da cultura. Nos inspira. Suas obras não manifestam lástima
de si mesma, mas sim, força.” (t.n.)6
A data de 1910, na realidade, não coincide com a data do nascimento de
Magdalena Carmem Frida Kahlo y Calderon. Ela a escolheu por ser o inicio da
Revolução Mexicana7, [...] “visto que foi filha da década revolucionária, período em que
nas ruas da cidade do México dominava o caos e o derramamento de sangue, decidiu
que ela e o México moderno haviam nascidos juntos” (t.n.)8
Além de ser filha da revolução, e na verdade ter nascido em 6 de julho de 1907,
Frida era filha também de Guillermo Kahlo e Matilde Calderón que nos anos da decena
trágica ajudaram muitos revolucionários, acolhendo-os em sua casa, dando-lhes o que
comer e curando suas feridas. Guillermo Kahlo era alemão e veio para o México ainda
muito jovem, casou-se com uma mulher mexicana que morreu quatro anos depois de
dar a luz a sua segunda filha. Pelas fotos tiradas de Matilde Calderón, no dia do
casamento, não é difícil imaginar porque Guillermo se apaixonou por ela, casando-se
logo depois. Era uma mulher de grande beleza. Porém, fica um pouco mais difícil
imaginar qual foi o atrativo que a devota Matilde Calderón percebeu em Guillermo
6
“Para las chicanas, Frida personifica todo el concepto de la cultura. Nos inspira. Sus obras no manifestan lástimas de si misma,
sino fuerza” (HERRERA, 2007, p.15).
7
A independência da América espanhola está diretamente relacionada com a história Mexicana, pois foi aí, no México e em
algumas regiões sul-americanas que surgiram as primeiras manifestações de revolta em 1810. (MORAES, 1998). Durante o período
da história do México que vai da Independência política em 1821 até a Revolução Mexicana de l910, foi um país marcado pela
instabilidade política, sendo governado por ditadores militares e atrelados ao capital externo. Porfírio Diaz (ditador mexicano)
favorecia a entrada de capital estrangeiro para a exploração de recursos minerais e produtos de exportação, assim como era
conivente com a concentração de terras nas mãos de latifundiários. Com isso ele ganhou apoio das classes mais abastadas em
detrimento de uma população de 11 milhões de indivíduos analfabetos sem instruções básicas. (MOTA; BRAICK, 1997). Os motivos
que teriam levado ao movimento revolucionário de 1910 são numerosos e resultaram de um amontoado de frustrações da
sociedade mexicana, que vivia em estado de penúria devido às injustiças sociais. Este abismo entre pobres e ricos ainda é
marcante na atual sociedade mexicana. (MOTA; BRAICK, 1997 p. 424-5).
8
[...] “y puesto que fue hija de la década revolucionaria, en la que en las calles de la ciudad de México dominaba el caos y el
derramamiento de sangre, decidio que ella y el México moderno habían nacido juntos” (HERRERA, 2007, p.20).
32
Kahlo. O emigrante de 26 anos era judeu e sofria de ataques epiléticos. Por outra parte,
sua pele branca e sua cultura européia seguramente teriam certo atrativo naqueles dias
em que o europeu se considerava superior a todo mexicano. Mas, não era somente
isso, pois ele também era inteligente, trabalhador e muito elegante. No entanto, o que
interessa é o comentário anterior, em que se podem ver ainda existentes os violentos
resquícios do opressor sobre o oprimido povo mexicano, e como o opressor exerce
certo fascínio sobre o oprimido.
Os valores destes passam a ser a pauta dos invadidos. Quanto (...) mais se
acentua a invasão, alienando o ser da cultura e o ser dos invadidos, mais estes
quererão parecer com aqueles: andar como aqueles, vestirem à sua maneira,
falar a seu modo.
O eu social dos invadidos, que, como todo ser social, se constitui nas relações
socioculturais que se dão na estrutura, é tão dual quanto o ser da cultura
invadida.
É esta dualidade, já várias vezes referida que, explica os invadidos e
dominados, em certo momento de sua experiência existencial, como um eu
quase “aderido” ao tu opressor. (FREIRE, 2009, p.174, 175)
Observando-se a história do México, ficam comprovados a desintegração e o
desmantelamento de sociedades primitivas, quando sofrem a ação devastadora da
civilização do homem branco invasor e então opressor. E Campbell (2008) argumenta
que essas sociedades se fragmentam e se tornam enfermas.
No livro El Diario de Frida Kahlo: un íntimo autorretrato, Fuentes (2008) narra na
introdução que durante o período colonial, o México criou uma cultura mestiça: índios
nativos e europeus, barrocos, sincréticos, insatisfeitos.
A independência em 1821
libertou o país em relação à Espanha em nome da liberdade, porém não da igualdade.
As vidas das grandes massas de índios e mestiços, principalmente camponeses,
permaneciam inalteradas. As leis mudaram, mas em nada mudou a vida real das
pessoas reais. A separação entre leis ideais e a opressora realidade insistente tornaram
o pais ingovernável, deixando-o vulnerável ante a guerra civil e as invasões
estrangeiras
quase
que
permanentemente,
fazendo
do
México
uma
nação
desmembrada, mendicante, humilhada, permanentemente ajoelhada ante os credores
estrangeiros e os oligarcas saqueadores. Dois traumas ocorreram provocados por
33
estrangeiros: a perda de metade do território nacional para os Estados Unidos em l848,
a invasão francesa de l862. A nação deu a resposta a si mesma mediante a revolução
Liberal, em caráter de Benito Juarez, e a criação de um Estado Nacional, civil e
governado dentro da lei. Porfírio Diaz perverteu a república de Juarez, deu prioridade
para o desenvolvimento acima da liberdade, e colocou uma máscara na face do
México, proclamando para o mundo: nós somos agora confiáveis, progressivos,
modernos. Os exércitos de camponeses de Vila de Pancho e Emiliano Zapata surgiram
da terra para dizer não. Quando o povo se levantou em 1910, os deserdados
cavalgaram de norte a sul e de sul a norte, comunicando a todos e oferecendo a um
país isolado os presentes invisíveis de idioma, cor, música, arte popular; pois com as
invasões estrangeiras os mexicanos haviam perdido tudo isso.
1.2 Trajes do trágico
Na introdução do El Diário de Frida Kahlo, Carlos Fuentes (2008) diz que só viu
Frida Khalo uma única vez. Mas que primeiro a ouviu. Ele estava em um conserto no
Palácio de Bellas Artes - no Centro da cidade do México, construído na administração
do velho ditador Porfírio Diaz em l905 - um mausoléu de mármore branco. Cita ainda
que o aerodinamismo percorria com suas formas curvas, finas, alongadas e brilhando
como cobre polido, as escadarias, corrimões, e corredores. Os vidros eram chanfrados
enquanto as paredes eram decoradas com os murais violentos e, às vezes, estridentes
de Orozco, Rivera, e Siqueiros. Ele descreve todo o auditório como o santuário
supremo de Arte Déco, culminando em um magnífico painel de vidro desenhado por
Tiffany que ilustra os vulcões que são como os guardiões do vale do México: os vulcões
Popocatepetl, e o Iztaccihuatl. Um sutil jogo de luzes permitia ao espectador, durante os
intervalos, passar da aurora ao crepúsculo em quinze minutos.
34
Carlos Fuentes narrou tudo isso para dizer que quando Frida entrou no camarote
do teatro, todos estes esplendores e distrações ficaram insignificantes. O ruído
suntuoso de suas jóias suprimiu os sons da orquestra, porém algo mais que o mero
ruído forçou a todos olharem para cima e descobrir a aparição que se anunciava a si
mesma com um incrível pulsar de ritmos metálicos para, em seguida, exibir a mulher,
que tanto o ruído das joias e o magnetismo silencioso exibiam. Era a entrada de uma
deusa asteca, talvez Coatlicue, a deidade de mãe envolta em sua saia de serpentes
exibindo seu corpo destruído e suas mãos ensanguentadas, como outras mulheres
exibem seus broches. Talvez a própria Mãe da Terra espanhola, a Dama de Elche,
arraigada na terra por seu capacete de pedra, seus colares em forma de aro do
tamanho de rodas de moinho com pendentes e peitorais que devoram seus seios, os
anéis que transformam suas mãos em garras.
No período em que morou nos Estados Unidos, Frida não mudou sua maneira de
vestir-se. Continuava usando seus trajes de tehuana9 mesmo estando longe do México;
assim como ela se apropriou da vestimenta de sua criada nativa para usar no dia de
seu casamento, estava fazendo uso do material simbólico e com isso escolhendo uma
nova identidade.
A apropriação dos materiais simbólicos permite aos indivíduos se distanciarem
das condições da vida cotidiana – não literalmente, mas simbolicamente e
imaginativamente. Os indivíduos podem conceber, ainda que parcialmente,
maneiras de viver e condições de vida totalmente diferentes das que eles
experimentam no dia-a-dia. Podem ter alguma concepção de regiões do mundo
muito distantes de seus próprios contextos geográficos (THOMPSON, 1998,
p.156).
As rendas, as barras, os rumorosos saiotes, as tranças, as blusas soltas sem
mangas com vistosos bordados, os tocados tehuanos a cobrir e adornar a cabeça,
emoldurando como lua esse rosto de borboleta escura, dando-lhe asas. Frida Kahlo diz
a todos os presentes que o sofrimento não a faria murchar, nem a enfermidade faria
ranço em sua alma e em sua infinita vaidade feminina. Frida comunicava por meio de
9
É a vestimenta proveniente de uma região a sudoeste do México em que as tradições matriarcais ainda hoje sobrevivem e cuja
estrutura econômica reflete o papel dominante das mulheres (KETTENMANN, 1994 p.67).
35
suas roupas e, conforme Lurie (1997) relata, por milhares de anos os seres humanos
têm usado a linguagem das roupas para se comunicar. Quando vamos a uma festa,
reunião ou, simplesmente, estamos andando na rua somos capazes de perceber o
sexo, a idade e a classe social de outra pessoa somente observando o que ela está
vestindo; assim como possivelmente o indivíduo oferece uma informação verdadeira (ou
uma informação falsa) sobre seu trabalho, personalidade, origem, opiniões, gostos,
desejos sexuais e humor naquele momento.
E fica claro que se a maneira de vestir é uma língua, um idioma, que usamos
para nos comunicar de uma maneira não-verbal. Deve ter também um vocabulário
especifico, uma gramática, como qualquer outro.
O vocabulário das roupas inclui não apenas as peças de roupas, mas também
estilos de cabelos, acessórios, jóias, maquiagem e decoração do corpo.
Teoricamente, pelo menos, este vocabulário é tão ou mais vasto do que o de
qualquer língua falada, visto que inclui cada peça, estilo de cabelo e tipo de
decoração do corpo já inventada (LURIE, 1997, p.20).
Frida não dispensava nenhuma dessas observações que cita Lurie (1997).
Ficava horas a se arrumar, sempre vestida com suas roupas regionais mexicanas, com
os cabelos trançados e enfeitados com fitas e laços, com seus colares peruanos que
Diego lhe dava de presente e os dedos das mãos cheios de anéis, sem esquecer, é
claro, a maquiagem e o batom vermelho sobre os lábios, sempre tão presentes em seus
retratos fotográficos que temos a impressão de que eles já nasceram impregnados de
carmim.
Na história do vestuário, fica claro que o uso da roupa era e é um tipo de
diferenciador de classes. Em diversas épocas, as pessoas de classes sociais mais
baixas, como os escravos dos palácios andavam quase ou completamente nus. Da
mesma forma, ao contrário do que muitos possam acreditar, a localização geográfica
assim como o clima não influenciam sempre de forma tão incisiva os usos e tipos de
vestimentas. Como exemplo, Laver (1989) esclarece que o vale do rio Nilo não era mais
quente que o vale do Eufrates e a roupa egípcia era mais leve do que a dos assírios e
babilônios, além das vestes destes serem muito mais ornadas e luxuosas.
36
A vestimenta separa os indivíduos em classes sociais e os converte em
oprimidos e excluídos, sendo que esse fato faz a segregação dentro dos próprios
grupos sociais. Por muitas vezes, pessoas recebem um pré-julgamento pelas roupas
que estão vestindo, assim como só usa determinadas grifes quem tem muito dinheiro
para garantir o status social e se diferenciar dentro do grupo que frequenta.
Completando essa fala, Lurie (1997, p. 129) acrescenta que:
Várias sociedades elaboraram decretos e leis chamadas leis suntuárias, para
prescrever ou proibir, enfim definir que estilos poderiam ser usados por
determinados grupos, separando-as por seu poder aquisitivo, ou mais
especificamente por classes sociais.
Frida gostava muito de se adornar, vestir-se com cores fortes, vibrantes e
contrastantes, exatamente como era o México. Usava muitas saias, umas sobre as
outras, muitos xales, enfim, muitos tecidos a cobrir seu corpo. Pode-se achar estranho,
uma vez que o México é uma terra de clima extremamente quente, mas como já foi
citado anteriormente, o clima não tem muito a ver com o uso das vestimentas.
Alguns escritores modernos acreditam que a ocultação deliberada de certas
partes do corpo, originou-se não como uma maneira de desencorajar o
interesse sexual, mas como uma estratégia hábil de despertá-lo. Segundo esse
ponto de vista, as roupas são o equivalente físico de observações do tipo “tenho
um segredo”; são uma provocação, um chamariz. Certamente é verdade que
partes da forma humana consideradas sexualmente provocativas são muitas
vezes cobertas dessa maneira como que para exagerá-las e chamar atenção.
As pessoas embrulhadas e amarradas com laços nos causam o mesmo efeito
que um presente de aniversário: ficamos curiosos, excitados, queremos
desfazer o embrulho. (LURIE, 1997, p.225).
Frida era exímia em esconder o corpo, pois ela tinha um segredo: trinta e poucas
cicatrizes que as cirurgias ao longo de sua vida haviam marcado seu corpo e sua alma,
e ela fazia uso da vestimenta para cumprir tal intento. A seguir, uma série de retratos
fotográficos mostra Frida vestida com trajes típicos enfeitados com rendas, bordados e
também usando xales. Mais especificamente na figura 17, ela traja uma legítima
vestimenta tehuana.
37
Figura 10
Fonte: Kettenmann, 1994
Figura 11
Fonte: Kettenmann, 1994
Figura 12
Fonte: Kettenmann, 1994
Figura 13
Fonte: Kettenmann, 1994
Figura 14
Fonte: Herrera, 1998
Figura 15
Fonte: Herrera, 1998
38
Figura 16
Fonte: Herrera, 1998
Figura 17
Fonte: Herrera, 1998
Figura18
Fonte: Herrera, 1998
Evidentemente, não foi por brincadeira que escolheu como vestido de casamento
a roupa que lhe emprestou uma criada indígena. Ao vestir-se de tehuana, estava
escolhendo uma nova identidade, e fez isso fervorosamente como uma religiosa ao
aceitar o véu.
Quando ainda era uma garota muito jovem, a roupa já equivalia para Frida a
uma espécie de linguagem e, desde que se casou, o vínculo intrincado entre a
vestimenta e a imagem de si mesma, entre seu estilo pessoal e sua pintura, se
converteu em uma das tramas secundarias do drama que começa a
10
desenvolver-se. (t.n.)
10
Aun de muchacha, la ropa equivalía a una especie de lenguage para Frida y, desde que se caso, el vínculo intricado entre la
vestimenta y la imagem de sí misma, entre su estilo personal y el de su pintura, se convertió en una de las tramas secundárias del
drama que comenzaba a desenvolverse (HERRERA, 2007 p.147).
39
Figura 19: Frida vestida de Homem, a primeira de pé à esquerda
com membros de sua família.
Fonte: Herrera, 1998
Figura 20: Frida vestida de homem ao centro.
Fonte: Kettenmann, 1994
40
Além de seus autorretratos pintados de maneira primorosa, Frida também deixou
uma série de fotografias suas e de seus familiares. Entre elas se destaca uma foto da
família, onde Frida se apresenta com uma vestimenta nada convencional para uma
garota da época, por vestir um traje de homem com um paletó e gravata. Adota uma
postura masculina, com uma mão no bolso e uma bengala na outra. Observa-se, em
Herrera (2007), que Frida talvez vestisse esta roupa por brincadeira, porém de qualquer
forma essa jovem já não era uma menina inocente. Em todas as fotografias ela nos
observa com um olhar agudo e desconcertante, cheia de uma mescla de sensualidade
e enigmática ironia que reaparece em seus autorretratos.
Seu traje feminino preferido era o que usavam as mulheres do estreito de
Tehuantepec. Sem dúvida, as lendas contadas influenciaram sua escolha. As mulheres
desta região tinham fama pela sua majestosidade, beleza, sensualidade, inteligência,
valor e força. Sua sociedade é um matriarcado, onde as mulheres administram os
mercados, se encarregam dos assuntos fiscais e dominam os homens. Seu traje é
encantador: uma blusa bordada e saia grande e rodada, normalmente de veludo na cor
roxa, com um babado de algodão branco preso a bainha.
Figura 21: Autorretrato, 1948
Fonte: Kettenmann, 1994
Figura 22: Autorretrato como Tehuana
ou Diego no Meu pensamento ou
Pensando em Diego, 1943
Fonte: Kettenmann, 1994
41
Entre os acessórios, colares feitos de correntes grossas e compridas cheios de
moedas de ouro, os quais integram o dote das jovens, ganhado com muito esforço e
usado em ocasiões especiais. Usavam também um adorno de cabeça confeccionado
em renda com pregas e um encaixe que fazem parecer uma grande gola em formato de
rufo.
Às vezes Frida usava trajes de outras épocas e lugares, ou mesclava elementos
de diferentes vestidos, criando um conjunto com muito cuidado. Às vezes colocava, por
exemplo, sandálias indígenas, ou botas curtas de pele, como as que eram usadas na
província no início do século pelas mulheres de soldados que lutavam ao lado de seus
homens na revolução mexicana. Às vezes se envolvia em um xale, particularmente para
as seções de fotográficas. Em outras ocasiões se vestia com uma manta espanhola de
seda, bordada e ornada cuidadosamente. Várias camadas de anáguas, cujas bordas
eram bordadas por ela mesma com ditados mexicanos engraçados, que conferiam uma
graça e um vaivém especiais à sua maneira de andar.
Para Frida, os diferentes elementos de seu vestuário integravam uma espécie de
paleta, com base na qual criava todos os dias a imagem de si mesma que desejava
presentear ao mundo. As pessoas que tiveram a oportunidade de observar este ritual
de vestir-se recordam o tempo e o cuidado gastos tanto com o perfeccionismo quanto
com a precisão dos detalhes.
Usava os cabelos de diferentes modos para acompanhar suas vestimentas
exóticas. Alguns penteados eram típicos de determinadas regiões do país, enquanto ela
mesma inventava outros.
Gostava muito de jóias, e desde o começo de seu casamento, Rivera lhe dava
de presente como se estivesse oferecendo obséquios a uma princesa indígena. Usava
de tudo, desde contas baratas de vidro e pesados colares pré-colombianos de jade, até
elegantes argolas coloniais e um par de brincos, feito em forma de mãos que lhe
presenteou Picasso em 1939. Nos dedos levava uma exposição constantemente
trocada de anéis de diferentes estilos e diferentes origens.
42
Decidiu vestir-se de tehuana pela mesma razão porque adotou o “mexicanismo”:
agradar a Diego. Rivera gostava deste traje e viajava muito para essa península para
pintar seus habitantes, seu trabalho e suas diversões. Agradava ao pintor reforçar o
elemento indígena da ascendência de Frida e sentia orgulho de sua autenticidade, força
e “primitivismo” comentando certa vez sobre Kahlo:
É uma pessoa cujos pensamentos e sentimentos estão livres de qualquer
restrição imposta a eles pelo falsas necessidades da conformidade social
burguesa. Todas as experiências são profundamente sentidas por ela, pois a
sensibilidade de seu corpo não tem sido entorpecida pela excessiva tensão em
áreas que desentegrariam estas capacidades inatas... Frida despreza os
mecanismos que sempre dispõe de força moral como um organismo primitivo
enfrenta as mais intensas e variadas experiências, que a vida apresenta
11
sempre ao seu redor. (t.n.)
O vestuário nativo tornava evidente o vínculo com a natureza. Era como uma
máscara primitiva que a livrava dos opressivos costumes burgueses. E, supostamente,
intervinha também no fator político. Um traje indígena representava uma maneira a
mais de proclamar a aliança com a raça. Rivera definitivamente não vacilou em tirar
proveito político deste tipo de vestimenta que Frida usava:
O clássico traje mexicano foi criado pelo povo e para o povo. As mulheres
nativas que não o usam não pertencem ao mesmo, dependem somente do
mental e do emocional de um tipo estrangeiro e de que querem fazer parte, ou
12
seja, a grande burocracia norte-americana e francesa. (t.n.)
Desde o momento em que se casaram, Frida e Diego começaram a representar
papéis importantes no cenário teatral de suas respectivas vidas. Os trajes de tehuana
integravam uma parte da criação de Frida por si mesma, como personalidade lendária e
11
Es uma persona cuyos pensamientos y sentimientos están libres de cualquier restricción impuesta en ellos por las necesidades
falsas del conformismo social burgués. Todas las experiências son profundamente sentidas por ella, pues la sensibilidad de su
organismo no se ha embotado por un esfuerzo excesivo em áreas que desentegrarían esas facultades innatas... Frida desprecia
los mecanismos lo cual siempre dispone de la fuerza moral con la que un organismo primitivo hace frente a las experiências más
intensas y siempre variadas que le presenta la vida a su alrededor (HERRERA, 2007, p.149).
12
El clásico traje mexicano fue creado por y para el pueblo. Las mujeres nacionales que no lo usan no pertenecen al mismo , sino
dependen, en lo mental y en lo emocional, de una clase extranjera de la que quieren formar parte, o sea, la gran burocracia
norteamericana y francesa (HERRERA, 2007, p.150).
43
companheira perfeita que fazia ressaltar a Diego. Delicada, extravagante e bela,
constituía um adorno que fazia falta ao seu esposo enorme e feio, a pluma de pavão
real em seu sombrero Stettson. Sem dúvida, ainda que felizmente jogasse o papel de
donzela indígena para Diego, seu artifício não era falso. Não modificou seu caráter para
corresponder ao ideal de Diego. Mas também inventou um estilo pessoal muito
individual, para dramatizar a personalidade que já tinha e que sabia que agradava a
Diego. Ao final se converteu em uma mulher garbosa de tal extravagância, que muitas
pessoas se sentiam mais atraídas pela pluma de pavão real que pelo sombrero.
