UNIVERSIDADE DE MARÍLIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO CASSIA CALVO DO NASCIMENTO Frida Kahlo: das telas pictóricas às telas cinematográficas Orientação – Maria Cecília Guirado de Carvalho UNIMAR Marília - SP 2010 UNIVERSIDADE DE MARÍLIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO CASSIA CALVO DO NASCIMENTO Frida Kahlo: das telas pictóricas às telas cinematográficas Dissertação de mestrado apresentada como parte obrigatória para obtenção do Título de Mestre no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade de Marília – UNIMAR. Orientação da Profª Drª Maria Cecília Guirado de Carvalho. Área de Concentração em Mídia e Cultura. UNIMAR Marília - SP 2010 Nascimento, Cassia Calvo do. Frida Kahlo: das telas pictóricas às telas cinematográficas. Cassia Calvo do Nascimento – Marília: UNIMAR, 2010. 162 f. : il. Orientadora: Maria Cecília Guirado de Carvalho. Dissertação (Mestrado em Comunicação, Mídia e Cultura) – Faculdade de Comunicação, Educação e Turismo, Universidade de Marília, Marília, 2010. 1. Mito 2. Cinema 3. Arte 4. Frida Kahlo. I. Nascimento, Cassia Calvo do. II. Frida Kahlo: das telas pictóricas às telas cinematográficas. UNIMAR – UNIVERSIDADE DE MARÍLIA NOTAS DA BANCA EXAMINADORA DA DEFESA DE MESTRADO CASSIA CALVO DO NASCIMENTO Frida Kahlo: das telas pictóricas às telas cinematográficas Data da Defesa: ____/____/ 2010 Banca Examinadora Profª. Drª. Maria Cecília Guirado de Carvalho. ORIENTADORA Avaliação: _______________________ Assinatura: ______________ Prof. Dr. Roberto Reis de Oliveira. UNIMAR Avaliação: _______________________ Assinatura: ______________ Profª. Drª. Maria Carmen Guimarães Possato. UNIRP Avaliação: _______________________ Assinatura: ______________ Marília / 2010 Dedico esse trabalho ao querido artista plástico Marcos Sestini, pelo seu amor a Arte. AGRADECIMENTOS Toda lista de agradecimentos, por mais extensa que seja, esquece de pessoas, pois o trabalho é longo e a ajuda constante. Começo pelos não nomeados, pois eles também estão nas entrelinhas. Meus amigos, minha família, meus colegas. Minha gratidão aos meus amigos, Augusto Vasconcelos e Luciana Leme e Silva, colegas de mestrado, de almoço, de dúvidas e de sonhos. Para Dinamara Garcia, uma amiga em tudo e um incentivo constante. Para minha querida orientadora Maria Cecília Guirado, um agradecimento que vai além das orientações, indicações e dedicado acompanhamento. Mas, especialmente, por ter acreditado em mim e ter me dado oportunidade e privilégio de estudar ao seu lado. Obrigada, por ter feito de mim alguém melhor. Obrigada ao meu companheiro Marcos Sestini, pelas horas a fio ao meu lado, pelos sábios palpites e correções. Obrigada a Bu, que nos fazia rir e relaxar, intercalando horas de trabalho contínuo. Obrigada também aos meus pais e filhas Heloisa e Natalia para os quais, depois de tantas páginas, eu não encontro palavras, e talvez nunca venha a encontrar. Mas é disto que são feitas as dissertações, da procura constante pela ideia resumida. O selvagem adora ídolos de pau e pedra; o homem civilizado, ídolos de carne e sangue. Bernard Shaw Figura 1: Diego e Eu, 1949. Fonte: Kettenmann, 1994 RESUMO Esta dissertação de mestrado se propõe abordar a história de Frida Kahlo por meio de sua produção artística, da obra biográfica, elaborada por Hayden Herrera e da obra cinematográfica, produzida por Julie Taymor. A pesquisa tem como objetivo mostrar os caminhos percorridos pela artista plástica mexicana na construção do seu próprio mito: desde a escolha da vestimenta até a temática autobiográfica de suas pinturas. As publicações de algumas biografias e do El Diário de Frida Kahlo: un íntimo autorretrato, despertaram a curiosidade do público e da mídia sobre a pintora. Mas, foi o filme Frida, no início deste século XXI, que divulgou a personagem Frida Kahlo. Os conflitos pessoais, culturais e a relação entre oprimido/opressor são revistas neste trabalho por meio da transcodificação e da análise da obra fílmica, literária e sobretudo da criação mítica de Frida Kahlo. Palavras chave: Frida Kahlo; Arte; Mídia; Cinema; Mito. ABSTRACT This master degree work focuses on Frida Kahlo‟s history taking into account her artistic production, her biography written by Hayden Herrera and the movies production by Julie Taymor. The research aims to show the ways that were followed by the Mexican artist in order to build her own myth: from the choice of the dressing to the autobiographical theme of her paintings. The publications of some biographies and El Diário de Frida Kahlo: un íntimo autorretrato aroused the people‟s and the media‟s curiosity about the painter. However Frida Kahlo‟s character was announced by the film Frida which was produced at the beginning of the XXI century. The personal and cultural conflicts and the relation between the oppressed /oppressor are reviewed in this paper through the transcoding and analysis of the film work, the literary production and especially Frida Kahlo‟s mythical creation. Keywords: Frida Kahlo; Art; Media; Movies; Myth. LISTA DE FIGURAS Figura 1: Diego e Eu, 1949....................................................................... 6 Figura 2: Autorretrato com Trança, 1941.................................................. 13 Figura 3: Autorretrato com Colar de Espinhos, 1940................................ 15 Figura 4: Autorretrato com Cabelo Solto, 1947........................................ 21 Figura 5: Autorretrato, 1940...................................................................... 23 Figura 6: Autorretrato com mono Y perico, 1942...................................... 23 Figura 7: Recordação ou O coração, 1937............................................... 25 Figura 8: A cama de Frida Kahlo com esqueleto preso ao dossel........... 25 Figura 9: A Coluna Partida, 1944.............................................................. 28 Figura 10 Retrato de Frida......................................................................... 37 Figura 11 Retrato de Frida......................................................................... 37 Figura 12 Retrato de Frida......................................................................... 37 Figura 13 Retrato de Frida......................................................................... 37 Figura 14 Retrato de Frida......................................................................... 37 Figura 15 Retrato de Frida......................................................................... 37 Figura 16 Retrato de Frida......................................................................... 38 Figura 17 Retrato de Frida......................................................................... 38 Figura 18 Retrato de Frida......................................................................... 38 Figura 19: Frida vestida de Homem............................................................ 39 Figura 20: Frida vestida de homem............................................................ 39 Figura 21: Autorretrato, 1948...................................................................... 40 Figura 22: Autorretrato como Tehuana ou Diego no Meu pensamento ou Pensando em Diego, 1943........................................................ Figura: 23 40 Diego e Frida 1929-1944 (I) ou Retrato Duplo, Diego e Eu (I), 1944.......................................................................................... 49 Figura 24: Retablo, por volta de l943.......................................................... 51 Figura 25: O Hospital Henry Ford ou A Cama Voadora, 1932................... 52 Figura 26: Autorretrato com o Retrato do Dr. Farill, 1951........................... 55 Figura 27: Autorretrato dedicado ao dr. Eloesser, 1940............................. 56 Figura 28: O Marxismo Dará Saúde aos Doentes, 1954............................ 57 Figura 29: Frida e Estaline ou Autorretrato com Estaline, 1954................. 58 Figura 30: Uns Quantos Golpes, 1935....................................................... 62 Figura 31: Pensando na Morte,1943.......................................................... 64 Figura 32: Modelo de Field......................................................................... 68 Figura 33: Quadros fílmico – imagens de 1 a 16........................................ 69 a 73 Figura 34: Sequência da viagem de Diego e Frida..................................... 79 Figura 35: Mostrando a passagem do tempo............................................. 79 e 80 Figura 36: Sequência dos quadros fílmicos de Frida na cama................... 80 e 81 Figura 37: Animação - “Meu vestido está pendurado ali”........................... 83 Figura 38: A casa de Frida.......................................................................... 83 e 84 Figura 39: Acidente de Frida....................................................................... 85 Figura 40: Frida no hospital........................................................................ 85 Figura 41: Frida no espelho........................................................................ 86 Figura 42: Sequência de quando Frida procurou Diego............................. 86 e 87 Figura 43: Diego Rivera no Hospital........................................................... 87 Figura 44: Diego Rivera e Rockfeller.......................................................... 89 Figura 45: Sequência de quadros fílmico da capilla Riveriana com o afresco Cântico à Terra e aos que Trabalham e Libertam, Diego Rivera, 1926 -1927.......................................................... Figura 46: 90 Vista da nave, da cúpula, de algumas paredes pintadas por Rivera. Cântico à Terra e aos que Trabalham e Libertam, Diego Rivera, 1926 1927........................................................... 90 Figura 47: Capela Sistina, Michelangelo, 1508 -1512................................ 91 Figura 48: Teto da Capela Sistina, Michelangelo, 1508 -1512................... 92 Figura 49: Cena do cemitério...................................................................... 94 Figura 50: O Dia dos Mortos....................................................................... 94 Figura 51: Cenas de proteção a Trotsky..................................................... 96 Figura 52: As tias de Frida.......................................................................... 96 Figura 53: A morte e a representação em contra-plongée......................... 97 Figura 54: O ateliê de Diego e Frida........................................................... 98 Figura 55: Separação de Frida e Diego...................................................... 99 Figura 56: Frida na prisão........................................................................... 100 Figura 57: Cenas do vernissage de Frida................................................... 101 Figura 58: Frida em contra-plongée............................................................ 102 Figura 59: Frida em passeata pelo partido comunista................................ 103 Figura 60: Frida posando como modelo para Diego, vestida de “camarada”................................................................................ Figura 61: Frida vestida de noiva para seu casamento como índia mexicana................................................................................... Figura 62: 103 103 Frida fumando pensativa sentada em uma poltrona quando esteve nos Estados Unidos....................................................... 103 Figura 63: Frida e Diego no dia do casamento........................................... 103 Figura 64: Frida almoçando com Diego Rivera na cozinha da casa azul... 103 Figura 65: Frida no hospital divertindo-se com crianças............................ 103 Figura 66: Frida aconselhando Diego......................................................... 104 Figura 67: Frida e sua criada...................................................................... 104 Figura 68: Frida posando como modelo para capa da revista Vogue........ 104 Figura 69: Casa azul onde viveu Frida Kahlo............................................. 106 Figura 70: Frida e Diego na segunda lua-de-mel....................................... 107 Figura 71: Série de panorâmicas do filme Frida nas pirâmides.................. 108 Figura 72: Quadro fílmico do desenho que Diego fez para Frida representando uma pomba e um sapo enorme........................ 110 Figura 73: Frida no dia se de seu casamento............................................. 112 Figura 74: As duas Fridas, 1939................................................................. 112 Figura 75: Frida com sua criada................................................................. 112 Figura 76: Frida apresentando-se à Diego................................................. 112 Figura 77: Quadros filmicos com Lupe levantando as próprias saias e as de Frida para comparar as pernas de ambas........................... 113 Figura 78: Lupe ensinando Frida a cozinhar.............................................. 113 Figura 79: Autorretrato com vestido de veludo, 1926................................. 114 Figura 80: Quadros fílmico do primeiro beijo com Diego............................ 115 Figura 81: Autorretrato, 1938...................................................................... 117 Figura 82: Sequência dos quadros fílmicos do acidente de Frida.............. 122 e 123 Figura 83: Quadro fílmico da animação de caveiras e olhos com caveira. 124 e 125 Figura 84: Sequência dos quadros fílmicos no hospital............................. 126 Figura 85: Pai de Frida preparando o Cavalete para que ela começasse a pintar e Frida pintando seu retrato mirando-se em um espelho, colocado no dossel de sua cama............................... Figura 86: 128 Quadros fílmico da sequência de Alejandro. Tomada de câmera única e continua............................................................ 129 e 130 Figura 87: Sequência do assassinato de Trotsky....................................... 131 e 132 Figura 88: Cena da festa do casamento de Frida e Rivera........................ 133 Figura 89: Sequência dos quadros fílmicos de Frida cortando cabelos..... 134 Figura 90: Autorretrato com Cabelo Cortado, 1940.................................... 135 Figura 91: Página do diário de Frida com os dizeres em inglês na obra fílmica (à esquerda) e com os dizeres em espanhol no diário original (à direita)....................................................................... 137 Figura 92: Frida na cama com a perna amputada...................................... 138 Figura 93: Sequência fílmica: La columna rota.......................................... 139 Figura 94: Sequência em que lágrimas reais escorrem da tela enquanto Frida pinta.................................................................................. 140 Figura 95: Cadeira de rodas de Frida......................................................... 140 Figura 96: Quadros fílmicos da morte de Frida.......................................... 141 e 142 Figura 97: Trecho da música, pintado na parede, tirado da obra Autorretrato com Cabelo Cortado............................................. 144 Figura 98: Página do diário de Frida........................................................... 145 Figura 99: El sueño, 1940........................................................................... 147 Figura 100: Quarto de Van Gogh, 1889........................................................ 147 Figura 101: O pássaro azul........................................................................... 148 Figura 102: Autorretratos com Macacos, 1943............................................. 150 Figura 103: Autorretrato, 1930...................................................................... 155 Figura 2: Autorretrato com Trança, 1941 Fonte: Kettenmann, 1994 SUMÁRIO: Introdução...................................................................................................................... 16 1. Construção do mito................................................................................................. 22 1.1. O poder de Frida................................................................................... 22 1.2. Trajes do trágico.................................................................................... 33 1.3. Dois acidentes graves........................................................................... 45 1.4. Quadros votivos.................................................................................... 50 1.5. Identidade nacional............................................................................... 59 2. Narrando Frida por quadros em movimentos.......................................................... 65 2.1. A passagem do tempo.......................................................................... 78 2.2. Posições de câmera revelam a personagem........................................ 85 2.3. Locações mexicanas............................................................................. 105 2.4. O sapo e a pomba................................................................................. 110 3. A simbiose da vida e da arte................................................................................... 118 3.1. O acidente e suas sequelas.................................................................. 121 3.2. Efeitos especiais................................................................................... 130 3.3. Trilha sonora......................................................................................... 143 3.4. As cores de Frida.................................................................................. 144 Considerações finais..................................................................................................... 151 Referências................................................................................................................... 156 1. Bibliográficas.......................................................................................... 156 à 159 2. Periódicos............................................................................................... 159 3. Documentos eletrônicos........................................................................ 160 Anexo 1......................................................................................................................... 161 Anexo 2......................................................................................................................... 162 Figura 3: Autorretrato com Colar de Espinhos, 1940 Fonte: Kettenmann, 1994 INTRODUÇÃO As concepções artísticas, de um modo geral, costumam apresentar formas singulares de expressão do íntimo humano, revelando seus diversos matizes emocionais. Permitem refletir sobre diversos aspectos que são comunicados pelo seu autor, ao mesmo tempo, intrigam e despertam sentimentos. Conhecer a vida de um artista envolve diversos estudos e pesquisas sobre circunstâncias peculiares de sua trajetória. Frida Kahlo como mulher e intelectual, atuou em lutas políticas pelo socialismo no México. A convivência com artistas de vanguarda de sua época, a relação amorosa conturbada com o pintor Diego Rivera e a construção de sua própria imagem já mereceram muitos escritos especializados; mas Frida ainda estava resguardada do grande público. Na última década, a pintora caiu nas redes globais da mídia. Passou a ser conhecida e valorizada. Sua imagem com trajes indígenas mexicanos, com sobrancelhas grossas e olhar penetrante é um dos ícones da arte do século 20. Personagem de biografias, estudos estéticos e até psicanalíticos, Frida só explodiu nos meios de comunicação depois da cinebiografia estrelada por Salma Hayek no papel principal. O filme Frida, dirigido por Julie Taymor, lançado no Brasil em 2003, trouxe a pintora mexicana para a berlinda. Pessoas comuns passaram a comentar a seu respeito, em especial sobre o amor dela por Diego. Na maioria das vezes, a perspectiva das observações recai sobre a história dramática de Frida, deixando sua arte para segundo plano. Frida, mulher, latino-americana, deficiente física e artista plástica fez um mito de si mesma? De que modo ela reaparece em nosso contexto contemporâneo, e como as pessoas recebem suas mensagens? O filme de Taymor reforça e reitera a imagem da mulher oprimida do México, que por extensão, evoca as mulheres que se identificam com a personagem? 17 A metodologia empregada foi a partir da abordagem fenomenológica hermenêutica, utilizou-se de levantamento bibliográfico e cinematográficas, fazendo uso do método comparativo. Na tentativa de buscar possíveis respostas para este trabalho, apoiou-se em autores que auxiliam a discussão no âmbito da comunicação, das artes, da moda, da literatura, da antropologia e até da história. É extensa a lista de teóricos que auxiliaram na realização e sustentação deste trabalho, sem o qual não teria sido possível, alguns tiveram destaque maior. Como: Campbell e Eliade para falar do mito; Freire sobre a questão do oprimido; Chevalier e Guimarães ofereceram teoria sobre de símbolos e cores; Aristóteles, Gancho e Cabral, quanto à narrativa; Field e Martin, sustentam teorias cinematográficas; Cortez, Morais e Mota, na história do México; Gömbrich, Chilvers, Gibson e Wölfflin para auxiliarem na análise das obras de arte de Frida Kahlo. Quando o assunto a tratar é mídia; MartinBarbero e Thompson foram uma ajuda importante. Kettenmann e Herrera com a biografia definitiva de Frida Kahlo, foram constantemente consultado. Explora-se nesta dissertação as obras de três mulheres como elementos de ligação transdiciplinar, acompanhando a transcodificação da tinta da tela para o texto impresso, que é depois traduzido por imagens em movimento. Para dar conta de três linguagens diferentes, recorreu-se a diferentes olhares: 1º - Frida Kahlo, protagonista de uma linguagem visual pictórica, comunica não só uma mensagem autobiográfica, mas simboliza os conflitos da mulher do século XX. 2º - Haydem Herrera, que transcodifica essa linguagem visual de Frida juntamente com diversos documentos e depoimentos coletados para uma obra literária biográfica “Frida: Una biografía de Frida Kahlo”; e, por fim, 3º - Julie Taymor, que, juntando e adaptando a obra pictórica de Frida com a obra literária de Herrera, expõe os acontecimentos, usando a linguagem cinematográfica, que narra a história de amor entre dois artistas plásticos mexicanos: Frida Kahlo e Diego Rivera, um casal controverso, em meio a separações e reconciliações. O filme de Taymor leva às telas cinematográficas a história de Frida Kahlo, tendo como protagonista a atriz Salma Hayek, que desde os 12 anos de idade ambicionava interpretar a famosa pintora. A película conta com a participação de um grande elenco 18 com Alfred Molina, no papel de Diego Rivera, Geoffrey Rush, como Leon Trotsky, Antonio Banderas, interpretando o muralista Siqueiros, Ashley Judd como a fotógrafa Tina Modotti e a atuação de Edward Norton no papel de Nelson Rocckfeller. Vencedor de dois Oscars: trilha sonora e melhor maquiagem, a trilha foi composta por Elliot Goldenthal, responsável pela amarração sonora do longa-metragem, que conta com a participação de Caetano Veloso, Lila Downs e Chavela Vargas. A maquiagem é de John E. Jackson e Beatriz De Alba. Com duração de 123 minutos, o drama foi lançado nos Estados Unidos, em 2002, pela produtora Miramax Films, realizado inteiramente no México em 2001. Ao contrário de muitos artistas, Frida não começou a pintar por vocação, mas por necessidade. Depois de um grave acidente de trânsito, quando tinha apenas 17 anos de idade - devido a problemas financeiros acarretados por este fato - a alternativa encontrada para ajudar os pais, foi a pintura. Anos mais tarde, casa-se com o muralista Diego Rivera, que a levou por uma vida de sofrimentos, devido a inúmeros casos fora do casamento, inclusive com Cristina, irmã de Frida. Na narrativa que se desenrola no filme, Frida tem um caso amoroso com Leon Trotsky, em um período em que o casal dá abrigo ao russo e sua esposa, perseguidos por Stalin. Trotsky é assassinado e Frida é presa e interrogada, para se descobrir o paradeiro de Diego. É quando sofre gangrena tendo os dedos de um dos pés amputados. Depois ficara dependente de morfina e impossibilitada de andar, pois teria também uma das pernas amputadas. Frida faz a última aparição em público na inauguração de sua exposição, indo ao vernissage deitada e carregada em sua própria cama. Nesse evento, Diego - comovido - reconhecerá a artista e companheira como o maior acontecimento de sua vida. Ela entrega de presente para Diego um anel pelos seus 25 anos de casados. Rivera fica sem entender o fato, sendo que faltavam ainda duas semanas para completar as bodas de prata. Mas a artista sabia de algum modo que não lhe restava muito tempo de vida. Frida morre nesta mesma noite. É este o enredo do filme baseado na obra de Hayden Herrera “Frida: Una biografia de Frida Kahlo”. 19 Ela fazia a leitura de seu próprio universo, mas também identificava seu mundo interior e particular com o mundo exterior, ou seja, o México oprimido. Ela também tinha seus opressores pessoais, no caso a morte sempre à espreita, a dor sempre constante, a poliomielite que já lhe dera um golpe ainda criança, deixando-a marcada pelo resto da vida, além do amor doentio e obsessivo que sentia por Diego Rivera. Esses fantasmas de Frida também são uma constante na vida do ser humano: a morte, o sofrimento emocional e a dor física. Esse trabalho dissertativo estrutura-se em três capítulos organizados da seguinte maneira: O primeiro capítulo traz as investigações sobre as maneiras com as quais Frida constrói um mito de si mesma. Desnuda a imagem da artista, vista por ela mesma e pelos outros, sua capacidade de comunicar conceitos, valores e ideias, por meio de suas obras e de seus trajes indígenas; revela, ainda, como sua história e sua dor se confundem com a do México. Trata dos dois graves acidentes ocorridos com a pintora e mostra como ela passa pelo mito do herói para renascer. São feitas breves análises sobre algumas obras pictóricas de Frida como, por exemplo, os quadros votivos. Nesse capítulo encontra-se também demonstrado como Diego torna-se motivo de suas obras. O segundo capítulo demonstra as transcodificações do filme de Julie Taymor a partir da obra literária e pictórica. Traz a análise dos posicionamentos de câmera para uma linguagem própria dentro de uma narrativa fílmica e o uso de tomadas em plongée e contra-plongée, que denotam o olhar do oprimido e do opressor, evidenciando o relacionamento de Frida e Diego. Destaca-se ainda a utilização de outros recursos para pontuar a passagem do tempo e o tratamento que foi dispensado no uso das locações mexicanas. O terceiro capítulo estuda o acidente de Frida e suas consequências. Vê-se também o uso da animação e de efeitos especiais como recurso para transformar obras pictóricas em verdadeiros quadros vivos, fazendo como diz Trigo (2009), crítico de cinema, a simbiose entre vida e arte. Analisa-se o uso simbólico das cores de Frida e como se adaptaram na produção cinematográfica. Examinam-se as sequências de quadros fílmicos para perceber que a diretora arquiteta a mensagem textual, visual e 20 sonora com o propósito não só de informar, mas, acima de tudo, emocionar o espectador. As interpretações feitas aqui; não esgotam as possibilidades de leituras das obras, objetos de estudo, mas oferecem um novo olhar que permite enveredar-se por diversas perspectivas, uma vez que a obra está sempre aberta. 21 Figura 4: Autorretrato com Cabelo Solto, 1947 Fonte: Kettenmann, 1994 CAPÍTULO 1 1 A construção do mito O primeiro capítulo é a base para o desenvolvimento dos capítulos seguintes. Faz-se aqui uma leitura fundamental da imagem como objeto simbólico de comunicação na criação do mito e, de que maneira, a artista Frida Kahlo trabalhou tais elementos da imagem na busca da identidade e significados de sua obra. 1.1 O poder de Frida Falar de Frida Kahlo é o mesmo que contar uma lenda que irá ensinar algo de valioso para a vida. O exemplo de luta e coragem diante dos ditames do destino e dos entraves que ele insiste em colocar no caminho. Frida encontrou um meio de dar sentido a sua vida: a pintura. Sua obra ilustra a dor e o vazio de seu mundo particular e solitário, de forma tão real e crua que hipnotiza e chega causar incômodo. A obra de Frida Kahlo, cerca de mais de 200 telas, é totalmente biográfica. Foi escolhida parte destas obras para melhor elucidar sua história que, na verdade, se mistura com a história do México. Criando assim um belo tecido; uma trama feita de fios de seda e fios rústicos com nós e defeitos, resultando assim, em um belo xale. Mergulhar na obra de Frida é experimentar o privilégio de acompanhar o seu desenvolvimento passo a passo e o seu amadurecimento como artista e como pessoa, pois de certa forma, toda a trajetória de sua vida é documentada em suas pinturas. De alguma maneira, somos intimados pelo olhar retratado em suas telas e, em um dado momento, somos colhidos por certa identificação com a obra. 23 Figura 5: Autorretrato, 1940 Fonte: Herrera, 1998 Figura 6: Autorretrato com mono y perico, 1942 Fonte: Herrera, 1998 A artista olha para o espectador de retrato a retrato, e resulta desconcertante: parece querer algo do observador. Há uma urgência muito peculiar em relação ao seu desejo por ser vista e conhecida. O poeta surrealista1 André Breton disse, certa vez, sobre a arte de Frida: [...] “uma fita que envolve uma bomba” (t.n.)2, tamanha eram a intensidade, a força e energia que emanavam de sua pintura. André Breton classifica Frida como sendo Surrealista, classificação que ela rechaça veemente ao descrever: “Surrealismo é abrir a porta do guarda-roupa e encontrar um leão, onde deveriam se encontrar camisas” e acrescenta “nunca pintei sonhos, pinto o que vivi”. (HERRERA, 2007, p.295). Motivo pelo qual Frida Kahlo não pode ser considerada surrealista, uma vez que os surrealistas tendiam a resolver os problemas em conjunto, pois eles tinham um forte sentimento de grupo. (KLINGSÖHRLEROY, 2004). No entanto, a obra de Frida é muito individual, tudo calculado cuidadosamente: cada objeto, cada cor, cada pincelada; nenhum detalhe ali está colocado aleatoriamente. Tudo parece ter sido estudado anteriormente e, tendo um significado premeditado, também nos relata um fato vivido por ela. Sua pintura não é o 1 Surrealismo, s.m. Puro automatismo psíquico, por meio do qual se pretende expressar, verbalmente ou por escrito, o verdadeiro funcionamento do pensamento. O pensamento ditado na ausência de todo o controle exercido pela razão, e à margem de qualquer preocupação estética ou moral (STANGOS, 2000, p.91). 2 [...] “una cinta que envuelve una bomba” (HERRERA, 1998, p.3). 24 produto de uma cultura europeia desiludida, buscando uma saída dos limites impostos pela lógica, mediante a sondagem do subconsciente. Em lugar disso, a fantasia de Frida é resultado de seu temperamento, vida e condição; representa uma maneira de adaptar-se à realidade, e não de passar desta para outra esfera. Seu simbolismo quase sempre é autobiográfico e relativamente simples. A magia de sua arte não tem origem em relógios que se derretem, se destina ao que as imagens significam com certa eficácia, como acontecem com os ex-votos: deviam emocionar a vida. Frida explorou a surpresa e o enigma da experiência imediata e das sensações reais. Por várias vezes, houve citações no livro de Haydem Herrera (2007) a respeito da obra de Frida, que apontava como tendo um cunho popular ou primitivo/naïf, outras vezes como simbolista, ou até mesmo como a classificou certa vez Rivera: ela seria realista. Conceituando esses estilos, talvez possamos entender melhor essas classificações. Assim o artista Naïf é nitidamente individualista em suas manifestações mais legítimas, muito embora até nesses casos, seja invariavelmente possível descobrir-lhe a origem de inspiração ou motivação na iconografia popular das ilustrações de antigos livros, das festinhas em subúrbios ou das imagens de santos. Não se trata, portanto, de uma criação totalmente subjetiva, sem nenhuma referência cultural. Neste ponto, vale dizer que Frida era uma mulher que tinha essa referência cultural muito forte em seu âmago. O artista naïf não se preocupa em preservar as proporções naturais nem os dados anatômicos corretos das figuras que representa. Com uma maneira muito particular de pintar, Kahlo deixa registradas em suas telas todas as situações ocorridas em sua vida, descritas por meio de símbolos. O objetivo do simbolismo era a resolução do conflito entre os universos, material e espiritual. Na medida em que os poetas simbolistas viam a linguagem poética, sobretudo como expressão simbólica de uma vida interior, exigia-se dos pintores que dessem expressão visual ao que é místico e oculto. E, assim como os poetas viam uma íntima correspondência entre o som e o ritmo das palavras que empregavam e seu significado, também os pintores simbolistas pensavam que a cor e a linha em si mesmas podiam exprimir ideias. (CHILVERS, 2007, p.493). 25 Figura 8: A cama de Frida Kahlo com esqueleto preso ao dossel. Fonte: Kettenmann, 1994 Figura 7: Recordação ou O coração, 1937 Fonte: Kettenmann, 1994 Ela pintou a si mesma com o corpo aberto, chorando junto a seu coração que havia sido extraído (figura 7), esvaindo em sangue durante um aborto, e anestesiada em uma cama de hospital, dormindo com um esqueleto (figura 8), e sempre – e ainda quando aparece junto a seus mascotes e esposo, o 3 muralista Diego Rivera – se mostra dolorosamente solitaria (t.n.) . Oprimida, Frida buscava uma saída. “Os oprimidos só começam a desenvolverem-se quando superam a contradição em que se acham, se fazem “seres para si” (FREIRE, 2009, p.184). Kahlo disse em certa ocasião: “Retrato a mim mesma porque passo muito tempo sozinha e sou o assunto que melhor conheço” (t.n.)4. E ela teve muito tempo para conhecer a si mesma. Quando tinha dezessete anos, um trólebus (ônibus elétrico) bateu no bonde em que ela viajava da escola para casa, deixando-a parcialmente inválida. Enquanto a artista se recuperava do acidente, começou a pintar e, desde o primeiro auto-retrato, feito diante de um espelho, já revela uma autoexploração de sua imagem assim como uma súplica por atenção (HERRERA, 1998). 3 Ella se pintó a si misma agrietada, llorando junto al corazón que le há sido extraído, desangrándose durante un aborto, anestesiada en una camilla de hospital, durmiendo con un esqueleto, y siempre – aun cuando aparece junto a sus mascotas o a su esposo, el muralista Diego Rivera - se muestra dolorosamente sola. (HERRERA, 1998, p.3) 4 “Me retrato a mi misma porque paso mucho tiempo sola, porque soy el motivo que mejor conozco” (HERRERA, 1998, p.3) 26 Na obra literária Frida – Una biografia de Frida Kahlo, de Haydem Herrera (2007), fala-se muito da artista como sendo uma lenda, um mito, o que leva de certa forma a buscar repostas para alguns questionamentos que apareceram. Por que Frida tornara-se um mito? Como aconteceu? O que é um mito? No livro de Joseph Campbell (2008), O poder do mito, é possível encontrar algumas respostas muito esclarecedoras em relação à história de Frida. Porém, antes de prosseguir este estudo com Campbell, observam-se algumas considerações sobre a retrospectiva de Frida, feitas por Herrera. No outono de 1977, o governo mexicano dedicou uma exposição retrospectiva da obra de Frida Kahlo na maior e mais prestigiada Galeria do Palácio de Bellas Artes. Foi uma homenagem estranha, porque parecia celebrar a personalidade exótica e a história da artista, mais do que honrar sua arte. Nas grandiosas salas com pés-direitos altíssimos, dominaram as enormes fotografias ampliadas de alguns incidentes de sua vida. Os quadros, no entanto, eram como joias e pareciam pontuar a exposição. Sem dúvida, ao final triunfou a arte, a lenda que Frida criou dela mesma. Devido aos quadros serem tão pequenos, em relação às fotografias e ao espaço total da exposição, o espectador deveria estar a menos de um metro de cada obra para poder vê-la melhor. A essa distância, o estranho magnetismo dos quadros exercia sua força de atração. Baseados em diferentes momentos-chave de sua vida, cada um era como um grito abafado, o núcleo de emoção tão denso, que parecia estar a ponto de explodir. Os quadros reduziam os painéis fotográficos, montados em uma estrutura arquitetônica no centro da sala, a algo tão precário e pouco estável como uma casa de cartas de baralho. Com certeza era uma concorrência desleal, mesmo sendo imenso o tamanho das fotografias, era a fotografia de Frida concorrendo com a alma de Frida, que estava na verdade, no âmago de suas obras. Frida se alegrava muito por ter deixado tantas recordações. E foi ela uma das criadoras de sua fabulosa lenda de pessoa intrinsecamente complicada e consciente de si mesma. Seu mito é cheio de tangentes, ambiguidades e contradições, como é verificado em Herrera (2007). Por isso um vacilo em revelar os aspectos de sua realidade poderia destruir a imagem que ela criou de si mesma. Sem dúvida, a verdade 27 não dissipa o mito. Inclusive, depois de examinar, observar com cuidado a história de Frida, segue tão extraordinária como é sua fábula. Diego Rivera demonstra um grande fascínio pela imperfeição. Sendo esse fato constatado no filme Frida (EUA, 2002) da diretora Julie Taymor, quando o muralista declara amar as imperfeições e cicatrizes de Frida, causada por doenças, pelo acidente e constantes sequelas que a artista sofreu durante sua vida. Campbell (2008) também revela que ama as pessoas por suas imperfeições. Segundo ele, as crianças são adoráveis porque caem a todo instante e porque têm o corpo pequeno e a cabeça grande. Seria desumano. O umbilical, a humanidade, aquilo que se faz humano e não o sobrenatural e imortal – isso é adorável. É por essa razão que algumas pessoas têm dificuldade em amar a Deus; nele não há imperfeição alguma. Você pode sentir reverencia, mas isso não é amor. É Cristo na cruz que desperta nosso amor. Quando ele se faz homem e habita entre nós, quando ele se faz humano, com nossas imperfeições, sofre dores, humilhações, conseguimos despertar para esse amor a Deus, porque existe uma identificação nossa com ele. Sofrimento, Sofrimento é imperfeição. A história do sofrimento humano, a luta, a vida... (CAMPBELL, 2008, p. 5) Com o passar do tempo, o sofrimento e o papel de vítima heroica se converteu em parte integrante do caráter de Frida: a máscara se converteu em seu rosto. A dramatização da dor se tornou mais importante para a imagem de si mesma, pelos exageros dos acontecimentos lastimosos do passado. Declarou por exemplo, que havia passado três meses no hospital da Cruz Vermelha em vez de um. Ela criou para si mesma uma personalidade que foi bastante forte para suportar e sobreviver aos golpes que a vida lhe acertava, tendo ainda que transformar seu desolado mundo particular. Segundo Eliade (2007), o mito é o último estágio no desenvolvimento de um herói, pois, a lembrança de um personagem real ou de um fato histórico perdura na memória popular, no máximo, por um período de dois ou três séculos. “E isto porque a memória popular encontra dificuldade em guardar a imagem de acontecimentos individuais e figuras reais. As estruturas por meio das quais ela funciona são diferentes: categorias, ao invés de episódios, arquétipos, em lugar 28 de personagens históricos. Um personagem histórico se confunde com seu modelo mítico (herói, etc.), enquanto que o evento acaba sendo identificado com a categoria de ações míticas (luta contra um monstro, irmãos inimigos, etc.)” (ELIADE, 2007, p.43 e 44). Tanto a força como a insistência no sofrimento impregnam os quadros de Frida. Quando se representa machucada e chorando, equivale à ladainha das feridas morais e físicas, a chamada de atenção, que enchem suas cartas. Sem dúvida, inclusive o mais doloroso dos seus autorretratos, não é piegas nem manifesta lástima de si mesma. Sua dignidade e determinação de “aguentar” se fazem presentes em seu majestoso porte e em seu semblante estoico. Esta mescla de fraqueza e artifício, de integridade e invenção de si mesma, dá aos seus autorretratos sua urgência particular e inflexível força, características reconhecíveis de imediato. Figura 9: A Coluna Partida, 1944 Fonte: Kettenmann, 1994 Entre todos os quadros de Frida, o que exemplifica essas qualidades com mais intensidade é A Coluna Partida (figura 9) pintado em 1944, pouco tempo depois de sofrer uma intervenção cirúrgica que a deixou presa em um “aparato”, do mesmo modo que em l927. 29 A impassibilidade decidida de Frida cria uma tensão quase insuportável, uma sensação de paralisia. A angústia cobra vida pelos pregos que perfuram seu corpo nu. Uma brecha, parecida com a greta causada por um terremoto, separa seu dorso, cujas duas partes se mantêm unidas pelo colete ortopédico de aço que simboliza o confinamento de um inválido. O corpo aberto indica a cirurgia sofrida e a sensação que Frida tem, literalmente, que cairia em pedaços sem o colete de aço. Dentro do dorso se vê uma coluna jônica quebrada, em lugar de sua própria espinha dorsal deteriorada: a vida substituída por uma ruína. A coluna afiada cruelmente invade a greta vermelha do corpo de Frida desde os flancos até a cabeça, onde um capitel de duas volutas apóia o queixo. Segundo alguns observadores, a coluna é parecida com um falo e alude ao vínculo existente na inteligência da artista, entre o sexo e a dor, ao recordar a barra de aço que atravessou sua vagina no acidente. Em uma anotação desarticulada em seu diário Frida disse: “Esperar com angústia guardada, a coluna quebrada, e o infinito olhar, imóvel, no extenso caminho... levando minha vida cercada de aço” (t.n.) 5. As tiras brancas do colete, com presilhas de metal, acentuam a delicada vulnerabilidade dos seios nus de Frida, cuja beleza perfeita torna ainda mais terrível a fenda brutal de seu corpo, desde o pescoço até os flancos; com os quadris envoltos em um tecido, os quais evocam os lençóis enrolados em Cristo, a pintora exibe suas feridas como um mártir cristão; como um são Sebastião mexicano. Utiliza a dor física, a nudez e a sexualidade para comunicar a mensagem de seu sofrimento espiritual. Sem dúvida, Frida não é nenhuma santa. Valoriza sua situação com agressivo materialismo, em lugar de implorar consolo ao céu. Dirige seu olhar fixamente ao longe, como se quisesse desafiar a si mesma (em um espelho), e ao público, para fazer frente ao seu apuro sem alterar-se. Lágrimas salpicam de seu rosto, do mesmo modo como em tantas representações mexicanas de La Madona, porém, seu rosto se nega a chorar, formando uma máscara tão impávida como as feições de um ídolo indígena. Para sugerir a solidão do sofrimento físico e emocional, Frida se retrata isolada, diante de um imenso e árido plano. Barrancos dividem a paisagem, uma metáfora de seu corpo ferido, como o deserto, privado da capacidade de criar vida. Ao longe, 5 “Esperar con la angustia guardada, la columna rota, y la inmensa mirada, sin andar, en el vasto sendero... moviendo mi vida cercada de acero” (KAHLO, 2008, p.273). 30 debaixo de um céu sem nuvens, nota-se uma faixa de mar azul, que parece encarnar a esperança de outras possibilidades. Porém, a artista se encontra tão debilitada, que está completamente fora de seu alcance tais probabilidades. É relevante observar a existência de uma narrativa simbólica em forma de pintura nessa obra de Frida; que vem reforçar a questão do mito sendo pertinente citar o comentário de Moyers com Campbell (2008, p.5): [...] vim a compreender que aquilo que os seres humanos têm em comum se revela nos mitos. Mitos são histórias de nossa busca da verdade, de sentido, de significação, através dos tempos. Todos nós precisamos contar nossa história. Frida está muito próxima das vontades, dos desejos das pessoas de felicidade e de sentido da existência. Ela acaba por se tornar um modelo, para muitos oprimidos, a respeito de como suportar a dor e olhar de frente o sofrimento, não fugir, cair e levantar, porque isso faz parte do ser humano e todos precisam de modelos (mitos) para dar força e coragem para prosseguir a jornada. “Quando se torna modelo para a vida dos outros, a pessoa se move para uma esfera tal que se torna passível de ser mitologizada.” (CAMPBELL, 2008, p.16). Isto é muito comum acontecer com ídolos de cinema, a partir dos quais se criam muitos dos modelos a serem seguidos pelos cinéfilos. Ao se pesquisar mito em um dicionário, encontra-se a definição de história sobre deuses, mas esta resposta nos leva a perguntar que é um deus? E assim: Um deus é a personificação de um poder motivador ou de um sistema de valores que funciona para a vida humana e para o universo – os poderes de seu próprio corpo e da natureza. Os mitos são metáforas da potencialidade espiritual do ser humano, e os mesmos poderes que animam nossa vida, animam a vida do mundo. (CAMPBELL, 2008, p.24) Frida cria uma metáfora do México, dos nativos, dos deuses mexicanos, por meio de seus trajes, de suas obras e de suas feridas físicas, morais, espirituais, com os quais o povo mexicano é capaz de se identificar, criando um vínculo que a mitifica. 31 Em uma exposição ocorrida em 02 de novembro de 1978, a Galería de la Raza en Mission inaugurou sua própria “homenagem a Frida Kahlo” para celebrar o dia dos mortos, um dos dias mais festivos e importantes no México. Sua pessoa foi representada como heroína política e combatente revolucionária, mulher sofrida e sem filhos, esposa maltratada e “Ofélia Mexicana”. Uma artista (sem referência ao nome) que estava presente e que reverenciava a pintora comenta: “Para as mexicanas, Frida, personifica todo o conceito da cultura. Nos inspira. Suas obras não manifestam lástima de si mesma, mas sim, força.” (t.n.)6 A data de 1910, na realidade, não coincide com a data do nascimento de Magdalena Carmem Frida Kahlo y Calderon. Ela a escolheu por ser o inicio da Revolução Mexicana7, [...] “visto que foi filha da década revolucionária, período em que nas ruas da cidade do México dominava o caos e o derramamento de sangue, decidiu que ela e o México moderno haviam nascidos juntos” (t.n.)8 Além de ser filha da revolução, e na verdade ter nascido em 6 de julho de 1907, Frida era filha também de Guillermo Kahlo e Matilde Calderón que nos anos da decena trágica ajudaram muitos revolucionários, acolhendo-os em sua casa, dando-lhes o que comer e curando suas feridas. Guillermo Kahlo era alemão e veio para o México ainda muito jovem, casou-se com uma mulher mexicana que morreu quatro anos depois de dar a luz a sua segunda filha. Pelas fotos tiradas de Matilde Calderón, no dia do casamento, não é difícil imaginar porque Guillermo se apaixonou por ela, casando-se logo depois. Era uma mulher de grande beleza. Porém, fica um pouco mais difícil imaginar qual foi o atrativo que a devota Matilde Calderón percebeu em Guillermo 6 “Para las chicanas, Frida personifica todo el concepto de la cultura. Nos inspira. Sus obras no manifestan lástimas de si misma, sino fuerza” (HERRERA, 2007, p.15). 