Evidentemente, Frida conhecia o poder mágico da roupa para substituir seus
donos. Em seu diário escreveu que o traje de tehuana equivalia a “o retrato ausente de
somente uma pessoa: ela mesma” (t.n.)13.
Em outras palavras, o traje de tehuana, efetivamente, se tornou uma parte tão
essencial da personalidade de Frida que este a representava apenas estando
pendurado em um cabide; sozinho, sem estar cobrindo ou envolvendo o corpo de sua
dona. Servia de substituto para ela mesma, fazendo-se um símbolo. Como uma
segunda pele que nunca absorveu completamente a mulher oculta debaixo do tecido;
sem dúvida, constituía uma parte tão integrada a ela que mantinha algo de seu ser
ainda quando os tirava.
Os trajes de Frida, que sempre foram uma forma de comunicação social, com o
tempo, se converteram em um antídoto para a solidão. Ainda que muito enferma, no
final de sua vida, todos os dias se vestia como se preparando para uma festa, apesar
de receber poucos visitantes. Do mesmo modo como nos autorretratos, que
confirmavam sua existência, os trajes davam à frágil Frida, doente e frequentemente
confinada à cama, a sensação de ser mais atrativa e visível, de ter uma presença mais
enfática como objeto físico no espaço. Era como uma armadura de um cavaleiro
medieval.
Paradoxalmente, essa roupa formava tanto uma máscara como um marco. Uma
vez que definia a identidade de sua dona em termos de aspecto, distraía tanto a ela
13
“el retrato ausente, de uma sola persona: ella misma” (KAHLO, 2008, p.209).
44
como seu espectador de sua dor interior. Frida dizia que a usava por “coqueteria”:
queria ocultar suas cicatrizes e sua perna coxa. Partindo desta analogia, Herrera (1983)
descreve que este invólucro era feito com muito cuidado, representava um intento de
compensar os defeitos de seu corpo e seu sentimento de fragmentação, desintegração
e mortalidade. As fitas, as flores e faixas se tornaram mais coloridas e mais trabalhadas
à medida que piorava sua saúde. De certo modo Frida era um recipiente de barro
mexicano: uma vasilha frágil decorada, cheia de doces e surpresas, porém destinada a
ser destroçada. Tal como as crianças que, com os olhos vendados, quebram a vasilha
de barro com um pedaço de pau, a vida deu a Frida um golpe atrás do outro. Enquanto
baila e oscila a vasilha que está a um ponto de ser destruída, mais intensa é sua viva
beleza. Do mesmo modo a decoração de Frida era comovente: era uma afirmação de
seu amor pela vida e um sinal de que era consciente da dor e da morte, as quais
desafiava.
A artista faz uma observação sobre suas vestimentas que vale a pena ser
comentada, pois ela deixa bem claro que houve uma época em que se vestia de
homem, mas quando ia ver Diego vestia seus trajes tehuana. Em seu livro, A linguagem
das roupas, Lurie (1997) comenta que usar roupa masculina pode ter vários
significados e um deles seria como cometer atos de igualdade sexual.
Por várias vezes, Diego a traiu com outras mulheres, e como consequência da
dor da traição sofrida, ela cortava seus longos cabelos, que Diego tanto gostava e
usava roupas de homem, substituindo assim suas roupas tehuanas. Ela descartava e
negava com isso sua feminilidade, além de estar colocando-se em pé de igualdade com
Diego. Segundo Kettenmann (1994), por várias vezes Frida pintou sua sexualidade
ambivalente, nunca fez questão de esconder a sua bissexualidade. Diego, sentia
ciúmes que ela tivesse romances com outros homens, mas permitia-os com mulheres.
O uso que Frida fazia das vestimentas, para disfarçar e distrair a si mesma,
servia também para desviar a atenção das pessoas quanto aos seus ferimentos e
sequelas sofridos em dois acidentes graves: um que lhe marcou o corpo e outro que lhe
afetou a alma.
45
1.3 Dois acidentes graves
As dores de Frida são as dores do México14. Dores colhidas durante o período da
revolução nesse país. Na tela La columna rota (figura 9), é possível identificá-la com
Cristo na cruz, porque Ele tinha pregos nas mãos e nos pés, redimiu o pecado dos
homens, e pode-se perceber que era como se Frida quisesse expurgar, por meio de
suas dores, os sofrimentos dos oprimidos do México, da mulher sofrida, humilhada
desprezada, todos os sentimentos estão ali expostos em sua carne, mas também ela
mostra força e resistência, apesar de ser humana. Afirma Campbell (2008, p.5) “[...]
porque a única maneira de você descrever verdadeiramente um ser humano é através
de suas imperfeições. O ser humano perfeito é desinteressante.” Frida ria e brincava
com a morte. Era sua companheira fiel, sempre à espreita, como um abutre esperando
sua presa acabar de morrer para devorá-la, mas, ela a encarava com o olhar firme,
fazendo-a recuar.
Todos nós precisamos compreender a morte e enfrentar a morte, e todos nós
precisamos de ajuda em nossa passagem do nascimento à vida e depois à
morte. Precisamos que a vida tenha significação, precisamos tocar o eterno,
compreender o misterioso, descobrir o que somos. (CAMPBELL, 2008, p.5)
Desse modo, pode-se observar que Frida não era apenas uma sobrevivente de
si mesma, apesar de todo o sofrimento e obstáculos que a vida lhe apresentava. A
14
Segundo Cortez (2008), o México, no início do século XVI, foi Palco onde se desenvolveu o violento choque de duas culturas e a
aniquilação de uma delas pelos espanhóis em nome do imperador Carlos V, da Alemanha e da Espanha. Historiadores calculam
que, entre guerras sangrentas e doenças que criminosamente causavam epidemias, teriam provocado a morte de vinte milhões de
nativos. As nações européias estavam interessadas em enriquecer explorando suas colônias, sendo que a Espanha, no século XVI
tinha esse predomínio baseado na exploração de metais preciosos que vinham da America, principalmente do México. Estariam
com isso proporcionando a acumulação de capital para a explosão capitalista que se seguiria na Europa provocando uma revolução
na economia, com todo o ouro roubado dos astecas. A história da conquista dos índios Mexicanos os colocam da condição de livres
e autônomos à de um povo submisso aos ditames do opressor, tornando-os um povo oprimido diante do conquistador e deixando
claras as formas de reações do mesmo sobre o opressor. Afirma Freire (2006) que os invasores pensam sobre os invadidos e
jamais com eles, pois estes são os que pensam por aqueles. Os primeiros mandam, e os segundos obedecem. Em carta que
Cortez (2008) envia ao Imperador da Espanha, deixa claro que conseguiu domar os índios, sendo que estes agora se tornaram
leais vassalos a serviço de Vossa Majestade, fazendo tudo como ele ordena e determina. Assim sendo, Freire (2006, p.43) conclui
que “Na verdade, manipulação e conquista, expressões da invasão cultural e, ao mesmo tempo, instrumentos para mantê-la, não
são caminhos de libertação. São caminhos de „domesticação‟”.
46
artista sempre buscava a superação dos problemas e experimentava a vida com paixão
e ardor, refletindo de maneira significativa em sua obra. Campbell (2008, p.5) completa a
ideia dizendo que o que todos procuramos não é um sentido para a vida.
[...] que estamos procurando uma experiência de estar vivos, de modo que
nossas experiências de vida, no plano puramente físico, tenham ressonância no
interior de nosso ser e de nossa realidade mais íntimos, de modo que realmente
sintamos o enlevo estar vivos. É disso que se trata, afinal, e é o que essas
pistas nos ajudam a procurar, dentro de nós mesmos.
Frida buscava viver com toda intensidade, assim adorava estar viva, e fazia de
sua maneira de vestir-se de tehuana um ritual mitológico.
Moyers, o jornalista que entrevista Joseph Campbell em O poder do mito, diz que
a cerimônia de casamento é um ritual mitológico, assim como a cerimônia de posse de
um juiz ou de um presidente. Campbell completa: “Alistar-se no exército, vestir um
uniforme é outro. Você desiste de sua vida pessoal e aceita uma forma socialmente
determinada de vida, a serviço da sociedade de que você é membro.” (CAMPBELL,
2008, p. 13)
Frida em seu casamento com Diego usou um vestido típico das camponesas
mexicanas, como se estivesse cumprindo um ritual de passagem, com isso criando uma
nova identidade, a de ser mexicana e a de ser esposa de Diego Rivera.
Frida, de certa forma com sua obra, seus trajes característicos, faz um resgate
da identidade cultural dos nativos, sua maneira de viver sendo exótica e cheia de
excentricidades (tinha um quintal povoado por pavões, macacos, cachorros, papagaios,
pombos, uma águia e um cervo; além de dormir com um esqueleto humano preso ao
dossel de sua cama) faz essa tentativa de resgatar o México, sua cultura e a identidade
dos mexicanos. E é nessa busca de identidade, de Frida e dos mexicanos, que eles se
identificam. “No tocante a este nível imediato de vida e estrutura, os mitos oferecem
modelos de vida.” (CAMPBELL, 2008, p. 13)
Frida também recebeu o adjetivo “heroína”, que é usado diversas vezes pelo
povo, principalmente pelas mulheres, para se referirem à pintora mexicana. E
47
novamente é Campbell que nos esclarece em relação a essa denominação, pois
existem muitas historias de heróis15 na mitologia.
Mesmo nos romances populares, o protagonista é um Herói ou uma heroína
que descobriu ou realizou alguma coisa além do nível normal de realizações ou
de experiência. O herói é alguém que deu a própria vida por algo maior que ele
mesmo (CAMPBELL, 2008, p. 131)
Frida, pelo fato de ter sofrido o acidente tão grave e quase ter morrido, passou
de sua condição de adolescente para a fase madura muito rapidamente.
A pintura tornou para Frida Kalho parte integrante da luta, sobretudo pela vida.
Também constituiu um aspecto muito importante do processo de sua “autocriação” a
representação teatral de si mesma, em sua arte, como em sua vida, era um meio de
controlar seu mundo. Durante o tempo em que se recuperava, recaía e voltava a se
restabelecer, se inventava sempre de novo. “Frida é a única pintora que deu luz a si
mesma” (t.n.)16, declara uma amiga da pintora, a fotógrafa Lola Álvarez Bravo.
Em certo sentido, explica Álvarez Bravo que, Frida de fato morreu no acidente.
“A luta entre as duas Fridas, a morta e a viva, estava chegando ao fim dentro
dela.” Depois do acidente veio o seu renascimento: “Reacendeu seu amor pela
natureza, assim como pelos animais, pelas cores e pelas frutas, por qualquer
17
coisa dela e positiva ao seu redor.” (t.n.)
15
A façanha convencional do herói começa com alguém a quem foi usurpada alguma coisa, ou que sente estar faltando algo entre
as experiências normais franqueadas ou permitidas aos membros de uma sociedade. Essa pessoa então parte numa série de
aventuras que ultrapassa o usual, quer para recuperar o que tinha sido perdido, quer para descobrir algum elixir doador da vida.
Normalmente, perfaz-se um círculo, com a partida e o retorno. Mas a estrutura e algo do sentido espiritual dessa aventura já podem
ser detectados na puberdade ou nos rituais de iniciação das primitivas sociedades tribais, por meio dos quais uma criança é
compelida a desistir da sua infância e a se tornar um adulto – para morrer, dir-se-ia, para a sua personalidade e psique infantis e
retornar como adulto responsável. E essa é uma transformação psicológica fundamental, pela qual todo individuo deve passar. Na
infância, vivemos sob a proteção ou a supervisão de alguém, entre quatorze e vinte e um anos – e caso você se empenhe na
obtenção de um titulo universitário, isso pode prosseguir talvez até os trinta e cinco. Você não é, em nenhum sentido,
autorresponsável, um agente livre, mas um dependente submisso, esperando e recebendo punições e recompensas. Evoluir dessa
posição de imaturidade psicológica para a coragem da autorresponsabilidade e a confiança exige morte e ressurreição. Esse é o
motivo básico do périplo universal do herói – ele abandona determinada condição e encontra a fonte da vida, que o conduz a uma
condição mais rica e madura (CAMPBELL, 2008, p.131-2).
16
17
“Frida es la única pintora que se dio a luz a sí misma” (HERRERA, 1983, p. 103).
“La lucha entre las dos Fridas, la muerta y la viva, se estaba llevando a cabo siempre dentro de ella.” Depois do acidente veio seu
renascimento: “Se reavivó su amor por la naturaleza así como por los animales, los colores y la fruta, por cualquier cosa bella y
positiva a su alrededor.” (HERRERA, 1983, p.103, l04).
48
Sem dúvida, Frida não viu a mudança produzida pelo acidente como um
renascimento, senão como uma aceleração do processo de envelhecimento. Um ano
depois do acidente, Frida escreveu em uma carta para seu primeiro namorado,
Alejandro:
Por que estuda tanto? Que segredo está procurando? A vida vai revelá-lo em
breve. Eu já sei tudo, sem ler ou escrever. Recentemente, talvez alguns dias
atrás, era uma menina que estava em um mundo de cores, de maneiras
precisas e tangíveis. Tudo era misterioso e ocultava alguma coisa, o enígma da
sua natureza era um jogo para mim. Se você soubesse como é terrível alcançar
o conhecimento de repente, como se um raio clareasse toda a Terra! Agora eu
vivo em um mundo cheio de dor, transparente como gelo. É como se houvera
aprendido tudo ao mesmo tempo, em questão de segundos. Minhas amigas e
companheiras tornaram-se mulheres lentamente. Eu envelheci em alguns
instantes e agora tudo é aborrecido e raso. Sei que não há nada por trás, se
18
houvesse eu veria. (t.n.)
Pode-se constatar que, Frida ao sofrer o acidente e ter estado quase morta,
recuperando-se posteriormente, é como se ela tivesse passado por esse ritual citado
por Campbell. Frida amadureceu, envelheceu em poucos instantes. Passou pela saga
do herói e morreu para renascer.
Em um momento de muita dor na alma, Frida desabafou certa vez: “Sofri dois
acidentes graves em minha vida. O primeiro ocorreu quando um bonde onde estava
bateu... O outro acidente é Diego.” (t.n.)19 Em 1928, quando Frida começou a
frequentar os meios artísticos conheceu Diego Rivera, durante uma festa na casa de
Tina Modotti. Ela já o conhecia de vista quando era estudante da escola preparatória,
onde Diego pintava os murais.
18
Por qué estudias tanto? Qué secreto buscas? La vida pronto te lo revelará. Yo ya lo sé todo, sin leer ni escribir. Hace poco,
talvez unos cuantos dias, era una niña que andaba en un mundo de colores, de formas precisas y tangibles. Todo era misterioso y
algo se ocultava; la adivinación de su naturaleza constituía un juego para mi. Si supieras lo terrible que es alcanzar el conocimiento
de repente, como si un rayo dilucidara la Tierra! Ahora habito un planeta doloroso, transparente como el hielo. Es como si hubiera
aprendido todo al mismo tiempo, em cosa de segundos. Mis amigas y mis compañeras se convirtieron lentamente en mujeres. Yo
envejecí en unos instantes, y ahora todo es insípido y raso. Sé que no hay nada detrás; si lo hubiera lo vería... (HERRERA, 1983
p.104).
19
“Sufrí dos accidentes graves em la vida. El primero ocurrió cuando me atropelló um tranvía... El otro accidente es Diego.”
(HERRERA, l998 p.55).
49
Rivera já era um artista consagrado no mundo da pintura, tanto no México como
na Europa e Estados Unidos. Estava de volta de sua estada na União Soviética, onde
tinha sido convidado a trabalhar na pintura de murais. Era integrante do Partido
Comunista e adorava as mulheres, coisa que parecia recíproca, pois elas giravam em
torno dele.
No entanto, o homem era feio. Grande, gordo e quando estava sentado parecia
não saber o que fazer com a sua barriga proeminente. Os traços de seu rosto
acompanhavam o resto. Olhos saltados, nariz um pouco achatado, lábios
grossos e dentes estragados. Tudo nele tinha um aspecto moleirão, mas era
santificado pela aura do artista. Alçado às nuvens e discutido como grande
celebridade ocupava posição de vanguarda da atualidade por suas idéias, suas
excentricidades, as polêmicas que suscitava. Ou por seu trabalho
simplesmente. (JAMIS, l987, p. 117)
Nele, tudo se manifestava de maneira imensa, exagerada, a começar por seus
trabalhos, que eram em escala monumental. Homem imponente, escandaloso e
exuberante. Muito respeitado na sociedade mexicana, assim como no meio artístico e
intelectual. Foi assim que Diego entrou na vida de Frida, como um turbilhão, trazendo
consigo uma caixa de surpresas. Frida apaixonou-se por ele, e chegava a dizer que
Diego e a artista formavam um só.
Figura 23: Diego e Frida 1929-1944 (I)
ou Retrato Duplo, Diego e Eu (I), 1944
Fonte: Kettenmann, 1994.
50
Não agradava muito à família de Frida vê-la casada com Diego. Diziam que
parecia o casamento de um elefante com uma pomba. Mas, mesmo assim casaram-se
em 21 de agosto de l929. Somente o pai de Frida compareceu ao casamento.
Um casamento entre dois monstros, cada um a seu modo, dois criadores, dois
sedutores, dois apaixonados. Um casamento que poderia parecer um capricho
extravagante, regido unicamente pelas forças instintivas, lúdicas que podiam
estar dominando cada um dos seus parceiros. Um casamento que já se
anunciava pelo menos, longe dos auspícios do tédio (JAMIS, l987, p.130).
Com essa união Frida sofre uma influência ideológica. Rivera já era um artista
conceituado, um pintor de murais e introduziu Frida no circulo de artistas e intelectuais,
que tentavam criar uma arte mexicana independente.
Pode-se constatar que depois de passar por esses graves acidentes, não é de se
estranhar que a arte de Frida seja pontuada por obras repletas de gratidão aos médicos
que de alguma forma lhe prestaram socorro, e também aos correspondentes de seus
ideais políticos como Marx e Stalin. Com isso, suas telas ganham características de
quadros votivos20 tão comum no México.
1.4 Quadros votivos
A arte votiva mexicana tem uma faceta característica que é a extração e
reintegração de elementos essenciais dentro de uma obra. De acordo com Kettenmann
20
Quadros votivos: Ainda que quase sempre executados de maneira tosca, os ex-votos ou quadros votivos pintados contêm uma
evidente dimensão artística. No entanto, antes de mais nada, eles resultam da experiência religiosa dos fiéis. São oferecidos para
retribuir uma dádiva de Deus, concedida. em geral, por meio de algum intermediário especial. Servem, portanto para agradecer um
fato que suspendeu o fluxo natural da vida. Na maioria das vezes, os ex-votos pintados compõem-se de três elementos: a cena
principal, que retrata o acontecimento; o espaço celeste, em que surge no alto a figura religiosa do intercessor; a legenda, que narra
por escrito o episódio e que, ao trazer com frequência a data em que ocorreu, permite situá-lo cronologicamente. Revista de Historia
da Biblioteca Nacional, ano4, nº 41, fevereiro de 2009. Dossiê: Ex-votos/ Guilherme Pereira das Neves/ Milagres do cotidiano; p.18
e 19.
51
(1994) pode-se traçar muitos paralelos entre a arte de Frida e os quadros votivos por
meio dos quais ela utiliza o metal e o pequeno formato, estilos e materiais utilizados.
Em sua arte, Frida também se utiliza do vernáculo, isenta de estrangeirismo,
valorizando o que é próprio de sua região e dos retablos21 tão comuns no México e tão
presentes na crença popular, que são quadros votivos de santos e mártires e cristãos.
Frida Kahlo começou a utilizar os painéis de metal de pequeno formato, comuns
aos ex-votivos, de l932 em diante, principalmente para seus autorretratos, onde
os problemas retratados partilham o caráter altamente pessoal e único dos
quadros votivos. Emprega desse modo, uma estrutura composicional
semelhante, adota a mesma simplicidade, o mesmo formato pequeno e
retangular, reduzindo o seu tema ao essencial. A perspectiva centralizada e a
proporção correta são preteridas em favor da dramatização cênica. Nos seus
retratos não há limites entre o mundo real e o familiar, entre o que é
objetivamente visível e o mundo do irracional e da imaginação.
(KETTENMANN, 1994, p.36)
Figura 24: Retablo, por volta de l943
Fonte: Kettenmann, 1994
21
Obra artística ou de arquitetura que decora um altar. (DIAZ, 2008, p. 426).
52
A artista mencionou apenas uma vez, por meio de um desenho, o fato do
acidente de ônibus ocorrido com ela quando tinha 18 anos de idade. Mas encontrou
certa vez um quadro votivo (figura 24), onde estava representado um acidente muito
parecido com o que ocorreu com ela quando era jovem. Fez apenas algumas
modificações no letreiro do ônibus, uniu as sobrancelhas (traço muito característico de
seu rosto), acrescentou algumas inscrições tão comuns dos quadros votivos, e assim
terminou esse trabalho.
Uma das partes fundamentais da biografia de Frida está relacionada com a
questão de filhos, filhos que ela não podia conceber. Inclusive teve vários abortos, e
pintou uma obra relacionada ao fato.
Quando em abril de 1932, já casada com Diego, foi para Detroit, Frida já tinha
engravidado e feito um aborto por razões médicas e estes já tinham previsto que
dificilmente ela conseguiria levar uma gravidez até o fim, pois, devido ao acidente, sua
pélvis foi fraturada em três pontos, o que não permitia que o feto se posicionasse
corretamente, nem poderia fazer um parto normal. Mas mesmo assim estava grávida
novamente e preocupada com sua saúde, se conseguiria levar a cabo a gravidez e
sabia que Diego não estava interessado em ter filhos.
Figura 25: O Hospital Henry Ford ou A Cama Voadora, 1932
Fonte: Kettenmann, 1994
53
O que chama a atenção nessa obra é a escala desproporcional com que Frida se
representa para mostrar o tamanho de seu desconsolo: ela é pequena em relação ao
tamanho da cama, inclinada e desenhada propositadamente em perspectiva inexata. A
colocação da cama no ar, flutuando, manifestam o desamparo e o abandono que
muitos pacientes sentem ao estarem hospitalizados. Frida está sozinha, vazia e
indefesa.