7 A independência da América espanhola está diretamente relacionada com a história Mexicana, pois foi aí, no México e em algumas regiões sul-americanas que surgiram as primeiras manifestações de revolta em 1810. (MORAES, 1998). Durante o período da história do México que vai da Independência política em 1821 até a Revolução Mexicana de l910, foi um país marcado pela instabilidade política, sendo governado por ditadores militares e atrelados ao capital externo. Porfírio Diaz (ditador mexicano) favorecia a entrada de capital estrangeiro para a exploração de recursos minerais e produtos de exportação, assim como era conivente com a concentração de terras nas mãos de latifundiários. Com isso ele ganhou apoio das classes mais abastadas em detrimento de uma população de 11 milhões de indivíduos analfabetos sem instruções básicas. (MOTA; BRAICK, 1997). Os motivos que teriam levado ao movimento revolucionário de 1910 são numerosos e resultaram de um amontoado de frustrações da sociedade mexicana, que vivia em estado de penúria devido às injustiças sociais. Este abismo entre pobres e ricos ainda é marcante na atual sociedade mexicana. (MOTA; BRAICK, 1997 p. 424-5). 8 [...] “y puesto que fue hija de la década revolucionaria, en la que en las calles de la ciudad de México dominaba el caos y el derramamiento de sangre, decidio que ella y el México moderno habían nacido juntos” (HERRERA, 2007, p.20). 32 Kahlo. O emigrante de 26 anos era judeu e sofria de ataques epiléticos. Por outra parte, sua pele branca e sua cultura européia seguramente teriam certo atrativo naqueles dias em que o europeu se considerava superior a todo mexicano. Mas, não era somente isso, pois ele também era inteligente, trabalhador e muito elegante. No entanto, o que interessa é o comentário anterior, em que se podem ver ainda existentes os violentos resquícios do opressor sobre o oprimido povo mexicano, e como o opressor exerce certo fascínio sobre o oprimido. Os valores destes passam a ser a pauta dos invadidos. Quanto (...) mais se acentua a invasão, alienando o ser da cultura e o ser dos invadidos, mais estes quererão parecer com aqueles: andar como aqueles, vestirem à sua maneira, falar a seu modo. O eu social dos invadidos, que, como todo ser social, se constitui nas relações socioculturais que se dão na estrutura, é tão dual quanto o ser da cultura invadida. É esta dualidade, já várias vezes referida que, explica os invadidos e dominados, em certo momento de sua experiência existencial, como um eu quase “aderido” ao tu opressor. (FREIRE, 2009, p.174, 175) Observando-se a história do México, ficam comprovados a desintegração e o desmantelamento de sociedades primitivas, quando sofrem a ação devastadora da civilização do homem branco invasor e então opressor. E Campbell (2008) argumenta que essas sociedades se fragmentam e se tornam enfermas. No livro El Diario de Frida Kahlo: un íntimo autorretrato, Fuentes (2008) narra na introdução que durante o período colonial, o México criou uma cultura mestiça: índios nativos e europeus, barrocos, sincréticos, insatisfeitos. A independência em 1821 libertou o país em relação à Espanha em nome da liberdade, porém não da igualdade. As vidas das grandes massas de índios e mestiços, principalmente camponeses, permaneciam inalteradas. As leis mudaram, mas em nada mudou a vida real das pessoas reais. A separação entre leis ideais e a opressora realidade insistente tornaram o pais ingovernável, deixando-o vulnerável ante a guerra civil e as invasões estrangeiras quase que permanentemente, fazendo do México uma nação desmembrada, mendicante, humilhada, permanentemente ajoelhada ante os credores estrangeiros e os oligarcas saqueadores. Dois traumas ocorreram provocados por 33 estrangeiros: a perda de metade do território nacional para os Estados Unidos em l848, a invasão francesa de l862. A nação deu a resposta a si mesma mediante a revolução Liberal, em caráter de Benito Juarez, e a criação de um Estado Nacional, civil e governado dentro da lei. Porfírio Diaz perverteu a república de Juarez, deu prioridade para o desenvolvimento acima da liberdade, e colocou uma máscara na face do México, proclamando para o mundo: nós somos agora confiáveis, progressivos, modernos. Os exércitos de camponeses de Vila de Pancho e Emiliano Zapata surgiram da terra para dizer não. Quando o povo se levantou em 1910, os deserdados cavalgaram de norte a sul e de sul a norte, comunicando a todos e oferecendo a um país isolado os presentes invisíveis de idioma, cor, música, arte popular; pois com as invasões estrangeiras os mexicanos haviam perdido tudo isso. 1.2 Trajes do trágico Na introdução do El Diário de Frida Kahlo, Carlos Fuentes (2008) diz que só viu Frida Khalo uma única vez. Mas que primeiro a ouviu. Ele estava em um conserto no Palácio de Bellas Artes - no Centro da cidade do México, construído na administração do velho ditador Porfírio Diaz em l905 - um mausoléu de mármore branco. Cita ainda que o aerodinamismo percorria com suas formas curvas, finas, alongadas e brilhando como cobre polido, as escadarias, corrimões, e corredores. Os vidros eram chanfrados enquanto as paredes eram decoradas com os murais violentos e, às vezes, estridentes de Orozco, Rivera, e Siqueiros. Ele descreve todo o auditório como o santuário supremo de Arte Déco, culminando em um magnífico painel de vidro desenhado por Tiffany que ilustra os vulcões que são como os guardiões do vale do México: os vulcões Popocatepetl, e o Iztaccihuatl. Um sutil jogo de luzes permitia ao espectador, durante os intervalos, passar da aurora ao crepúsculo em quinze minutos. 34 Carlos Fuentes narrou tudo isso para dizer que quando Frida entrou no camarote do teatro, todos estes esplendores e distrações ficaram insignificantes. O ruído suntuoso de suas jóias suprimiu os sons da orquestra, porém algo mais que o mero ruído forçou a todos olharem para cima e descobrir a aparição que se anunciava a si mesma com um incrível pulsar de ritmos metálicos para, em seguida, exibir a mulher, que tanto o ruído das joias e o magnetismo silencioso exibiam. Era a entrada de uma deusa asteca, talvez Coatlicue, a deidade de mãe envolta em sua saia de serpentes exibindo seu corpo destruído e suas mãos ensanguentadas, como outras mulheres exibem seus broches. Talvez a própria Mãe da Terra espanhola, a Dama de Elche, arraigada na terra por seu capacete de pedra, seus colares em forma de aro do tamanho de rodas de moinho com pendentes e peitorais que devoram seus seios, os anéis que transformam suas mãos em garras. No período em que morou nos Estados Unidos, Frida não mudou sua maneira de vestir-se. Continuava usando seus trajes de tehuana9 mesmo estando longe do México; assim como ela se apropriou da vestimenta de sua criada nativa para usar no dia de seu casamento, estava fazendo uso do material simbólico e com isso escolhendo uma nova identidade. A apropriação dos materiais simbólicos permite aos indivíduos se distanciarem das condições da vida cotidiana – não literalmente, mas simbolicamente e imaginativamente. Os indivíduos podem conceber, ainda que parcialmente, maneiras de viver e condições de vida totalmente diferentes das que eles experimentam no dia-a-dia. Podem ter alguma concepção de regiões do mundo muito distantes de seus próprios contextos geográficos (THOMPSON, 1998, p.156). As rendas, as barras, os rumorosos saiotes, as tranças, as blusas soltas sem mangas com vistosos bordados, os tocados tehuanos a cobrir e adornar a cabeça, emoldurando como lua esse rosto de borboleta escura, dando-lhe asas. Frida Kahlo diz a todos os presentes que o sofrimento não a faria murchar, nem a enfermidade faria ranço em sua alma e em sua infinita vaidade feminina. Frida comunicava por meio de 9 É a vestimenta proveniente de uma região a sudoeste do México em que as tradições matriarcais ainda hoje sobrevivem e cuja estrutura econômica reflete o papel dominante das mulheres (KETTENMANN, 1994 p.67). 35 suas roupas e, conforme Lurie (1997) relata, por milhares de anos os seres humanos têm usado a linguagem das roupas para se comunicar. Quando vamos a uma festa, reunião ou, simplesmente, estamos andando na rua somos capazes de perceber o sexo, a idade e a classe social de outra pessoa somente observando o que ela está vestindo; assim como possivelmente o indivíduo oferece uma informação verdadeira (ou uma informação falsa) sobre seu trabalho, personalidade, origem, opiniões, gostos, desejos sexuais e humor naquele momento. E fica claro que se a maneira de vestir é uma língua, um idioma, que usamos para nos comunicar de uma maneira não-verbal. Deve ter também um vocabulário especifico, uma gramática, como qualquer outro. O vocabulário das roupas inclui não apenas as peças de roupas, mas também estilos de cabelos, acessórios, jóias, maquiagem e decoração do corpo. Teoricamente, pelo menos, este vocabulário é tão ou mais vasto do que o de qualquer língua falada, visto que inclui cada peça, estilo de cabelo e tipo de decoração do corpo já inventada (LURIE, 1997, p.20). Frida não dispensava nenhuma dessas observações que cita Lurie (1997). Ficava horas a se arrumar, sempre vestida com suas roupas regionais mexicanas, com os cabelos trançados e enfeitados com fitas e laços, com seus colares peruanos que Diego lhe dava de presente e os dedos das mãos cheios de anéis, sem esquecer, é claro, a maquiagem e o batom vermelho sobre os lábios, sempre tão presentes em seus retratos fotográficos que temos a impressão de que eles já nasceram impregnados de carmim. Na história do vestuário, fica claro que o uso da roupa era e é um tipo de diferenciador de classes. Em diversas épocas, as pessoas de classes sociais mais baixas, como os escravos dos palácios andavam quase ou completamente nus. Da mesma forma, ao contrário do que muitos possam acreditar, a localização geográfica assim como o clima não influenciam sempre de forma tão incisiva os usos e tipos de vestimentas. Como exemplo, Laver (1989) esclarece que o vale do rio Nilo não era mais quente que o vale do Eufrates e a roupa egípcia era mais leve do que a dos assírios e babilônios, além das vestes destes serem muito mais ornadas e luxuosas. 36 A vestimenta separa os indivíduos em classes sociais e os converte em oprimidos e excluídos, sendo que esse fato faz a segregação dentro dos próprios grupos sociais. Por muitas vezes, pessoas recebem um pré-julgamento pelas roupas que estão vestindo, assim como só usa determinadas grifes quem tem muito dinheiro para garantir o status social e se diferenciar dentro do grupo que frequenta. Completando essa fala, Lurie (1997, p. 129) acrescenta que: Várias sociedades elaboraram decretos e leis chamadas leis suntuárias, para prescrever ou proibir, enfim definir que estilos poderiam ser usados por determinados grupos, separando-as por seu poder aquisitivo, ou mais especificamente por classes sociais. Frida gostava muito de se adornar, vestir-se com cores fortes, vibrantes e contrastantes, exatamente como era o México. Usava muitas saias, umas sobre as outras, muitos xales, enfim, muitos tecidos a cobrir seu corpo. Pode-se achar estranho, uma vez que o México é uma terra de clima extremamente quente, mas como já foi citado anteriormente, o clima não tem muito a ver com o uso das vestimentas. Alguns escritores modernos acreditam que a ocultação deliberada de certas partes do corpo, originou-se não como uma maneira de desencorajar o interesse sexual, mas como uma estratégia hábil de despertá-lo. Segundo esse ponto de vista, as roupas são o equivalente físico de observações do tipo “tenho um segredo”; são uma provocação, um chamariz. Certamente é verdade que partes da forma humana consideradas sexualmente provocativas são muitas vezes cobertas dessa maneira como que para exagerá-las e chamar atenção. As pessoas embrulhadas e amarradas com laços nos causam o mesmo efeito que um presente de aniversário: ficamos curiosos, excitados, queremos desfazer o embrulho. (LURIE, 1997, p.225). Frida era exímia em esconder o corpo, pois ela tinha um segredo: trinta e poucas cicatrizes que as cirurgias ao longo de sua vida haviam marcado seu corpo e sua alma, e ela fazia uso da vestimenta para cumprir tal intento. A seguir, uma série de retratos fotográficos mostra Frida vestida com trajes típicos enfeitados com rendas, bordados e também usando xales. Mais especificamente na figura 17, ela traja uma legítima vestimenta tehuana. 37 Figura 10 Fonte: Kettenmann, 1994 Figura 11 Fonte: Kettenmann, 1994 Figura 12 Fonte: Kettenmann, 1994 Figura 13 Fonte: Kettenmann, 1994 Figura 14 Fonte: Herrera, 1998 Figura 15 Fonte: Herrera, 1998 38 Figura 16 Fonte: Herrera, 1998 Figura 17 Fonte: Herrera, 1998 Figura18 Fonte: Herrera, 1998 Evidentemente, não foi por brincadeira que escolheu como vestido de casamento a roupa que lhe emprestou uma criada indígena. Ao vestir-se de tehuana, estava escolhendo uma nova identidade, e fez isso fervorosamente como uma religiosa ao aceitar o véu. Quando ainda era uma garota muito jovem, a roupa já equivalia para Frida a uma espécie de linguagem e, desde que se casou, o vínculo intrincado entre a vestimenta e a imagem de si mesma, entre seu estilo pessoal e sua pintura, se converteu em uma das tramas secundarias do drama que começa a 10 desenvolver-se. (t.n.) 10 Aun de muchacha, la ropa equivalía a una especie de lenguage para Frida y, desde que se caso, el vínculo intricado entre la vestimenta y la imagem de sí misma, entre su estilo personal y el de su pintura, se convertió en una de las tramas secundárias del drama que comenzaba a desenvolverse (HERRERA, 2007 p.147). 39 Figura 19: Frida vestida de Homem, a primeira de pé à esquerda com membros de sua família. Fonte: Herrera, 1998 Figura 20: Frida vestida de homem ao centro. Fonte: Kettenmann, 1994 40 Além de seus autorretratos pintados de maneira primorosa, Frida também deixou uma série de fotografias suas e de seus familiares. Entre elas se destaca uma foto da família, onde Frida se apresenta com uma vestimenta nada convencional para uma garota da época, por vestir um traje de homem com um paletó e gravata. Adota uma postura masculina, com uma mão no bolso e uma bengala na outra. Observa-se, em Herrera (2007), que Frida talvez vestisse esta roupa por brincadeira, porém de qualquer forma essa jovem já não era uma menina inocente. Em todas as fotografias ela nos observa com um olhar agudo e desconcertante, cheia de uma mescla de sensualidade e enigmática ironia que reaparece em seus autorretratos. Seu traje feminino preferido era o que usavam as mulheres do estreito de Tehuantepec. Sem dúvida, as lendas contadas influenciaram sua escolha. As mulheres desta região tinham fama pela sua majestosidade, beleza, sensualidade, inteligência, valor e força. Sua sociedade é um matriarcado, onde as mulheres administram os mercados, se encarregam dos assuntos fiscais e dominam os homens. Seu traje é encantador: uma blusa bordada e saia grande e rodada, normalmente de veludo na cor roxa, com um babado de algodão branco preso a bainha. Figura 21: Autorretrato, 1948 Fonte: Kettenmann, 1994 Figura 22: Autorretrato como Tehuana ou Diego no Meu pensamento ou Pensando em Diego, 1943 Fonte: Kettenmann, 1994 41 Entre os acessórios, colares feitos de correntes grossas e compridas cheios de moedas de ouro, os quais integram o dote das jovens, ganhado com muito esforço e usado em ocasiões especiais. Usavam também um adorno de cabeça confeccionado em renda com pregas e um encaixe que fazem parecer uma grande gola em formato de rufo. Às vezes Frida usava trajes de outras épocas e lugares, ou mesclava elementos de diferentes vestidos, criando um conjunto com muito cuidado. Às vezes colocava, por exemplo, sandálias indígenas, ou botas curtas de pele, como as que eram usadas na província no início do século pelas mulheres de soldados que lutavam ao lado de seus homens na revolução mexicana. Às vezes se envolvia em um xale, particularmente para as seções de fotográficas. Em outras ocasiões se vestia com uma manta espanhola de seda, bordada e ornada cuidadosamente. Várias camadas de anáguas, cujas bordas eram bordadas por ela mesma com ditados mexicanos engraçados, que conferiam uma graça e um vaivém especiais à sua maneira de andar. Para Frida, os diferentes elementos de seu vestuário integravam uma espécie de paleta, com base na qual criava todos os dias a imagem de si mesma que desejava presentear ao mundo. As pessoas que tiveram a oportunidade de observar este ritual de vestir-se recordam o tempo e o cuidado gastos tanto com o perfeccionismo quanto com a precisão dos detalhes. Usava os cabelos de diferentes modos para acompanhar suas vestimentas exóticas. Alguns penteados eram típicos de determinadas regiões do país, enquanto ela mesma inventava outros. Gostava muito de jóias, e desde o começo de seu casamento, Rivera lhe dava de presente como se estivesse oferecendo obséquios a uma princesa indígena. Usava de tudo, desde contas baratas de vidro e pesados colares pré-colombianos de jade, até elegantes argolas coloniais e um par de brincos, feito em forma de mãos que lhe presenteou Picasso em 1939. Nos dedos levava uma exposição constantemente trocada de anéis de diferentes estilos e diferentes origens. 42 Decidiu vestir-se de tehuana pela mesma razão porque adotou o “mexicanismo”: agradar a Diego. Rivera gostava deste traje e viajava muito para essa península para pintar seus habitantes, seu trabalho e suas diversões. Agradava ao pintor reforçar o elemento indígena da ascendência de Frida e sentia orgulho de sua autenticidade, força e “primitivismo” comentando certa vez sobre Kahlo: É uma pessoa cujos pensamentos e sentimentos estão livres de qualquer restrição imposta a eles pelo falsas necessidades da conformidade social burguesa. Todas as experiências são profundamente sentidas por ela, pois a sensibilidade de seu corpo não tem sido entorpecida pela excessiva tensão em áreas que desentegrariam estas capacidades inatas... Frida despreza os mecanismos que sempre dispõe de força moral como um organismo primitivo enfrenta as mais intensas e variadas experiências, que a vida apresenta 11 sempre ao seu redor. (t.n.) O vestuário nativo tornava evidente o vínculo com a natureza. Era como uma máscara primitiva que a livrava dos opressivos costumes burgueses. E, supostamente, intervinha também no fator político. Um traje indígena representava uma maneira a mais de proclamar a aliança com a raça. Rivera definitivamente não vacilou em tirar proveito político deste tipo de vestimenta que Frida usava: O clássico traje mexicano foi criado pelo povo e para o povo. As mulheres nativas que não o usam não pertencem ao mesmo, dependem somente do mental e do emocional de um tipo estrangeiro e de que querem fazer parte, ou 12 seja, a grande burocracia norte-americana e francesa. (t.n.) Desde o momento em que se casaram, Frida e Diego começaram a representar papéis importantes no cenário teatral de suas respectivas vidas. Os trajes de tehuana integravam uma parte da criação de Frida por si mesma, como personalidade lendária e 11 Es uma persona cuyos pensamientos y sentimientos están libres de cualquier restricción impuesta en ellos por las necesidades falsas del conformismo social burgués. Todas las experiências son profundamente sentidas por ella, pues la sensibilidad de su organismo no se ha embotado por un esfuerzo excesivo em áreas que desentegrarían esas facultades innatas... Frida desprecia los mecanismos lo cual siempre dispone de la fuerza moral con la que un organismo primitivo hace frente a las experiências más intensas y siempre variadas que le presenta la vida a su alrededor (HERRERA, 2007, p.149). 12 El clásico traje mexicano fue creado por y para el pueblo. Las mujeres nacionales que no lo usan no pertenecen al mismo , sino dependen, en lo mental y en lo emocional, de una clase extranjera de la que quieren formar parte, o sea, la gran burocracia norteamericana y francesa (HERRERA, 2007, p.150). 43 companheira perfeita que fazia ressaltar a Diego. Delicada, extravagante e bela, constituía um adorno que fazia falta ao seu esposo enorme e feio, a pluma de pavão real em seu sombrero Stettson. Sem dúvida, ainda que felizmente jogasse o papel de donzela indígena para Diego, seu artifício não era falso. Não modificou seu caráter para corresponder ao ideal de Diego. Mas também inventou um estilo pessoal muito individual, para dramatizar a personalidade que já tinha e que sabia que agradava a Diego. Ao final se converteu em uma mulher garbosa de tal extravagância, que muitas pessoas se sentiam mais atraídas pela pluma de pavão real que pelo sombrero. Evidentemente, Frida conhecia o poder mágico da roupa para substituir seus donos. Em seu diário escreveu que o traje de tehuana equivalia a “o retrato ausente de somente uma pessoa: ela mesma” (t.n.)13. Em outras palavras, o traje de tehuana, efetivamente, se tornou uma parte tão essencial da personalidade de Frida que este a representava apenas estando pendurado em um cabide; sozinho, sem estar cobrindo ou envolvendo o corpo de sua dona. Servia de substituto para ela mesma, fazendo-se um símbolo. Como uma segunda pele que nunca absorveu completamente a mulher oculta debaixo do tecido; sem dúvida, constituía uma parte tão integrada a ela que mantinha algo de seu ser ainda quando os tirava. Os trajes de Frida, que sempre foram uma forma de comunicação social, com o tempo, se converteram em um antídoto para a solidão. Ainda que muito enferma, no final de sua vida, todos os dias se vestia como se preparando para uma festa, apesar de receber poucos visitantes. Do mesmo modo como nos autorretratos, que confirmavam sua existência, os trajes davam à frágil Frida, doente e frequentemente confinada à cama, a sensação de ser mais atrativa e visível, de ter uma presença mais enfática como objeto físico no espaço. Era como uma armadura de um cavaleiro medieval. Paradoxalmente, essa roupa formava tanto uma máscara como um marco. Uma vez que definia a identidade de sua dona em termos de aspecto, distraía tanto a ela 13 “el retrato ausente, de uma sola persona: ella misma” (KAHLO, 2008, p.209). 44 como seu espectador de sua dor interior. Frida dizia que a usava por “coqueteria”: queria ocultar suas cicatrizes e sua perna coxa. Partindo desta analogia, Herrera (1983) descreve que este invólucro era feito com muito cuidado, representava um intento de compensar os defeitos de seu corpo e seu sentimento de fragmentação, desintegração e mortalidade. As fitas, as flores e faixas se tornaram mais coloridas e mais trabalhadas à medida que piorava sua saúde. De certo modo Frida era um recipiente de barro mexicano: uma vasilha frágil decorada, cheia de doces e surpresas, porém destinada a ser destroçada. Tal como as crianças que, com os olhos vendados, quebram a vasilha de barro com um pedaço de pau, a vida deu a Frida um golpe atrás do outro. Enquanto baila e oscila a vasilha que está a um ponto de ser destruída, mais intensa é sua viva beleza. Do mesmo modo a decoração de Frida era comovente: era uma afirmação de seu amor pela vida e um sinal de que era consciente da dor e da morte, as quais desafiava. A artista faz uma observação sobre suas vestimentas que vale a pena ser comentada, pois ela deixa bem claro que houve uma época em que se vestia de homem, mas quando ia ver Diego vestia seus trajes tehuana. Em seu livro, A linguagem das roupas, Lurie (1997) comenta que usar roupa masculina pode ter vários significados e um deles seria como cometer atos de igualdade sexual. Por várias vezes, Diego a traiu com outras mulheres, e como consequência da dor da traição sofrida, ela cortava seus longos cabelos, que Diego tanto gostava e usava roupas de homem, substituindo assim suas roupas tehuanas. Ela descartava e negava com isso sua feminilidade, além de estar colocando-se em pé de igualdade com Diego. Segundo Kettenmann (1994), por várias vezes Frida pintou sua sexualidade ambivalente, nunca fez questão de esconder a sua bissexualidade. Diego, sentia ciúmes que ela tivesse romances com outros homens, mas permitia-os com mulheres. O uso que Frida fazia das vestimentas, para disfarçar e distrair a si mesma, servia também para desviar a atenção das pessoas quanto aos seus ferimentos e sequelas sofridos em dois acidentes graves: um que lhe marcou o corpo e outro que lhe afetou a alma. 45 1.3 Dois acidentes graves As dores de Frida são as dores do México14. Dores colhidas durante o período da revolução nesse país. Na tela La columna rota (figura 9), é possível identificá-la com Cristo na cruz, porque Ele tinha pregos nas mãos e nos pés, redimiu o pecado dos homens, e pode-se perceber que era como se Frida quisesse expurgar, por meio de suas dores, os sofrimentos dos oprimidos do México, da mulher sofrida, humilhada desprezada, todos os sentimentos estão ali expostos em sua carne, mas também ela mostra força e resistência, apesar de ser humana. Afirma Campbell (2008, p.5) “[...] porque a única maneira de você descrever verdadeiramente um ser humano é através de suas imperfeições. O ser humano perfeito é desinteressante.” Frida ria e brincava com a morte. Era sua companheira fiel, sempre à espreita, como um abutre esperando sua presa acabar de morrer para devorá-la, mas, ela a encarava com o olhar firme, fazendo-a recuar. Todos nós precisamos compreender a morte e enfrentar a morte, e todos nós precisamos de ajuda em nossa passagem do nascimento à vida e depois à morte. Precisamos que a vida tenha significação, precisamos tocar o eterno, compreender o misterioso, descobrir o que somos. (CAMPBELL, 2008, p.5) Desse modo, pode-se observar que Frida não era apenas uma sobrevivente de si mesma, apesar de todo o sofrimento e obstáculos que a vida lhe apresentava. A 14 Segundo Cortez (2008), o México, no início do século XVI, foi Palco onde se desenvolveu o violento choque de duas culturas e a aniquilação de uma delas pelos espanhóis em nome do imperador Carlos V, da Alemanha e da Espanha. Historiadores calculam que, entre guerras sangrentas e doenças que criminosamente causavam epidemias, teriam provocado a morte de vinte milhões de nativos. As nações européias estavam interessadas em enriquecer explorando suas colônias, sendo que a Espanha, no século XVI tinha esse predomínio baseado na exploração de metais preciosos que vinham da America, principalmente do México. Estariam com isso proporcionando a acumulação de capital para a explosão capitalista que se seguiria na Europa provocando uma revolução na economia, com todo o ouro roubado dos astecas. A história da conquista dos índios Mexicanos os colocam da condição de livres e autônomos à de um povo submisso aos ditames do opressor, tornando-os um povo oprimido diante do conquistador e deixando claras as formas de reações do mesmo sobre o opressor. Afirma Freire (2006) que os invasores pensam sobre os invadidos e jamais com eles, pois estes são os que pensam por aqueles. Os primeiros mandam, e os segundos obedecem. Em carta que Cortez (2008) envia ao Imperador da Espanha, deixa claro que conseguiu domar os índios, sendo que estes agora se tornaram leais vassalos a serviço de Vossa Majestade, fazendo tudo como ele ordena e determina. Assim sendo, Freire (2006, p.43) conclui que “Na verdade, manipulação e conquista, expressões da invasão cultural e, ao mesmo tempo, instrumentos para mantê-la, não são caminhos de libertação. São caminhos de „domesticação‟”. 46 artista sempre buscava a superação dos problemas e experimentava a vida com paixão e ardor, refletindo de maneira significativa em sua obra. Campbell (2008, p.5) completa a ideia dizendo que o que todos procuramos não é um sentido para a vida. [...] que estamos procurando uma experiência de estar vivos, de modo que nossas experiências de vida, no plano puramente físico, tenham ressonância no interior de nosso ser e de nossa realidade mais íntimos, de modo que realmente sintamos o enlevo estar vivos. É disso que se trata, afinal, e é o que essas pistas nos ajudam a procurar, dentro de nós mesmos. Frida buscava viver com toda intensidade, assim adorava estar viva, e fazia de sua maneira de vestir-se de tehuana um ritual mitológico. Moyers, o jornalista que entrevista Joseph Campbell em O poder do mito, diz que a cerimônia de casamento é um ritual mitológico, assim como a cerimônia de posse de um juiz ou de um presidente. Campbell completa: “Alistar-se no exército, vestir um uniforme é outro. Você desiste de sua vida pessoal e aceita uma forma socialmente determinada de vida, a serviço da sociedade de que você é membro.” (CAMPBELL, 2008, p. 13) Frida em seu casamento com Diego usou um vestido típico das camponesas mexicanas, como se estivesse cumprindo um ritual de passagem, com isso criando uma nova identidade, a de ser mexicana e a de ser esposa de Diego Rivera. Frida, de certa forma com sua obra, seus trajes característicos, faz um resgate da identidade cultural dos nativos, sua maneira de viver sendo exótica e cheia de excentricidades (tinha um quintal povoado por pavões, macacos, cachorros, papagaios, pombos, uma águia e um cervo; além de dormir com um esqueleto humano preso ao dossel de sua cama) faz essa tentativa de resgatar o México, sua cultura e a identidade dos mexicanos. E é nessa busca de identidade, de Frida e dos mexicanos, que eles se identificam. “No tocante a este nível imediato de vida e estrutura, os mitos oferecem modelos de vida.” (CAMPBELL, 2008, p. 13) Frida também recebeu o adjetivo “heroína”, que é usado diversas vezes pelo povo, principalmente pelas mulheres, para se referirem à pintora mexicana. E 47 novamente é Campbell que nos esclarece em relação a essa denominação, pois existem muitas historias de heróis15 na mitologia. Mesmo nos romances populares, o protagonista é um Herói ou uma heroína que descobriu ou realizou alguma coisa além do nível normal de realizações ou de experiência. O herói é alguém que deu a própria vida por algo maior que ele mesmo (CAMPBELL, 2008, p. 131) Frida, pelo fato de ter sofrido o acidente tão grave e quase ter morrido, passou de sua condição de adolescente para a fase madura muito rapidamente. A pintura tornou para Frida Kalho parte integrante da luta, sobretudo pela vida. Também constituiu um aspecto muito importante do processo de sua “autocriação” a representação teatral de si mesma, em sua arte, como em sua vida, era um meio de controlar seu mundo. Durante o tempo em que se recuperava, recaía e voltava a se restabelecer, se inventava sempre de novo. “Frida é a única pintora que deu luz a si mesma” (t.n.)16, declara uma amiga da pintora, a fotógrafa Lola Álvarez Bravo. Em certo sentido, explica Álvarez Bravo que, Frida de fato morreu no acidente. “A luta entre as duas Fridas, a morta e a viva, estava chegando ao fim dentro dela.” Depois do acidente veio o seu renascimento: “Reacendeu seu amor pela natureza, assim como pelos animais, pelas cores e pelas frutas, por qualquer 17 coisa dela e positiva ao seu redor.” (t.n.) 15 A façanha convencional do herói começa com alguém a quem foi usurpada alguma coisa, ou que sente estar faltando algo entre as experiências normais franqueadas ou permitidas aos membros de uma sociedade. Essa pessoa então parte numa série de aventuras que ultrapassa o usual, quer para recuperar o que tinha sido perdido, quer para descobrir algum elixir doador da vida. Normalmente, perfaz-se um círculo, com a partida e o retorno. Mas a estrutura e algo do sentido espiritual dessa aventura já podem ser detectados na puberdade ou nos rituais de iniciação das primitivas sociedades tribais, por meio dos quais uma criança é compelida a desistir da sua infância e a se tornar um adulto – para morrer, dir-se-ia, para a sua personalidade e psique infantis e retornar como adulto responsável. E essa é uma transformação psicológica fundamental, pela qual todo individuo deve passar. Na infância, vivemos sob a proteção ou a supervisão de alguém, entre quatorze e vinte e um anos – e caso você se empenhe na obtenção de um titulo universitário, isso pode prosseguir talvez até os trinta e cinco. Você não é, em nenhum sentido, autorresponsável, um agente livre, mas um dependente submisso, esperando e recebendo punições e recompensas. Evoluir dessa posição de imaturidade psicológica para a coragem da autorresponsabilidade e a confiança exige morte e ressurreição. Esse é o motivo básico do périplo universal do herói – ele abandona determinada condição e encontra a fonte da vida, que o conduz a uma condição mais rica e madura (CAMPBELL, 2008, p.131-2). 16 17 “Frida es la única pintora que se dio a luz a sí misma” (HERRERA, 1983, p. 103). “La lucha entre las dos Fridas, la muerta y la viva, se estaba llevando a cabo siempre dentro de ella.” Depois do acidente veio seu renascimento: “Se reavivó su amor por la naturaleza así como por los animales, los colores y la fruta, por cualquier cosa bella y positiva a su alrededor.” (HERRERA, 1983, p.103, l04). 48 Sem dúvida, Frida não viu a mudança produzida pelo acidente como um renascimento, senão como uma aceleração do processo de envelhecimento. Um ano depois do acidente, Frida escreveu em uma carta para seu primeiro namorado, Alejandro: Por que estuda tanto? Que segredo está procurando? A vida vai revelá-lo em breve. Eu já sei tudo, sem ler ou escrever. Recentemente, talvez alguns dias atrás, era uma menina que estava em um mundo de cores, de maneiras precisas e tangíveis. Tudo era misterioso e ocultava alguma coisa, o enígma da sua natureza era um jogo para mim. Se você soubesse como é terrível alcançar o conhecimento de repente, como se um raio clareasse toda a Terra! Agora eu vivo em um mundo cheio de dor, transparente como gelo. É como se houvera aprendido tudo ao mesmo tempo, em questão de segundos. Minhas amigas e companheiras tornaram-se mulheres lentamente. Eu envelheci em alguns instantes e agora tudo é aborrecido e raso. Sei que não há nada por trás, se 18 houvesse eu veria. (t.n.) Pode-se constatar que, Frida ao sofrer o acidente e ter estado quase morta, recuperando-se posteriormente, é como se ela tivesse passado por esse ritual citado por Campbell. Frida amadureceu, envelheceu em poucos instantes. Passou pela saga do herói e morreu para renascer. Em um momento de muita dor na alma, Frida desabafou certa vez: “Sofri dois acidentes graves em minha vida. O primeiro ocorreu quando um bonde onde estava bateu... O outro acidente é Diego.” (t.n.)19 Em 1928, quando Frida começou a frequentar os meios artísticos conheceu Diego Rivera, durante uma festa na casa de Tina Modotti. Ela já o conhecia de vista quando era estudante da escola preparatória, onde Diego pintava os murais. 18 Por qué estudias tanto? Qué secreto buscas? La vida pronto te lo revelará. Yo ya lo sé todo, sin leer ni escribir. Hace poco, talvez unos cuantos dias, era una niña que andaba en un mundo de colores, de formas precisas y tangibles. Todo era misterioso y algo se ocultava; la adivinación de su naturaleza constituía un juego para mi. Si supieras lo terrible que es alcanzar el conocimiento de repente, como si un rayo dilucidara la Tierra! Ahora habito un planeta doloroso, transparente como el hielo. Es como si hubiera aprendido todo al mismo tiempo, em cosa de segundos. Mis amigas y mis compañeras se convirtieron lentamente en mujeres. Yo envejecí en unos instantes, y ahora todo es insípido y raso. Sé que no hay nada detrás; si lo hubiera lo vería... (HERRERA, 1983 p.104). 19 “Sufrí dos accidentes graves em la vida. El primero ocurrió cuando me atropelló um tranvía... El otro accidente es Diego.” (HERRERA, l998 p.55). 49 Rivera já era um artista consagrado no mundo da pintura, tanto no México como na Europa e Estados Unidos. Estava de volta de sua estada na União Soviética, onde tinha sido convidado a trabalhar na pintura de murais. Era integrante do Partido Comunista e adorava as mulheres, coisa que parecia recíproca, pois elas giravam em torno dele. No entanto, o homem era feio. Grande, gordo e quando estava sentado parecia não saber o que fazer com a sua barriga proeminente. Os traços de seu rosto acompanhavam o resto. Olhos saltados, nariz um pouco achatado, lábios grossos e dentes estragados. Tudo nele tinha um aspecto moleirão, mas era santificado pela aura do artista. Alçado às nuvens e discutido como grande celebridade ocupava posição de vanguarda da atualidade por suas idéias, suas excentricidades, as polêmicas que suscitava. Ou por seu trabalho simplesmente. (JAMIS, l987, p. 117) Nele, tudo se manifestava de maneira imensa, exagerada, a começar por seus trabalhos, que eram em escala monumental. Homem imponente, escandaloso e exuberante. Muito respeitado na sociedade mexicana, assim como no meio artístico e intelectual. Foi assim que Diego entrou na vida de Frida, como um turbilhão, trazendo consigo uma caixa de surpresas. Frida apaixonou-se por ele, e chegava a dizer que Diego e a artista formavam um só. Figura 23: Diego e Frida 1929-1944 (I) ou Retrato Duplo, Diego e Eu (I), 1944 Fonte: Kettenmann, 1994. 50 Não agradava muito à família de Frida vê-la casada com Diego. Diziam que parecia o casamento de um elefante com uma pomba. Mas, mesmo assim casaram-se em 21 de agosto de l929. Somente o pai de Frida compareceu ao casamento. Um casamento entre dois monstros, cada um a seu modo, dois criadores, dois sedutores, dois apaixonados. Um casamento que poderia parecer um capricho extravagante, regido unicamente pelas forças instintivas, lúdicas que podiam estar dominando cada um dos seus parceiros. Um casamento que já se anunciava pelo menos, longe dos auspícios do tédio (JAMIS, l987, p.130). Com essa união Frida sofre uma influência ideológica. Rivera já era um artista conceituado, um pintor de murais e introduziu Frida no circulo de artistas e intelectuais, que tentavam criar uma arte mexicana independente. Pode-se constatar que depois de passar por esses graves acidentes, não é de se estranhar que a arte de Frida seja pontuada por obras repletas de gratidão aos médicos que de alguma forma lhe prestaram socorro, e também aos correspondentes de seus ideais políticos como Marx e Stalin. Com isso, suas telas ganham características de quadros votivos20 tão comum no México. 1.4 Quadros votivos A arte votiva mexicana tem uma faceta característica que é a extração e reintegração de elementos essenciais dentro de uma obra. De acordo com Kettenmann 20 Quadros votivos: Ainda que quase sempre executados de maneira tosca, os ex-votos ou quadros votivos pintados contêm uma evidente dimensão artística. No entanto, antes de mais nada, eles resultam da experiência religiosa dos fiéis. São oferecidos para retribuir uma dádiva de Deus, concedida. em geral, por meio de algum intermediário especial. Servem, portanto para agradecer um fato que suspendeu o fluxo natural da vida. Na maioria das vezes, os ex-votos pintados compõem-se de três elementos: a cena principal, que retrata o acontecimento; o espaço celeste, em que surge no alto a figura religiosa do intercessor; a legenda, que narra por escrito o episódio e que, ao trazer com frequência a data em que ocorreu, permite situá-lo cronologicamente. Revista de Historia da Biblioteca Nacional, ano4, nº 41, fevereiro de 2009. Dossiê: Ex-votos/ Guilherme Pereira das Neves/ Milagres do cotidiano; p.18 e 19. 51 (1994) pode-se traçar muitos paralelos entre a arte de Frida e os quadros votivos por meio dos quais ela utiliza o metal e o pequeno formato, estilos e materiais utilizados. Em sua arte, Frida também se utiliza do vernáculo, isenta de estrangeirismo, valorizando o que é próprio de sua região e dos retablos21 tão comuns no México e tão presentes na crença popular, que são quadros votivos de santos e mártires e cristãos. Frida Kahlo começou a utilizar os painéis de metal de pequeno formato, comuns aos ex-votivos, de l932 em diante, principalmente para seus autorretratos, onde os problemas retratados partilham o caráter altamente pessoal e único dos quadros votivos. Emprega desse modo, uma estrutura composicional semelhante, adota a mesma simplicidade, o mesmo formato pequeno e retangular, reduzindo o seu tema ao essencial. A perspectiva centralizada e a proporção correta são preteridas em favor da dramatização cênica. Nos seus retratos não há limites entre o mundo real e o familiar, entre o que é objetivamente visível e o mundo do irracional e da imaginação. (KETTENMANN, 1994, p.36) Figura 24: Retablo, por volta de l943 Fonte: Kettenmann, 1994 21 Obra artística ou de arquitetura que decora um altar. (DIAZ, 2008, p. 426). 52 A artista mencionou apenas uma vez, por meio de um desenho, o fato do acidente de ônibus ocorrido com ela quando tinha 18 anos de idade. Mas encontrou certa vez um quadro votivo (figura 24), onde estava representado um acidente muito parecido com o que ocorreu com ela quando era jovem. Fez apenas algumas modificações no letreiro do ônibus, uniu as sobrancelhas (traço muito característico de seu rosto), acrescentou algumas inscrições tão comuns dos quadros votivos, e assim terminou esse trabalho. Uma das partes fundamentais da biografia de Frida está relacionada com a questão de filhos, filhos que ela não podia conceber. Inclusive teve vários abortos, e pintou uma obra relacionada ao fato. Quando em abril de 1932, já casada com Diego, foi para Detroit, Frida já tinha engravidado e feito um aborto por razões médicas e estes já tinham previsto que dificilmente ela conseguiria levar uma gravidez até o fim, pois, devido ao acidente, sua pélvis foi fraturada em três pontos, o que não permitia que o feto se posicionasse corretamente, nem poderia fazer um parto normal. Mas mesmo assim estava grávida novamente e preocupada com sua saúde, se conseguiria levar a cabo a gravidez e sabia que Diego não estava interessado em ter filhos. Figura 25: O Hospital Henry Ford ou A Cama Voadora, 1932 Fonte: Kettenmann, 1994 53 O que chama a atenção nessa obra é a escala desproporcional com que Frida se representa para mostrar o tamanho de seu desconsolo: ela é pequena em relação ao tamanho da cama, inclinada e desenhada propositadamente em perspectiva inexata. A colocação da cama no ar, flutuando, manifestam o desamparo e o abandono que muitos pacientes sentem ao estarem hospitalizados. Frida está sozinha, vazia e indefesa. A artista está deitada na cama, completamente nua sobre um lençol branco e que debaixo de seu ventre está encharcado de sangue, proveniente do aborto sofrido. Uma lágrima enorme escorre de seu rosto e na mão esquerda, apoiada sobre o ventre ainda inchado por causa da gravidez, ela segura três fitas vermelhas como se fossem artérias, às quais estão atados pelas pontas seis objetos, simbolizando a sua sexualidade e a gravidez interrompida. Uma das fitas se liga ao feto masculino de tamanho exagerado transformando-se num cordão umbilical em posição embrionária. Uma alusão à gravidez do pequeno “Dieguito” que perdera. O caracol, situado logo acima da cabeceira da cama, representado aqui nesta obra, aparece novamente em outra pintura de Frida (figura 23) e simboliza a sua união amorosa com Diego, com significado de vitalidade e sexualidade. Chevalier (2009) esclarece que, para algumas culturas indígenas mexicanas, mais especificamente os astecas, a concha que protege o caracol é um símbolo de concepção, gravidez e nascimento. Mas, nessa obra, “Segundo a própria Frida Kahlo, é um símbolo da interrupção da gravidez que ainda era de curta duração” (KETTENMANN, l994, p.33). Chevalier (2009, p. 270) acrescenta que para os maias “[...] a concha simboliza o mundo subterrâneo e o reino dos mortos. A concha está ligada à ideia de morte [...] do ocupante primitivo da concha ou da morte da geração precedente.” Faz-se com isso uma alusão ao fato de que Frida tinha consciência de que não deixaria herdeiros. Aos pés da cama, na parte superior esquerda, um protótipo anatômico da parte inferior de um tronco humano, assim como o modelo de osso da pélvis; ambos representando uma das regiões do corpo afetadas pelo acidente: causa principal do aborto, que impossibilitou permanentemente Frida de ter filhos. 54 Observando embaixo e à esquerda, nota-se um equipamento, provavelmente hospitalar usado naqueles tempos. Nesse contexto, o aparelho pode estar representado por Frida Kahlo em uma analogia entre esta máquina e os seus músculos atrofiados, que a impediam de carregar o bebê em seu útero. Enquanto esteve internada no hospital, Diego Rivera levou-lhe de presente uma orquídea violeta, que está localizada na obra ao centro e abaixo da cama. A artista considera essa flor um símbolo das emoções e da sexualidade. Para completar o quadro de solidão que Frida sentia nesse período em que esteve hospitalizada, ela reforça a cena com a pintura ao fundo com uma paisagem industrial que se vê na linha do horizonte, e a cama a flutuar sobre um imenso deserto. Trata-se de uma parte da Ford Motor Company, o complexo de Rouge River, e indicanos o local onde se deu esta fatalidade. “Sendo um símbolo de progresso tecnológico, contrasta com o destino humano da artista” (KETTENMANN, 1994, p.34). Frida não quer registrar com precisão fotográfica uma situação real. Para ela é mais relevante reproduzir o seu estado emocional num filtro da realidade que ela experimentara. Apesar de cada motivo estar delineado no quadro com pormenores precisos, o realismo da vida real é evitado, de uma forma geral, na composição. Os objetos são extraídos de seu habitat normal e integrados numa nova composição. A extração e reintegração de elementos essenciais e significativos é uma faceta característica da arte votiva mexicana. (KETTENMANN, l994, p.35). Geralmente os quadros votivos apresentam desenhados os santos dos quais a pessoa é devota, na parte de cima da composição, na região celestial, rodeados de uma aureola de nuvens, mas nessa obra eles são totalmente omitidos. São substituídos pelos símbolos suspensos que possuem uma significância bastante diferente. Da mesma forma que os pintores amadores de quadros votivos, Frida não pintou a sua realidade como a via, mas sim como a sentia. Ela resume o mundo exterior ao essencial, criando uma sequência de acontecimentos que é condensada em um clímax poderoso. 55 Os quadros votivos acompanharam Frida por toda a sua vida. A saúde de Frida piora muito no final dos anos 1940 e começo dos anos 1950. Estava novamente com problemas na coluna, necessitando por isso fazer várias cirurgias e devido à má circulação da perna direta pensa-se em amputação de alguns dedos do pé. Depois de um longo período, em que esteve internada no Hospital ABC, na cidade do México, tem uma pequena melhora em sua saúde, recomeça a pintar e o resultado é a tela Autorretrato com o Retrato de Dr. Farill (Figura 26). Comenta Kettenmann (1994, p.79): “Este autorretrato também pode ser entendido como um retablo de ação de graças: representa uma espécie de oferenda votiva ao médico que salvou a artista da situação em que se encontrava, surgindo aqui o médico no lugar de santo”. Figura 26: Autorretrato com o Retrato do Dr. Farill, 1951 Fonte: Kettenmann, 1994 Segue-se outra obra que também é considerada como um quadro votivo. Chama-se Autorretrato dedicado ao Dr. Eloesser e que a artista assina “com todo amor”, na parte debaixo do quadro, em uma bandeirola branca. O motivo desse quadro foi uma infecção aguda que Frida teve na mão direita, provocada por um fungo, sendo que o Dr. Eloesser, por meio de um tratamento, estabilizou seu quadro. Como agradecimento, Frida pinta esta obra para o médico. 