A artista está deitada na cama, completamente nua sobre um lençol branco e
que debaixo de seu ventre está encharcado de sangue, proveniente do aborto sofrido.
Uma lágrima enorme escorre de seu rosto e na mão esquerda, apoiada sobre o ventre
ainda inchado por causa da gravidez, ela segura três fitas vermelhas como se fossem
artérias, às quais estão atados pelas pontas seis objetos, simbolizando a sua
sexualidade e a gravidez interrompida.
Uma das fitas se liga ao feto masculino de tamanho exagerado transformando-se
num cordão umbilical em posição embrionária. Uma alusão à gravidez do pequeno
“Dieguito” que perdera.
O caracol, situado logo acima da cabeceira da cama, representado aqui nesta
obra, aparece novamente em outra pintura de Frida (figura 23) e simboliza a sua união
amorosa com Diego, com significado de vitalidade e sexualidade. Chevalier (2009)
esclarece que, para algumas culturas indígenas mexicanas, mais especificamente os
astecas, a concha que protege o caracol é um símbolo de concepção, gravidez e
nascimento. Mas, nessa obra, “Segundo a própria Frida Kahlo, é um símbolo da
interrupção da gravidez que ainda era de curta duração” (KETTENMANN, l994, p.33).
Chevalier (2009, p. 270) acrescenta que para os maias “[...] a concha simboliza o
mundo subterrâneo e o reino dos mortos. A concha está ligada à ideia de morte [...] do
ocupante primitivo da concha ou da morte da geração precedente.” Faz-se com isso
uma alusão ao fato de que Frida tinha consciência de que não deixaria herdeiros.
Aos pés da cama, na parte superior esquerda, um protótipo anatômico da parte
inferior de um tronco humano, assim como o modelo de osso da pélvis; ambos
representando uma das regiões do corpo afetadas pelo acidente: causa principal do
aborto, que impossibilitou permanentemente Frida de ter filhos.
54
Observando embaixo e à esquerda, nota-se um equipamento, provavelmente
hospitalar usado naqueles tempos. Nesse contexto, o aparelho pode estar representado
por Frida Kahlo em uma analogia entre esta máquina e os seus músculos atrofiados,
que a impediam de carregar o bebê em seu útero.
Enquanto esteve internada no hospital, Diego Rivera levou-lhe de presente uma
orquídea violeta, que está localizada na obra ao centro e abaixo da cama. A artista
considera essa flor um símbolo das emoções e da sexualidade.
Para completar o quadro de solidão que Frida sentia nesse período em que
esteve hospitalizada, ela reforça a cena com a pintura ao fundo com uma paisagem
industrial que se vê na linha do horizonte, e a cama a flutuar sobre um imenso deserto.
Trata-se de uma parte da Ford Motor Company, o complexo de Rouge River, e indicanos o local onde se deu esta fatalidade. “Sendo um símbolo de progresso tecnológico,
contrasta com o destino humano da artista” (KETTENMANN, 1994, p.34).
Frida não quer registrar com precisão fotográfica uma situação real. Para ela é
mais relevante reproduzir o seu estado emocional num filtro da realidade que ela
experimentara.
Apesar de cada motivo estar delineado no quadro com pormenores precisos, o
realismo da vida real é evitado, de uma forma geral, na composição. Os objetos
são extraídos de seu habitat normal e integrados numa nova composição.
A extração e reintegração de elementos essenciais e significativos é uma faceta
característica da arte votiva mexicana. (KETTENMANN, l994, p.35).
Geralmente os quadros votivos apresentam desenhados os santos dos quais a
pessoa é devota, na parte de cima da composição, na região celestial, rodeados de
uma aureola de nuvens, mas nessa obra eles são totalmente omitidos. São substituídos
pelos símbolos suspensos que possuem uma significância bastante diferente.
Da mesma forma que os pintores amadores de quadros votivos, Frida não pintou
a sua realidade como a via, mas sim como a sentia. Ela resume o mundo exterior ao
essencial, criando uma sequência de acontecimentos que é condensada em um clímax
poderoso.
55
Os quadros votivos acompanharam Frida por toda a sua vida. A saúde de Frida
piora muito no final dos anos 1940 e começo dos anos 1950. Estava novamente com
problemas na coluna, necessitando por isso fazer várias cirurgias e devido à má
circulação da perna direta pensa-se em amputação de alguns dedos do pé. Depois de
um longo período, em que esteve internada no Hospital ABC, na cidade do México, tem
uma pequena melhora em sua saúde, recomeça a pintar e o resultado é a tela
Autorretrato com o Retrato de Dr. Farill (Figura 26). Comenta Kettenmann (1994, p.79):
“Este autorretrato também pode ser entendido como um retablo de ação de graças:
representa uma espécie de oferenda votiva ao médico que salvou a artista da situação
em que se encontrava, surgindo aqui o médico no lugar de santo”.
Figura 26: Autorretrato com o Retrato do Dr. Farill, 1951
Fonte: Kettenmann, 1994
Segue-se outra obra que também é considerada como um quadro votivo.
Chama-se Autorretrato dedicado ao Dr. Eloesser e que a artista assina “com todo
amor”, na parte debaixo do quadro, em uma bandeirola branca. O motivo desse quadro
foi uma infecção aguda que Frida teve na mão direita, provocada por um fungo, sendo
que o Dr. Eloesser, por meio de um tratamento, estabilizou seu quadro. Como
agradecimento, Frida pinta esta obra para o médico.
56
A forma da mão reaparece no brinco da artista. Faz lembrar os milagres
mexicanos, oferendas votivas feitas em metal, cera ou marfim dando graças aos
santos pela sua ajuda em tempos de crise. Neste caso, representa o motivo da
lamentação da artista: a mão infectada. O médico libertou-a do sofrimento, cuja
memória sobrevive na coroa de espinhos que lhe fere o pescoço. Os espinhos
são, simultaneamente, um símbolo pré-colombiano da ressurreição e do
renascer, e representam a libertação da dor. (KETTENMANN, l994, p.56).
Figura 27: Autorretrato dedicado ao dr. Eloesser, 1940
Fonte: Kettenmann, 1994
Frida reingressa no partido comunista em l948 e comenta que estava
demasiadamente preocupada com sua pintura, escreve em seu diário:
57
Eu não tenho nenhuma dor. Somente um cansaço, frequente e, naturalmente,
muitas vezes desesperada, porque até agora eu não tenho pintado senão
expresão honrada de mim mesma, mas muito longe do que a minha pintura
possa servir ao partido. Devo lutar com todas as minhas forças para que o
pouco de positivo que minha saúde me permita fazer seja para ajudar a
22
revolução. A única verdadeira razão para viver. (t.n.)
A intenção de introduzir um caráter político no seu trabalho para “servir ao
partido” e “beneficiar a revolução” só se torna clara na sua última fase produtiva. Pinta
então outras duas obras significativas, onde faz a referência aos quadros votivos
substituindo a imagem do santo pela imagem de Marx e Stalin nas obras: O Marxismo
Dará Saúde aos doentes (Figura 28) e Frida e Stalin (Figura 29).
Figura 28: O Marxismo Dará Saúde aos Doentes, 1954
Fonte: Kettenmann, 1994
22
No tengo dolores. Solamente un cansancio de la, tiznada, y como es natural muchas veces desespenista, pues hasta ahora no
he pintado sino la expresióm honrada de mi misma, pero alejada absolutamente de lo que mi pintura pueda servir al partido. Debo
luchar con todas mis fuerzas para que lo poco de positivo que mi salud me deje hacer sea en dirección a ayudar a la revolución. La
única razón real para vivir. (KAHLO, 2008, p. 252)
58
Nessa obra, novamente, a artista faz uso do estilo narrativo dos quadros votivos,
colocando Karl Marx no lugar do santo, cuja intervenção salvará o mundo do perigo
iminente e trará a paz. Frida aparece milagrosamente curada e amparada por duas
mãos, que são o símbolo do marxismo, tendo estampado, em uma das mãos, o olho da
sabedoria. Mostra também a artista soltando e abandonando as muletas. Frida disse a
respeito deste quadro “Pela primeira vez deixei de chorar”.
Figura 29: Frida e Stalin ou Autorretrato com Stalin,
cerca de 1954
Fonte: Kettenmann, 1994
Esse quadro pode ser comparado com o Autorretrato com o retrato do Dr. Farill,
pelo caráter votivo, em que o médico faz o papel de salvador, e aqui é Stalin que
59
assume o papel de santo. Com isso, a artista revela sua fé, quase religiosa, no
comunismo. É importante relatar em relação a Frida que:
A sua identificação com a nação mexicana e as suas raízes culturais não
podem ser vistas, somente, como um retrato do meio privado que a rodeava ou
de seus problemas pessoais. É claramente uma atitude intelectual influenciada
pelos desenvolvimentos políticos e culturais que se seguiram à Revolução
Mexicana. (KETTENMANN, 1994, p. 83)
Observa-se deste modo como estava intrínseca a história de Frida e do México,
como realmente a sua dor e seu sofrimento misturavam-se com o sofrimento e a dores
do oprimido povo mexicano.
1.5 Identidade Nacional
Apesar dos fracassos políticos, a revolução mexicana foi um sucesso cultural,
pois revelou uma nação para ela mesma. Um povo que desde a conquista do México
no século XVI, com as invasões européias, foi perdendo sua identidade, suas raízes
culturais. O cinema foi um dos colaboradores do povo mexicano para recordá-lo de tudo
o que havia esquecido. De certa forma o cinema mexicano desse período caminha na
contramão daquilo que é proposto pelo cinema mundial, que seria fazer os indivíduos
“[...] experimentar eventos, observar outros e, em geral, conhecer mundos - tanto reais
quanto imaginários – situados muito além da esfera de seus encontros diários.”
(THOMPSON, 1998, p.159).
Iniciando pelo ponto mais relevante, a maioria do povo mexicano recebeu o
cinema com muito entusiasmo, não pelas estratégias comerciais e pela “genialidade” ou
talento dos artistas. Mas porque essa experiência foi o encontro entre a vivência
60
coletiva, resultado da Revolução, com essa mídia que, mesmo deformando o indivíduo
mexicano, o torna autêntico socialmente.
Trata-se do centro de gravidade da nova cultura, já que o público mexicano e o
latino-americano não perceberam o cinema como fenômeno especifico artístico
ou industrial. A razão causadora do sucesso foi estrutural, vital; no cinema esse
público viu a possibilidade de experimentar, adotar novos hábitos e ver
reiterados (e dramatizados com as vozes que gostaria de ter e ouvir) códigos de
costumes. Não se ia ao cinema para sonhar; ia-se para aprender. Através dos
estilos dos artistas ou dos gêneros da moda, o público foi se reconhecendo e
transformando, apaziguou-se e se ufanou secretamente (MATÍN-BARBERO,
2008 p. 235).
O cinema é o caminho socializante e vital na composição dessa nova experiência
cultural aplicada no México, é a própria experiência popular urbana e será a primeira
linguagem de comunicação nesse contexto. Vai além de um conteúdo reacionário e de
sua forma esquemática, nesse momento o cinema vai ligar-se ao problema da situação
de miséria da população por se fazerem visíveis socialmente. Dessa forma, criam-se
condições para que a identidade nacional tenha voz e imagem.
[...] A identidade coletiva é o sentido que cada um tem de si mesmo como
membro de um grupo social ou coletividade; é um sentido de pertença, de ser
parte de um grupo social que tem uma história própria e um destino coletivo. [...]
O sentido que cada um tem de si mesmo e o sentido de pertença a um grupo
são modelados – em vários graus dependendo do contexto social – pelos
valores, crenças e padrões de comportamento que são transmitidos do
passado. O processo de formação de identidade nunca pode começar do nada;
sempre se constrói sobre um conjunto de material simbólico pré-existente que
constitui a fonte da identidade. (THOMPSON, 1998, p.165).
A população vai ao cinema para se ver e se reconhecer, por meio uma
sequência de imagens que é muito mais que assuntos gratuitos. São rostos, gestos,
maneiras de falar e caminhar, paisagens e cores que representam o México. Quando a
população se vê no cinema, se identifica e se nacionaliza. Não é o fato de conceder
uma nacionalidade, mas sim como senti-la, estimulando e carregando no seu íntimo
todas as mistificações bem como um patriotismo elevado, mas há de ressaltar também
a importância que essas imagens proporcionariam às massas urbanas, abrandando
61
choques culturais, quando pela primeira vez, o país se identifica com sua verdadeira
imagem.
Nesse novo sentimento nacionalista, agem três tipos diferentes de dispositivos
que o cinema procura, são dispositivos de teatralização.
Os de teatralização, isto é, o cinema como encenação e legitimação de gestos,
peculiaridades linguísticas e paradigmas sentimentais próprios. É o cinema
ensinando as pessoas a “serem mexicanas”. Os de degradação: para que o
povo possa ver-se, é preciso pôr a nacionalidade ao seu alcance, quer dizer,
bem mais embaixo. O nacional é então „o menor, o repleto de carinho filial, o
vagabundo, o bêbado, o sentimental [...], a humilhação programada da mulher,
23
o fanatismo religioso, o respeito fetichista pela propriedade privada‟ . E os de
modernização, porque, senão sempre, pelo menos freqüentemente as imagens
contradizem as mensagens, os mitos são atualizados, novos costumes e
moralidades são introduzidos, novas rebeliões e novas linguagens tornam-se
acessíveis. (apud MONSIVÁIS; MARTÍN-BARBERO, 2008, p. 236)
Identificados por Martin-Barbero (2008), os focos da sedução estarão no
melodrama e nas estrelas: o melodrama é construído como estrutura de algum tema,
combinando a impotência social e a busca de heróis, resgatando o popular partindo da
compreensão familiar da realidade, permitindo a esse cinema recuperar a épica
nacional com o drama interior, realçar o erotismo com ensejo de condenar o incesto e
dissolver por meio de lágrimas as tragédias, anulando assim o direcionamento das
contradições cotidianas. Existe uma clara intenção de convencimento que as estrelas,
muito além do uso sedutor da maquiagem e da influência comercial e publicitária,
fornecem com rostos, corpos e vozes a necessidade que as pessoas têm de se
espelharem e se ouvirem. Já as legítimas estrelas do cinema alcançam sua força por
meio de uma comunicação pactual que unem seus rostos e vozes com o público,
sustentando desejos e obsessões.
[...] Entre os anos de 1920 e 1930, o cinema reelabora a épica popular. [...] A
Revolução é re-vista, convertida em fato cinematográfico. [...] Melodramatização
que rouba à Revolução seu sentido político, mas que não se tornará reacionária
até a segunda etapa, depois dos anos de l930. Quando aparece a comédia
rancheira fazendo do machismo a expressão de um nacionalismo que se
23
MONSIVÁIS, C. Cultura urbana y creación intelectual, Casa de las Americas, n.116, p.86.
62
folcloriza, um machismo que deixa de ser uma maneira popular de entender e
afrontar a morte e se converte em técnica compensatória da inferioridade social.
O machismo enquanto „excesso que redime do pecado original da pobreza [...]
24
e queixosa petição de reconhecimento‟.
(apud MONSIVÁIS; MARTÍNBARBERO, 2008, p. 237, 238)
Figura 30: Uns Quantos Golpes, 1935
Fonte: Kettenmann, 1994
Frida, na década de 30, pintou uma obra (figura 30) que faz relação com o que o
cinema mexicano nessa mesma década enaltece: a figura do machão. A relação desta
obra Uns quantos golpes (1935), com Diego é muito direta, pois foi nesse período que
Frida descobre que Rivera está tendo um romance com sua irmã. “É muito apelativo
pela sua natureza sangrenta, e representa a transcrição visual de uma notícia que Frida
leu no jornal, e diz respeito a uma mulher assassinada por ciúme.” (KETTENMANN,
l994, p.39).
24
MONSIVÁIS, C. Amor perdido, p. 31-32
63
A artista pintou algo parecido, inspirada na obra de um grande gravador
mexicano do final do século, José Guadalupe Posada, cujos panfletos ilustram
acontecimentos de jornais importantes, onde mostravam homens que esfaqueavam
mulheres. Frida considerou a história horrível e engraçada ao mesmo tempo, devido à
justificativa dada ao juiz pelo assassino: Mas, foram somente algumas furadinhas
(t.n.)25. Nessa afirmação, o opressor quase diz que não foi por mal tê-la matado. O
homem é o típico “machão”. A mulher é a vitima, la chingada, a grosseria mais usada
no México. O verbo chingar denota violência, é de cunho masculino ativo e cruel,
apresenta perda de controle e invade à força, provoca uma amarga, ressentida
satisfação em quem o executa. O chingado é o passivo, o inerte e receptivo que são
características femininas. Herrera (1986) comprova tais atos de violência, por meio de
uma confidência que Frida fez a uma amiga revelando que havia pintado o assassino
porque, no México, matar é bastante justificável e natural, principalmente matar
mulheres. Ainda nessa obra há uma bandeirola suspensa por pombas, que indica o
titulo do quadro. Uma das aves é negra e a outra é branca, fazendo alusão aos dois
lados do amor.
Frida tendo a personalidade tão forte e cativante, de maneira alguma passaria
despercebida. Resultando em mais de cem obras publicadas a seu respeito; tornandose inevitável que o cinema quisesse imortalizar a artista narrando sua trajetória de vida.
25
“Pero si sólo le di unos cuantos piquetitos” (HERRERA, l986, p.109).
64
Figura 31: Pensando na Morte,1943
Fonte: Kettenmann, 1994
CAPÍTULO 2
2 Narrando Frida por quadros em movimento
Após investigar o uso da imagem como ferramenta na construção do mito, esse
capítulo aborda aspectos mais técnicos da linguagem cinematográfica utilizada na
produção do filme sobre a artista mexicana.
Das pinturas para a literatura, o mito Frida invade o cinema. Frida – Una
biografía de Frida Kahlo, de Hayden Herrera, foi transcodificada para a obra
cinematográfica Frida (EUA-2003) por Julie Taymor. O filme visita algumas obras
pictóricas da artista.
A pintora narra sua história por meio de um texto não-verbal, ou seja, por meio
de imagens quando nos apresenta suas obras pictóricas. A escritora Hayden Herrera
transcodifica essas imagens de Frida para um texto verbal quando escreve a biografia
de Frida Kahlo. Já, a diretora Julie Taymor narra transcodificando cuidadosamente a
obra literária de Herrera, criando uma obra fílmica, que é uma história contada também
por imagens em movimento.
O hábito de narrar histórias é uma das atividades mais antigas do ser humano.
Cabral (1989 p.1) afirma que é interessante notar como as narrativas têm sido
transmitidas por meio de diversas linguagens: pela imagem (linguagem visual), pela
palavra (linguagem verbal: oral ou escrita), pelos gestos (linguagem gestual), pelos
sons (linguagem musical). Em suma, se tratando de obra cinematográfica, uma história
bem contada.
[...] não significa apenas uma história bem narrada, habilmente estruturada e
tramada. A história tem de ser mostrada em cenas esmeradas, com papéis bem
concebidos (e bem interpretados), que inspirem o cenógrafo, o fotógrafo, o
compositor, o montador e todos os demais colaboradores a acrescentarem seus
talentos à forma final com que as imagens e palavras do roteirista aparecem
perante o espectador (HOWARD & MABLEY. 2005, p. 21 e 22).
66
A produção cinematográfica é demasiado complexa, pois muitas pessoas estão
envolvidas, no processo narrativo: Uma equipe de profissionais se junta para contar
uma história e, evidentemente, o diretor, que arremata a filmagem.
Ficha técnica do filme:
Elenco:
Produção:
Efeitos especiais:
Salma Hayek: Frida Kahlo
Lindsay flickinger
Alfred Molina: Diego Rivera
Sarah Green
Amoeba Proteus / KleiserWalczak Construction
Company
Geoffrey Rush: Leon Trotsky
Nancy Hardin
Ashley Judd: Tina Modotti
Salma Hayek
Antonio Banderas: David
Alfaro Siqueiros
Jay Polstein
Edward Norton: Nelson
Rockfeller
Roger Rees: Guillermo
Kahlo
Patrícia Reyes Spíndola:
Matilde Kahlo
Lizz Speed.
Direção:
Margarita Sanz: Natalia
Trotsky
Julie Taymor
Jorge Valdés Garcia:
Médico
Música:
Elliot Goldenthal
EUA: Miramax Films/ Lions
Gate Filmes Inc. / Trimark
Pictures / Handprint
Entertainment/ Ventanarosa
Productions. 2002.
Saffron Burrows: Gracie
Diego Luna: Alejandro
Gonzalez Arias
Rodrigo Prieto
Roberto Sneider
Valeria Golino: Lupe Marin
Mia Maestro: Cristina Kahlo
Direção de Fotografia:
Roteiro:
Clancy Sigal
Desenho de produção:
Felipe Fernandez del Paso
Direção de Arte:
Bernardo Trujillo
Figurino:
Julie Weiss
Diane Lake
Gregory Nava
Anna Thomas
Baseado no livro de Hayden
Herrera.
Edição:
Françoise Bonnot
67
No filme Frida, a percepção visual chama muito a atenção devido o uso de
muitas cores e contraste, mas a narrativa verbal e sonora procura sempre a palavra
adequada, a ideia correta e a música perfeita para realizar a transcodificação
necessária com intuito de descobrir a melhor maneira de contar essa história. A
transposição de uma obra literária para outro código, somente é possível porque a
transcodificação desta oferece múltiplas interpretações. Já a respeito de adaptação e
transmutação: “O filme adaptado deve preservar em primeiro lugar a sua autonomia
fílmica, ou seja, deve-se sustentar como obra fílmica, antes mesmo de ser objeto de
análise como adaptação” (BALOGH, 2005, p. 53).
Para levar a história de Frida Kahlo às telas foi essencial que se tivesse um
roteiro forte que carregasse a plateia por meio da narrativa de sua vida. Julie Taymor
explica: “aceitei fazer este filme levando em conta a incrível versão do roteiro escrita por
Rodrigo Garcia, e devo dar o merecido crédito a Edward Norton por suas revisões, que
tornaram tudo possível.” (FERNANDES, 2010)26. Muitos fatos da obra literária foram
suprimidos na transposição da obra fílmica, uma vez que a obra literária é muito
extensa:
Filmes são diferentes. O filme é um meio visual que dramatiza um enredo
básico; lida com fotografia, imagens, fragmentos e pedaços de filme: um relógio
fazendo tique-taque, a abertura de uma janela, alguém espiando, duas pessoas
rindo, um carro arrancando, um telefone que toca. O roteiro é uma obra contada
em imagens, diálogos e descrições, localizada no contexto da estrutura
27
dramática (FIELD , 2001, p.2).
Esse autor afirma que, “[...] o filme hollywoodiano normal tem a duração
aproximada de duas horas, ou 120 minutos. Uma página de roteiro equivale a um
minuto de projeção”. Sendo assim o filme Frida tem 123 minutos de projeção
equivalendo a 123 páginas escritas no roteiro. A seguir o modelo (figura 32)
26
FERNANDES, 2010, passim.
Disponível em: <http://www.webcine.com.br/notaspro/npfrida.htm>. Acesso em: 16 de fev, 2010.
27
Syd Field: Experimentado profissional, atua como consultor de produtores americanos na análise e desenvolvimento de roteiros.
Frequentemente realiza Workshops em universidades americanas e leciona Técnica de Roteiro na Sherwood Oaks Experimental
College, em Hollywood e no Art Center College of Design, em Pasadena. É por inúmeras razões o mais procurado professor de
roteiro do mundo.
68
apresentado por Field traça um desenho para que se possa entender de forma mais
clara e prática esse início, meio e fim que todo filme costuma apresentar.
Figura 32: Modelo de Field
(FIELD, 2001, p. 3)
Por meio deste modelo fica fácil identificar em Frida alguns pontos importantes
como, por exemplo, ponto de virada, ou seja, Plot Point - Ponto de Trama, de Enredo
ou de Intriga. Essa foi uma importante ferramenta da técnica desenvolvida por Field
(2001) para identificar um incidente, um evento ou episódio que se engancha em outro
na ação e reverte para outra direção dentro da narrativa. Podem-se identificar também
o início, a confrontação e a resolução. Todos claramente mostrados neste modelo.
Seguindo o modelo de Field (2001), observa-se que em uma narrativa encontram-se
vários tipos de conflito: econômicos, religiosos, sociais, morais e psicológicos, e
geralmente, são esses conflitos que determinam as partes do enredo.
Acredita-se que para um bom entendimento de uma narrativa, seja necessário o
modelo de Field. Para exemplificar melhor, segue-se um método para essa sequência
de 16 quadros fílmicos.
69
1 – Apresentação (quadros fímicos 1 e 2)
2 – Ponto de virada ou Plot Point (quadros fílmicos 3 e 10)
3 – Confrontação ou desenvolvimento (quadros fílmicos 4, 5, 6, 7, 8, 9, 11, 12, 13 e 14)
4 – Resolução ou conclusão (quadros fílmicos 15 e 16)
1
2
1 – Apresentação: É quando são apresentados os fatos iniciais, os personagens
e às vezes o tempo e o espaço, o local onde está acontecendo a narrativa. É
exatamente o que mostra o inicio do filme. O quadro fílmico 1 mostra a personagem
Frida, já na maturidade e aparece vestida para ir a uma festa, mas deitada em uma
cama, sendo colocada sobre um caminhão que irá transportá-la. A cena mostra uma
casa pintada de azul muito forte, com enormes bonecos de papel machê decorando o
jardim. A música ao fundo ambienta o local, se não o México, ao menos é um país
latino-americano. Estes fatos apresentados desta forma têm o intuito imediato de
despertar no espectador o interesse e questionamentos: quem seria esta mulher?
Porque estaria vestida assim? Para onde estaria sendo levada? Logo em seguida, no
quadro fílmico 2 como uma recordação da personagem, aparece uma jovem,
adolescente vestida com uma roupa que parece ser um uniforme, correndo pelos
corredores de uma escola.
70
3
10
2 – Ponto de virada ou Plot Point: é o momento de maior tensão na narrativa,
no qual o conflito chega ao ponto máximo. É o ponto de referência para as outras
partes do enredo, que se organizam em função dele. Na obra fílmica temos dois pontos
muito fortes que alteram significativamente o rumo da vida da personagem. O acidente
(fotograma 3) em que ficou gravemente ferida, fraturou três vértebras, tendo como
consequência a saúde debilitada para o resto da vida, alterando com isso o rumo da
profissão que queria seguir, pois pretendia cursar medicina, mas também foi como
consequência desse fato que ela se tornou pintora. Outro acontecimento de igual
importância foi quando Frida descobre Diego Rivera, seu esposo, tendo um caso com a
irmã mais nova dela, (fotograma 10). Nesse momento, Frida rompe esse
relacionamento e tenta levar a vida adiante, como mulher independente como pintora.
4
5
71
6
7
8
9
11
12
72
13
14
3 – Confrontação, desenvolvimento: A confrontação constitui a maior parte da
narrativa, na qual agem forças auxiliares e opositoras ao desejo da personagem e que
intensificam o conflito. A confrontação está diretamente ligada aos Pontos de Virada,
pois são consequências desses. Identificam-se esses fatos após o acidente de Frida,
tendo com isso sua saúde prejudicada com problemas na coluna, não podendo ter
filhos. Ficou por meses engessada e acamada (fotograma 4), motivo que a faz iniciarse na pintura, (fotograma 5), que a levaria a conhecer e casar-se com Diego Rivera,
(fotograma 6 e 8). Ingressa no partido comunista (fotograma 7), sofre abortos,
(fotograma 9). No aspecto emocional, fica marcada pelas infidelidades de Diego Rivera,
mas principalmente pela traição com sua irmã mais nova e consequentemente a
dificuldade financeira advinda da separação do casal (fotogramas 11 e 12). Casa-se
pela segunda vez com Rivera (fotograma 13), tem o pé e posteriormente a perna
amputada (fotograma 14). Observa-se, portanto, que podem acontecer vários conflitos
dentro de uma mesma narrativa.
73
15
16
Figura 33: Quadros fílmico - de 1 a 16
4 – Resolução ou conclusão: é a solução dos conflitos, boa ou má, vale dizer
configurando-se num final feliz ou não. Nesse ponto do filme, Frida consegue o
reconhecimento em seu país de origem, o México, com a primeira exposição individual
de suas obras, na Galeria de Arte Contemporânea La Rosita, pertencente à Lola
Álvarez Bravo (fotograma 15). Também mostra o precário estado de saúde da artista,
que veio a falecer devido a estar cada vez mais debilitada (quadro fílmico 16).
Com um estudo mais cuidadoso dos capítulos da obra literária Frida – Una
biografía de Frida Kahlo, e comparando-a com a obra fílmica Frida, é importante
observar os pontos que a diretora Julie Taymor e os roteiristas acharam mais relevantes
para narrar a história de maneira concisa e coerente. Contando com apenas 123
minutos de filme para transcodificar uma obra literária de seiscentas e poucas páginas,
fazendo uso de moderadas doses de criatividade e um orçamento não muito alto, a
história dessa pintora mexicana foi adaptada com cuidado e verossimilhança.
Uma adaptação deve ser vista como um roteiro original. Ela apenas começa no
romance, livro, peça, artigo ou canção. Estas são as fontes, o ponto de partida.
Nada mais. Quando você adapta um romance, não é obrigado a manter-se fiel
ao material original... Você pode ter que acrescentar personagens, cenas,
incidentes e eventos. Não copie simplesmente um romance para um roteiro;
faça-o visual, uma história contada por imagens. (FIELD, 2001, p.175, 176)
74
Desde os gregos antigos existe a preocupação com a estrutura narrativa. Ao
descrever características do teatro Aristóteles demonstra
[...] que a obra do poeta não consiste em contar o que aconteceu, mas sim
coisas as quais podiam acontecer, possíveis do ponto de vista da
verossimilhança ou da necessidade. [...] Enunciar verdades gerais é dizer que
espécie de coisas um indivíduo de natureza tal venha a dizer ou fazer
verossímil ou necessariamente; a isso visa a Poesia, ainda quando nomeia
28
personagens. Relatar fatos particulares é contar o que Alcibíades fez ou o que
fizeram a ele. (ARISTÓTELES, 1996, p.39)
Aplicam-se esses conceitos nas narrativas de hoje. Os fatos contados no texto
não precisam corresponder exatamente aos fatos ocorridos fora do texto, mas devem
ser verossímeis, “[...] isto quer dizer que, mesmo sendo inventados, o leitor deve
acreditar no que lê.” (GANCHO, 2006, p.12). Para que haja essa credibilidade é
importante que exista uma organização lógica dos fatos dentro do enredo, relacionando
os vários elementos da história. Aristóteles define que o arranjo das ações
[...] é fator primeiro e mais importante da tragédia. Assentamos que a tragédia
é a imitação de uma ação acabada e inteira, de alguma extensão, pois pode
uma coisa ser inteira sem ter extensão. Inteiro é o que tem começo, meio e fim.
Começo é aquilo que, de per si, não se segue necessariamente a outra coisa,
mas após o que, por natureza, existe ou se produz outra coisa; fim, pelo
contrário, é aquilo que, de per si e por natureza, vem após outra coisa, quer
necessária, quer ordinariamente, mas após o que não há nada mais; meio o
que de si vem após outra coisa e após outra coisa vem. (ARISTÓTELES, 1996,
p.37).
28
Alcibíades é aqui como se dissesse fulano.
75
Na obra fílmica observa-se esta sequência:
Acidente de Frida
Fratura coluna
Pede conselho à Diego Rivera
Casa-se com Diego
Começa pintar
Apaixona-se por Diego
Traição de Diego
Divorcia de Diego
Começa trabalhar para sobreviver
Reconhecimento como artista
Agrava-se o estado de sua saúde
Amputação do pé e da perna
Estado de depressão
Morte de Frida
Conforme Fernandes (2010), Salma Hayek (artista que representou o papel de
Frida Kahlo no filme) escolheu e convidou a diretora Julie Taymor, que também como
mulher e artista plástica, entende, por ter experiência e ser criativa, muito bem esse
mundo particular de Frida. Taymor sabe como expor a dor de Frida, o que ela pensou e
o que sentiu, por meio de suas pinturas.
O interesse de Taymor ao dirigir Frida veio, inicialmente, da complexidade da
relação da artista com seu marido e ela explica:
A história do amor entre Diego e Frida foi o que me pegou realmente. Em geral
as histórias de amor que vemos seguem um formato do tipo - um cara conhece
uma garota, se apaixonam, ficam juntos e depois acaba. Talvez se passem
cinco meses ou cinco dias. Mas esta é uma história de amor muito profunda,
bela, atormentada e engraçada. (FERNANDES, 2010)
76
Realmente não é uma história piegas. Quando Frida morreu, o casal faria 25
anos de casados dias depois. Entre brigas e separações o amor resistiu e é a respeito
destes fatos que esta narrativa se desenvolve.
Grande parte da já mencionada tormenta matrimonial foi resultado do caso de
Diego com a irmã de Frida, Cristina. Em outras palavras, para Taymor, essa indiscrição
incompreensível despertou o tema fidelidade versus lealdade no filme. Segundo
Fernandes (2010), “O poder da história entre Frida e Diego reside no fato de que a
profundidade de seu amor conseguiu superar as promessas quebradas, as diversas
infidelidades em ambos os lados, as tempestades, as separações e, finalmente um
divorcio” Diz Taymor: “Nos últimos anos de vida de Frida, quando ela estava doente,
presa a uma cama e dependente de morfina – mesmo assim Diego voltou para ela.
Eles realmente não conseguiam viver um sem o outro.”
Quando Taymor começou a produção e fez uma exigência: pediu que os atores
principais tivessem uma compreensão absoluta da arte de pintar. Diferentemente de
Taymor, que já é artista, Hayek e Molina nunca pousaram um pincel sobre uma tela.
Ainda, segundo Fernandes (2010), a diretora sentiu que as aulas de pintura não apenas
auxiliariam na compreensão dos papéis dos atores, mas também aumentariam a
autenticidade do filme. Salma se saiu muito bem descobrindo um talento que nunca
imaginara ter, no entanto, Molina não se saiu tão bem assim. Brincando, disse para o
professor de pintura: “Não consigo pintar nem para salvar minha vida. Não sei
desenhar. Eu preciso fingir, e você precisa me ajudar a parecer suficientemente realista
para convencer as pessoas.”
Para sorte de Molina, os murais e pinturas utilizados em Frida não foram criados
pelos
atores.
Quarenta
carpinteiros,
trinta
e
cinco
pintores,
trabalharam
meticulosamente para recriar as famosas pinturas murais. “Eram dois grupos
completamente diferentes,” diz o designer de produção Felipe Fernandez. “Aqueles que
pintam os trabalhos de Diego não pintam Frida e vive-versa. São técnicas e estilos
diferentes.” O grupo “Frida” de artistas recriou quase 50 quadros da artista.
Nas cenas em que Diego é visto pintando um mural, a equipe pendurou uma
tela, por meio de uma plataforma, em frente ao trabalho original de Diego. Os artistas
77
da equipe faziam rascunhos dos contornos e pintavam partes de seu mural substituto.
Como as câmeras diminuem a profundidade dos objetos localizados a distância, as
extremidades da tela se fundiam com o mural original, criando a ilusão de um trabalho
em andamento. Para as pinceladas em close e aberturas de cena, pedaços menores de
diversos murais (incluindo o famoso mural Rockefeller Center), foram recriados para
Frida nos Churubusco Studios, na cidade do México.
Um recurso utilizado pela diretora Julie Taymor, de maneira muito delicada e
eficiente, foi o uso da animação para descrever cenas do filme não só da obra literária
para a obra fílmica, mas também da obra pictórica para a obra cinematográfica, de um
texto não-verbal para outro texto não-verbal, mudando apenas o suporte de uma tela de
linho para uma película de acetato, criando, com isso, primorosos quadros animados.
Pode-se observar, conforme Fernandes (2010), que Taymor tinha um forte
desejo de apresentar de forma criativa os eventos e os impulsos que marcaram as
pinturas altamente biográficas de Frida. “Ela disse que as pinturas eram a sua realidade
– que elas dizem a verdade da maneira que foi experimentada” comenta Taymor a
respeito da relação de Frida com sua arte. “Eu não queria fazer uma cinematografia
normal. Frida claramente pintou episódios de sua vida, porém episódios muito
subjetivos. A ideia de que eu poderia mostrar uma artista e seu processo criativo me foi
muito atraente.” segundo o critico Trigo (2009)29, “as sequências em que Frida “sai” de
suas próprias pinturas são impressionantes, sugerindo a simbiose entre vida e arte que
a diretora almejava”.
Taymor, em Fernandes (2010), explica: “ao criar o conceito do filme, visualizei
sobrepor o realismo de época com uma visão surrealista do que poderia chamar de
„pinturas vivas em três dimensões‟”. E ao comentar a aplicação prática desta escolha
única e inovadora, acrescenta: “Elementos de suas pinturas se desdobrariam perante
meus olhos enquanto Frida os vivenciaria tanto de maneira literal quanto em seu
subconsciente.”
Um exemplo desta utilização do “estilo Frida” foi na sequência em que o casal
viaja para Nova Iorque, dentro da obra fílmica. Taymor contou com a ajuda de uma
29
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78
companhia de efeitos especiais, Amoeba Proteus, que criou uma espécie de painel de
arte construtivista russa, utilizando fotografias documentais, assim como imagens em
filme de viagens para criar a ilusão da viagem de Frida e Diego, utilizando o mínimo de
recursos. Essa técnica de colagem foi utilizada por Frida na criação da obra Meu
Vestido Está ali Pendurado, como é representado no último fotograma da Figura 37.
As obras Frida e Diego Rivera (primeiro fotograma na Figura 88), Autorretrato
com o cabelo cortado (Figura 90), As duas Fridas (Figura 74), A coluna partida (Figura
9), são alguns dos outros quadros que a diretora utilizou durante o percurso da história
de Frida. Observa-se, no texto de Fernandes (2010), que a escolha de determinados
quadros da artista para o filme é explicada por Taymor quando diz: “Cada um foi
encarado através de um ponto de vista diferente e surge no filme partir de um momento
emocional especifico que serve como catalisador”.
No decorrer deste trabalho, serão analisados os quadros acima citados por
Taymor e como foram criadas as cenas onde estas obras ganham vida, como também
as intervenções de outros estudos e acontecimentos, intercalando e mostrando, assim,
como foi elaborado este filme.
2.1 A passagem do tempo
Inicia-se, a seguir, a apresentação das sequências de quadros fílmicos que
foram escolhidos para mostrar como Julie Taymor ilustrou a passagem do tempo na
obra fílmica.
79
Figura 34: Sequência da viagem de Diego e Frida.
A Viagem dos pintores para Nova York em tons sépia reporta a recordações de
fotos antigas. Apenas os dois artistas se mantêm coloridos, destacando-se e
movimentando-se por entre as imagens com colagens e sobreposições.
80
Figura 35: Mostrando a passagem do tempo.
Na viagem que Frida faz a Paris, aparece uma sequência de imagens com muita
velocidade que mostram a torre Eiffel e o Arco do Triunfo. As imagens são
representadas também em cores sépia, porém desfocadas. Quando subitamente pára a
cena, percebe-se ser um porta-cartão giratório de postais que Frida está manuseando.
(Figura 35).
81
Figura 36: Sequência dos quadros fílmicos de Frida na cama.
82
Outra maneira que a diretora encontrou para representar a passagem do tempo
no filme, e, da mesma forma por que as horas não passavam para Frida, nos meses em
que ela permanecia engessada, acamada e imóvel, foi uma sequência de quadros
fílmicos em que ela modifica a luz do quarto que entra pela janela e em detalhes como
o cobertor, que ora estava sobre as pernas de Frida, ora estava fora do lugar, sob suas
pernas. Destaca-se ainda o detalhe de uma foto pendurada na cabeceira da cama, que
nos primeiros quadros fílmicos não está presente.
Pode-se observar que é possível mostrar a passagem do tempo por meio do
cenário, assim como mostrar parte do desenvolvimento de uma personagem. Para criar
a personagem muitos elementos são necessários: a fala, os gestos, o vestuário, a
maquiagem, o cenário e outras coisas se for preciso. (FIELD, 2001), no entanto, diz que
precisamos de contexto e conteúdo para a criação deste. Dentro da análise de
personagens, encontra-se, de um modo geral, o que todas as pessoas têm em comum,
as mesmas necessidades, medos, inseguranças, os mesmos quereres, ter sucesso, ser
amado, enfim, algumas coisas que unem uns aos outros. Mas afinal o que os separa? É
exatamente aí que entra a personagem, pois a personagem é uma forma de mostrar os
diversos pontos de vista, é a maneira de se olhar o mundo. É um contexto. Personagem
também é atitude, uma maneira de agir ou sentir, que revela a opinião de uma pessoa.
É a revelação que o roteirista vai oferecendo em relação aos aspectos de
personalidade e comportamento da personagem. Frida era uma figura encantadora,
mostrando-se sempre alegre, apesar da dor, e acima de tudo estava absolutamente
inteira, em tudo o que fazia, gostava da vida e vivia intensamente, quando amava,
amava com fervor, quando sofria, até seu corpo passava pela performance do
sofrimento. Tomemos como exemplo dessa intensidade o episódio em que Frida corta
os cabelos e veste roupas de homem para negar sua feminilidade a Diego. Vestia-se
com seus trajes Tehuanos como as índias do México, a ponto de ser considerada a
mais mexicana dentre os mexicanos, fazendo com que só a presença de seu vestido
despertasse a lembrança das indígenas, das mexicanas e da própria Frida.
83
Na sequencia fílmica (Figura 37), por meio de uma animação o vestido de Frida
balança ao sabor do vento de inverno de Nova York. Ela não está dentro do vestido,
mas somos capazes de sentir-lhe a presença.
Figura 37: Animação - “Meu vestido está pendurado ali”
Se a personagem é um ponto de vista, é a maneira de olhar o mundo,
dependendo de seu estado de espírito, estando ele alegre ou triste, nervoso ou calmo,
essas emoções poderão ser apresentadas e representadas, até mesmo no cenário.
84
Figura 38: A casa de Frida ficando azul à medida em que ela fica feliz.
Na sequência de imagens, pode-se observar isso com muita clareza. O primeiro
quadro mostra Frida de cabeça baixa e triste, pois havia perdido o pai recentemente, há
muito tempo estava divorciada de Diego sentindo extrema solidão e ainda tinham lhe
amputado alguns dedos do pé direito. Ela se encontra no jardim da casa azul, (que
ainda não é azul) sentada em uma cadeira de rodas quando Diego entra pela porta
principal e pede para que ela se case com ele novamente. Nesse momento, o jardim
que tinha um aspecto de abandono, descuidado e cheio de tristeza começa a se
transformar quadro a quadro, mudando a tonalidade de rosa desbotado para um azul
real vibrante e o jardim que antes estava seco, desprovido de vida, praticamente sem
plantas, começa a florescer e ficar povoado de animais exóticos, como macacos e
pavões. É a alma de Frida que está feliz vivendo naquele espaço novamente.
85
2.2 Posições de câmera revelam a personagem
Os artifícios usados para identificar e tematizar um filme são feitos para solicitar
esta ou aquela reação, ou causar um determinado efeito no espectador.
Uma boa parte do filme Frida é realizada com a câmera em plongée, ou seja,
filmagem de cima para baixo e este posicionamento de câmera “[...] tende a apequenar
o indivíduo, a esmagá-lo moralmente, rebaixando-o ao nível do chão, fazendo dele um
objeto preso a um determinismo insuperável, um joguete da fatalidade” (MARTIN,
2007). Esse posicionamento de câmera vem ao encontro com o que nos fala Paulo
Freire (2006), sobre o oprimido, a manipulação, a domesticação.
Figura 39: Acidente de Frida
Figura 40: Frida no hospital
86
Figura 41: Frida no espelho
Na maioria das cenas em que Frida aparece, está na posição de oprimida, não
necessariamente por alguém, mas às vezes pelo próprio destino. A morte tenta
manipulá-la, a doença e o amor por Diego tentam domesticá-la. Mas ela luta sempre
bravamente contra seus algozes. Observem-se acima algumas cenas e quadros
fílmicos que foram escolhidos e mostram isso claramente e de forma mais impactante.