56 A forma da mão reaparece no brinco da artista. Faz lembrar os milagres mexicanos, oferendas votivas feitas em metal, cera ou marfim dando graças aos santos pela sua ajuda em tempos de crise. Neste caso, representa o motivo da lamentação da artista: a mão infectada. O médico libertou-a do sofrimento, cuja memória sobrevive na coroa de espinhos que lhe fere o pescoço. Os espinhos são, simultaneamente, um símbolo pré-colombiano da ressurreição e do renascer, e representam a libertação da dor. (KETTENMANN, l994, p.56). Figura 27: Autorretrato dedicado ao dr. Eloesser, 1940 Fonte: Kettenmann, 1994 Frida reingressa no partido comunista em l948 e comenta que estava demasiadamente preocupada com sua pintura, escreve em seu diário: 57 Eu não tenho nenhuma dor. Somente um cansaço, frequente e, naturalmente, muitas vezes desesperada, porque até agora eu não tenho pintado senão expresão honrada de mim mesma, mas muito longe do que a minha pintura possa servir ao partido. Devo lutar com todas as minhas forças para que o pouco de positivo que minha saúde me permita fazer seja para ajudar a 22 revolução. A única verdadeira razão para viver. (t.n.) A intenção de introduzir um caráter político no seu trabalho para “servir ao partido” e “beneficiar a revolução” só se torna clara na sua última fase produtiva. Pinta então outras duas obras significativas, onde faz a referência aos quadros votivos substituindo a imagem do santo pela imagem de Marx e Stalin nas obras: O Marxismo Dará Saúde aos doentes (Figura 28) e Frida e Stalin (Figura 29). Figura 28: O Marxismo Dará Saúde aos Doentes, 1954 Fonte: Kettenmann, 1994 22 No tengo dolores. Solamente un cansancio de la, tiznada, y como es natural muchas veces desespenista, pues hasta ahora no he pintado sino la expresióm honrada de mi misma, pero alejada absolutamente de lo que mi pintura pueda servir al partido. Debo luchar con todas mis fuerzas para que lo poco de positivo que mi salud me deje hacer sea en dirección a ayudar a la revolución. La única razón real para vivir. (KAHLO, 2008, p. 252) 58 Nessa obra, novamente, a artista faz uso do estilo narrativo dos quadros votivos, colocando Karl Marx no lugar do santo, cuja intervenção salvará o mundo do perigo iminente e trará a paz. Frida aparece milagrosamente curada e amparada por duas mãos, que são o símbolo do marxismo, tendo estampado, em uma das mãos, o olho da sabedoria. Mostra também a artista soltando e abandonando as muletas. Frida disse a respeito deste quadro “Pela primeira vez deixei de chorar”. Figura 29: Frida e Stalin ou Autorretrato com Stalin, cerca de 1954 Fonte: Kettenmann, 1994 Esse quadro pode ser comparado com o Autorretrato com o retrato do Dr. Farill, pelo caráter votivo, em que o médico faz o papel de salvador, e aqui é Stalin que 59 assume o papel de santo. Com isso, a artista revela sua fé, quase religiosa, no comunismo. É importante relatar em relação a Frida que: A sua identificação com a nação mexicana e as suas raízes culturais não podem ser vistas, somente, como um retrato do meio privado que a rodeava ou de seus problemas pessoais. É claramente uma atitude intelectual influenciada pelos desenvolvimentos políticos e culturais que se seguiram à Revolução Mexicana. (KETTENMANN, 1994, p. 83) Observa-se deste modo como estava intrínseca a história de Frida e do México, como realmente a sua dor e seu sofrimento misturavam-se com o sofrimento e a dores do oprimido povo mexicano. 1.5 Identidade Nacional Apesar dos fracassos políticos, a revolução mexicana foi um sucesso cultural, pois revelou uma nação para ela mesma. Um povo que desde a conquista do México no século XVI, com as invasões européias, foi perdendo sua identidade, suas raízes culturais. O cinema foi um dos colaboradores do povo mexicano para recordá-lo de tudo o que havia esquecido. De certa forma o cinema mexicano desse período caminha na contramão daquilo que é proposto pelo cinema mundial, que seria fazer os indivíduos “[...] experimentar eventos, observar outros e, em geral, conhecer mundos - tanto reais quanto imaginários – situados muito além da esfera de seus encontros diários.” (THOMPSON, 1998, p.159). Iniciando pelo ponto mais relevante, a maioria do povo mexicano recebeu o cinema com muito entusiasmo, não pelas estratégias comerciais e pela “genialidade” ou talento dos artistas. Mas porque essa experiência foi o encontro entre a vivência 60 coletiva, resultado da Revolução, com essa mídia que, mesmo deformando o indivíduo mexicano, o torna autêntico socialmente. Trata-se do centro de gravidade da nova cultura, já que o público mexicano e o latino-americano não perceberam o cinema como fenômeno especifico artístico ou industrial. A razão causadora do sucesso foi estrutural, vital; no cinema esse público viu a possibilidade de experimentar, adotar novos hábitos e ver reiterados (e dramatizados com as vozes que gostaria de ter e ouvir) códigos de costumes. Não se ia ao cinema para sonhar; ia-se para aprender. Através dos estilos dos artistas ou dos gêneros da moda, o público foi se reconhecendo e transformando, apaziguou-se e se ufanou secretamente (MATÍN-BARBERO, 2008 p. 235). O cinema é o caminho socializante e vital na composição dessa nova experiência cultural aplicada no México, é a própria experiência popular urbana e será a primeira linguagem de comunicação nesse contexto. Vai além de um conteúdo reacionário e de sua forma esquemática, nesse momento o cinema vai ligar-se ao problema da situação de miséria da população por se fazerem visíveis socialmente. Dessa forma, criam-se condições para que a identidade nacional tenha voz e imagem. [...] A identidade coletiva é o sentido que cada um tem de si mesmo como membro de um grupo social ou coletividade; é um sentido de pertença, de ser parte de um grupo social que tem uma história própria e um destino coletivo. [...] O sentido que cada um tem de si mesmo e o sentido de pertença a um grupo são modelados – em vários graus dependendo do contexto social – pelos valores, crenças e padrões de comportamento que são transmitidos do passado. O processo de formação de identidade nunca pode começar do nada; sempre se constrói sobre um conjunto de material simbólico pré-existente que constitui a fonte da identidade. (THOMPSON, 1998, p.165). A população vai ao cinema para se ver e se reconhecer, por meio uma sequência de imagens que é muito mais que assuntos gratuitos. São rostos, gestos, maneiras de falar e caminhar, paisagens e cores que representam o México. Quando a população se vê no cinema, se identifica e se nacionaliza. Não é o fato de conceder uma nacionalidade, mas sim como senti-la, estimulando e carregando no seu íntimo todas as mistificações bem como um patriotismo elevado, mas há de ressaltar também a importância que essas imagens proporcionariam às massas urbanas, abrandando 61 choques culturais, quando pela primeira vez, o país se identifica com sua verdadeira imagem. Nesse novo sentimento nacionalista, agem três tipos diferentes de dispositivos que o cinema procura, são dispositivos de teatralização. Os de teatralização, isto é, o cinema como encenação e legitimação de gestos, peculiaridades linguísticas e paradigmas sentimentais próprios. É o cinema ensinando as pessoas a “serem mexicanas”. Os de degradação: para que o povo possa ver-se, é preciso pôr a nacionalidade ao seu alcance, quer dizer, bem mais embaixo. O nacional é então „o menor, o repleto de carinho filial, o vagabundo, o bêbado, o sentimental [...], a humilhação programada da mulher, 23 o fanatismo religioso, o respeito fetichista pela propriedade privada‟ . E os de modernização, porque, senão sempre, pelo menos freqüentemente as imagens contradizem as mensagens, os mitos são atualizados, novos costumes e moralidades são introduzidos, novas rebeliões e novas linguagens tornam-se acessíveis. (apud MONSIVÁIS; MARTÍN-BARBERO, 2008, p. 236) Identificados por Martin-Barbero (2008), os focos da sedução estarão no melodrama e nas estrelas: o melodrama é construído como estrutura de algum tema, combinando a impotência social e a busca de heróis, resgatando o popular partindo da compreensão familiar da realidade, permitindo a esse cinema recuperar a épica nacional com o drama interior, realçar o erotismo com ensejo de condenar o incesto e dissolver por meio de lágrimas as tragédias, anulando assim o direcionamento das contradições cotidianas. Existe uma clara intenção de convencimento que as estrelas, muito além do uso sedutor da maquiagem e da influência comercial e publicitária, fornecem com rostos, corpos e vozes a necessidade que as pessoas têm de se espelharem e se ouvirem. Já as legítimas estrelas do cinema alcançam sua força por meio de uma comunicação pactual que unem seus rostos e vozes com o público, sustentando desejos e obsessões. [...] Entre os anos de 1920 e 1930, o cinema reelabora a épica popular. [...] A Revolução é re-vista, convertida em fato cinematográfico. [...] Melodramatização que rouba à Revolução seu sentido político, mas que não se tornará reacionária até a segunda etapa, depois dos anos de l930. Quando aparece a comédia rancheira fazendo do machismo a expressão de um nacionalismo que se 23 MONSIVÁIS, C. Cultura urbana y creación intelectual, Casa de las Americas, n.116, p.86. 62 folcloriza, um machismo que deixa de ser uma maneira popular de entender e afrontar a morte e se converte em técnica compensatória da inferioridade social. O machismo enquanto „excesso que redime do pecado original da pobreza [...] 24 e queixosa petição de reconhecimento‟. (apud MONSIVÁIS; MARTÍNBARBERO, 2008, p. 237, 238) Figura 30: Uns Quantos Golpes, 1935 Fonte: Kettenmann, 1994 Frida, na década de 30, pintou uma obra (figura 30) que faz relação com o que o cinema mexicano nessa mesma década enaltece: a figura do machão. A relação desta obra Uns quantos golpes (1935), com Diego é muito direta, pois foi nesse período que Frida descobre que Rivera está tendo um romance com sua irmã. “É muito apelativo pela sua natureza sangrenta, e representa a transcrição visual de uma notícia que Frida leu no jornal, e diz respeito a uma mulher assassinada por ciúme.” (KETTENMANN, l994, p.39). 24 MONSIVÁIS, C. Amor perdido, p. 31-32 63 A artista pintou algo parecido, inspirada na obra de um grande gravador mexicano do final do século, José Guadalupe Posada, cujos panfletos ilustram acontecimentos de jornais importantes, onde mostravam homens que esfaqueavam mulheres. Frida considerou a história horrível e engraçada ao mesmo tempo, devido à justificativa dada ao juiz pelo assassino: Mas, foram somente algumas furadinhas (t.n.)25. Nessa afirmação, o opressor quase diz que não foi por mal tê-la matado. O homem é o típico “machão”. A mulher é a vitima, la chingada, a grosseria mais usada no México. O verbo chingar denota violência, é de cunho masculino ativo e cruel, apresenta perda de controle e invade à força, provoca uma amarga, ressentida satisfação em quem o executa. O chingado é o passivo, o inerte e receptivo que são características femininas. Herrera (1986) comprova tais atos de violência, por meio de uma confidência que Frida fez a uma amiga revelando que havia pintado o assassino porque, no México, matar é bastante justificável e natural, principalmente matar mulheres. Ainda nessa obra há uma bandeirola suspensa por pombas, que indica o titulo do quadro. Uma das aves é negra e a outra é branca, fazendo alusão aos dois lados do amor. Frida tendo a personalidade tão forte e cativante, de maneira alguma passaria despercebida. Resultando em mais de cem obras publicadas a seu respeito; tornandose inevitável que o cinema quisesse imortalizar a artista narrando sua trajetória de vida. 25 “Pero si sólo le di unos cuantos piquetitos” (HERRERA, l986, p.109). 64 Figura 31: Pensando na Morte,1943 Fonte: Kettenmann, 1994 CAPÍTULO 2 2 Narrando Frida por quadros em movimento Após investigar o uso da imagem como ferramenta na construção do mito, esse capítulo aborda aspectos mais técnicos da linguagem cinematográfica utilizada na produção do filme sobre a artista mexicana. Das pinturas para a literatura, o mito Frida invade o cinema. Frida – Una biografía de Frida Kahlo, de Hayden Herrera, foi transcodificada para a obra cinematográfica Frida (EUA-2003) por Julie Taymor. O filme visita algumas obras pictóricas da artista. A pintora narra sua história por meio de um texto não-verbal, ou seja, por meio de imagens quando nos apresenta suas obras pictóricas. A escritora Hayden Herrera transcodifica essas imagens de Frida para um texto verbal quando escreve a biografia de Frida Kahlo. Já, a diretora Julie Taymor narra transcodificando cuidadosamente a obra literária de Herrera, criando uma obra fílmica, que é uma história contada também por imagens em movimento. O hábito de narrar histórias é uma das atividades mais antigas do ser humano. Cabral (1989 p.1) afirma que é interessante notar como as narrativas têm sido transmitidas por meio de diversas linguagens: pela imagem (linguagem visual), pela palavra (linguagem verbal: oral ou escrita), pelos gestos (linguagem gestual), pelos sons (linguagem musical). Em suma, se tratando de obra cinematográfica, uma história bem contada. [...] não significa apenas uma história bem narrada, habilmente estruturada e tramada. A história tem de ser mostrada em cenas esmeradas, com papéis bem concebidos (e bem interpretados), que inspirem o cenógrafo, o fotógrafo, o compositor, o montador e todos os demais colaboradores a acrescentarem seus talentos à forma final com que as imagens e palavras do roteirista aparecem perante o espectador (HOWARD & MABLEY. 2005, p. 21 e 22). 66 A produção cinematográfica é demasiado complexa, pois muitas pessoas estão envolvidas, no processo narrativo: Uma equipe de profissionais se junta para contar uma história e, evidentemente, o diretor, que arremata a filmagem. Ficha técnica do filme: Elenco: Produção: Efeitos especiais: Salma Hayek: Frida Kahlo Lindsay flickinger Alfred Molina: Diego Rivera Sarah Green Amoeba Proteus / KleiserWalczak Construction Company Geoffrey Rush: Leon Trotsky Nancy Hardin Ashley Judd: Tina Modotti Salma Hayek Antonio Banderas: David Alfaro Siqueiros Jay Polstein Edward Norton: Nelson Rockfeller Roger Rees: Guillermo Kahlo Patrícia Reyes Spíndola: Matilde Kahlo Lizz Speed. Direção: Margarita Sanz: Natalia Trotsky Julie Taymor Jorge Valdés Garcia: Médico Música: Elliot Goldenthal EUA: Miramax Films/ Lions Gate Filmes Inc. / Trimark Pictures / Handprint Entertainment/ Ventanarosa Productions. 2002. Saffron Burrows: Gracie Diego Luna: Alejandro Gonzalez Arias Rodrigo Prieto Roberto Sneider Valeria Golino: Lupe Marin Mia Maestro: Cristina Kahlo Direção de Fotografia: Roteiro: Clancy Sigal Desenho de produção: Felipe Fernandez del Paso Direção de Arte: Bernardo Trujillo Figurino: Julie Weiss Diane Lake Gregory Nava Anna Thomas Baseado no livro de Hayden Herrera. Edição: Françoise Bonnot 67 No filme Frida, a percepção visual chama muito a atenção devido o uso de muitas cores e contraste, mas a narrativa verbal e sonora procura sempre a palavra adequada, a ideia correta e a música perfeita para realizar a transcodificação necessária com intuito de descobrir a melhor maneira de contar essa história. A transposição de uma obra literária para outro código, somente é possível porque a transcodificação desta oferece múltiplas interpretações. Já a respeito de adaptação e transmutação: “O filme adaptado deve preservar em primeiro lugar a sua autonomia fílmica, ou seja, deve-se sustentar como obra fílmica, antes mesmo de ser objeto de análise como adaptação” (BALOGH, 2005, p. 53). Para levar a história de Frida Kahlo às telas foi essencial que se tivesse um roteiro forte que carregasse a plateia por meio da narrativa de sua vida. Julie Taymor explica: “aceitei fazer este filme levando em conta a incrível versão do roteiro escrita por Rodrigo Garcia, e devo dar o merecido crédito a Edward Norton por suas revisões, que tornaram tudo possível.” (FERNANDES, 2010)26. Muitos fatos da obra literária foram suprimidos na transposição da obra fílmica, uma vez que a obra literária é muito extensa: Filmes são diferentes. O filme é um meio visual que dramatiza um enredo básico; lida com fotografia, imagens, fragmentos e pedaços de filme: um relógio fazendo tique-taque, a abertura de uma janela, alguém espiando, duas pessoas rindo, um carro arrancando, um telefone que toca. O roteiro é uma obra contada em imagens, diálogos e descrições, localizada no contexto da estrutura 27 dramática (FIELD , 2001, p.2). Esse autor afirma que, “[...] o filme hollywoodiano normal tem a duração aproximada de duas horas, ou 120 minutos. Uma página de roteiro equivale a um minuto de projeção”. Sendo assim o filme Frida tem 123 minutos de projeção equivalendo a 123 páginas escritas no roteiro. A seguir o modelo (figura 32) 26 FERNANDES, 2010, passim. Disponível em: <http://www.webcine.com.br/notaspro/npfrida.htm>. Acesso em: 16 de fev, 2010. 27 Syd Field: Experimentado profissional, atua como consultor de produtores americanos na análise e desenvolvimento de roteiros. Frequentemente realiza Workshops em universidades americanas e leciona Técnica de Roteiro na Sherwood Oaks Experimental College, em Hollywood e no Art Center College of Design, em Pasadena. É por inúmeras razões o mais procurado professor de roteiro do mundo. 68 apresentado por Field traça um desenho para que se possa entender de forma mais clara e prática esse início, meio e fim que todo filme costuma apresentar. Figura 32: Modelo de Field (FIELD, 2001, p. 3) Por meio deste modelo fica fácil identificar em Frida alguns pontos importantes como, por exemplo, ponto de virada, ou seja, Plot Point - Ponto de Trama, de Enredo ou de Intriga. Essa foi uma importante ferramenta da técnica desenvolvida por Field (2001) para identificar um incidente, um evento ou episódio que se engancha em outro na ação e reverte para outra direção dentro da narrativa. Podem-se identificar também o início, a confrontação e a resolução. Todos claramente mostrados neste modelo. Seguindo o modelo de Field (2001), observa-se que em uma narrativa encontram-se vários tipos de conflito: econômicos, religiosos, sociais, morais e psicológicos, e geralmente, são esses conflitos que determinam as partes do enredo. Acredita-se que para um bom entendimento de uma narrativa, seja necessário o modelo de Field. Para exemplificar melhor, segue-se um método para essa sequência de 16 quadros fílmicos. 69 1 – Apresentação (quadros fímicos 1 e 2) 2 – Ponto de virada ou Plot Point (quadros fílmicos 3 e 10) 3 – Confrontação ou desenvolvimento (quadros fílmicos 4, 5, 6, 7, 8, 9, 11, 12, 13 e 14) 4 – Resolução ou conclusão (quadros fílmicos 15 e 16) 1 2 1 – Apresentação: É quando são apresentados os fatos iniciais, os personagens e às vezes o tempo e o espaço, o local onde está acontecendo a narrativa. É exatamente o que mostra o inicio do filme. O quadro fílmico 1 mostra a personagem Frida, já na maturidade e aparece vestida para ir a uma festa, mas deitada em uma cama, sendo colocada sobre um caminhão que irá transportá-la. A cena mostra uma casa pintada de azul muito forte, com enormes bonecos de papel machê decorando o jardim. A música ao fundo ambienta o local, se não o México, ao menos é um país latino-americano. Estes fatos apresentados desta forma têm o intuito imediato de despertar no espectador o interesse e questionamentos: quem seria esta mulher? Porque estaria vestida assim? Para onde estaria sendo levada? Logo em seguida, no quadro fílmico 2 como uma recordação da personagem, aparece uma jovem, adolescente vestida com uma roupa que parece ser um uniforme, correndo pelos corredores de uma escola. 70 3 10 2 – Ponto de virada ou Plot Point: é o momento de maior tensão na narrativa, no qual o conflito chega ao ponto máximo. É o ponto de referência para as outras partes do enredo, que se organizam em função dele. Na obra fílmica temos dois pontos muito fortes que alteram significativamente o rumo da vida da personagem. O acidente (fotograma 3) em que ficou gravemente ferida, fraturou três vértebras, tendo como consequência a saúde debilitada para o resto da vida, alterando com isso o rumo da profissão que queria seguir, pois pretendia cursar medicina, mas também foi como consequência desse fato que ela se tornou pintora. Outro acontecimento de igual importância foi quando Frida descobre Diego Rivera, seu esposo, tendo um caso com a irmã mais nova dela, (fotograma 10). Nesse momento, Frida rompe esse relacionamento e tenta levar a vida adiante, como mulher independente como pintora. 4 5 71 6 7 8 9 11 12 72 13 14 3 – Confrontação, desenvolvimento: A confrontação constitui a maior parte da narrativa, na qual agem forças auxiliares e opositoras ao desejo da personagem e que intensificam o conflito. A confrontação está diretamente ligada aos Pontos de Virada, pois são consequências desses. Identificam-se esses fatos após o acidente de Frida, tendo com isso sua saúde prejudicada com problemas na coluna, não podendo ter filhos. Ficou por meses engessada e acamada (fotograma 4), motivo que a faz iniciarse na pintura, (fotograma 5), que a levaria a conhecer e casar-se com Diego Rivera, (fotograma 6 e 8). Ingressa no partido comunista (fotograma 7), sofre abortos, (fotograma 9). No aspecto emocional, fica marcada pelas infidelidades de Diego Rivera, mas principalmente pela traição com sua irmã mais nova e consequentemente a dificuldade financeira advinda da separação do casal (fotogramas 11 e 12). Casa-se pela segunda vez com Rivera (fotograma 13), tem o pé e posteriormente a perna amputada (fotograma 14). Observa-se, portanto, que podem acontecer vários conflitos dentro de uma mesma narrativa. 73 15 16 Figura 33: Quadros fílmico - de 1 a 16 4 – Resolução ou conclusão: é a solução dos conflitos, boa ou má, vale dizer configurando-se num final feliz ou não. Nesse ponto do filme, Frida consegue o reconhecimento em seu país de origem, o México, com a primeira exposição individual de suas obras, na Galeria de Arte Contemporânea La Rosita, pertencente à Lola Álvarez Bravo (fotograma 15). Também mostra o precário estado de saúde da artista, que veio a falecer devido a estar cada vez mais debilitada (quadro fílmico 16). Com um estudo mais cuidadoso dos capítulos da obra literária Frida – Una biografía de Frida Kahlo, e comparando-a com a obra fílmica Frida, é importante observar os pontos que a diretora Julie Taymor e os roteiristas acharam mais relevantes para narrar a história de maneira concisa e coerente. Contando com apenas 123 minutos de filme para transcodificar uma obra literária de seiscentas e poucas páginas, fazendo uso de moderadas doses de criatividade e um orçamento não muito alto, a história dessa pintora mexicana foi adaptada com cuidado e verossimilhança. Uma adaptação deve ser vista como um roteiro original. Ela apenas começa no romance, livro, peça, artigo ou canção. Estas são as fontes, o ponto de partida. Nada mais. Quando você adapta um romance, não é obrigado a manter-se fiel ao material original... Você pode ter que acrescentar personagens, cenas, incidentes e eventos. Não copie simplesmente um romance para um roteiro; faça-o visual, uma história contada por imagens. (FIELD, 2001, p.175, 176) 74 Desde os gregos antigos existe a preocupação com a estrutura narrativa. Ao descrever características do teatro Aristóteles demonstra [...] que a obra do poeta não consiste em contar o que aconteceu, mas sim coisas as quais podiam acontecer, possíveis do ponto de vista da verossimilhança ou da necessidade. [...] Enunciar verdades gerais é dizer que espécie de coisas um indivíduo de natureza tal venha a dizer ou fazer verossímil ou necessariamente; a isso visa a Poesia, ainda quando nomeia 28 personagens. Relatar fatos particulares é contar o que Alcibíades fez ou o que fizeram a ele. (ARISTÓTELES, 1996, p.39) Aplicam-se esses conceitos nas narrativas de hoje. Os fatos contados no texto não precisam corresponder exatamente aos fatos ocorridos fora do texto, mas devem ser verossímeis, “[...] isto quer dizer que, mesmo sendo inventados, o leitor deve acreditar no que lê.” (GANCHO, 2006, p.12). Para que haja essa credibilidade é importante que exista uma organização lógica dos fatos dentro do enredo, relacionando os vários elementos da história. Aristóteles define que o arranjo das ações [...] é fator primeiro e mais importante da tragédia. Assentamos que a tragédia é a imitação de uma ação acabada e inteira, de alguma extensão, pois pode uma coisa ser inteira sem ter extensão. Inteiro é o que tem começo, meio e fim. Começo é aquilo que, de per si, não se segue necessariamente a outra coisa, mas após o que, por natureza, existe ou se produz outra coisa; fim, pelo contrário, é aquilo que, de per si e por natureza, vem após outra coisa, quer necessária, quer ordinariamente, mas após o que não há nada mais; meio o que de si vem após outra coisa e após outra coisa vem. (ARISTÓTELES, 1996, p.37). 