87
Figura 42: Sequência de quando Frida procurou Diego.
Essa sequência fílmica mostra o momento em que Frida, depois do acidente de
bonde, e ter recuperado um pouco da saúde, vai à procura de Diego Rivera que está
trabalhando em um mural na escola preparatória, pois Frida pintou algumas telas e
gostaria que ele lhe avaliasse as obras. Na cena em que ela procura Diego, olhando
para o alto, a câmera gira em torno do pátio e em torno dela, terminando por focá-la em
plongée, sozinha, minúscula, em um canto do quadro fílmico, com o restante da área
totalmente vazio. Pode parecer contraditório ao que foi dito anteriormente sobre a
maioria dos quadros fílmicos, Frida aparecer filmada em plongée, porém, verifica-se
que nos seis primeiros fotogramas da sequência (figura 42) ela é filmada em contraplongée. Mas, seu olhar dirige-se para o alto, indicando que procura algo que, ainda
assim, está acima dela. Pode-se perceber desde já, o tipo de relacionamento que ela
teria com Diego. Para ela, Rivera era um deus, grande, alto em todos os sentidos e era
assim que Frida o veria pelo o resto da vida. Nesse sentido, os artifícios criados pela
câmera ajudam a entender porque existem múltiplos modos de reagir daquele que
aprecia o filme.
Figura 43: Diego Rivera no Hospital.
88
Em contrapartida Diego Rivera é sempre visto em cenas contra-plongée, ou seja,
filmado de baixo para cima. Até mesmo na cena do hospital em que ele se encontra
muito aborrecido e triste, logo após o aborto que Frida sofreu. Porém, a obra de Frida é
filmada em plongée. Observe que a câmera está posicionada acima do ombro de
Diego.
Como já foi citado anteriormente. Diego está sempre sendo enaltecido pelo olhar
da câmera. De quem seria esse olhar? De Frida talvez... Ela o amava e o admirava
acima de qualquer coisa. Foi encontrado escrito na página de seu diário um poema
para Diego que deixa claro o valor que ela lhe conferia:
Diego começo
Diego construtor
Diego minha criança
Diego meu noivo
Diego pintor
Diego meu amante
Diego “meu marido”
Diego meu amigo
Diego minha mãe
Diego meu pai
Diego meu filho
Diego = Eu=
Diego Universo
Diversidade na unidade (t.n.)
30
30
Diego principio - Diego constructor - Diego mi niño - Diego mi novio - Diego pintor - Diego mi amante - Diego “mi esposo” - Diego
mi amigo - Diego mi madre - Diego mi padre - Diego mi hijo - Diego = Yo = - Diego Universo - Diversidad em la unidad (KAHLO,
2008, p. 235).
89
Figura 44: Diego Rivera e Rockfeller
Esta cena é uma das poucas em que Diego aparece com a posição de câmera
em plongée e fica muito evidente que ele está passando pelo papel de oprimido,
enquanto Rockfeller está no papel de opressor. O empresário está discutindo com
Diego Rivera, sobre o tema da pintura do mural de que o artista foi incumbido, dizendo
ao pintor que está descontente com seu trabalho, uma vez que este colocou o rosto de
Stalin, um comunista, representado no mural da parede de um capitalista.
Frida, no entanto vê Diego como um Michelangelo. No filme, a maneira como
muralista é colocado por Taymor na maioria das cenas, geralmente em contra-plongée,
leva a pensar que essa era realmente a visão que Frida teria dele. Outro motivo é o
amor obsessivo que a artista tinha por Rivera.
Logo a seguir, nas figuras 45 e 46, uma panorâmica da pintura de Diego na
Capilla Riveriana e nas figuras 47 e 48, também uma panorâmica, mas desta vez da
Capela Sistina, de Michelangelo; para que se possa fazer um paralelo destes dois
artistas.
90
Figura 45: Sequência de quadros fílmicos da capilla Riveriana com o afresco Cântico à Terra e aos que
Trabalham e Libertam, Diego Rivera, 1926 -1927
Figura 46: Vista da nave, da cúpula, de algumas paredes pintadas por Rivera.
Cântico à Terra e aos que Trabalham e Libertam, Diego Rivera, 1926-1927.
Fonte: Flickr
91
Figura 47: Capela Sistina, Michelangelo, 1508 -1512
Fonte: Flickr
92
Figura 48: Teto da Capela Sistina, Michelangelo, 1508 -1512
Fonte: Flickr
93
Quando no filme aparece essa sequência (Figura 45) das pinturas de Diego,
imediatamente é fácil relacioná-las com as cenas de pintura da Capela Sistina, na Itália,
pintada por Michelangelo. No livro Rivera, de Andrea Kettenmann (2001), que trata da
vida e obra do artista, há uma passagem que fala sobre a pintura desta obra, um
afresco, que está pintado na nave e cúpula da capilla Riveriana na Universidad
Autónoma de Chapingo, Escuela Nacional de Agricultura de Chapingo. Essa igreja,
pintada por Diego é, como muitas outras igrejas cristãs, construída sobre as fundações
de uma antiga pirâmide-templo asteca. Aqui fica explícita a imposição da cultura
européia sobre a cultura e origem mexicana.
Existem várias formas de composição de um filme e, de um modo geral, uma
impera, emudece ou controla as outras: é o caso dos filmes-denúncia, dos filmes de
vanguardas expressivas ou dos melodramas, por exemplo, em que a procura de
realização de ideias ou efeitos ou emoção consomem praticamente todos os recursos
aplicados na obra. Há filmes em que os vários meios de efeitos se combinam de
maneira homogênea, outros em que apenas dois deles permanecem presentes. Fica
uma ressalva que nenhuma dessas formas tem maior ou menor valor artístico que a
outra.
O filme de Taymor tem como gênero a classificação de drama e o tema da morte
é uma constante na obra, apesar de Frida brincar e rir dela. A diretora trabalha esta
temática com a câmera de duas maneiras distintas: em plongée e contra-plongée,
quem sofre a perda, no caso os familiares de Frida, com a morte da progenitora, a
posição de câmera no cemitério está em plongée e coloca as pessoas em posições
pequenas e insignificantes, presas a esse determinismo insuperável.
94
Figura 49: Cena do cemitério, dia da morte da mãe de Frida
Figura 50: O Dia dos Mortos.
Nesses fotogramas, nota-se novamente a temática da morte. É o Dia dos Mortos
e Frida está no cemitério homenageando a mãe, quando Diego aparece para lhe falar.
Novamente, nos dois primeiros quadros, a câmera está em plongée quando se refere a
Frida. No entanto, Diego, mesmo pedindo um favor a ela, quando ele deveria estar em
posição de humildade, a câmera o foca em contra-plongée. Importante atentar para o
fato de que neste período o casal estava separado pelo motivo de traição de Diego com
a irmã de Frida.
A obra cinematográfica expõe uma das tradições mais relevantes para o povo
mexicano: a comemoração do Dia dos Mortos. Incluída na lista do Patrimônio Cultural
Imaterial da UNESCO, é uma festa muito alegre, e segundo a crença popular, os
mortos voltam para visitar seus parentes. Festejada com música, comida, bolos e
doces, sendo os preferidos das crianças as caveirinhas modeladas em açúcar. As
origens da celebração no México são anteriores à chegada dos espanhóis. Os nativos,
como os astecas e os maias, já praticavam este culto pelo menos há três mil anos. Era
comum, no período pré-hispânico, o costume de preservar os crânios como troféus, e
95
exibi-los nos rituais que celebravam a morte e o renascimento. Aqui constata-se a
origem das caveirinhas de açúcar tão propagadas no Dia dos Mortos. Nesse sentido:
Uma maneira de entender a tradição é vê-la como um conjunto de pressupostos
de fundo, que são aceitos pelos indivíduos ao se conduzirem na vida quotidiana
e transmitidos por eles de geração em geração. A tradição não é um guia
normativo para a ação, mas antes um esquema interpretativo, uma estrutura
mental para entender o mundo. (THOMPSON, 1998, p.163)
Segundo Silva (2010)31, essa tradição mexicana não se trata apenas de cultuar a
morte, mas de aproximá-la e vivê-la. Essa comemoração serve também para comprovar
aos não mexicanos que ela é uma realidade cultural e poeticamente de vivenciar a
morte. Frente a esse convívio tão aberto e incomum com a morte, a relação com a vida
também se vê modificada.
São nas raízes indígenas que residem a pureza e a autenticidade cultural do
México. Mas:
“Convertendo as culturas indígenas em espetáculo, o turismo força a
estereotipagem das cerimônias e dos objetos, misturando o primitivo e o
moderno, numa operação que, entretanto, mantém a diferença subordinada do
primeiro com relação ao segundo. E, por fim, a pressão exercida pelo Estado,
transformando o artesanato e as danças em patrimônio cultural da Nação,
exaltando-as como capital cultural comum, isto é, usando-a ideologicamente para
fazer frente à fragmentação social e política do país.” (MARTÍN-BARBERO, 2008
p.265)
No prosseguimento desta temática da morte, será destacado o episódio de
Trotsky32 e seu refúgio no México devido a ameaça de ser assassinado por
complicações políticas na Rússia com seu rival político, Stalin. Trotsky e sua esposa
foram abrigados na casa azul de Frida. Aliás, foi esse o pedido que Diego lhe fez no
cemitério no festejo do Dia dos Mortos.
31
32
SILVA, disponível em:< http://www.terra.com.br/revistaplaneta/mat_398.htm>. Acesso em: 10 de out, 2010.
Intelectual marxista e revolucionário Bolchevique, fundador do Exercito vermelho e Rival de Stalin, foi expulso e exilado da União
Soviética refugiando-se no México, onde veio a ser assassinado por Ramón Mercader, agente de Stalin.
96
Figura 51: Cenas de proteção a Trotsky.
Pelas posições de câmera plongée, podemos notar que a situação ameaçadora,
alarmante e eminente, mostrando-se acima de todos eles, inclusive do segurança
armado que faz a vigília do alto da construção.
Figura 52: As tias de Frida
No desenrolar do episódio, duas tias de Frida ficam sabendo que ela está
abrigando um comunista. Vão até a porta da casa para jogar água benta. É quando o
vigilante do alto do telhado lhes aponta uma arma. A câmera focaliza esta cena em
contra-plongée, mostrando a superioridade deste homem. Ainda na cena, Frida
rapidamente empunha uma arma e vai espantá-las. Ela desta vez quem ganha
97
proporções gigantescas em relação às duas mulheres, que são filmadas em plongée.
Com este posicionamento de câmera Frida adquire uma postura de quem domina,
ameaça e oprime.
Figura 53: A morte e a representação em contra-plongée.
Com o estudo do posicionamento de câmera como estratégia da composição da
linguagem, e o assunto relacionado à morte, nos fotogramas acima – representativos
do acidente de bonde –, no quadro da esquerda, o homem é filmado em contra-plongée
no momento do choque do bonde com a parede tendo os vidros estilhaçados e jogados
para frente. Porém, existe algo a ser destacado, além disso. Trata-se da representação
da morte, que sendo filmada de baixo pra cima, prenuncia o jogo da fatalidade porque
se considera a morte como algo superior às forças humanas, em relação ao qual nada
se pode fazer. Na cena da morte de Trotsky, quadro à direita (figura 53), também a
câmera está posicionada em contra-plongée mostrando que o homem que traz a água,
na verdade, é o assassino.
Para se fazer uma narrativa adequada e com clareza necessária, seleciona-se
cada plano, devendo conter ajuste entre a dimensão do plano e seu conteúdo material
e quanto menos elementos há para se ver, tanto maior ou próximo é o plano. Por outro
lado, a importância dramática ou sua significação, o tamanho do plano amplia conforme
seu teor ideológico.
98
[...] o tamanho do plano determina em geral sua duração, sendo esta
condicionada pela obrigação de dar ao espectador tempo material para
perceber o conteúdo do plano: assim, um plano geral costuma ser mais longo
que um primeiro plano; mas é evidente que um primeiro plano poderá ser longo
ou bastante longo se o diretor quiser exprimir uma idéia precisa: o valor
dramático prevalece então sobre a simples descrição. É mais interessante
lembrar, que todos os tipos de plano foram utilizados desde antes do cinema
pelas arte plásticas, decorativa e de ourivesaria (paisagens, retratos de corpo
inteiro ou de busto, medalhões, camafeus, etc.) (MARTIN, 2007, p. 37-8 ).
Figura 54: O ateliê de Diego e Frida com vista externa (à esquerda) e vista interna (à direita)
Observa-se aqui o ateliê de Diego e Frida em dois momentos: em um teremos a
visão externa dos dois ateliês unidos por uma ponte e como diz Frida, representa o
amor dos dois, sendo o ateliê rosa de Diego e azul o de Frida. Mostram um plano geral
com posição da câmera em contra-plongée comparando a grandiosidade de uma
pirâmide asteca, com a cerca feita de cactos, planta característica do México. No
entanto, quando se examina o ateliê por dentro, ele é filmado também em plano geral;
porém, com a posição da câmera em plongée para mostrar o estado de espírito de
Diego, que estava em uma crise de depressão, por ter vindo dos Estados Unidos, de
certa forma forçado e culpando Frida por fazê-lo voltar para o México. Percebe-se uma
total desordem do ambiente, um caos, tudo fora de lugar; porém, tem a finalidade clara
de mostrar este estado de espírito de Diego, e mais além; está preparando o
espectador para o que irá acontecer logo mais, pois será neste local que Diego irá trair
Frida com Cristina, a irmã da pintora. Obeserva-se como as personagens estão
pequenas e insignificantes, elas são também como os objetos naquele ambiente e
99
como cita Martin (2007, p.41), sobre a utilidade do plano de filmagem e também do uso
da plongée:
Reduzindo o homem a uma silhueta minúscula, o plano geral o reintegra no
mundo, faz com que as coisas o devorem, “objetiva-o”; daí uma tonalidade
psicológica bastante pessimista. Uma ambiência moral um tanto negativa, mas
às vezes também uma dominante de exaltação, lírica ou mesmo épica.
O plano geral exprimirá, portanto; a solidão, a impotência às voltas com a
fatalidade.
Já na cena externa do ateliê, o tema é fotografado de baixo para cima, ficando a
objetiva abaixo do nível normal do olhar. Neste caso o ângulo de filmagens chama-se
contra-plongée e dá geralmente uma impressão de superioridade, exaltação e triunfo,
pois faz crescer os indivíduos e tende a torná-los magníficos, destacando-os contra o
céu aureolado de nuvens. (MARTIN, 2007, p.41).
Figura 55: Separação de Frida e Diego.
Aqui, novamente, observa-se um plano geral com pouquíssimos elementos a
serem observados, e a posição de câmera na posição de plongée reduz os seres a
nada, ao inevitável. Diego e Frida discutem, e se separam. O plano aberto ajuda a
ampliar mais ainda a sensação de solidão, as cores são frias e a rua desolada, árida e
seca como que determinando que nada ali frutifique.
Dando continuação ao uso de posição de câmera relacionada à narrativa, na
sequência posterior ao assassinato de Trotsky, a polícia detém Frida para interrogar
sobre o paradeiro de Diego, mas ela não sabe informar devido ao rompimento do
100
relacionamento. Quem liberta a artista da prisão é sua irmã Cristina, que já havia sido
perdoada por Frida pela traição com Rivera.
Figura 56: Frida na prisão.
Nos dois primeiros quadros fílmicos, têm-se cenas do interrogatório de Frida, e,
novamente, a câmera em plongée, e em primeiro plano, tem um grande significado
psicológico e dramático no filme, colocando-a na posição de oprimida, intimidada e de
uma criatura desprezada. No terceiro quadro, a cena não está em plongée, mas o
posicionamento da personagem ao canto direito da cena e a atmosfera fria e tristonha,
com uma luz azulada rasgando as sombras, aumenta a sensação de solidão,
principalmente porque todo o restante do quadro está imerso nas sombras. Com a
personagem deslocada para a lateral do quadro, olhando para o espectador como que
pedindo ajuda. Nos dois últimos quadros fílmicos, a posição de câmera em ângulo
plongée e o plano geral centralizado em uma perspectiva simétrica criando uma
sensação de luz no fim do túnel mostrando as duas irmãs saindo da prisão, porém
humilhadas pela situação constrangedora por que passaram.
101
Figura 57: Cenas do vernissage de Frida.
A sequência acima mostra o vernissage de Frida, em que mesmo já com o
reconhecimento pela sua arte, as cenas continuam a posição de câmera em plongée
para a artista. No terceiro e no quarto fotograma, estão Lupe (ex-esposa de Rivera), o
médico da pintora e Diego, que ao dirigirem o olhar para baixo subtende-se que eles
estão se comunicando com alguém abaixo deles. Mas, esta câmera na posição de
contra-plongée são os olhos de Frida a olhar de baixo para cima: a manifestação de um
sentimento dela mesma ser uma vítima, uma presa do destino.
Os ângulos de filmagem excepcionais podem adquirir uma significação
psicológica objetiva, quando não são explicados por uma conjuntura ligada a ação. O
uso do ângulo contra-plongée, na maioria das vezes indica uma situação de
superioridade, exaltação e triunfo, pois crescem os indivíduos tornando-os admiráveis.
102
Figura 58: Frida em contra-plongée.
São pouquíssimas as cenas em que Frida aparece com um ângulo de filmagem
em contra-plongée. Temos acima dois exemplos. Este foi um período em que ela
esteve em Paris, longe de Diego, para sua exposição que seria organizada por Breton.
Estava sozinha, porém relativamente feliz.
A seguir observam-se alguns quadros, em que a pintora aparece em cenas de
igualdade em relação a Diego, às outras pessoas e às situações vividas por ela. Em
algumas cenas do filme onde observamos esta situação de igualdade vem também
acompanhada do o uso da profundidade de campo que “[...] consiste em distribuir os
personagens e objetos em vários planos e faze-los representar, tanto quanto possível,
de acordo com uma dominante espacial longitudinal.” (MARTIN, 2007, p.165).
O posicionamento de câmera que desta vez filma na altura do personagem, não
cria ângulos para caracterizar-se plongée ou contra-plongée. Os planos de
distanciamento normal da câmera, no caso destes quadros fílmicos, têm duas
classificações, ou seja: plano médio, onde a personagem é vista dos pés a cabeça, e
plano americano; que mostra o personagem dos joelhos para cima.
103
Figura 59: Frida em passeata pelo
partido comunista.
Figura 60: Frida posando como modelo
para Diego, vestida de “camarada”.
Figura 61: Frida vestida de noiva para
seu casamento como índia mexicana.
Figura 62: Frida fumando pensativa
sentada em uma poltrona quando esteve
nos Estados Unidos.
Figura 63: Frida e Diego no dia do
casamento.
Figura 64: Frida almoçando com Diego
Rivera na cozinha da casa azul.
Figura 65: Frida no hospital divertindose com crianças, que fazem um teatro
de bonecos.
104
A maioria dos diversos tipos de planos tem por objetivo a facilidade da percepção
e da clareza da narrativa.
Figura 66: Frida aconselhando Diego
Figura 67: Frida e sua criada
Figura 68: Frida posando como modelo
para capa da revista Vogue.
Nos planos mostrados acima, o posicionamento da câmera indica a relação de
igualdade de Frida com outras personagens. Na figura 66, a câmera se posiciona em
ângulo contra-plongée e foca os dois personagens nessa relação de igualdade, ambos
estão sentados num momento de descanso, e Frida aconselha Diego.
Na cena com a índia mexicana que a auxilia vestir-se no dia de seu casamento
(Figura 67), a câmera reforça a relação de igualdade, assim como na cena em que
Frida está com um fotógrafo posando para a revista Vogue (Figura 68). Em ambos os
casos não se fez uso de posicionamento específico de plongée e contra-plongée.
105
2.3 Locações mexicanas
Segundo informações de Fernades (2010), Frida foi filmado inteiramente em
locações no México, de abril a junho de 2001. Taymor utilizou diversas locações
históricas conhecidas pelos personagens do filme. A arquitetura rica e diversa do
México também permitiu encontrar locais apropriados para locações das cenas de Paris
e Nova Iorque, nas décadas de 1930 e 1940.
Conforme se observa em Fernandes (2010), o diretor de fotografia do filme, o
mexicano Rodrigo Pietro, com a colaboração da diretora Taymor, tiveram a ideia de
pintar o mundo de Frida com a câmera, com pinceladas fortes e vibrantes, com a luz do
sol sem filtros e todas as cores excitantes do México. Ambos queriam usar as cores
ricas e vivas das pinturas de Frida, e por isso precisaram “[...] encontrar locações que
não fossem muito poluídas, pois as cores eram provavelmente muito mais vivas nos
anos 20 do que hoje em dia”. Na opinião de Taymor, foi extraordinário filmar em
locações reais, pois era essencial para a autenticidade de Frida, uma vez que poderiam
se sentir melhor os detalhes; ver nos rostos, na arquitetura, nas paisagens, nas coisas
que você não pode reproduzir, da mesma forma, estar cercada pelos sons e pela
música, a comida e a sensação da cultura mexicana fez com que tudo tomasse vida.
O governo mexicano ajudou muito nesse sentido. A equipe mexicana, liderada
por Rodrigo Pietro (diretor de fotografia), Felipe Fernandez del Paso (desenho de
produção), Bernardo Trujillo (direção de arte) e Julie Weiss (figurino), estava tão
entusiasmada que foi além dos padrões, sem nunca tomar atalhos ou dizer que algo
não poderia ser feito.
Os escritórios de produção e estúdios para Frida ficaram em Churubusco Azteca,
na cidade do México, a maior metrópole do mundo (25 milhões de habitantes). Estes
estúdios, construídos em 1945, abrigaram inúmeras produções cinematográficas,
incluindo diversos westerns de língua inglesa. A cidade do México também ofereceu
106
diversas locações históricas, incluindo a Escola Preparatória Nacional, O Majestic Hotel
e o Ministério da Educação, onde se encontram quase 60 murais de Diego.
Para recriar Coyoacan nos anos 1920, a equipe e o elenco viajaram para Puebla,
cerca de 150 km ao leste da Cidade do México, para a primeira semana de filmagens.
Localizada aos pés da Sierra Madre, essa cidade de quatrocentos anos conta em seu
centro histórico com exemplos de arquitetura Colonial, Renascentista e Neo-Clássica.
Como a casa real de Frida Kahlo (a Casa Azul) é agora um movimentado museu, a
equipe criou uma réplica da casa e de seu quintal no Estúdio 4, em Churubusco.
Figura 69: Casa azul onde viveu Frida Kahlo.
A casa onde Frida nasceu tinha:
As paredes pintadas de um azul intenso na construção de estuque, tendo
somente um piso, destacando-se altas janelas com muitos vidros e postigos
verdes, que serviam de passagem para o pátio central, avivado pelas agitadas
sombras das árvores... Dois gigantescos judas de papier-mâché de quase sete
metros de altura guardam a entrada, posicionados de maneira que parecem
estar dialogando. Ao passar por eles entra-se em um jardim com plantas
tropicais, fontes e uma pequena pirâmide adornada com ídolos pré33
colombianos. (t.n.)
33
Los Muros de un intenso color azul em la construción de estuco y un solo piso son avivados por alta ventanas de muchos
cristales y postigos verdes, así como por las agitadas sombras de los árboles. ...Dos gigantescos judas de papier-mâché y casi siete
metros de alto guardan la entrada, haciéndose ademanes como si estuvieran conversando. Al pasarlos se penetra en un jardín con
plantas tropicales, fuentes y una pequeña pirámide adornada com ídolos precolombianos. ( HERRERA,2007, pag,19)
107
Uma casa baseada na autêntica arquitetura mexicana que Taymor reproduz logo
nas primeiras cenas do filme, fazendo esta descrição de maneira detalhada, como
podemos observar nos quadros fílmicos, com um jardim central com muitas plantas,
árvores e alguns animais exóticos, como pavões, macaquinhos, e até um veado de
nome Granizo, que vieram substituir os filhos que Frida não teve.
Outras locações em Puebla incluíram os prédios do Protocolo e Presno para os
interiores de Nova Iorque e Paris, o cemitério municipal de Puebla para a cena do Dia
de Los Muertos; e o restaurante La Guadalupana para a sequência de pulqueria.
Figura 70: Frida e Diego na segunda lua-de-mel.
Segundo informações citadas por Fernandes (2010), quando Diego e Frida
casam-se pela segunda vez, fotos de arquivo mostram a segunda lua-de-mel de Frida e
Diego em Xochimilco, os Jardins Flutuantes da cidade do México, que datam dos
tempos dos Astecas. Taymor recriou as coloridas Trajineras (gôndolas mexicanas)
(figura 70) para uma cena particularmente romântica com Hayek e Molina deslizando
através do exótico jardim. Hayek ainda recebeu uma permissão especial para filmar em
Teotihuacan, as ruínas de uma antiga cidade abandonada descoberta pelos Astecas,
localizada a aproximadamente 55 quilômetros da capital. Teotihuacan, que significa
“Local Onde os Deuses São Feitos,” tem diversas pirâmides ao longo da Avenida dos
Mortos. Quando os oficiais do governo recusaram inicialmente, Hayek foi ao presidente
do México, Vicente Fox, e explicou o respeito por Frida mantido pela produção e a
necessidade de filmar a cena de Teotihuacan na locação. Fox escutou com atenção à
apaixonada explicação de Hayek e lhe concedeu acesso às pirâmides.
108
Figura 71: Série de panorâmicas do filme Frida nas pirâmides, onde Frida escala uma delas com Trotsky.
109
De acordo com Fernandes (2010), Taymor e Hayek também receberam uma
permissão especial para filmar dentro e fora dos estúdios de Diego Rivera, em San
Angel, um subúrbio da Cidade do México, próximo a Coyoacan. Construída em 1933,
essa residência-estúdio é considerada um tesouro arquitetônico. Diz Hayek:
“Frequentei o Museu Diego Rivera por dezessete anos e existem áreas em que
você não pode entrar, que ficam fechadas. Com Frida, me encontrei nesta casa
onde durante anos eu apenas imaginava o que se encontraria por detrás disto
ou daquilo. Arrepiei-me quando entramos e eu estava vestida como Frida, e lá
estavam Diego e o cão deles, uma raça sem pêlos chamada Xolotzcuincle. O
cão que temos no filme é um descendente de um dos cães de Frida. Foi
impressionante recriar um momento no lugar onde ele realmente aconteceu.”
É relevante observar que este filme aconteceu principalmente pelo empenho da
atriz Salma Hayek que ambicionava atuar no papel da artista desde os doze anos de
idade. Se constata que a atriz era fã incondicional da artista, tendo envolvimento
pessoal e emocional muito profundo. Assim, a concretização de interpretar somado ao
fato de usar locações reais e vividas por Frida Kahlo, a atriz veio construindo, desde a
mais tenra idade, um projeto simbólico que é o seu self.
Quando se assiste ao filme Frida, ocorre uma identificação com a artista em
vários pontos. É capaz de olhar o filme e ver a vida sob uma nova perspectiva.
Espelhar-se em Frida, em suas atitudes e coragem, sua relação estreita com o local de
origem, usando suas roupas, flores no cabelo, sendo isso tudo elementos na formação
do self. Desta forma percebe-se um modelo para uma postura comparativa, reflexiva e
de maneira critica das próprias condições de vida.
Se entendemos o self como projeto simbólico que o indivíduo vai modelando e
remodelando no curso de sua vida, fica fácil ver também que este projeto
implica um conjunto de prioridades continuamente modificáveis que determinam
a relevância ou não de experiências reais ou possíveis. Este conjunto de
prioridades faz parte integrante do projeto de vida que cada um constrói para si
(THOMPSON, 1998, p.198).
110
Além de artista excêntrica, Kahlo criara em torno de si uma aura de força e
superação, um modelo do qual Salma Hayek se orgulhava, pois era uma forte relação
de identidade, as duas são mexicanas e com porte físico muito semelhante. Constatase que Frida é um mito, um modelo de criação de self para outras pessoas.
2.4 O sapo e a pomba
Não foi Diego que apresentou Tina Modotti à Frida, como mostra o filme, mas
sim o contrário. Frida ingressa no Partido Comunista Mexicano, começa a formar a sua
consciência política e posa de modelo para murais que pinta Diego Rivera.
Herrera (2007) cita que Diego faz um comentário grosseiro a Frida, enquanto ela
posava para um retrato, “Você tem cara de cachorro.” (t.n.)34 Frida não se deixou
intimidar e respondeu “E você tem cara de sapo.” (t.n.)35.
Figura 72: Quadro fílmico do desenho que Diego fez para Frida representando
uma pomba e um sapo enorme.
34
35
“Tienes cara de perro” (HERRERA, 2007, p. 129).
“Y tu tienes cara de rana!” (HERRERA, 2007, p. 129).
111
Na obra fílmica, essa grosseria nos é mostrada na cena da noite de núpcias do
casal, juntamente com um desenho que Diego faz para ela como pedido de desculpas:
uma pomba sobre a cabeça de uma rã enorme. A mãe de Frida mostra claramente o
descontentamento de vê-la casar-se com Diego, dizendo que ele é muito mais velho
que sua filha, gordo, feio, comunista e ateu, ainda que fosse rico. Acrescentando ao
comentário que era o casamento de um elefante (ela o considera um elefante) com uma
pomba. Mas, é o pai de Frida quem traz à lembrança da esposa que foi Diego quem
pagou a hipoteca da casa, pois eles estavam com sérios problemas financeiros.
Na obra literária, Herrera (2007) coloca alguns comentários de Frida sobre o dia
de sua boda: “Ninguém com exceção de meu pai foi ao casamento.” (t.n.)36. E Frida
acrescenta sobre o seu vestido de noiva, “Pedi emprestada a criada da casa umas
saias, que também me emprestou uma blusa e um xale.” (t.n.)37. Porém, na obra fílmica
a cena do casamento mostra o comparecimento de muitas pessoas, da família, até
mesmo Lupe, ex-esposa de Diego, que faz uma cena de ciúmes em relação à troca de
pernas, que ela supõe ter havido. Em relação ao vestido usado por Frida, a principio ela
aparece vestida como uma noiva européia, a propósito o vestido branco é muito
parecido com o da obra Duas Fridas (1939), pintada anos depois. Mas ela aparece na
sala onde Diego se encontra, vestida com roupas tipicamente mexicanas, que
pertenciam à criada que a auxiliou a vestir-se. Percebe-se aqui já um nacionalismo pelo
México e a negação das coisas estrangeiras que Frida alimentou por toda a vida.
Abaixo, nas figuras 73 e 75, observa-se os quadros fílmicos de Frida como noiva
européia com a criada que lhe emprestará o vestido ao fundo, e ao lado a figura 74 o
quadro Duas Fridas.
36
37
“Nadie, con excepción de mi padre, fue a la boda.” (HERRERA, 2007, p. 135).
“Le pedi unas faldas a la sirvienta; quien también me presto la blusa y El rebozo.” (HERRERA, 2007, p. 134 e 135).
112
Figura 73: Frida no dia se de seu casamento
Figura 75: Frida com sua criada
Figura 74: As duas Fridas, 1939
Fonte: Kettenmann, 1994
Figura 76: Frida apresentando-se à Diego
Como já foi citado anteriormente, para Taymor transformar a obra literária, de
mais de seiscentas páginas, em cento e vinte três como pede o roteiro sugerido por
Field (2001), foi necessário juntar fatos que subtendessem outros, não sendo
necessário seguir o livro original, pois são obras independentes e separadas. Aqui
notam-se alguns contrapontos bem claros, por exemplo:
- Herrera (2007) acrescenta que na noite do casamento, Diego bebeu tequila um pouco
mais do que devia, “[...] sacou a pistola e feriu, quebrando o dedo mindinho de um
homem, além de outras coisas.” (t.n.)38 Discutiram e Frida saiu chorando, indo para a
casa dos pais. Passaram-se alguns dias para que Diego a fosse buscar e a levasse
para a casa do casal.
38
“[...] saco la pistola y rompió el dedo meñique de un hombre, además de otras cosas.” (HERRERA, 2007, p. 136).
113
Figura 77: Quadros fílmicos com Lupe levantando as próprias saias e as de Frida
para comparar as pernas de ambas.
- Na obra fílmica, o casal briga porque Lupe Marin faz uma cena de ciúmes humilhando
Frida e ele não a defende das agressões da ex-esposa, rindo o tempo todo, tamanha
era sua embriaguez.
- Outra cena que Taymor coloca na obra fílmica, juntando fatos da obra literária, é
quando Diego está em uma festa na casa da fotógrafa Tina Modotti, e recebe
acusações de Mella, namorado de Tina, que o acusa de pintar murais para os
capitalistas, sendo que ele era comunista. Diego, muito zangado, saca a pistola e dá
um tiro no gramofone que tocava um disco. Esses fatos na obra fílmica são colocados
bem antes de Frida e Diego se casarem. Já na obra literária esse tiro acontece no dia
do casamento como foi citado acima.
Figura 78: Lupe ensinando Frida a cozinhar
114
- O filme mostra também que Lupe, no dia seguinte ao casamento de Frida, faz um
molle, típico prato mexicano, de que tanto Diego gosta e leva aos noivos para
almoçarem. Quando Frida descobre fica furiosa e vai tirar satisfações com Lupe, que
pergunta se gostou do prato, no que Frida faz sinal com a cabeça que “um pouco”.
Lupe então oferece para ensinar-lhe o prato que tanto agrada a Diego. Esta aceita e
enquanto cozinham, Lupe conta que, certa vez, ela descobre que Diego a está traindo.
Então, louca de ciúmes, se apodera de seus ídolos pré-colombianos, feitos de
cerâmica, os moeu e colocou na sopa para ele comer. Frida associa o ato de Lupe ao
mito de Medeia que, ao descobrir que Jazão a traía, mata os próprios filhos como
vingança, para feri-lo. As duas se tornam amigas, e Frida até pinta um retrato de Lupe
em sinal de gratidão. Mas, na obra literária levaram-se meses para que este fato
ocorresse.
- É interessante notar também como a diretora Julie Taymor dá indícios da
bissexualidade de Frida quando ela dança um tango de uma maneira muito sensual
com a fotógrafa Tina Modotti, terminando em um tórrido beijo na boca. Essa cena não
acontece na obra literária.
Figura 79: Autorretrato com vestido de veludo, 1926
Fonte: Kettenmann, 1994
115
Este é o retrato que Frida leva, na obra fílmica, para mostrar a Diego Rivera,
pedindo-lhe a opinião a respeito, perguntando-lhe se deveria continuar a pintar ou não.
Este quadro tem características renascentistas, mas Diego já vê a artista que se
manifestará em Frida. A pintora narra esta passagem, que está contida na obra literária:
Quando me foi possível caminhar e sair a rua, fui ver Diego Rivera com meus
quadros. Este estava pintando os afrescos na Secretaria da Educação.
Somente o conhecia de vista, porém o admirava muitíssimo. Tive a audácia de
falar-lhe para que descesse do andaime e viesse ver minhas obras, e me
dissesse com sinceridade, se tinham ou não algum valor. “Diego desça”. E
como ele é tão humilde e amável, desceu. “Olhe, não venho coquetear , ainda
que sejas mulherengo. Venho mostrar-lhe meus quadros. Se são interessantes
diga-me, e se não, também; para ir trabalhar em outra coisa e assim ajudar
meus pais.” Então ele me disse : “Olhe, em primeiro lugar teus quadros são
muito interessantes, sobretudo este autorretrato que é mais original. Os outros
se nota a influência do que já existe. Volte para casa, pinte um quadro e no
próximo domingo irei vê-lo e direi o que penso. “Assim o fez, e me disse: “Você
39
tem talento.” (t.n.)
Alguns dias após esta visita à casa de Frida, Diego conta que a beijou pela
primeira vez.
Figura 80: Quadros fílmico do primeiro beijo com Diego.
39
En cuanto me permitieron caminar y salir a la calle, fui a ver a Diego Rivera con mis cuadros. En ese entonces estaba pintando
los frescos en la Secretaría de Educación. Sólo lo conocía de vista, pero lo admiraba muchísimo. Tuve el valor de hablarle para que
bajara del andamio y viera mis cuadros, y me dijera, com sinseridad, si tenían o no algún valor...Sin más ni más le dije: “Diego,
baja.” Y por como es él, tan humilde, tan amable, bajó. “Oye, no vengo a coquetear ni nada, aunque seas mujeriego. Vengo a
mostrarte mis cuadros. Si te interesan, dìmelo, y si no, también, para ir a trabajar en outra cosa y así ayudar a mis padres.”
Entonces me dijo: “Mira, en primer lugar me interesan mucho tus cuadros, sobre todo este retrato tuyo que es el más original. Me
parece que en los otros se nota la influencia de lo que hás visto. Ve a tu casa, pinta um cuadro, y El próximo domingo iré a verlo y te
diré qué pienso. „Así lo hizo, y me dijo: Tienes talento.” (HERRERA, 2007, p.119 e 120)
116
A diretora Julie Taymor narra o início do namoro deste casal nada convencional
de maneira muito leve e às vezes até engraçada contando alguns fatos interessantes
ocorridos com os dois. O primeiro beijo de Frida e Diego não acontece pela primeira vez
na obra fílmica como Herrera cita no livro. A diretora aproveita um fato ocorrido e
contado por Diego para criar a cena que aparece no filme. O casal chega às portas do
ateliê de Diego. E quando ainda estão na rua despedindo-se, as luzes elétricas dos
postes se acendem e se apagam coincidentemente, todos de uma vez quando eles se
beijam, ele comenta em tom de brincadeira com Frida que havia preparado aquele
acontecimento.
A partir desse momento, sem que se perceba, a obra pictórica de Frida começa a
misturar-se com a vida real, criando uma simbiose, em que vida e obra da artista se
fundem. É quando começa a fazer uma obra autobiográfica.
117
Figura 81: Autorretrato, cerca de 1938
Fonte: Kettenmann, 1994
CAPÍTULO 3
3 A simbiose da vida e da arte
Criar uma relação simbiótica entre vida e arte, sempre foi a necessidade principal
de Frida Kahlo. Este último capítulo revela como, na produção de um filme, Julie
Taymor apresenta, por meio de técnicas de efeitos especiais e do uso das cores
presentes nas obras da artista mexicana, sugerir essa simbiose.
A obra cinematográfica inicia-se e segue a mesma sequência de cenas e fatos
ocorridos no prólogo da obra literária de Herrera (2007). Já no princípio é apresentada a
personagem Frida com suas características físicas e de personalidade. Também
aparece outra personagem, Diego Rivera, importantíssimo dentro da trama, sendo ele o
fator desencadeante até mesmo para existir a personagem principal, ela que vive em
função dele, de modo que ela utiliza como inspiração para sua obra pictórica situações
vivenciadas com ele e por ele.
E como afirma Field (2001, p.53), “finais e inícios se relacionam, e esse princípio
deve ser aplicado ao roteiro”. Um bom filme termina da maneira muito semelhante como
começou, no caso de Frida veremos que a obra cinematográfica começa com Frida em
sua cama com dossel indo para a abertura de sua exposição e termina com a artista na
cama com dossel, sendo que a diretora, por meio de uma animação, faz uma alusão à
morte da pintora de maneira criativa, soltando fogos de artifício, como se fosse uma
festa, um ritual de libertação, casando com o que Frida escreveu na última página de
seu diário “Espero a partida com alegria... e espero não voltar jamais... Frida.” (t.n.)40
Julie Taymor não faz qualquer alusão aos episódios da infância de Frida no filme,
nem sequer menciona o fato de Frida ter sido acometida de poliomielite aos seis anos
de idade, o que deixou sua perna direita mais curta e mais fina, e como isso afetou-lhe
a vida profundamente, tornando-a uma criança introvertida. Na obra fílmica a
personagem não manca uma única vez.
40
“Espero alegre la salida...y espero no volver jamás... Frida.” (HERRERA, 2007, p. 541).
119
Aliás, o filme se inicia com Frida adolescente por volta de uns dezesseis anos, já
ingressa na Escola Nacional Preparatória, mas a obra literária mostra detalhadamente
mestres e discentes da escola, e, entre estes, Frida na adolescência, já se preparando
para cursar medicina. Conta o dia a dia dessa instituição, narrando as muitas estripolias
que os alunos faziam, incluindo Frida, com professores, colegas e com quem passasse
pela escola. Uma dessas pessoas que passaram pela escola preparatória, e que sofreu
com as diabruras de Frida foi Diego Rivera, incumbido de fazer um mural no anfiteatro
Bolívar da escola.
É neste período que Frida e Alejandro, um de seus amigos, também estudante
da escola preparatória, se enamoram. Frida também se mostra sexualmente muito
precoce, e na obra fílmica isto é mostrado de maneira muito clara, quando ela tem
relações sexuais com o namorado dentro de um guarda-roupa em sua casa.
Na obra fílmica, esses fatos são narrados em uma sequência muito curiosa, com
Frida adolescente de cabelos curtos correndo pelos corredores da escola preparatória,
juntando seus amigos para espiar Diego a pintar no anfiteatro com uma modelo nua.
Lupe, primeira esposa de Diego Rivera, o surpreende, faz uma cena de ciúmes,
atirando a gamela de comida sobre ele, indo embora em seguida. Quando Diego se
insinua sobre a modelo, Frida grita que Lupe está voltando. O pintor fica furioso,
querendo saber quem estava ali, os observando. Frida cheia de coragem levanta-se.
Chama Diego de pançudo e o aconselha a manter-se honesto.
É importante citar alguns acontecimentos ocorridos na vida de Frida para que se
possa entender a sua obra pictórica, já que uma está intrinsecamente ligada e
relacionada com a outra. Pai de Frida, Guilhermo dizia: “Frida é a mais inteligente de
minhas filhas” (t.n.)41 e continuava cheio de orgulho: “É a que mais parece se comigo.”
(t.n.)42 e da mesma forma que ele não medira esforços para proporcionar os melhores
centros esportivos para a reabilitação de Frida, quando ela teve poliomielite, ele
também não iria ser mesquinho quanto à escolha da escola preparatória à
universidade, que viria logo depois. A mãe de Kahlo não gostava da ideia de a filha ir
41
42
“Frida es la más inteligente de mis hijas.” (HERRERA, 1983 p.37).
“És la que más se parece a mi.” (HERRERA, 1983 p.37).
120
estudar em um colégio tão longe de seu bairro e uma escola onde também havia
rapazes e, principalmente, achava esta ideia muito européia (RAUDA, 1987).
Observa-se, no entanto que Frida sendo questionadora, espontânea e reflexiva
iria viver esse período de sua vida com muita intensidade; aliás, como tudo o que viveu,
ela estava sempre inteira, de corpo e alma de forma que esse sentimento era passado
para sua pintura de maneira que esta energia saía da tela e afetava a todos de alguma
forma. Frida não se calava jamais, ficava sempre muito irritada com a hipocrisia das
pessoas e negando-se a ter aulas com professores por demais conservadores.
Os mexicanos tardaram uma década para recuperar seu país por meios
revolucionários. Nos anos vinte, começaram a se consolidar os êxitos da longa batalha.
Houve reformas agrárias e trabalhistas, reduziu-se o grande poder que exercia a igreja
católica e promulgaram-se leis que ditavam a devolução dos recursos naturais à nação.
Os mexicanos começaram a formar uma nova e orgulhosa identidade. Negaram as
idéias e os costumes, anteriormente apreciados, da França e da Espanha, voltando-se
agora para a cultura nativa.
Los Cachuchas, um grupo de estudantes do qual Frida fazia parte, vai ao
encontro com os dizeres de Freire (2009) no seu livro Pedagogia do Oprimido em
relação aos jovens:
O autoritarismo dos pais e dos mestres se desvela cada vez mais aos jovens
como um antagonismo à sua liberdade. Cada vez mais, por isso mesmo, a
juventude vem se opondo às formas de ação que minimizam sua
expressividade e obstaculizam sua afirmação. Esta, que é uma das
manifestações positivas que observamos hoje, não existe por acaso. No fundo,
é um sintoma daquele clima histórico [...], como caracterizador de nossa época,
como uma época antropológica. Por isso é que a reação da juventude não pode
ser vista a não ser interessadamente, como simples indício das divergências
geracionais em que todas as épocas houve e há.