28 Alcibíades é aqui como se dissesse fulano. 75 Na obra fílmica observa-se esta sequência: Acidente de Frida Fratura coluna Pede conselho à Diego Rivera Casa-se com Diego Começa pintar Apaixona-se por Diego Traição de Diego Divorcia de Diego Começa trabalhar para sobreviver Reconhecimento como artista Agrava-se o estado de sua saúde Amputação do pé e da perna Estado de depressão Morte de Frida Conforme Fernandes (2010), Salma Hayek (artista que representou o papel de Frida Kahlo no filme) escolheu e convidou a diretora Julie Taymor, que também como mulher e artista plástica, entende, por ter experiência e ser criativa, muito bem esse mundo particular de Frida. Taymor sabe como expor a dor de Frida, o que ela pensou e o que sentiu, por meio de suas pinturas. O interesse de Taymor ao dirigir Frida veio, inicialmente, da complexidade da relação da artista com seu marido e ela explica: A história do amor entre Diego e Frida foi o que me pegou realmente. Em geral as histórias de amor que vemos seguem um formato do tipo - um cara conhece uma garota, se apaixonam, ficam juntos e depois acaba. Talvez se passem cinco meses ou cinco dias. Mas esta é uma história de amor muito profunda, bela, atormentada e engraçada. (FERNANDES, 2010) 76 Realmente não é uma história piegas. Quando Frida morreu, o casal faria 25 anos de casados dias depois. Entre brigas e separações o amor resistiu e é a respeito destes fatos que esta narrativa se desenvolve. Grande parte da já mencionada tormenta matrimonial foi resultado do caso de Diego com a irmã de Frida, Cristina. Em outras palavras, para Taymor, essa indiscrição incompreensível despertou o tema fidelidade versus lealdade no filme. Segundo Fernandes (2010), “O poder da história entre Frida e Diego reside no fato de que a profundidade de seu amor conseguiu superar as promessas quebradas, as diversas infidelidades em ambos os lados, as tempestades, as separações e, finalmente um divorcio” Diz Taymor: “Nos últimos anos de vida de Frida, quando ela estava doente, presa a uma cama e dependente de morfina – mesmo assim Diego voltou para ela. Eles realmente não conseguiam viver um sem o outro.” Quando Taymor começou a produção e fez uma exigência: pediu que os atores principais tivessem uma compreensão absoluta da arte de pintar. Diferentemente de Taymor, que já é artista, Hayek e Molina nunca pousaram um pincel sobre uma tela. Ainda, segundo Fernandes (2010), a diretora sentiu que as aulas de pintura não apenas auxiliariam na compreensão dos papéis dos atores, mas também aumentariam a autenticidade do filme. Salma se saiu muito bem descobrindo um talento que nunca imaginara ter, no entanto, Molina não se saiu tão bem assim. Brincando, disse para o professor de pintura: “Não consigo pintar nem para salvar minha vida. Não sei desenhar. Eu preciso fingir, e você precisa me ajudar a parecer suficientemente realista para convencer as pessoas.” Para sorte de Molina, os murais e pinturas utilizados em Frida não foram criados pelos atores. Quarenta carpinteiros, trinta e cinco pintores, trabalharam meticulosamente para recriar as famosas pinturas murais. “Eram dois grupos completamente diferentes,” diz o designer de produção Felipe Fernandez. “Aqueles que pintam os trabalhos de Diego não pintam Frida e vive-versa. São técnicas e estilos diferentes.” O grupo “Frida” de artistas recriou quase 50 quadros da artista. Nas cenas em que Diego é visto pintando um mural, a equipe pendurou uma tela, por meio de uma plataforma, em frente ao trabalho original de Diego. Os artistas 77 da equipe faziam rascunhos dos contornos e pintavam partes de seu mural substituto. Como as câmeras diminuem a profundidade dos objetos localizados a distância, as extremidades da tela se fundiam com o mural original, criando a ilusão de um trabalho em andamento. Para as pinceladas em close e aberturas de cena, pedaços menores de diversos murais (incluindo o famoso mural Rockefeller Center), foram recriados para Frida nos Churubusco Studios, na cidade do México. Um recurso utilizado pela diretora Julie Taymor, de maneira muito delicada e eficiente, foi o uso da animação para descrever cenas do filme não só da obra literária para a obra fílmica, mas também da obra pictórica para a obra cinematográfica, de um texto não-verbal para outro texto não-verbal, mudando apenas o suporte de uma tela de linho para uma película de acetato, criando, com isso, primorosos quadros animados. Pode-se observar, conforme Fernandes (2010), que Taymor tinha um forte desejo de apresentar de forma criativa os eventos e os impulsos que marcaram as pinturas altamente biográficas de Frida. “Ela disse que as pinturas eram a sua realidade – que elas dizem a verdade da maneira que foi experimentada” comenta Taymor a respeito da relação de Frida com sua arte. “Eu não queria fazer uma cinematografia normal. Frida claramente pintou episódios de sua vida, porém episódios muito subjetivos. A ideia de que eu poderia mostrar uma artista e seu processo criativo me foi muito atraente.” segundo o critico Trigo (2009)29, “as sequências em que Frida “sai” de suas próprias pinturas são impressionantes, sugerindo a simbiose entre vida e arte que a diretora almejava”. Taymor, em Fernandes (2010), explica: “ao criar o conceito do filme, visualizei sobrepor o realismo de época com uma visão surrealista do que poderia chamar de „pinturas vivas em três dimensões‟”. E ao comentar a aplicação prática desta escolha única e inovadora, acrescenta: “Elementos de suas pinturas se desdobrariam perante meus olhos enquanto Frida os vivenciaria tanto de maneira literal quanto em seu subconsciente.” Um exemplo desta utilização do “estilo Frida” foi na sequência em que o casal viaja para Nova Iorque, dentro da obra fílmica. Taymor contou com a ajuda de uma 29 www.continenteonline.com.br 78 companhia de efeitos especiais, Amoeba Proteus, que criou uma espécie de painel de arte construtivista russa, utilizando fotografias documentais, assim como imagens em filme de viagens para criar a ilusão da viagem de Frida e Diego, utilizando o mínimo de recursos. Essa técnica de colagem foi utilizada por Frida na criação da obra Meu Vestido Está ali Pendurado, como é representado no último fotograma da Figura 37. As obras Frida e Diego Rivera (primeiro fotograma na Figura 88), Autorretrato com o cabelo cortado (Figura 90), As duas Fridas (Figura 74), A coluna partida (Figura 9), são alguns dos outros quadros que a diretora utilizou durante o percurso da história de Frida. Observa-se, no texto de Fernandes (2010), que a escolha de determinados quadros da artista para o filme é explicada por Taymor quando diz: “Cada um foi encarado através de um ponto de vista diferente e surge no filme partir de um momento emocional especifico que serve como catalisador”. No decorrer deste trabalho, serão analisados os quadros acima citados por Taymor e como foram criadas as cenas onde estas obras ganham vida, como também as intervenções de outros estudos e acontecimentos, intercalando e mostrando, assim, como foi elaborado este filme. 2.1 A passagem do tempo Inicia-se, a seguir, a apresentação das sequências de quadros fílmicos que foram escolhidos para mostrar como Julie Taymor ilustrou a passagem do tempo na obra fílmica. 79 Figura 34: Sequência da viagem de Diego e Frida. A Viagem dos pintores para Nova York em tons sépia reporta a recordações de fotos antigas. Apenas os dois artistas se mantêm coloridos, destacando-se e movimentando-se por entre as imagens com colagens e sobreposições. 80 Figura 35: Mostrando a passagem do tempo. Na viagem que Frida faz a Paris, aparece uma sequência de imagens com muita velocidade que mostram a torre Eiffel e o Arco do Triunfo. As imagens são representadas também em cores sépia, porém desfocadas. Quando subitamente pára a cena, percebe-se ser um porta-cartão giratório de postais que Frida está manuseando. (Figura 35). 81 Figura 36: Sequência dos quadros fílmicos de Frida na cama. 82 Outra maneira que a diretora encontrou para representar a passagem do tempo no filme, e, da mesma forma por que as horas não passavam para Frida, nos meses em que ela permanecia engessada, acamada e imóvel, foi uma sequência de quadros fílmicos em que ela modifica a luz do quarto que entra pela janela e em detalhes como o cobertor, que ora estava sobre as pernas de Frida, ora estava fora do lugar, sob suas pernas. Destaca-se ainda o detalhe de uma foto pendurada na cabeceira da cama, que nos primeiros quadros fílmicos não está presente. Pode-se observar que é possível mostrar a passagem do tempo por meio do cenário, assim como mostrar parte do desenvolvimento de uma personagem. Para criar a personagem muitos elementos são necessários: a fala, os gestos, o vestuário, a maquiagem, o cenário e outras coisas se for preciso. (FIELD, 2001), no entanto, diz que precisamos de contexto e conteúdo para a criação deste. Dentro da análise de personagens, encontra-se, de um modo geral, o que todas as pessoas têm em comum, as mesmas necessidades, medos, inseguranças, os mesmos quereres, ter sucesso, ser amado, enfim, algumas coisas que unem uns aos outros. Mas afinal o que os separa? É exatamente aí que entra a personagem, pois a personagem é uma forma de mostrar os diversos pontos de vista, é a maneira de se olhar o mundo. É um contexto. Personagem também é atitude, uma maneira de agir ou sentir, que revela a opinião de uma pessoa. É a revelação que o roteirista vai oferecendo em relação aos aspectos de personalidade e comportamento da personagem. Frida era uma figura encantadora, mostrando-se sempre alegre, apesar da dor, e acima de tudo estava absolutamente inteira, em tudo o que fazia, gostava da vida e vivia intensamente, quando amava, amava com fervor, quando sofria, até seu corpo passava pela performance do sofrimento. Tomemos como exemplo dessa intensidade o episódio em que Frida corta os cabelos e veste roupas de homem para negar sua feminilidade a Diego. Vestia-se com seus trajes Tehuanos como as índias do México, a ponto de ser considerada a mais mexicana dentre os mexicanos, fazendo com que só a presença de seu vestido despertasse a lembrança das indígenas, das mexicanas e da própria Frida. 83 Na sequencia fílmica (Figura 37), por meio de uma animação o vestido de Frida balança ao sabor do vento de inverno de Nova York. Ela não está dentro do vestido, mas somos capazes de sentir-lhe a presença. Figura 37: Animação - “Meu vestido está pendurado ali” Se a personagem é um ponto de vista, é a maneira de olhar o mundo, dependendo de seu estado de espírito, estando ele alegre ou triste, nervoso ou calmo, essas emoções poderão ser apresentadas e representadas, até mesmo no cenário. 84 Figura 38: A casa de Frida ficando azul à medida em que ela fica feliz. Na sequência de imagens, pode-se observar isso com muita clareza. O primeiro quadro mostra Frida de cabeça baixa e triste, pois havia perdido o pai recentemente, há muito tempo estava divorciada de Diego sentindo extrema solidão e ainda tinham lhe amputado alguns dedos do pé direito. Ela se encontra no jardim da casa azul, (que ainda não é azul) sentada em uma cadeira de rodas quando Diego entra pela porta principal e pede para que ela se case com ele novamente. Nesse momento, o jardim que tinha um aspecto de abandono, descuidado e cheio de tristeza começa a se transformar quadro a quadro, mudando a tonalidade de rosa desbotado para um azul real vibrante e o jardim que antes estava seco, desprovido de vida, praticamente sem plantas, começa a florescer e ficar povoado de animais exóticos, como macacos e pavões. É a alma de Frida que está feliz vivendo naquele espaço novamente. 85 2.2 Posições de câmera revelam a personagem Os artifícios usados para identificar e tematizar um filme são feitos para solicitar esta ou aquela reação, ou causar um determinado efeito no espectador. Uma boa parte do filme Frida é realizada com a câmera em plongée, ou seja, filmagem de cima para baixo e este posicionamento de câmera “[...] tende a apequenar o indivíduo, a esmagá-lo moralmente, rebaixando-o ao nível do chão, fazendo dele um objeto preso a um determinismo insuperável, um joguete da fatalidade” (MARTIN, 2007). Esse posicionamento de câmera vem ao encontro com o que nos fala Paulo Freire (2006), sobre o oprimido, a manipulação, a domesticação. Figura 39: Acidente de Frida Figura 40: Frida no hospital 86 Figura 41: Frida no espelho Na maioria das cenas em que Frida aparece, está na posição de oprimida, não necessariamente por alguém, mas às vezes pelo próprio destino. A morte tenta manipulá-la, a doença e o amor por Diego tentam domesticá-la. Mas ela luta sempre bravamente contra seus algozes. Observem-se acima algumas cenas e quadros fílmicos que foram escolhidos e mostram isso claramente e de forma mais impactante. 87 Figura 42: Sequência de quando Frida procurou Diego. Essa sequência fílmica mostra o momento em que Frida, depois do acidente de bonde, e ter recuperado um pouco da saúde, vai à procura de Diego Rivera que está trabalhando em um mural na escola preparatória, pois Frida pintou algumas telas e gostaria que ele lhe avaliasse as obras. Na cena em que ela procura Diego, olhando para o alto, a câmera gira em torno do pátio e em torno dela, terminando por focá-la em plongée, sozinha, minúscula, em um canto do quadro fílmico, com o restante da área totalmente vazio. Pode parecer contraditório ao que foi dito anteriormente sobre a maioria dos quadros fílmicos, Frida aparecer filmada em plongée, porém, verifica-se que nos seis primeiros fotogramas da sequência (figura 42) ela é filmada em contraplongée. Mas, seu olhar dirige-se para o alto, indicando que procura algo que, ainda assim, está acima dela. Pode-se perceber desde já, o tipo de relacionamento que ela teria com Diego. Para ela, Rivera era um deus, grande, alto em todos os sentidos e era assim que Frida o veria pelo o resto da vida. Nesse sentido, os artifícios criados pela câmera ajudam a entender porque existem múltiplos modos de reagir daquele que aprecia o filme. Figura 43: Diego Rivera no Hospital. 88 Em contrapartida Diego Rivera é sempre visto em cenas contra-plongée, ou seja, filmado de baixo para cima. Até mesmo na cena do hospital em que ele se encontra muito aborrecido e triste, logo após o aborto que Frida sofreu. Porém, a obra de Frida é filmada em plongée. Observe que a câmera está posicionada acima do ombro de Diego. Como já foi citado anteriormente. Diego está sempre sendo enaltecido pelo olhar da câmera. De quem seria esse olhar? De Frida talvez... Ela o amava e o admirava acima de qualquer coisa. Foi encontrado escrito na página de seu diário um poema para Diego que deixa claro o valor que ela lhe conferia: Diego começo Diego construtor Diego minha criança Diego meu noivo Diego pintor Diego meu amante Diego “meu marido” Diego meu amigo Diego minha mãe Diego meu pai Diego meu filho Diego = Eu= Diego Universo Diversidade na unidade (t.n.) 30 30 Diego principio - Diego constructor - Diego mi niño - Diego mi novio - Diego pintor - Diego mi amante - Diego “mi esposo” - Diego mi amigo - Diego mi madre - Diego mi padre - Diego mi hijo - Diego = Yo = - Diego Universo - Diversidad em la unidad (KAHLO, 2008, p. 235). 89 Figura 44: Diego Rivera e Rockfeller Esta cena é uma das poucas em que Diego aparece com a posição de câmera em plongée e fica muito evidente que ele está passando pelo papel de oprimido, enquanto Rockfeller está no papel de opressor. O empresário está discutindo com Diego Rivera, sobre o tema da pintura do mural de que o artista foi incumbido, dizendo ao pintor que está descontente com seu trabalho, uma vez que este colocou o rosto de Stalin, um comunista, representado no mural da parede de um capitalista. Frida, no entanto vê Diego como um Michelangelo. No filme, a maneira como muralista é colocado por Taymor na maioria das cenas, geralmente em contra-plongée, leva a pensar que essa era realmente a visão que Frida teria dele. Outro motivo é o amor obsessivo que a artista tinha por Rivera. Logo a seguir, nas figuras 45 e 46, uma panorâmica da pintura de Diego na Capilla Riveriana e nas figuras 47 e 48, também uma panorâmica, mas desta vez da Capela Sistina, de Michelangelo; para que se possa fazer um paralelo destes dois artistas. 90 Figura 45: Sequência de quadros fílmicos da capilla Riveriana com o afresco Cântico à Terra e aos que Trabalham e Libertam, Diego Rivera, 1926 -1927 Figura 46: Vista da nave, da cúpula, de algumas paredes pintadas por Rivera. Cântico à Terra e aos que Trabalham e Libertam, Diego Rivera, 1926-1927. Fonte: Flickr 91 Figura 47: Capela Sistina, Michelangelo, 1508 -1512 Fonte: Flickr 92 Figura 48: Teto da Capela Sistina, Michelangelo, 1508 -1512 Fonte: Flickr 93 Quando no filme aparece essa sequência (Figura 45) das pinturas de Diego, imediatamente é fácil relacioná-las com as cenas de pintura da Capela Sistina, na Itália, pintada por Michelangelo. No livro Rivera, de Andrea Kettenmann (2001), que trata da vida e obra do artista, há uma passagem que fala sobre a pintura desta obra, um afresco, que está pintado na nave e cúpula da capilla Riveriana na Universidad Autónoma de Chapingo, Escuela Nacional de Agricultura de Chapingo. Essa igreja, pintada por Diego é, como muitas outras igrejas cristãs, construída sobre as fundações de uma antiga pirâmide-templo asteca. Aqui fica explícita a imposição da cultura européia sobre a cultura e origem mexicana. Existem várias formas de composição de um filme e, de um modo geral, uma impera, emudece ou controla as outras: é o caso dos filmes-denúncia, dos filmes de vanguardas expressivas ou dos melodramas, por exemplo, em que a procura de realização de ideias ou efeitos ou emoção consomem praticamente todos os recursos aplicados na obra. Há filmes em que os vários meios de efeitos se combinam de maneira homogênea, outros em que apenas dois deles permanecem presentes. Fica uma ressalva que nenhuma dessas formas tem maior ou menor valor artístico que a outra. O filme de Taymor tem como gênero a classificação de drama e o tema da morte é uma constante na obra, apesar de Frida brincar e rir dela. A diretora trabalha esta temática com a câmera de duas maneiras distintas: em plongée e contra-plongée, quem sofre a perda, no caso os familiares de Frida, com a morte da progenitora, a posição de câmera no cemitério está em plongée e coloca as pessoas em posições pequenas e insignificantes, presas a esse determinismo insuperável. 94 Figura 49: Cena do cemitério, dia da morte da mãe de Frida Figura 50: O Dia dos Mortos. Nesses fotogramas, nota-se novamente a temática da morte. É o Dia dos Mortos e Frida está no cemitério homenageando a mãe, quando Diego aparece para lhe falar. Novamente, nos dois primeiros quadros, a câmera está em plongée quando se refere a Frida. No entanto, Diego, mesmo pedindo um favor a ela, quando ele deveria estar em posição de humildade, a câmera o foca em contra-plongée. Importante atentar para o fato de que neste período o casal estava separado pelo motivo de traição de Diego com a irmã de Frida. A obra cinematográfica expõe uma das tradições mais relevantes para o povo mexicano: a comemoração do Dia dos Mortos. Incluída na lista do Patrimônio Cultural Imaterial da UNESCO, é uma festa muito alegre, e segundo a crença popular, os mortos voltam para visitar seus parentes. Festejada com música, comida, bolos e doces, sendo os preferidos das crianças as caveirinhas modeladas em açúcar. As origens da celebração no México são anteriores à chegada dos espanhóis. Os nativos, como os astecas e os maias, já praticavam este culto pelo menos há três mil anos. Era comum, no período pré-hispânico, o costume de preservar os crânios como troféus, e 95 exibi-los nos rituais que celebravam a morte e o renascimento. Aqui constata-se a origem das caveirinhas de açúcar tão propagadas no Dia dos Mortos. Nesse sentido: Uma maneira de entender a tradição é vê-la como um conjunto de pressupostos de fundo, que são aceitos pelos indivíduos ao se conduzirem na vida quotidiana e transmitidos por eles de geração em geração. A tradição não é um guia normativo para a ação, mas antes um esquema interpretativo, uma estrutura mental para entender o mundo. (THOMPSON, 1998, p.163) Segundo Silva (2010)31, essa tradição mexicana não se trata apenas de cultuar a morte, mas de aproximá-la e vivê-la. Essa comemoração serve também para comprovar aos não mexicanos que ela é uma realidade cultural e poeticamente de vivenciar a morte. Frente a esse convívio tão aberto e incomum com a morte, a relação com a vida também se vê modificada. São nas raízes indígenas que residem a pureza e a autenticidade cultural do México. Mas: “Convertendo as culturas indígenas em espetáculo, o turismo força a estereotipagem das cerimônias e dos objetos, misturando o primitivo e o moderno, numa operação que, entretanto, mantém a diferença subordinada do primeiro com relação ao segundo. E, por fim, a pressão exercida pelo Estado, transformando o artesanato e as danças em patrimônio cultural da Nação, exaltando-as como capital cultural comum, isto é, usando-a ideologicamente para fazer frente à fragmentação social e política do país.” (MARTÍN-BARBERO, 2008 p.265) No prosseguimento desta temática da morte, será destacado o episódio de Trotsky32 e seu refúgio no México devido a ameaça de ser assassinado por complicações políticas na Rússia com seu rival político, Stalin. Trotsky e sua esposa foram abrigados na casa azul de Frida. Aliás, foi esse o pedido que Diego lhe fez no cemitério no festejo do Dia dos Mortos. 31 32 SILVA, disponível em:< http://www.terra.com.br/revistaplaneta/mat_398.htm>. Acesso em: 10 de out, 2010. Intelectual marxista e revolucionário Bolchevique, fundador do Exercito vermelho e Rival de Stalin, foi expulso e exilado da União Soviética refugiando-se no México, onde veio a ser assassinado por Ramón Mercader, agente de Stalin. 96 Figura 51: Cenas de proteção a Trotsky. Pelas posições de câmera plongée, podemos notar que a situação ameaçadora, alarmante e eminente, mostrando-se acima de todos eles, inclusive do segurança armado que faz a vigília do alto da construção. Figura 52: As tias de Frida No desenrolar do episódio, duas tias de Frida ficam sabendo que ela está abrigando um comunista. Vão até a porta da casa para jogar água benta. É quando o vigilante do alto do telhado lhes aponta uma arma. A câmera focaliza esta cena em contra-plongée, mostrando a superioridade deste homem. Ainda na cena, Frida rapidamente empunha uma arma e vai espantá-las. Ela desta vez quem ganha 97 proporções gigantescas em relação às duas mulheres, que são filmadas em plongée. Com este posicionamento de câmera Frida adquire uma postura de quem domina, ameaça e oprime. Figura 53: A morte e a representação em contra-plongée. Com o estudo do posicionamento de câmera como estratégia da composição da linguagem, e o assunto relacionado à morte, nos fotogramas acima – representativos do acidente de bonde –, no quadro da esquerda, o homem é filmado em contra-plongée no momento do choque do bonde com a parede tendo os vidros estilhaçados e jogados para frente. Porém, existe algo a ser destacado, além disso. Trata-se da representação da morte, que sendo filmada de baixo pra cima, prenuncia o jogo da fatalidade porque se considera a morte como algo superior às forças humanas, em relação ao qual nada se pode fazer. Na cena da morte de Trotsky, quadro à direita (figura 53), também a câmera está posicionada em contra-plongée mostrando que o homem que traz a água, na verdade, é o assassino. Para se fazer uma narrativa adequada e com clareza necessária, seleciona-se cada plano, devendo conter ajuste entre a dimensão do plano e seu conteúdo material e quanto menos elementos há para se ver, tanto maior ou próximo é o plano. Por outro lado, a importância dramática ou sua significação, o tamanho do plano amplia conforme seu teor ideológico. 98 [...] o tamanho do plano determina em geral sua duração, sendo esta condicionada pela obrigação de dar ao espectador tempo material para perceber o conteúdo do plano: assim, um plano geral costuma ser mais longo que um primeiro plano; mas é evidente que um primeiro plano poderá ser longo ou bastante longo se o diretor quiser exprimir uma idéia precisa: o valor dramático prevalece então sobre a simples descrição. É mais interessante lembrar, que todos os tipos de plano foram utilizados desde antes do cinema pelas arte plásticas, decorativa e de ourivesaria (paisagens, retratos de corpo inteiro ou de busto, medalhões, camafeus, etc.) (MARTIN, 2007, p. 37-8 ). Figura 54: O ateliê de Diego e Frida com vista externa (à esquerda) e vista interna (à direita) Observa-se aqui o ateliê de Diego e Frida em dois momentos: em um teremos a visão externa dos dois ateliês unidos por uma ponte e como diz Frida, representa o amor dos dois, sendo o ateliê rosa de Diego e azul o de Frida. Mostram um plano geral com posição da câmera em contra-plongée comparando a grandiosidade de uma pirâmide asteca, com a cerca feita de cactos, planta característica do México. No entanto, quando se examina o ateliê por dentro, ele é filmado também em plano geral; porém, com a posição da câmera em plongée para mostrar o estado de espírito de Diego, que estava em uma crise de depressão, por ter vindo dos Estados Unidos, de certa forma forçado e culpando Frida por fazê-lo voltar para o México. Percebe-se uma total desordem do ambiente, um caos, tudo fora de lugar; porém, tem a finalidade clara de mostrar este estado de espírito de Diego, e mais além; está preparando o espectador para o que irá acontecer logo mais, pois será neste local que Diego irá trair Frida com Cristina, a irmã da pintora. Obeserva-se como as personagens estão pequenas e insignificantes, elas são também como os objetos naquele ambiente e 99 como cita Martin (2007, p.41), sobre a utilidade do plano de filmagem e também do uso da plongée: Reduzindo o homem a uma silhueta minúscula, o plano geral o reintegra no mundo, faz com que as coisas o devorem, “objetiva-o”; daí uma tonalidade psicológica bastante pessimista. Uma ambiência moral um tanto negativa, mas às vezes também uma dominante de exaltação, lírica ou mesmo épica. O plano geral exprimirá, portanto; a solidão, a impotência às voltas com a fatalidade. Já na cena externa do ateliê, o tema é fotografado de baixo para cima, ficando a objetiva abaixo do nível normal do olhar. Neste caso o ângulo de filmagens chama-se contra-plongée e dá geralmente uma impressão de superioridade, exaltação e triunfo, pois faz crescer os indivíduos e tende a torná-los magníficos, destacando-os contra o céu aureolado de nuvens. (MARTIN, 2007, p.41). Figura 55: Separação de Frida e Diego. Aqui, novamente, observa-se um plano geral com pouquíssimos elementos a serem observados, e a posição de câmera na posição de plongée reduz os seres a nada, ao inevitável. Diego e Frida discutem, e se separam. O plano aberto ajuda a ampliar mais ainda a sensação de solidão, as cores são frias e a rua desolada, árida e seca como que determinando que nada ali frutifique. Dando continuação ao uso de posição de câmera relacionada à narrativa, na sequência posterior ao assassinato de Trotsky, a polícia detém Frida para interrogar sobre o paradeiro de Diego, mas ela não sabe informar devido ao rompimento do 100 relacionamento. Quem liberta a artista da prisão é sua irmã Cristina, que já havia sido perdoada por Frida pela traição com Rivera. Figura 56: Frida na prisão. Nos dois primeiros quadros fílmicos, têm-se cenas do interrogatório de Frida, e, novamente, a câmera em plongée, e em primeiro plano, tem um grande significado psicológico e dramático no filme, colocando-a na posição de oprimida, intimidada e de uma criatura desprezada. No terceiro quadro, a cena não está em plongée, mas o posicionamento da personagem ao canto direito da cena e a atmosfera fria e tristonha, com uma luz azulada rasgando as sombras, aumenta a sensação de solidão, principalmente porque todo o restante do quadro está imerso nas sombras. Com a personagem deslocada para a lateral do quadro, olhando para o espectador como que pedindo ajuda. Nos dois últimos quadros fílmicos, a posição de câmera em ângulo plongée e o plano geral centralizado em uma perspectiva simétrica criando uma sensação de luz no fim do túnel mostrando as duas irmãs saindo da prisão, porém humilhadas pela situação constrangedora por que passaram. 101 Figura 57: Cenas do vernissage de Frida. A sequência acima mostra o vernissage de Frida, em que mesmo já com o reconhecimento pela sua arte, as cenas continuam a posição de câmera em plongée para a artista. No terceiro e no quarto fotograma, estão Lupe (ex-esposa de Rivera), o médico da pintora e Diego, que ao dirigirem o olhar para baixo subtende-se que eles estão se comunicando com alguém abaixo deles. Mas, esta câmera na posição de contra-plongée são os olhos de Frida a olhar de baixo para cima: a manifestação de um sentimento dela mesma ser uma vítima, uma presa do destino. Os ângulos de filmagem excepcionais podem adquirir uma significação psicológica objetiva, quando não são explicados por uma conjuntura ligada a ação. O uso do ângulo contra-plongée, na maioria das vezes indica uma situação de superioridade, exaltação e triunfo, pois crescem os indivíduos tornando-os admiráveis. 102 Figura 58: Frida em contra-plongée. São pouquíssimas as cenas em que Frida aparece com um ângulo de filmagem em contra-plongée. Temos acima dois exemplos. Este foi um período em que ela esteve em Paris, longe de Diego, para sua exposição que seria organizada por Breton. Estava sozinha, porém relativamente feliz. A seguir observam-se alguns quadros, em que a pintora aparece em cenas de igualdade em relação a Diego, às outras pessoas e às situações vividas por ela. Em algumas cenas do filme onde observamos esta situação de igualdade vem também acompanhada do o uso da profundidade de campo que “[...] consiste em distribuir os personagens e objetos em vários planos e faze-los representar, tanto quanto possível, de acordo com uma dominante espacial longitudinal.” (MARTIN, 2007, p.165). O posicionamento de câmera que desta vez filma na altura do personagem, não cria ângulos para caracterizar-se plongée ou contra-plongée. Os planos de distanciamento normal da câmera, no caso destes quadros fílmicos, têm duas classificações, ou seja: plano médio, onde a personagem é vista dos pés a cabeça, e plano americano; que mostra o personagem dos joelhos para cima. 103 Figura 59: Frida em passeata pelo partido comunista. Figura 60: Frida posando como modelo para Diego, vestida de “camarada”. Figura 61: Frida vestida de noiva para seu casamento como índia mexicana. Figura 62: Frida fumando pensativa sentada em uma poltrona quando esteve nos Estados Unidos. Figura 63: Frida e Diego no dia do casamento. Figura 64: Frida almoçando com Diego Rivera na cozinha da casa azul. Figura 65: Frida no hospital divertindose com crianças, que fazem um teatro de bonecos. 104 A maioria dos diversos tipos de planos tem por objetivo a facilidade da percepção e da clareza da narrativa. Figura 66: Frida aconselhando Diego Figura 67: Frida e sua criada Figura 68: Frida posando como modelo para capa da revista Vogue. Nos planos mostrados acima, o posicionamento da câmera indica a relação de igualdade de Frida com outras personagens. Na figura 66, a câmera se posiciona em ângulo contra-plongée e foca os dois personagens nessa relação de igualdade, ambos estão sentados num momento de descanso, e Frida aconselha Diego. Na cena com a índia mexicana que a auxilia vestir-se no dia de seu casamento (Figura 67), a câmera reforça a relação de igualdade, assim como na cena em que Frida está com um fotógrafo posando para a revista Vogue (Figura 68). Em ambos os casos não se fez uso de posicionamento específico de plongée e contra-plongée. 105 2.3 Locações mexicanas Segundo informações de Fernades (2010), Frida foi filmado inteiramente em locações no México, de abril a junho de 2001. Taymor utilizou diversas locações históricas conhecidas pelos personagens do filme. A arquitetura rica e diversa do México também permitiu encontrar locais apropriados para locações das cenas de Paris e Nova Iorque, nas décadas de 1930 e 1940. Conforme se observa em Fernandes (2010), o diretor de fotografia do filme, o mexicano Rodrigo Pietro, com a colaboração da diretora Taymor, tiveram a ideia de pintar o mundo de Frida com a câmera, com pinceladas fortes e vibrantes, com a luz do sol sem filtros e todas as cores excitantes do México. Ambos queriam usar as cores ricas e vivas das pinturas de Frida, e por isso precisaram “[...] encontrar locações que não fossem muito poluídas, pois as cores eram provavelmente muito mais vivas nos anos 20 do que hoje em dia”. Na opinião de Taymor, foi extraordinário filmar em locações reais, pois era essencial para a autenticidade de Frida, uma vez que poderiam se sentir melhor os detalhes; ver nos rostos, na arquitetura, nas paisagens, nas coisas que você não pode reproduzir, da mesma forma, estar cercada pelos sons e pela música, a comida e a sensação da cultura mexicana fez com que tudo tomasse vida. O governo mexicano ajudou muito nesse sentido. A equipe mexicana, liderada por Rodrigo Pietro (diretor de fotografia), Felipe Fernandez del Paso (desenho de produção), Bernardo Trujillo (direção de arte) e Julie Weiss (figurino), estava tão entusiasmada que foi além dos padrões, sem nunca tomar atalhos ou dizer que algo não poderia ser feito. Os escritórios de produção e estúdios para Frida ficaram em Churubusco Azteca, na cidade do México, a maior metrópole do mundo (25 milhões de habitantes). Estes estúdios, construídos em 1945, abrigaram inúmeras produções cinematográficas, incluindo diversos westerns de língua inglesa. A cidade do México também ofereceu 106 diversas locações históricas, incluindo a Escola Preparatória Nacional, O Majestic Hotel e o Ministério da Educação, onde se encontram quase 60 murais de Diego. Para recriar Coyoacan nos anos 1920, a equipe e o elenco viajaram para Puebla, cerca de 150 km ao leste da Cidade do México, para a primeira semana de filmagens. Localizada aos pés da Sierra Madre, essa cidade de quatrocentos anos conta em seu centro histórico com exemplos de arquitetura Colonial, Renascentista e Neo-Clássica. Como a casa real de Frida Kahlo (a Casa Azul) é agora um movimentado museu, a equipe criou uma réplica da casa e de seu quintal no Estúdio 4, em Churubusco. Figura 69: Casa azul onde viveu Frida Kahlo. A casa onde Frida nasceu tinha: As paredes pintadas de um azul intenso na construção de estuque, tendo somente um piso, destacando-se altas janelas com muitos vidros e postigos verdes, que serviam de passagem para o pátio central, avivado pelas agitadas sombras das árvores... Dois gigantescos judas de papier-mâché de quase sete metros de altura guardam a entrada, posicionados de maneira que parecem estar dialogando. Ao passar por eles entra-se em um jardim com plantas tropicais, fontes e uma pequena pirâmide adornada com ídolos pré33 colombianos. (t.n.) 33 Los Muros de un intenso color azul em la construción de estuco y un solo piso son avivados por alta ventanas de muchos cristales y postigos verdes, así como por las agitadas sombras de los árboles. ...Dos gigantescos judas de papier-mâché y casi siete metros de alto guardan la entrada, haciéndose ademanes como si estuvieran conversando. Al pasarlos se penetra en un jardín con plantas tropicales, fuentes y una pequeña pirámide adornada com ídolos precolombianos. ( HERRERA,2007, pag,19) 107 Uma casa baseada na autêntica arquitetura mexicana que Taymor reproduz logo nas primeiras cenas do filme, fazendo esta descrição de maneira detalhada, como podemos observar nos quadros fílmicos, com um jardim central com muitas plantas, árvores e alguns animais exóticos, como pavões, macaquinhos, e até um veado de nome Granizo, que vieram substituir os filhos que Frida não teve. Outras locações em Puebla incluíram os prédios do Protocolo e Presno para os interiores de Nova Iorque e Paris, o cemitério municipal de Puebla para a cena do Dia de Los Muertos; e o restaurante La Guadalupana para a sequência de pulqueria. Figura 70: Frida e Diego na segunda lua-de-mel. Segundo informações citadas por Fernandes (2010), quando Diego e Frida casam-se pela segunda vez, fotos de arquivo mostram a segunda lua-de-mel de Frida e Diego em Xochimilco, os Jardins Flutuantes da cidade do México, que datam dos tempos dos Astecas. Taymor recriou as coloridas Trajineras (gôndolas mexicanas) (figura 70) para uma cena particularmente romântica com Hayek e Molina deslizando através do exótico jardim. Hayek ainda recebeu uma permissão especial para filmar em Teotihuacan, as ruínas de uma antiga cidade abandonada descoberta pelos Astecas, localizada a aproximadamente 55 quilômetros da capital. Teotihuacan, que significa “Local Onde os Deuses São Feitos,” tem diversas pirâmides ao longo da Avenida dos Mortos. Quando os oficiais do governo recusaram inicialmente, Hayek foi ao presidente do México, Vicente Fox, e explicou o respeito por Frida mantido pela produção e a necessidade de filmar a cena de Teotihuacan na locação. Fox escutou com atenção à apaixonada explicação de Hayek e lhe concedeu acesso às pirâmides. 108 Figura 71: Série de panorâmicas do filme Frida nas pirâmides, onde Frida escala uma delas com Trotsky. 109 De acordo com Fernandes (2010), Taymor e Hayek também receberam uma permissão especial para filmar dentro e fora dos estúdios de Diego Rivera, em San Angel, um subúrbio da Cidade do México, próximo a Coyoacan. Construída em 1933, essa residência-estúdio é considerada um tesouro arquitetônico. Diz Hayek: “Frequentei o Museu Diego Rivera por dezessete anos e existem áreas em que você não pode entrar, que ficam fechadas. Com Frida, me encontrei nesta casa onde durante anos eu apenas imaginava o que se encontraria por detrás disto ou daquilo. Arrepiei-me quando entramos e eu estava vestida como Frida, e lá estavam Diego e o cão deles, uma raça sem pêlos chamada Xolotzcuincle. O cão que temos no filme é um descendente de um dos cães de Frida. Foi impressionante recriar um momento no lugar onde ele realmente aconteceu.” É relevante observar que este filme aconteceu principalmente pelo empenho da atriz Salma Hayek que ambicionava atuar no papel da artista desde os doze anos de idade. Se constata que a atriz era fã incondicional da artista, tendo envolvimento pessoal e emocional muito profundo. Assim, a concretização de interpretar somado ao fato de usar locações reais e vividas por Frida Kahlo, a atriz veio construindo, desde a mais tenra idade, um projeto simbólico que é o seu self. Quando se assiste ao filme Frida, ocorre uma identificação com a artista em vários pontos. É capaz de olhar o filme e ver a vida sob uma nova perspectiva. Espelhar-se em Frida, em suas atitudes e coragem, sua relação estreita com o local de origem, usando suas roupas, flores no cabelo, sendo isso tudo elementos na formação do self. Desta forma percebe-se um modelo para uma postura comparativa, reflexiva e de maneira critica das próprias condições de vida. Se entendemos o self como projeto simbólico que o indivíduo vai modelando e remodelando no curso de sua vida, fica fácil ver também que este projeto implica um conjunto de prioridades continuamente modificáveis que determinam a relevância ou não de experiências reais ou possíveis. Este conjunto de prioridades faz parte integrante do projeto de vida que cada um constrói para si (THOMPSON, 1998, p.198). 110 Além de artista excêntrica, Kahlo criara em torno de si uma aura de força e superação, um modelo do qual Salma Hayek se orgulhava, pois era uma forte relação de identidade, as duas são mexicanas e com porte físico muito semelhante. Constatase que Frida é um mito, um modelo de criação de self para outras pessoas. 2.4 O sapo e a pomba Não foi Diego que apresentou Tina Modotti à Frida, como mostra o filme, mas sim o contrário. Frida ingressa no Partido Comunista Mexicano, começa a formar a sua consciência política e posa de modelo para murais que pinta Diego Rivera. Herrera (2007) cita que Diego faz um comentário grosseiro a Frida, enquanto ela posava para um retrato, “Você tem cara de cachorro.” (t.n.)34 Frida não se deixou intimidar e respondeu “E você tem cara de sapo.” (t.n.)35. Figura 72: Quadro fílmico do desenho que Diego fez para Frida representando uma pomba e um sapo enorme. 34 35 “Tienes cara de perro” (HERRERA, 2007, p. 129). “Y tu tienes cara de rana!” (HERRERA, 2007, p. 129). 111 Na obra fílmica, essa grosseria nos é mostrada na cena da noite de núpcias do casal, juntamente com um desenho que Diego faz para ela como pedido de desculpas: uma pomba sobre a cabeça de uma rã enorme. A mãe de Frida mostra claramente o descontentamento de vê-la casar-se com Diego, dizendo que ele é muito mais velho que sua filha, gordo, feio, comunista e ateu, ainda que fosse rico. Acrescentando ao comentário que era o casamento de um elefante (ela o considera um elefante) com uma pomba. Mas, é o pai de Frida quem traz à lembrança da esposa que foi Diego quem pagou a hipoteca da casa, pois eles estavam com sérios problemas financeiros. Na obra literária, Herrera (2007) coloca alguns comentários de Frida sobre o dia de sua boda: “Ninguém com exceção de meu pai foi ao casamento.” (t.n.)36. E Frida acrescenta sobre o seu vestido de noiva, “Pedi emprestada a criada da casa umas saias, que também me emprestou uma blusa e um xale.” (t.n.)37. Porém, na obra fílmica a cena do casamento mostra o comparecimento de muitas pessoas, da família, até mesmo Lupe, ex-esposa de Diego, que faz uma cena de ciúmes em relação à troca de pernas, que ela supõe ter havido. Em relação ao vestido usado por Frida, a principio ela aparece vestida como uma noiva européia, a propósito o vestido branco é muito parecido com o da obra Duas Fridas (1939), pintada anos depois. Mas ela aparece na sala onde Diego se encontra, vestida com roupas tipicamente mexicanas, que pertenciam à criada que a auxiliou a vestir-se. Percebe-se aqui já um nacionalismo pelo México e a negação das coisas estrangeiras que Frida alimentou por toda a vida. Abaixo, nas figuras 73 e 75, observa-se os quadros fílmicos de Frida como noiva européia com a criada que lhe emprestará o vestido ao fundo, e ao lado a figura 74 o quadro Duas Fridas. 36 37 “Nadie, con excepción de mi padre, fue a la boda.” (HERRERA, 2007, p. 135). “Le pedi unas faldas a la sirvienta; quien también me presto la blusa y El rebozo.” (HERRERA, 2007, p. 134 e 135). 112 Figura 73: Frida no dia se de seu casamento Figura 75: Frida com sua criada Figura 74: As duas Fridas, 1939 Fonte: Kettenmann, 1994 Figura 76: Frida apresentando-se à Diego Como já foi citado anteriormente, para Taymor transformar a obra literária, de mais de seiscentas páginas, em cento e vinte três como pede o roteiro sugerido por Field (2001), foi necessário juntar fatos que subtendessem outros, não sendo necessário seguir o livro original, pois são obras independentes e separadas. Aqui notam-se alguns contrapontos bem claros, por exemplo: - Herrera (2007) acrescenta que na noite do casamento, Diego bebeu tequila um pouco mais do que devia, “[...] sacou a pistola e feriu, quebrando o dedo mindinho de um homem, além de outras coisas.” (t.n.)38 Discutiram e Frida saiu chorando, indo para a casa dos pais. Passaram-se alguns dias para que Diego a fosse buscar e a levasse para a casa do casal. 38 “[...] saco la pistola y rompió el dedo meñique de un hombre, además de otras cosas.” (HERRERA, 2007, p. 136). 113 Figura 77: Quadros fílmicos com Lupe levantando as próprias saias e as de Frida para comparar as pernas de ambas. - Na obra fílmica, o casal briga porque Lupe Marin faz uma cena de ciúmes humilhando Frida e ele não a defende das agressões da ex-esposa, rindo o tempo todo, tamanha era sua embriaguez. - Outra cena que Taymor coloca na obra fílmica, juntando fatos da obra literária, é quando Diego está em uma festa na casa da fotógrafa Tina Modotti, e recebe acusações de Mella, namorado de Tina, que o acusa de pintar murais para os capitalistas, sendo que ele era comunista. Diego, muito zangado, saca a pistola e dá um tiro no gramofone que tocava um disco. Esses fatos na obra fílmica são colocados bem antes de Frida e Diego se casarem. Já na obra literária esse tiro acontece no dia do casamento como foi citado acima. Figura 78: Lupe ensinando Frida a cozinhar 114 - O filme mostra também que Lupe, no dia seguinte ao casamento de Frida, faz um molle, típico prato mexicano, de que tanto Diego gosta e leva aos noivos para almoçarem. Quando Frida descobre fica furiosa e vai tirar satisfações com Lupe, que pergunta se gostou do prato, no que Frida faz sinal com a cabeça que “um pouco”. Lupe então oferece para ensinar-lhe o prato que tanto agrada a Diego. Esta aceita e enquanto cozinham, Lupe conta que, certa vez, ela descobre que Diego a está traindo. Então, louca de ciúmes, se apodera de seus ídolos pré-colombianos, feitos de cerâmica, os moeu e colocou na sopa para ele comer. Frida associa o ato de Lupe ao mito de Medeia que, ao descobrir que Jazão a traía, mata os próprios filhos como vingança, para feri-lo. As duas se tornam amigas, e Frida até pinta um retrato de Lupe em sinal de gratidão. Mas, na obra literária levaram-se meses para que este fato ocorresse. - É interessante notar também como a diretora Julie Taymor dá indícios da bissexualidade de Frida quando ela dança um tango de uma maneira muito sensual com a fotógrafa Tina Modotti, terminando em um tórrido beijo na boca. Essa cena não acontece na obra literária. Figura 79: Autorretrato com vestido de veludo, 1926 Fonte: Kettenmann, 1994 115 Este é o retrato que Frida leva, na obra fílmica, para mostrar a Diego Rivera, pedindo-lhe a opinião a respeito, perguntando-lhe se deveria continuar a pintar ou não. Este quadro tem características renascentistas, mas Diego já vê a artista que se manifestará em Frida. A pintora narra esta passagem, que está contida na obra literária: Quando me foi possível caminhar e sair a rua, fui ver Diego Rivera com meus quadros. Este estava pintando os afrescos na Secretaria da Educação. Somente o conhecia de vista, porém o admirava muitíssimo. Tive a audácia de falar-lhe para que descesse do andaime e viesse ver minhas obras, e me dissesse com sinceridade, se tinham ou não algum valor. “Diego desça”. E como ele é tão humilde e amável, desceu. “Olhe, não venho coquetear , ainda que sejas mulherengo. Venho mostrar-lhe meus quadros. Se são interessantes diga-me, e se não, também; para ir trabalhar em outra coisa e assim ajudar meus pais.” Então ele me disse : “Olhe, em primeiro lugar teus quadros são muito interessantes, sobretudo este autorretrato que é mais original. Os outros se nota a influência do que já existe. Volte para casa, pinte um quadro e no próximo domingo irei vê-lo e direi o que penso. “Assim o fez, e me disse: “Você 39 tem talento.” (t.n.) Alguns dias após esta visita à casa de Frida, Diego conta que a beijou pela primeira vez. Figura 80: Quadros fílmico do primeiro beijo com Diego. 