Na verdade, há algo mais profundo. Na sua rebelião, o que a juventude
denuncia e condena é o modelo injusto da sociedade dominadora. Esta
rebelião, contudo, com o caráter que tem, é muito recente. O caráter autoritário
perdura. (p.176)
A escola era dividida em grupos, tão numerosos quanto as aspirações que
pretendiam. Havia grupos voltados às atividades esportivas, outros debatiam sobre
121
artes, outros voltavam sua reflexão para a filosofia. Alguns preconizavam um ativismo
político-social, organizando-se nesse sentido. Mas Frida integrou-se ao grupo dos
Cachuchas – “Um grupo mais heterogêneo, ao mesmo tempo mais criativo e mais
aberto, mais original, provocador, insolente, audacioso, semeador de tumultos...
anarquistas até a alma” (JAMIS, l987, p.56).
Se as travessuras iam bem e “pregar peças” era de longe a atividade preferida
do grupo, se ele não podia conceber a possibilidade de se fechar em dogmas,
daí o afastamento de uma certa militância política julgada “estreiteza de
espírito”, não era menos verdade que ele não desejava de maneira alguma ser
tido como apolítico. Os Cachuchas reivindicavam um socialismo que se
pretendiam fazer valer passando pela famosa volta às origens. E eles se
ilustravam, lendo de tudo, sem distinção: filosofia, literatura e poesia
estrangeiras ou hispano-americanas, jornais, manifestos contemporâneos.
(JAMIS, l987 p.56)
Percebe-se, por essa citação acima, o porquê de Frida escolher este grupo, ela
sendo um ser em formação, mas já sabendo o que queria. Tudo conspirava a favor
para que Frida fosse o que já era em seu âmago.
3.1 O acidente e suas sequelas
Herrera (2007) narra o acidente que Frida e Alejandro sofreram a caminho de
suas respectivas casas, quando ocorreu o choque de um trem com o bonde que os
levava, em uma esquina, sendo ele arremessado contra uma parede. Frida tinha então
18 anos.
Alejandro Gómez Arias, em um depoimento para Hayden Herrera, descreveu o
acidente. Seu timbre de voz baixou, se tornou monótono quase inaudível, como se
pudesse evitar a recordação falando dele com sobriedade.
122
O trem elétrico, de dois vagões, se aproximou lentamente do bonde e o acertou
no meio, empurrando-o devagar. O bonde possuía uma estranha elasticidade.
Curvou-se mais e mais, porém num dado momento se desfez. Era um bonde
com bancos compridos nos dois lados. Lembro-me que por um instante meus
joelhos tocaram a pessoa sentada na minha frente. Eu estava junto a Frida.
Quando o bonde atingiu seu ponto Maximo de flexibilidade, partiu-se em mil
pedaços e o trem seguiu mais adiante. Atropelou muita gente. Eu cai e fiquei
debaixo do trem. Frida não. Sem dúvida, uma das barras de ferro do trem, o
corrimão, se soltou e atravessou o corpo de Frida de um lado a outro, na altura
da pélvis. Algo estranho aconteceu. Frida estava completamente nua. Com o
choque de alguma forma a roupa de Frida foi arrancada. Alguém que estava no
bonde, provavelmente um pintor, levava um pacote de ouro em pó que se
rompeu, espalhando-se e cobrindo o corpo ensanguentado de Frida. Quando as
pessoas a viram gritaram: “A bailarina, a bailarina!” Ao verem o corpo de Frida
dourado pelo pó de ouro sobre o vermelho do sangue, pensaram ser ela uma
43
baiarina. (t.n.)
43
El tren eléctrico, de dos vagones, se acerco lentamente al camión y le pego a la mitad, empujándolo despacio. El camión poseía
una extraña elasticidad. Se curvo más y más, pero por el momento no se deshizo. Era un camión con largas bancas a ambos lados.
Recuerdo que por un instante mis rodillas tocaron las de La persona sentada enfrente de mí; yo estaba junto a Frida. Cuando el
camión alcanzó su punto de máxima flexibilidad, reventó em miles de pedazos y el tranvía siguió adelante. Atropelló a mucha gente.
Yo me quede debajo del tren. Frida no. Sin embargo, una de las barras de hierro del tren, el pasamanos, se rompió y atravesó a
Frida de un lado a outro a la altura de la pelvis. Algo extraño pasó. Frida estava completamente desnuda. El choque desato su
ropa. Alguien del caminón, probablemente un pintor, llevaba un paquete de oro en polvo que se rompió, cubriendo el cuerpo
ensangrentado de Frida. Em cuanto la vio la gente, grito: “La bailarina, la bailarina!” Por el oro sobre su cuerpo rojo u sangriento,
pensaba que era una bailarina. (HERRERA, 2007, p. 72, 73).
123
Figura 82: Sequência dos quadros fílmicos do acidente de Frida.
124
No cinema esta cena (Figura 82) é explorada de maneira esplêndida, e muito
convincente. Taymor consegue passar a angústia do momento, quando utiliza o recurso
da câmera de vários ângulos, capturando os movimentos de maneira muito lenta.
Também é interessante observar a cena em que Frida vê seu rosto refletido no vidro do
bonde que irá quebrar-se em minutos indo de encontro com a parede. As laranjas
caindo e as tábuas se soltando mostram o caos do momento e a desintegração do
mesmo. Um pássaro preso em uma das mãos de um menino que está sentado, no
momento do choque, é liberto, ganhando ares. Um paradoxo. Uma barra de ferro faz
piruetas no ar, para depois atravessar o corpo de Frida de maneira fatal. Como Frida
disse: “[...] o corrimão me atravessou como uma espada atravessa a um touro.” (t.n.)44
A Cruz Vermelha foi quem socorreu Frida, e os atendentes chegaram a pensar
que ela não sobreviveria, tão crítico era o estado em que se encontrava.
44
“[...] a mí el pasamanos me atravesó como la espada a um toro”. (HERRERA, 2007, p. 72).
125
Figura 83: Quadro fílmico da Animação de caveiras e olhos com caveira.
Para relatar a tensão desse episódio, Taymor novamente surpreende fazendo
uso de uma animação, com caveiras, no papel de médicos, para descrever o grave
quadro clínico em que Frida se encontrava:
Sua coluna vertebral quebrou-se em três lugares na região lombar. Também
fraturou a clavícula e a terceira e quarta costelas. Sua perna direita sofreu onze
fraturas e o pé direito foi deslocado e esmagado. O ombro esquerdo estava fora
do lugar e a pélvis, quebrada em três partes. O corrimão de aço, literalmente, a
atravessou na altura do abdômen; entrou pelo lado esquerdo e saiu pela
45
vagina. (t.n.)
Também os olhos de Frida quando se abrem mostram refletidos um crânio em
cada uma das pupilas.
O diretor de fotografia e também mexicano, Rodrigo Pietro, conheceu o casal
Frida e Diego desde criança. Disse que sentiu o peso da responsabilidade em contar
essa história; e quis fazer desse, o seu melhor trabalho. Além de narrar os eventos da
vida de Frida, ele e Taymor queriam entrar na mente e na alma da pintora. Pietro
comenta que ficou muito excitado com as ideias a respeito de movimentos de câmera e
velocidade, cores e iluminação para sugerir visualmente o que aconteceria
interiormente. Diz Taymor em relação a Pietro:
45
Su columna vertebral se rompió em três lugares de la región lombar. También se fracturó la clavícula y la tercera y cuarta
costillas. Su pierna derecha sufrió once fracturas y el pie derecho fue dislocado y aplastado. El hombro izquierdo estaba fuera de
lugar y la pélvis, rota em três sítios. El pasomanos de acero, literalmente, la atravesó a la altura del abdômen; entro por el lado
izquierdo y salió por la vagina. (HERRERA, 2007, p. 74).
126
“Nunca havíamos trabalhado juntos, mas estávamos realmente em sintonia, eu
consegui ver o artista dentro dele, e conversamos muito a respeito de como
captar a realidade da época, a subjetividade e o ponto de vista de Frida.”
(FERNANDES, 2010)
Talvez seja pela ótica de Frida que se pode ter uma explicação e justificativa
para o grande número de cenas com o uso de plongée para Frida e contra-plongée
para Diego, como foi mostrado anteriormente.
Figura 84: Sequência dos quadros fílmicos no hospital
Na passagem em que Fernandes (2010) coloca Pietro falando que sua escolha
estilística também foi tomada a partir de leituras das cartas de diários de Frida. “Apesar
de Frida não utilizar muitas luzes e sombras em suas pinturas, ela estava muito
consciente de sua existência em sua vida,” e acrescenta que “Ela falava muito sobre
como as cores mudaram após seu acidente. Nós utilizamos isso no filme.” “Frida falou
sobre isso em entrevistas e também escreveu a respeito em uma carta a Alejandro
Gomes Arias, seu namorado na época, dizendo que após o acidente tudo ficou branco,”
diz Pietro. “De repente a vida perdeu seu mistério e tudo se tornou branco como gelo e
muito transparente. Ela disse que conseguia ver tudo. O mistério havia desaparecido.”
127
Para obter este efeito, a equipe de Pietro intensificou o brilho da cor branca no hospital
e nas cenas que se seguiram. A figura 84 ilustra essa citação.
Herrera (2007) conta que quando foram tirar a barra de ferro do corpo de Frida,
esta gritou tão alto que não escutaram a sirene da ambulância da Cruz Vermelha
chegando para socorrê-los.
No filme, este grito é colocado em uma cena no hospital da Cruz Vermelha, onde
Frida ficou por um mês. Outro detalhe que aparece na obra fílmica é que neste período
em que a pintora esteve acamada, é Matilde (irmã mais velha) quem permanece com
ela no hospital, não Cristina (irmã mais nova) como é mostrado na obra fílmica.
Durante toda a vida, Frida usaria a inteligência, a atração magnética e a dor para
conservar o controle sobre os entes queridos, não importando se usasse isso como
arma para chamar atenção de Diego, algum amante/namorado, ou da família.
Afirma Herrera sobre o estado de saúde de Frida: houve períodos que seu
estado de saúde era relativamente bom e apenas notava-se que mancava um pouco,
porem gradualmente sua saúde foi piorando. (t.n.)46
Depois de um ano após o ocorrido acidente, um cirurgião ortopedista descobriu
que três vértebras estavam fora de lugar, e a partir daí Frida precisou usar uma série de
coletes durante vários meses, o que a obrigava a ficar deitada. Frida contava várias
versões de como se iniciou na pintura e evitava sempre promover o conhecido mito de
haver nascido com um lápis na mão. A esse respeito o historiador de arte Antonio
Rodrigues assim se manifesta:
Durante muitos anos, meu pai guardou um caixa com tinta a óleo, alguns
pincéis em um vaso de colocar flores e uma paleta em um canto de seu
pequeno estúdio fotográfico. Ele gostava de pintar e desenhar paisagens nas
margens do rio em Coyoacán e as vezes copiava fotografias coloridas. Desde
menina, como se pode dizer, jogava um olhar para a caixa de pintura. Não sei
por que. Como tinha que passar tanto tempo de cama, aproveitei a ocasião
para pedir-la a meu pai. Como um menino de quem se tira um brinquedo para
dar a um irmão doente, “emprestou-me”. Minha mãe mandou fazer um cavalete
com um carpinteiro, se é assim que se pode chamar o aparato especial que se
46
“Hubo períodos em los que su estado de salud era más o menos bueno y apenas se notaba su cojera, pero gradualmente se fue
desmejorando” (HERRERA, 2007, p.88).
128
ajustava a cama onde eu estava deitada, porque todo meu corpo estava envolto
47
em gesso e não me permitia sentar. Foi assim que eu comecei a pintar. (t.n.)
Figura 85: pai de Frida preparando o Cavalete para que ela começasse a pintar (à esquerda) e Frida
pintando seu retrato mirando-se em um espelho, colocado no dossel de sua cama.
Esta cena mostra o carinho familiar, principalmente a dedicação de seu pai. Foi
retratando amigos, a família e a si mesma que se iniciou como pintora. Esses trabalhos
apenas insinuam o complicado desenvolvimento pessoal que se seguiria. Acrescenta
Herrera (2007):
Entre esses primeiros quadros, somente o autorretrato tem o caráter
intensamente pessoal de suas obras posteriores. É possível que isso seja
assim porque, igual a muitos autorretratos pintados mais tarde, constituía uma
amostra de amor, uma espécie de talismã mágico importante para o bem estar
48
da artista. (t.n.)
47
Durante muchos años, mi padre conservó una caja con pinturas al óleo, algunos pinceles en un viejo florero y una paleta en un
Rincón de su pequeño taller fotográfico. Le gustaba pintar e dibujar paisajes cerca del rio en Coyoacán, y a veces copiaba cromos.
Desde niña, como se suele decir, echaba un ojo hacia la caja de pinturas. No me explico por qué. Como tenía que pasar tanto
tiempo en cama, aproveché la ocasión para pedírsela a mi padre. Como un niño, a quien se le quita un juguete para dárselo a un
hermano enfermo, me la “prestó”. Mi madre mandó hacer un caballete con un carpintero, si así se le puede llamar al aparato
especial que se sujetaba a la cama donde estaba acostada, porque la escayola de yeso no me permitia sentar. Fue así como
empecé a pintar. (HERRERA, 2007, p. 90).
48
Entre eses primeiros cuadros, sólo el autorretrato tiene el carácter intensamente personal de sus obras posteriores. Es posible
que esto sea así porque, al igual que muchos autorretratos pintados más tarde, constituía uma muestra de amor, uma espécie de
talismán mágico crucial para el bienestar de la artista. (HERRERA, 2007, p.91).
129
Herrera (2007) comenta na biografia de Frida que Alejandro é enviado para a
Europa a mando da família que não via com bons olhos o relacionamento dos dois.
Contudo o moço também queria livrar-se do controle possessivo que Frida exercia
sobre ele. Sendo ainda possível que a promiscuidade anterior de Frida e sua grave
enfermidade tenham impulsionado o jovem a separar-se dela. Porém esses detalhes
são mencionados apenas na obra literária, na obra fílmica temos Alejandro indo visitar
Frida, levando lhe um ramalhete de flores para se despedir, em uma sequência muito
bem elaborada de quadros fílmicos.
130
Figura 86: Quadros fílmico da sequência de Alejandro. Tomada de câmera única e continua.
Essa é a cena mais extensa, sendo que ela não é cortada nenhuma vez para dar
uma continuidade, criando uma tensão emocional, devido a uma discussão acerca de
problemas financeiros gerados pelo acidente de Frida. A câmera gira em torno do casal
de maneira lenta enquanto estes tomam chá, terminando a sequência da cena com a
chegada do jovem Alejandro, que segura um ramalhete de rosas.
3.2 Efeitos especiais
Fernandes (2010) mostra que Julie Taymor brincou com sombras, o que,
segundo Pietro, “reproduz o mistério dos interiores, onde existem áreas escuras que
você não sabe o que realmente tem lá, então você vê o que quer ver.”
131
132
Figura 87: Sequência do assassinato de Trotsky
Nas cenas da taberna e do assassinato de Trotsky existe esta “brincadeira” em
que das sombras sobressaem crânios que aparecem ao fundo ou sobrepõem a face do
homem que representa a morte de Trotsky. (Figura 87)
No episódio da morte de Trotsky, Taymor cria uma relação fazendo uma junção
de vários acontecimentos, como quando Diego pede divórcio a Frida que está em uma
taberna escura, cheia de sombras, quando alguém começa a cantar uma música de
cunho muito dramático. Ao mesmo tempo Trotsky está envolto numa penumbra
escrevendo quando um criado adentra no aposento trazendo-lhe algo para beber, mas,
na verdade, este é o assassino de Trotsky.
Entremeando esses acontecimentos, o quadro Duas Fridas começa a animar-se.
Uma cena vai se intercalando a outra até que se fecha na última nota dramática da
canção. A morte de Trotsky, mancha de sangue o papel em que ele escrevia. Nota-se
como se forma a sobreposição de uma caveira no rosto do assassino, pouco antes
deste aplicar o golpe fatal. Ao mesmo tempo em que Frida segura o camafeu com o
retrato de Diego ainda criança e o aperta com tanta força entre os dedos que o vidro se
parte e lhe fere a mão.
A seguir, a cena fílmica (Figura 88) do quadro dos noivos Frida e Diego Rivera
(1931), pintado um ano depois das bodas do casal e dado de presente a Albert Bender,
em agradecimento por este ter conseguir o visto de entrada de Diego nos Estados
Unidos.
133
Figura 88: Cena da festa do casamento de Frida e Rivera
Julie Taymor utiliza essa obra para criar uma cena muito original, fazendo com
que o quadro ganhe vida, introduzindo aos poucos os convidados da festa de
casamento, fazendo-os bailar dentro da obra pictórica que vai se convertendo em obra
cinematográfica
Na obra fílmica, Tina Modotti faz um discurso sobre o casamento, discurso que
não está contido na obra literária.
Ainda no filme, quando Frida descobre que Diego a traía com a irmã Cristina, o
casal vivia em San Angel, em dois ateliers unidos por uma pequena ponte. Frida
atravessa a ponte do amor, como era chamada, voltando para o seu ateliê e fechando a
porta para Diego. Depois desse incidente, Frida corta os cabelos, e começa a vestir-se
134
com roupas masculinas. Taymor cria uma das cenas mais impressionantes e de
impacto do filme.
Figura 89: Sequência dos quadros fílmicos de Frida cortando cabelos.
A sequência de cenas de Frida cortando os cabelos e bebendo é intercalada por
planos de close, e planos gerais, terminando com uma animação de um trabalho
pictórico de Frida: Autorretrato com cabelo cortado. Porém, no trabalho pictórico ela
está com a cabeça erguida, nos encara, apesar da dor e sofrimento. Já o último quadro
fílmico desta cena, mostra-nos uma Frida de cabeça baixa, entregue ao desânimo e à
dor. A intercalação de planos, ora com o uso da câmera em close, ora do plano geral e
inclinado, acentua o desequilíbrio emocional e psicológico em que Frida se encontra.
135
A posição de câmera em close, “[...] sem dúvida, é no primeiro plano do rosto
humano que se manifesta melhor o poder de significação psicológico e dramático do
filme, e é esse tipo de plano que constitui a primeira, e no fundo a mais válida, tentativa
de cinema interior.” (MARTIN, 2007, p.39)
Nesses quadros (Figura 89) Frida está registrada em close e primeiro plano. Se
filmada de outra forma, não se veria o estado psicológico de dor e abandono em que
ela se encontrava naquele momento. Frida é esta presença real, sem subterfúgios para
as emoções, é a vida se manifestando de maneira sincera, porque, apesar de todo o
sofrimento, ela gostava de estar viva e de se sentir viva, levava suas sensações até as
últimas consequências.
Figura 90: Auto-retrato com Cabelo Cortado, 1940
Fonte: Kettenmann, 1994
Essa obra de Frida recheada de simbolismos dá origem à cena que foi estudada
anteriormente. No lugar de roupas femininas com que aparece na maioria dos autoretratos vemos aqui vestida com um terno de homem. Notamos que acabou de cortar o
136
longo cabelo segurando a tesoura ainda na mão. Os cabelos se contorcem e
encaracolam-se espalhados pelo chão em volta da cadeira como se tivessem vida
própria, enquanto uma das tranças cortadas repousa sobre sua perna.
Sobre esse comportamento de Frida em relação a Diego: mostrar-se vestida com
uma roupa tipicamente masculina, vestimenta de quem a magoou, ou seja, o “homem
Diego”; Freire (2009, p.55) nos esclarece que existe [...] “em certo momento da
experiência existencial dos oprimidos, uma irresistível atração pelo opressor. Na sua
alienação querem, a todo custo, parecer com o opressor. Imitá-lo. Segui-lo”. Mas aqui
Frida quer estar em pé de igualdade com ele, está acima de tudo, anulando a sua
feminilidade, seus vestidos e cabelos compridos de que Diego tanto gostava.
Frida não usa só as telas para representar experiências vividas, mas faz uso do
próprio corpo como meio de representar o que sentia ao viver determinadas situações,
e o ato de cortar o próprio cabelo é um exemplo disso.
Ela amava Diego, talvez até mais que sua própria vida, o amava tanto que
acabou submetendo sua vontade à dele, acabando por encontrar outra maneira de
amá-lo.
Como é natural, tratando-se de duas pessoas com personalidades tão fortes
motivados por impulsos voluntariosos e manifestando o mais alto grau de
sensibilidade, sua vida conjugal era tumultuada. Ela subordinou sua vontade à
dele: de outro modo seria impossível viver com Diego. Ela olhava através de
seus subterfúgios e fantasias e ria de suas aventuras, e zombava do colorido e
da imaginação que desenvolvia em suas inacreditáveis histórias, ainda que as
desfrutava, perdoava suas relações com outras mulheres, seus planos que a
feriam, sua crueldade... Apesar das brigas, a brutalidade, atos rancorosos,
inclusive o divórcio. Na profundidade de seus seres seguiam cedendo em
primeiro lugar um ao outro. Bem, mas para ele, ela viria depois, de sua pintura e
de sua dramatização da vida como uma serie de lendas, porem, ele ocupava o
primeiro lugar, ainda que antes de sua arte. Sustentava que as qualidades de
Rivera deviam corresponder com muita indulgência. Em todo caso, me disse
uma vez com uma risada pesarosa, que ele era assim e que não podia amá-lo
49
pelo que ele não era. (t.n.)
49
Como es natural, tratándose de dos caracteres tan fuertes motivados ambos completamente desde adentro por impulsos
voluntariosos e intensa sensibilidad, su vida conjunta era tormentosa. Ella sobordino su voluntad a la de él: de otro modo hubiera
sido imposible vivir com Diego. Ella miraba a través de sus subterfugios y fantasías, se reía de sus aventuras, se burlaba del
colorido y la imaginación que desarrollaba en sus increíbles historias, aunque las disfrutaba; perdonava sus relaciones com otras
mujeres, sus estretagemas hirientes, su crueldad... A pesar de las peleas, la brutalide, las acciones rencorosas, aun el divorcio, em
la profundidad de sus seres seguían cediendo el primer lugar el uno al otro. Más bien, para él, ella venía después de su pintura y de
137
É muito bem colocada na obra fílmica uma expressão de Frida dizendo que não
poderia amar Diego pelo que ele não era. A cena se passa num café noturno, nos
Estados Unidos da America, onde ela se encontra com uma das amantes de Rivera e
que no caso é amante dela também.
No ano de 1946, Frida realiza uma cirurgia, após a qual terá que colocar um
colete de ferro para sustentar a coluna e amputará alguns dedos do pé, e mais adiante,
também amputará a perna, pois o médico descobre que estão com gangrena. Constatase logo a seguir, nos dois fotogramas, o que ela escreve em uma página de seu diário
“Pies para qué los quiero si tengo alas pa‟ volar” (KAHLO, 2008, p. 274)
Fonte: Frida, 2002
Fonte: Kettenmann, 1994
Figura 91: página do diário de Frida com os dizeres em inglês na obra fílmica (à esquerda) e com os
dizeres em espanhol no diário original (à direita).
su dramatización de la vida como una serie de leyendas, pero para ella, él ocupaba el primer lugar, aun ante su próprio arte.
Sostenía que a las grandes dotes de Rivera debía corresponder con mucha indulgencia. Em todo caso, me dijo una vez, con una
risa pesarosa, que así era y por eso lo amaba. (apud WOLFE; HERRERA, p. 145).
138
Figura 92: Frida na cama com a perna amputada.
Fonte: Frida, 2002
Outra observação importante é sobre a cena em que Frida, já muito debilitada,
está na cama com apenas uma perna à mostra e, ao fundo na soleira da janela, mostrase muito sutilmente uma perna de pau indicando a amputação. Nesse quadro fílmico
podemos ver isto mais detalhadamente e, ao lado da perna de pau há vários cactos
com espinhos, sugerindo uma situação de dor.
Entre todas as obras não textuais de Frida, o que melhor exemplifica as
qualidades de olhar a morte e as dificuldades de frente com mais intensidade é sem
dúvida La columna rota (Figura 9) pintada pouco tempo depois de sofrer uma cirurgia
na coluna.
139
Figura 93: Sequência fílmica: La columna rota 1
Baseada nesses dois fatos, a cirurgia da coluna e da amputação do pé, a
diretora cria uma das cenas mais significativas do filme. Vemos Frida em uma paisagem
de pedra com tonalidade de um azul muito frio, sugerindo de que Frida faz parte da
paisagem, que também é de pedra ou gelo, ali parada estática, e ao mesmo tempo uma
figura fantasmagórica. Mas a câmera focaliza os pés de Frida como se fossem os olhos
140
dela a mirar os próprios pés. Por meio destas cenas pode-se perceber a proporção do
susto e da tensão em que Frida teria ficado ao ouvir o comunicado da amputação.
Figura 94: Sequência em que lágrimas reais escorrem da tela enquanto Frida pinta.
Figura 95: Cadeira de roda de Frida.
Os quadros fílmicos dessa sequência mostram Frida chorando e as lágrimas
saem da superfície da tela enquanto ela pinta (Figura 94), assim como as rodas da
cadeira representam a substituição do pé que acabara de ser amputado (Figura 95)
Em quase 25 anos de casamento, entre separações e reconciliações, traições
mútuas, o casal teve a vida de um ligada à do outro. É fato que Frida até tentou
separar-se de Diego, mas tinha um amor obsessivo por ele, e também é verdade que
Diego a teria deixado se ela não fosse tão doente. Afirma Herrera (2007): “Muita gente
acredita que Rivera teria abandonado Frida se esta não estivesse estado tão doente.
Frida era capaz de submeter se a uma cirurgia mesmo que não fosse necessária, se
141
acreditasse que esta fortaleceria sua união com Diego.” (t.n.)50. Alguns médicos
chegaram a relacionar o estado da saúde de Frida como psicossomático, pois a doença
de Frida se agravava muito a cada crise que se apresentava em seu casamento com
Diego.
As sequelas da poliomielite eram certas, assim como as do acidente, porém
encontravam em Frida um eco anormal. Ela tentava compreender. O que teria
ela amplificado? Por quê? Sentia, indistintamente, como seu estado podia ser
uma pressão afetiva diante dos outros. Quanto, no começo, ela o vivera de
modo alarmante, chegando a ponto de se convencer de uma fatalidade de que
nunca mais pudera libertar-se. Essas dores, essa angústia permanente tinham
contribuído, estranhamente, para que ela se sentisse sempre viva. Não sentir
nada depois de ter beirado a morte, teria sido o mesmo que morrer (JAMIS,
l987, p. 245).
50
Mucha gente cree que Rivera hubiera abanonado a Frida si ésta no hubiera estado tan enferma. Frida era muy capaz de
someterse a uma operación innecesaria, si creía que ésta fortalecería su unión com Diego” (HERRERA, 2007, p. 439).
142
Figura 96: Quadros fílmicos da morte de Frida.
Na última sequência de quadros fílmicos de Frida tem-se a morte da pintora
representada de forma muito criativa, onde Pietro e Taymor por meio de uma animação
deram vida ao quadro O Sonho (1940) da pintora e fizeram com que explodissem fogos
de artifício que incendiaram o dossel e a cama de Frida. Talvez uma alusão ao fato de
seu corpo ter sido cremado. Tendo como dizeres finais as palavras de Frida, também
presentes em seu diário: “Espero a partida com alegria... e espero não voltar jamais...
Frida”. (t.n.)51 .
51
“Espero alegre la salida – y espero no volver jamas” (KAHLO, 2008, p.285).
143
3.3 Trilha sonora
Prosseguindo à análise dos elementos fílmicos, a trilha sonora de Frida é um
elemento crucial na produção desse filme, estando relacionada a muitas cenas e que
ajudam a narrar a história, como por exemplo, a cena do assassinato de Trotsky. Um
comentário sobre a análise da trilha sonora do filme segundo Marcel Martim (2007,
p.125) é muito pertinente quando o que se quer é enfatizar o teor dramático da cena,
que é no caso de Frida: “Neste caso, a música intervém como contraponto psicológico
para fornecer ao espectador um elemento útil à compreensão da tonalidade humana do
episódio”.
Taymor trabalhou intensamente com o compositor Elliot Goldenthal para
construir uma mistura de poderosos solos de violão, arranjos românticos e reflexivos, e
animadas faixas com influências folclóricas. A trilha sonora conta também com um
dueto emocionante cantado por Caetano Veloso e Lila Downs, conhecida por misturar
sons nativos americanos, latinos e africanos. Em Frida, Goldenthal diz que optou por
adotar um intimismo melódico como trilha sonora, compondo melodias ou canções ao
invés de fragmentos e motivos musicais. Para conquistar um clima ainda mais intimista,
o músico escolheu um pequeno grupo de instrumentos acústicos: a pequena viola
mexicana (vihuela), violão clássico, baixo mexicano (guitarron), acordeão, harpa
mexicana, marimba e uma gaita de vidro, inventada por Benjamin Franklin. Descobriu
também que os violões ofereciam toda a gama de lirismo e percussões da qual
precisava.
144
Figura 97: Trecho da música, pintado na parede, tirado da obra Autorretrato com Cabelo Cortado.
Não é só na sonoridade da música que se vê a importância da trilha, mas se o
espectador do filme for um bom observador verá que as paredes do ambiente, onde se
encontra Frida, estão cheias de palavras escritas em negro. Na verdade, estas palavras
são trechos de uma música muito conhecida nos anos de 1940 e que Frida escreveu no
quadro Autorretrato com Cabelo Cortado (Figura 90) que pintou nesse trágico episódio,
quando da traição de Diego com sua irmã. Os versos dessa música apontam a razão
pela qual Frida parece estar nessa cena com os cabelos cortados. A frase é esta: “Olha,
se eu te quis, foi pelo seu cabelo, agora que está careca, já não te quero.” (t.n.)52
3.4 As cores de Frida
As cores invadiam a vida e a obra de Frida, seja em suas telas ou em seus
trajes. As obras de Frida, durante o ano em que ela e Rivera estiveram separados, as
cores parecem ter a capacidade de chegar às verdades emocionais mais profundas.
Como artista autodidata, começou a ter um sentido diferente, e muito pessoal da cor.
Sua paleta surgia de seu amor pelas assombrosas combinações de rosa, roxos, verdes
e amarelos que vêm das artes decorativas do México. Escolhia as cores da mesma
maneira que escolhia suas roupas – com um cuidadoso e bom cálculo estético. Em
52
“Mira que si te quise, fué por el pelo, ahora que estás pelona, ya no te quiero” (HERRERA, 1994, P.55).
145
alguns de seus trabalhos, como Hospital Henry Ford (figura 66), os tons pastéis
formavam uma desunião irônica diante do doloroso tema. Em algumas pinturas
posteriores, a escolha de cores é igualmente difícil e com frequência ainda mais
discordante e complexa.
O céu suave, e as brilhantes flores no Autorretrato dedicado ao dr. Eloesser,
Frida Kahlo, 1940 (Figura 27), por exemplo, somente acentuam o calafrio de
premonição da artista. Sua riqueza de detalhes nos recorda algumas imagens de Cristo
nas igrejas mexicanas que se encontram rodeadas de flores, veludo e ouro.
O enfoque idiossincrático de Frida em relação à cor se manifesta em uma
espécie de poema em prosa no seu diário.
Figura 98: Página do diário de Frida
Fonte: Kahlo, 2008
146
Escrevendo uma lista de matizes53, em que circunda com linhas coloridas as
palavras na própria cor, em que, na frente de cada uma delas, as palavras relacionamse, de forma desordenada, com significado pessoal a cada matiz. Segundo Herrera
(l998), eis a lista destas cores eleita por Frida:
O verde: luz tépida, e boa.
Purpura: Asteca. Tlapalli (palavra que significa “cor” usada na pintura e no
desenho). Velho sangue de figo, o mais vivo e antigo.
Café: Cor de mole (tipo de molho preparado com pimenta e especiarias). Cor de
folha que cai. Terra.
Amarelo: Loucura, doença, medo. Parte do sol e da alegria.
Azul cobalto: eletricidade e pureza. Amor.
Preto: Nada é negro, na verdade nada.
Verde Folha: folhas, tristeza, ciência. A Alemanha toda tem essa cor.
Amarelo esverdeado: mais loucura e mistério. Todos os fantasmas usam roupas
desta cor...no mínimo roupas intimas.
Verde escuro: cor de más noticias e bons negócios.
Azul marinho: distancia. A ternura também pode ser desta cor.
54
Magenta: sangue? Pois bem, quem sabe! (t.n.)
53
Esta lista de cores está escrita no diário de Frida, mas algumas delas não levam o nome de identificação, apenas a mancha do
matiz feita com lápis de cor. Devido a isso, foi necessário recorrer ao livro de Herrera para melhor entendimento.
54
El verde: luz tíbia y buena. Solferino: Azteca. Tlapali (palabra que significa “color” usado en pintura y el dibujo).Vieja sangre de
tuna, el mas vivo y antiguo. Café: color de mole, de hoja que se va; tierra. Amarillo: locura, enfermidad, miedo. Parte del sol y de la
alegria. Azul cobalto: electricidad y pureza. Amor. Negro: nada es negro, realmente nada. Verde hoja: hojas, tristeza, ciencia.
Alemania entera es de este color. Amarillo verdoso: mas locura y mistério. Todos los fantamas usan trajes de este color...cuando
menos, ropa interior. Verde oscuro: color de anúncios malos y de buenos negócios. Azul marino: distancia. La ternura también
puede ser de este azul. Magenta: Sangre? Pues, quién sabe! (HERRERA, l998, p.147).
147
Figura 99: El sueño, 1940
Fonte: Kettenmann, 1994
Figura 100: Quarto de Van Gogh, 1889
Fonte: The National Gallery
Para exemplificar e ilustrar o que foi falado sobre as cores utilizadas por Frida em
suas obras foram escolhidas duas telas da artista e uma de Van Gogh. Inicia-se esta
análise por uma cor que é muito corriqueira no período de 1940 nas obras de Frida. O
Amarelo. Várias pinturas de Frida deste período estão dominadas pelo amarelo que
serve para acentuar o pesado estado de ânimo. O amarelo para a artista é loucura,
enfermidade e medo. Nessas obras, esta cor não está cheia de sol, mas ofusca nossos
olhos. O fundo amarelo do autorretrato de Frida (figura 5), encomendado pelo
engenheiro Sigmund Firestone, por exemplo, faz o véu negro de Frida ainda mais
fúnebre. A colcha amarela de El sueño (figura 99) é como uma alucinação, “[...]
anunciadora do declínio da velhice e da aproximação da morte.” (CHEVALIER, 2009,
p.41) Frida estava sempre às voltas com essa companheira fiel. A cadeira amarela, no
frio Autorretrato com cabelo cortado (figura 90), tem a inapropriada alegria da cama e
da cadeira amarela, representadas também, na obra Quarto de Van Gogh (figuras 100).
Confirmando a atmosfera sufocante que o amarelo cria no ambiente, Chevalier (2009,
p. 40) demonstra que o amarelo é:
Intenso, violento, agudo até a estridência, ou amplo e cegante como um fluxo
de metal em fusão, o amarelo é a mais quente, a mais expansiva, a mais
ardente das cores, difícil de atenuar e que extravasa sempre dos limites em que
o artista desejou encerrá-la.
148
Vale a pena tecer um breve comentário sobre a cena abaixo, que talvez passe
despercebida para a maioria das pessoas ao assistirem ao filme ou talvez a considerem
sem importância.
Figura 101: O pássaro azul.
Fonte: Frida, 2002
Esse pequeno pássaro azul está preso nas mãos de um garoto, passageiro no
bonde que também leva Frida e Alejandro, e que, certamente ao chegar ao seu destino,
seria encarcerado em uma gaiola, mas na hora do acidente, esse destino muda quando
o menino não tem mais controle sobre a mão que o segura, e o pássaro se liberta.
Uma alusão ao que Frida escreveu em seu diário “pés para que os quero, se tenho
asas para voar?”
Como anteriormente citado em seu diário, Frida coloca significados pessoais nas
cores. Para ela o azul tinha uma relação muito forte com o amor e a pureza. Chevalier
(2009, p. 107) amplia esse conceito quando diz que: “[...] o azul não é deste mundo;
sugere uma ideia de eternidade tranquila e altaneira que é sobre-humano.”
A cor traz em si uma linguagem própria, uma carga informativa grande e nos
estudos realizados por Guimarães (2000), o azul é considerada a cor “mais fluídica”, ao
que Chevalier (2009, p. 107) acrescenta ser essa cor: “Imaterial em si mesmo, o azul
149
desmaterializa tudo aquilo que dele se impregna. É o caminho do infinito, onde o real se
transforma em imaginário”. Enquanto o amarelo é a cor “mais concreta” e muito usada
nas obras de Frida, também era considerado por ela como a cor da loucura e da
enfermidade. “[...] em várias culturas vamos encontrar o amarelo relacionado à loucura,
à mentira, à traição” (GUIMARÃES, 2000 p. 89).
Frida andava nesse meio fio e vivia estes dois extremos de modo muito intenso.
O pássaro acima representado no filme com asas de cor azul “fluídicas” simboliza o
imaginário de Frida na busca de uma liberdade e transgressão de sua dor em respeito e
reverência a si mesma e à vida. “Acaso não é o azul a cor do pássaro da felicidade, o
pássaro azul, inacessível embora tão próximo?” (CHEVALIER, 2009, p. 107).
O corpo de Frida era feito de dor material, a loucura do espírito transmutando
para a carne, o casulo que teimava aprisionar as asas, precisando ser rompido para
que ela pudesse voar. O corpo era amarelo e alma era azul.
150
Figura 102: Autorretratos com Macacos, 1943
Fonte: Kettenmann, 1994
CONSIDERAÇÕES FINAIS
“Eu ando pelo mundo prestando atenção
Em cores que eu não sei o nome
Cores de Almodóvar
Cores de Frida Kahlo, cores,
Passeio pelo escuro...”
(Esquadros, música e letra de Adriana Calcanhoto)
Diante de tantos questionamentos que ainda envolvem a vida desta grande
mulher do século XX, acredita-se ter lançado luz à possibilidade de investigação de
muitos pontos cruciais da vida e da obra de Frida Kahlo.
Frida teve uma vida marcada pela dor e transcendeu, por meio de suas pinturas,
os aspectos mais reservados de sua intimidade. Falando de si mesma, abertamente,
falou para todos sobre questões do ser humano, e de forma muito particular, questões
que fazem parte do universo feminino. O filme de Julie Taymor reforça esses aspectos
da vida íntima de Frida e Diego.
A coragem e a despretensão moldaram a obra de Frida Kahlo em algo
extremamente original, livre de normas. Por não se preocupar em seguir uma escola ou
tendência estética, se transformou numa artista dotada de forte sensibilidade e estilo
particular. Frida não se importava em agradar o olhar comum. Sem nenhuma dúvida,
esse é o aspecto mais interessante na sua arte, podendo ser constatado nas obras
literárias e no filme sobre sua vida. É nesse enredo que se dá a trajetória da heroína.
Com a exibição de Frida nas telas de cinema do mundo todo, cristaliza-se o mito e o
transforma em produto midiático.
152
Falar da mulher Frida é falar de uma lutadora diária, uma sobrevivente. Uma
mulher pertinaz, porque ao longo de toda a vida, o que mais observa é a teimosia em
continuar a viver. Frida vive o contraponto. Vai da dor física e do sofrimento da traição que afligiam corpo e alma - à alegria das festas e do gosto pela vida. Quanto maior era
o sofrimento, mais ela se arrumava e se enfeitava. Nesses momentos, as obras
tornavam-se mais coloridas. É constatada essa exuberância de cores também na obra
cinematográfica, que mostra o talento da diretora em contrastar as nuances da palheta
que Frida deixou à mostra.
O contexto histórico de colonizações e invasões extra-culturais desencadeou
uma identidade marcadamente conflituosa da sociedade latino-americana. É certo que
existem as particularidades de cada país, porém, a imposição de modelos culturais
preestabelecidos é uma forte característica de todos eles. Nesse sentido, Frida passa a
exercer um papel importante ao defender a autenticidade nacional contra qualquer tipo
de arte que copiasse modelos ou qualquer movimento artístico em voga. Suas próprias
convicções políticas e sociais estão presentes em suas obras, desenvolvendo assim
uma estética particular e afastando-se das influências estrangeiras.
As imagens criadas por ela são modos de se relacionar e de se comunicar dentro
da multiplicidade emblemática, cultural e sexual. Suas pinturas representam elementos
como ataduras simbólicas para a fratura verdadeira de seu corpo. A exibição de sua
fragilidade é de extrema coragem de exposição do “eu”. De fato, suas idéias e seu
comportamento não eram muito afeitos às mulheres da sua época. Ela se parecia como
sua criação artística: extremamente chocante, longe de padrões estéticos préestabelecidos e sem a preocupação de agradar a maioria das pessoas. A pintora
diferencia-se por uma identidade múltipla, sincrética, de rompimento de fronteiras, que
desapruma conceitos estáveis e questiona estabilidades. Metáfora da contradição
inerente à condição humana.
Frida jamais pintou sonhos e fantasias, mas a realidade que a cercava. Não
conseguia, tampouco queria outro caminho porque apenas desejava expressar-se e,
muitas vezes, purgar suas máculas ou simplesmente corresponder-se consigo mesma,
afirmando: “Eu pinto-me porque estou muitas vezes sozinha e porque sou o tema que
153
conheço melhor” (KETTENMANN, 1994, p.18). Uma forma particular de permanecer
viva, ligada à realidade e por isso negava veementemente a classificação de surrealista
que Breton lhe atribuíra.
Dentro dessa perspectiva, é preciso considerar que Frida elabora um biografismo
ao redor de suas obras, relaciona todas as interpretações possíveis na esfera de sua
vida privada, seus infortúnios e desavenças. Sua obra era tudo o que tinha para se
comunicar, e assim conseguir atenção e autoestima.
A obra de Hayden Herrera, por se tratar de uma exaustiva pesquisa, é
considerada pela crítica o retrato definitivo de Frida. Destaca-se a seriedade dessa
biografia, transformada em pilar de sustentação para a narração cinematográfica de
Julie Taymor. Fazendo uso sensível dessa linguagem, por meio de posicionamentos de
câmera, produziu um depoimento contundente e, mais que isso, um documento
audiovisual, que fala da dor, da condição frágil e das efemeridades que acometem os
seres humanos.
Conclui-se, pois que, a obra cinematográfica reforçou, amplificou e reiterou a
construção do mito Frida Kahlo. Sua busca por uma arte verdadeira sem limites
estéticos e sua comunicação direta, cumpre a função de aproximar-se do outro pela
exposição de sua vida íntima. A autenticidade de Frida era um ato necessário e
urgente. Com a cinematografia, esse mito extrapolou as fronteiras mexicanas, tornandoa uma personalidade famosa e popular. Frida é um filme que encanta, de cuidadoso
roteiro, destacando ainda uma bela estratégia visual criada para dar vida às pinturas da
artista.
A popularização do filme levou Frida Kahlo para as prateleiras de consumo como
se constata na atualidade. Frida apareceu recentemente na capa de uma revista
brasileira de artesanato popular, representando sua imagem dentro de um relicário
(anexo 1). A partir do dia 30 de agosto de 2010, começaram a circular no México, as
imagens de Frida Kahlo e de Diego Rivera estampadas nas notas de 500 pesos (anexo
2). Agora Frida é POP, sua imagem está inserida na cultura de massa, tornou-se
famosa e popular além das fronteiras mexicanas.
154
Sem cores de dúvida, Frida, após a exibição cinematográfica, é uma artista
consagrada não só pelo grande valor de sua obra, mas também pela marcante
personalidade: exótica, ambígua e excêntrica, destacando-se por uma vida incomum e
pela capacidade de criar uma imagem popular de si mesma. Do contrário continuaria
presa a um grupo seleto de admiradores que teriam acesso às suas obras nos museus,
em exposições esporádicas que percorrem o mundo ou em sua Casa Azul,
transformada em acervo cultural, no bairro Coyoacán, um subúrbio da cidade do
México.
155
Figura 103: Autorretrato, 1930
Fonte: Kettenmann, 1994
156
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Lions Gate Filmes Inc; Trimark Pictures; Handprint Entertainment; Ventanarosa
Productions. 2002. 1 DVD (123 min.), son., color.
161
Anexo 1
Fonte: Bottallo
Capa da revista pegue & Faça.
Fonte: Bottallo
Figura 00: Relicário
Fonte: Bottallo
Relicário
162
Anexo 2
Nota de 500 pesos - México
Fonte:G1<http://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2010/08/nota-com imagensde-frida-kahlo-e-rivera-comeca-a-circular-no-mexico.html>
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