39 En cuanto me permitieron caminar y salir a la calle, fui a ver a Diego Rivera con mis cuadros. En ese entonces estaba pintando los frescos en la Secretaría de Educación. Sólo lo conocía de vista, pero lo admiraba muchísimo. Tuve el valor de hablarle para que bajara del andamio y viera mis cuadros, y me dijera, com sinseridad, si tenían o no algún valor...Sin más ni más le dije: “Diego, baja.” Y por como es él, tan humilde, tan amable, bajó. “Oye, no vengo a coquetear ni nada, aunque seas mujeriego. Vengo a mostrarte mis cuadros. Si te interesan, dìmelo, y si no, también, para ir a trabajar en outra cosa y así ayudar a mis padres.” Entonces me dijo: “Mira, en primer lugar me interesan mucho tus cuadros, sobre todo este retrato tuyo que es el más original. Me parece que en los otros se nota la influencia de lo que hás visto. Ve a tu casa, pinta um cuadro, y El próximo domingo iré a verlo y te diré qué pienso. „Así lo hizo, y me dijo: Tienes talento.” (HERRERA, 2007, p.119 e 120) 116 A diretora Julie Taymor narra o início do namoro deste casal nada convencional de maneira muito leve e às vezes até engraçada contando alguns fatos interessantes ocorridos com os dois. O primeiro beijo de Frida e Diego não acontece pela primeira vez na obra fílmica como Herrera cita no livro. A diretora aproveita um fato ocorrido e contado por Diego para criar a cena que aparece no filme. O casal chega às portas do ateliê de Diego. E quando ainda estão na rua despedindo-se, as luzes elétricas dos postes se acendem e se apagam coincidentemente, todos de uma vez quando eles se beijam, ele comenta em tom de brincadeira com Frida que havia preparado aquele acontecimento. A partir desse momento, sem que se perceba, a obra pictórica de Frida começa a misturar-se com a vida real, criando uma simbiose, em que vida e obra da artista se fundem. É quando começa a fazer uma obra autobiográfica. 117 Figura 81: Autorretrato, cerca de 1938 Fonte: Kettenmann, 1994 CAPÍTULO 3 3 A simbiose da vida e da arte Criar uma relação simbiótica entre vida e arte, sempre foi a necessidade principal de Frida Kahlo. Este último capítulo revela como, na produção de um filme, Julie Taymor apresenta, por meio de técnicas de efeitos especiais e do uso das cores presentes nas obras da artista mexicana, sugerir essa simbiose. A obra cinematográfica inicia-se e segue a mesma sequência de cenas e fatos ocorridos no prólogo da obra literária de Herrera (2007). Já no princípio é apresentada a personagem Frida com suas características físicas e de personalidade. Também aparece outra personagem, Diego Rivera, importantíssimo dentro da trama, sendo ele o fator desencadeante até mesmo para existir a personagem principal, ela que vive em função dele, de modo que ela utiliza como inspiração para sua obra pictórica situações vivenciadas com ele e por ele. E como afirma Field (2001, p.53), “finais e inícios se relacionam, e esse princípio deve ser aplicado ao roteiro”. Um bom filme termina da maneira muito semelhante como começou, no caso de Frida veremos que a obra cinematográfica começa com Frida em sua cama com dossel indo para a abertura de sua exposição e termina com a artista na cama com dossel, sendo que a diretora, por meio de uma animação, faz uma alusão à morte da pintora de maneira criativa, soltando fogos de artifício, como se fosse uma festa, um ritual de libertação, casando com o que Frida escreveu na última página de seu diário “Espero a partida com alegria... e espero não voltar jamais... Frida.” (t.n.)40 Julie Taymor não faz qualquer alusão aos episódios da infância de Frida no filme, nem sequer menciona o fato de Frida ter sido acometida de poliomielite aos seis anos de idade, o que deixou sua perna direita mais curta e mais fina, e como isso afetou-lhe a vida profundamente, tornando-a uma criança introvertida. Na obra fílmica a personagem não manca uma única vez. 40 “Espero alegre la salida...y espero no volver jamás... Frida.” (HERRERA, 2007, p. 541). 119 Aliás, o filme se inicia com Frida adolescente por volta de uns dezesseis anos, já ingressa na Escola Nacional Preparatória, mas a obra literária mostra detalhadamente mestres e discentes da escola, e, entre estes, Frida na adolescência, já se preparando para cursar medicina. Conta o dia a dia dessa instituição, narrando as muitas estripolias que os alunos faziam, incluindo Frida, com professores, colegas e com quem passasse pela escola. Uma dessas pessoas que passaram pela escola preparatória, e que sofreu com as diabruras de Frida foi Diego Rivera, incumbido de fazer um mural no anfiteatro Bolívar da escola. É neste período que Frida e Alejandro, um de seus amigos, também estudante da escola preparatória, se enamoram. Frida também se mostra sexualmente muito precoce, e na obra fílmica isto é mostrado de maneira muito clara, quando ela tem relações sexuais com o namorado dentro de um guarda-roupa em sua casa. Na obra fílmica, esses fatos são narrados em uma sequência muito curiosa, com Frida adolescente de cabelos curtos correndo pelos corredores da escola preparatória, juntando seus amigos para espiar Diego a pintar no anfiteatro com uma modelo nua. Lupe, primeira esposa de Diego Rivera, o surpreende, faz uma cena de ciúmes, atirando a gamela de comida sobre ele, indo embora em seguida. Quando Diego se insinua sobre a modelo, Frida grita que Lupe está voltando. O pintor fica furioso, querendo saber quem estava ali, os observando. Frida cheia de coragem levanta-se. Chama Diego de pançudo e o aconselha a manter-se honesto. É importante citar alguns acontecimentos ocorridos na vida de Frida para que se possa entender a sua obra pictórica, já que uma está intrinsecamente ligada e relacionada com a outra. Pai de Frida, Guilhermo dizia: “Frida é a mais inteligente de minhas filhas” (t.n.)41 e continuava cheio de orgulho: “É a que mais parece se comigo.” (t.n.)42 e da mesma forma que ele não medira esforços para proporcionar os melhores centros esportivos para a reabilitação de Frida, quando ela teve poliomielite, ele também não iria ser mesquinho quanto à escolha da escola preparatória à universidade, que viria logo depois. A mãe de Kahlo não gostava da ideia de a filha ir 41 42 “Frida es la más inteligente de mis hijas.” (HERRERA, 1983 p.37). “És la que más se parece a mi.” (HERRERA, 1983 p.37). 120 estudar em um colégio tão longe de seu bairro e uma escola onde também havia rapazes e, principalmente, achava esta ideia muito européia (RAUDA, 1987). Observa-se, no entanto que Frida sendo questionadora, espontânea e reflexiva iria viver esse período de sua vida com muita intensidade; aliás, como tudo o que viveu, ela estava sempre inteira, de corpo e alma de forma que esse sentimento era passado para sua pintura de maneira que esta energia saía da tela e afetava a todos de alguma forma. Frida não se calava jamais, ficava sempre muito irritada com a hipocrisia das pessoas e negando-se a ter aulas com professores por demais conservadores. Os mexicanos tardaram uma década para recuperar seu país por meios revolucionários. Nos anos vinte, começaram a se consolidar os êxitos da longa batalha. Houve reformas agrárias e trabalhistas, reduziu-se o grande poder que exercia a igreja católica e promulgaram-se leis que ditavam a devolução dos recursos naturais à nação. Os mexicanos começaram a formar uma nova e orgulhosa identidade. Negaram as idéias e os costumes, anteriormente apreciados, da França e da Espanha, voltando-se agora para a cultura nativa. Los Cachuchas, um grupo de estudantes do qual Frida fazia parte, vai ao encontro com os dizeres de Freire (2009) no seu livro Pedagogia do Oprimido em relação aos jovens: O autoritarismo dos pais e dos mestres se desvela cada vez mais aos jovens como um antagonismo à sua liberdade. Cada vez mais, por isso mesmo, a juventude vem se opondo às formas de ação que minimizam sua expressividade e obstaculizam sua afirmação. Esta, que é uma das manifestações positivas que observamos hoje, não existe por acaso. No fundo, é um sintoma daquele clima histórico [...], como caracterizador de nossa época, como uma época antropológica. Por isso é que a reação da juventude não pode ser vista a não ser interessadamente, como simples indício das divergências geracionais em que todas as épocas houve e há. Na verdade, há algo mais profundo. Na sua rebelião, o que a juventude denuncia e condena é o modelo injusto da sociedade dominadora. Esta rebelião, contudo, com o caráter que tem, é muito recente. O caráter autoritário perdura. (p.176) A escola era dividida em grupos, tão numerosos quanto as aspirações que pretendiam. Havia grupos voltados às atividades esportivas, outros debatiam sobre 121 artes, outros voltavam sua reflexão para a filosofia. Alguns preconizavam um ativismo político-social, organizando-se nesse sentido. Mas Frida integrou-se ao grupo dos Cachuchas – “Um grupo mais heterogêneo, ao mesmo tempo mais criativo e mais aberto, mais original, provocador, insolente, audacioso, semeador de tumultos... anarquistas até a alma” (JAMIS, l987, p.56). Se as travessuras iam bem e “pregar peças” era de longe a atividade preferida do grupo, se ele não podia conceber a possibilidade de se fechar em dogmas, daí o afastamento de uma certa militância política julgada “estreiteza de espírito”, não era menos verdade que ele não desejava de maneira alguma ser tido como apolítico. Os Cachuchas reivindicavam um socialismo que se pretendiam fazer valer passando pela famosa volta às origens. E eles se ilustravam, lendo de tudo, sem distinção: filosofia, literatura e poesia estrangeiras ou hispano-americanas, jornais, manifestos contemporâneos. (JAMIS, l987 p.56) Percebe-se, por essa citação acima, o porquê de Frida escolher este grupo, ela sendo um ser em formação, mas já sabendo o que queria. Tudo conspirava a favor para que Frida fosse o que já era em seu âmago. 3.1 O acidente e suas sequelas Herrera (2007) narra o acidente que Frida e Alejandro sofreram a caminho de suas respectivas casas, quando ocorreu o choque de um trem com o bonde que os levava, em uma esquina, sendo ele arremessado contra uma parede. Frida tinha então 18 anos. Alejandro Gómez Arias, em um depoimento para Hayden Herrera, descreveu o acidente. Seu timbre de voz baixou, se tornou monótono quase inaudível, como se pudesse evitar a recordação falando dele com sobriedade. 122 O trem elétrico, de dois vagões, se aproximou lentamente do bonde e o acertou no meio, empurrando-o devagar. O bonde possuía uma estranha elasticidade. Curvou-se mais e mais, porém num dado momento se desfez. Era um bonde com bancos compridos nos dois lados. Lembro-me que por um instante meus joelhos tocaram a pessoa sentada na minha frente. Eu estava junto a Frida. Quando o bonde atingiu seu ponto Maximo de flexibilidade, partiu-se em mil pedaços e o trem seguiu mais adiante. Atropelou muita gente. Eu cai e fiquei debaixo do trem. Frida não. Sem dúvida, uma das barras de ferro do trem, o corrimão, se soltou e atravessou o corpo de Frida de um lado a outro, na altura da pélvis. Algo estranho aconteceu. Frida estava completamente nua. Com o choque de alguma forma a roupa de Frida foi arrancada. Alguém que estava no bonde, provavelmente um pintor, levava um pacote de ouro em pó que se rompeu, espalhando-se e cobrindo o corpo ensanguentado de Frida. Quando as pessoas a viram gritaram: “A bailarina, a bailarina!” Ao verem o corpo de Frida dourado pelo pó de ouro sobre o vermelho do sangue, pensaram ser ela uma 43 baiarina. (t.n.) 43 El tren eléctrico, de dos vagones, se acerco lentamente al camión y le pego a la mitad, empujándolo despacio. El camión poseía una extraña elasticidad. Se curvo más y más, pero por el momento no se deshizo. Era un camión con largas bancas a ambos lados. Recuerdo que por un instante mis rodillas tocaron las de La persona sentada enfrente de mí; yo estaba junto a Frida. Cuando el camión alcanzó su punto de máxima flexibilidad, reventó em miles de pedazos y el tranvía siguió adelante. Atropelló a mucha gente. Yo me quede debajo del tren. Frida no. Sin embargo, una de las barras de hierro del tren, el pasamanos, se rompió y atravesó a Frida de un lado a outro a la altura de la pelvis. Algo extraño pasó. Frida estava completamente desnuda. El choque desato su ropa. Alguien del caminón, probablemente un pintor, llevaba un paquete de oro en polvo que se rompió, cubriendo el cuerpo ensangrentado de Frida. Em cuanto la vio la gente, grito: “La bailarina, la bailarina!” Por el oro sobre su cuerpo rojo u sangriento, pensaba que era una bailarina. (HERRERA, 2007, p. 72, 73). 123 Figura 82: Sequência dos quadros fílmicos do acidente de Frida. 124 No cinema esta cena (Figura 82) é explorada de maneira esplêndida, e muito convincente. Taymor consegue passar a angústia do momento, quando utiliza o recurso da câmera de vários ângulos, capturando os movimentos de maneira muito lenta. Também é interessante observar a cena em que Frida vê seu rosto refletido no vidro do bonde que irá quebrar-se em minutos indo de encontro com a parede. As laranjas caindo e as tábuas se soltando mostram o caos do momento e a desintegração do mesmo. Um pássaro preso em uma das mãos de um menino que está sentado, no momento do choque, é liberto, ganhando ares. Um paradoxo. Uma barra de ferro faz piruetas no ar, para depois atravessar o corpo de Frida de maneira fatal. Como Frida disse: “[...] o corrimão me atravessou como uma espada atravessa a um touro.” (t.n.)44 A Cruz Vermelha foi quem socorreu Frida, e os atendentes chegaram a pensar que ela não sobreviveria, tão crítico era o estado em que se encontrava. 44 “[...] a mí el pasamanos me atravesó como la espada a um toro”. (HERRERA, 2007, p. 72). 125 Figura 83: Quadro fílmico da Animação de caveiras e olhos com caveira. Para relatar a tensão desse episódio, Taymor novamente surpreende fazendo uso de uma animação, com caveiras, no papel de médicos, para descrever o grave quadro clínico em que Frida se encontrava: Sua coluna vertebral quebrou-se em três lugares na região lombar. Também fraturou a clavícula e a terceira e quarta costelas. Sua perna direita sofreu onze fraturas e o pé direito foi deslocado e esmagado. O ombro esquerdo estava fora do lugar e a pélvis, quebrada em três partes. O corrimão de aço, literalmente, a atravessou na altura do abdômen; entrou pelo lado esquerdo e saiu pela 45 vagina. (t.n.) Também os olhos de Frida quando se abrem mostram refletidos um crânio em cada uma das pupilas. O diretor de fotografia e também mexicano, Rodrigo Pietro, conheceu o casal Frida e Diego desde criança. Disse que sentiu o peso da responsabilidade em contar essa história; e quis fazer desse, o seu melhor trabalho. Além de narrar os eventos da vida de Frida, ele e Taymor queriam entrar na mente e na alma da pintora. Pietro comenta que ficou muito excitado com as ideias a respeito de movimentos de câmera e velocidade, cores e iluminação para sugerir visualmente o que aconteceria interiormente. Diz Taymor em relação a Pietro: 45 Su columna vertebral se rompió em três lugares de la región lombar. También se fracturó la clavícula y la tercera y cuarta costillas. Su pierna derecha sufrió once fracturas y el pie derecho fue dislocado y aplastado. El hombro izquierdo estaba fuera de lugar y la pélvis, rota em três sítios. El pasomanos de acero, literalmente, la atravesó a la altura del abdômen; entro por el lado izquierdo y salió por la vagina. (HERRERA, 2007, p. 74). 126 “Nunca havíamos trabalhado juntos, mas estávamos realmente em sintonia, eu consegui ver o artista dentro dele, e conversamos muito a respeito de como captar a realidade da época, a subjetividade e o ponto de vista de Frida.” (FERNANDES, 2010) Talvez seja pela ótica de Frida que se pode ter uma explicação e justificativa para o grande número de cenas com o uso de plongée para Frida e contra-plongée para Diego, como foi mostrado anteriormente. Figura 84: Sequência dos quadros fílmicos no hospital Na passagem em que Fernandes (2010) coloca Pietro falando que sua escolha estilística também foi tomada a partir de leituras das cartas de diários de Frida. “Apesar de Frida não utilizar muitas luzes e sombras em suas pinturas, ela estava muito consciente de sua existência em sua vida,” e acrescenta que “Ela falava muito sobre como as cores mudaram após seu acidente. Nós utilizamos isso no filme.” “Frida falou sobre isso em entrevistas e também escreveu a respeito em uma carta a Alejandro Gomes Arias, seu namorado na época, dizendo que após o acidente tudo ficou branco,” diz Pietro. “De repente a vida perdeu seu mistério e tudo se tornou branco como gelo e muito transparente. Ela disse que conseguia ver tudo. O mistério havia desaparecido.” 127 Para obter este efeito, a equipe de Pietro intensificou o brilho da cor branca no hospital e nas cenas que se seguiram. A figura 84 ilustra essa citação. Herrera (2007) conta que quando foram tirar a barra de ferro do corpo de Frida, esta gritou tão alto que não escutaram a sirene da ambulância da Cruz Vermelha chegando para socorrê-los. No filme, este grito é colocado em uma cena no hospital da Cruz Vermelha, onde Frida ficou por um mês. Outro detalhe que aparece na obra fílmica é que neste período em que a pintora esteve acamada, é Matilde (irmã mais velha) quem permanece com ela no hospital, não Cristina (irmã mais nova) como é mostrado na obra fílmica. Durante toda a vida, Frida usaria a inteligência, a atração magnética e a dor para conservar o controle sobre os entes queridos, não importando se usasse isso como arma para chamar atenção de Diego, algum amante/namorado, ou da família. Afirma Herrera sobre o estado de saúde de Frida: houve períodos que seu estado de saúde era relativamente bom e apenas notava-se que mancava um pouco, porem gradualmente sua saúde foi piorando. (t.n.)46 Depois de um ano após o ocorrido acidente, um cirurgião ortopedista descobriu que três vértebras estavam fora de lugar, e a partir daí Frida precisou usar uma série de coletes durante vários meses, o que a obrigava a ficar deitada. Frida contava várias versões de como se iniciou na pintura e evitava sempre promover o conhecido mito de haver nascido com um lápis na mão. A esse respeito o historiador de arte Antonio Rodrigues assim se manifesta: Durante muitos anos, meu pai guardou um caixa com tinta a óleo, alguns pincéis em um vaso de colocar flores e uma paleta em um canto de seu pequeno estúdio fotográfico. Ele gostava de pintar e desenhar paisagens nas margens do rio em Coyoacán e as vezes copiava fotografias coloridas. Desde menina, como se pode dizer, jogava um olhar para a caixa de pintura. Não sei por que. Como tinha que passar tanto tempo de cama, aproveitei a ocasião para pedir-la a meu pai. Como um menino de quem se tira um brinquedo para dar a um irmão doente, “emprestou-me”. Minha mãe mandou fazer um cavalete com um carpinteiro, se é assim que se pode chamar o aparato especial que se 46 “Hubo períodos em los que su estado de salud era más o menos bueno y apenas se notaba su cojera, pero gradualmente se fue desmejorando” (HERRERA, 2007, p.88). 128 ajustava a cama onde eu estava deitada, porque todo meu corpo estava envolto 47 em gesso e não me permitia sentar. Foi assim que eu comecei a pintar. (t.n.) Figura 85: pai de Frida preparando o Cavalete para que ela começasse a pintar (à esquerda) e Frida pintando seu retrato mirando-se em um espelho, colocado no dossel de sua cama. Esta cena mostra o carinho familiar, principalmente a dedicação de seu pai. Foi retratando amigos, a família e a si mesma que se iniciou como pintora. Esses trabalhos apenas insinuam o complicado desenvolvimento pessoal que se seguiria. Acrescenta Herrera (2007): Entre esses primeiros quadros, somente o autorretrato tem o caráter intensamente pessoal de suas obras posteriores. É possível que isso seja assim porque, igual a muitos autorretratos pintados mais tarde, constituía uma amostra de amor, uma espécie de talismã mágico importante para o bem estar 48 da artista. (t.n.) 47 Durante muchos años, mi padre conservó una caja con pinturas al óleo, algunos pinceles en un viejo florero y una paleta en un Rincón de su pequeño taller fotográfico. Le gustaba pintar e dibujar paisajes cerca del rio en Coyoacán, y a veces copiaba cromos. Desde niña, como se suele decir, echaba un ojo hacia la caja de pinturas. No me explico por qué. Como tenía que pasar tanto tiempo en cama, aproveché la ocasión para pedírsela a mi padre. Como un niño, a quien se le quita un juguete para dárselo a un hermano enfermo, me la “prestó”. Mi madre mandó hacer un caballete con un carpintero, si así se le puede llamar al aparato especial que se sujetaba a la cama donde estaba acostada, porque la escayola de yeso no me permitia sentar. Fue así como empecé a pintar. (HERRERA, 2007, p. 90). 48 Entre eses primeiros cuadros, sólo el autorretrato tiene el carácter intensamente personal de sus obras posteriores. Es posible que esto sea así porque, al igual que muchos autorretratos pintados más tarde, constituía uma muestra de amor, uma espécie de talismán mágico crucial para el bienestar de la artista. (HERRERA, 2007, p.91). 129 Herrera (2007) comenta na biografia de Frida que Alejandro é enviado para a Europa a mando da família que não via com bons olhos o relacionamento dos dois. Contudo o moço também queria livrar-se do controle possessivo que Frida exercia sobre ele. Sendo ainda possível que a promiscuidade anterior de Frida e sua grave enfermidade tenham impulsionado o jovem a separar-se dela. Porém esses detalhes são mencionados apenas na obra literária, na obra fílmica temos Alejandro indo visitar Frida, levando lhe um ramalhete de flores para se despedir, em uma sequência muito bem elaborada de quadros fílmicos. 130 Figura 86: Quadros fílmico da sequência de Alejandro. Tomada de câmera única e continua. Essa é a cena mais extensa, sendo que ela não é cortada nenhuma vez para dar uma continuidade, criando uma tensão emocional, devido a uma discussão acerca de problemas financeiros gerados pelo acidente de Frida. A câmera gira em torno do casal de maneira lenta enquanto estes tomam chá, terminando a sequência da cena com a chegada do jovem Alejandro, que segura um ramalhete de rosas. 3.2 Efeitos especiais Fernandes (2010) mostra que Julie Taymor brincou com sombras, o que, segundo Pietro, “reproduz o mistério dos interiores, onde existem áreas escuras que você não sabe o que realmente tem lá, então você vê o que quer ver.” 131 132 Figura 87: Sequência do assassinato de Trotsky Nas cenas da taberna e do assassinato de Trotsky existe esta “brincadeira” em que das sombras sobressaem crânios que aparecem ao fundo ou sobrepõem a face do homem que representa a morte de Trotsky. (Figura 87) No episódio da morte de Trotsky, Taymor cria uma relação fazendo uma junção de vários acontecimentos, como quando Diego pede divórcio a Frida que está em uma taberna escura, cheia de sombras, quando alguém começa a cantar uma música de cunho muito dramático. Ao mesmo tempo Trotsky está envolto numa penumbra escrevendo quando um criado adentra no aposento trazendo-lhe algo para beber, mas, na verdade, este é o assassino de Trotsky. Entremeando esses acontecimentos, o quadro Duas Fridas começa a animar-se. Uma cena vai se intercalando a outra até que se fecha na última nota dramática da canção. A morte de Trotsky, mancha de sangue o papel em que ele escrevia. Nota-se como se forma a sobreposição de uma caveira no rosto do assassino, pouco antes deste aplicar o golpe fatal. Ao mesmo tempo em que Frida segura o camafeu com o retrato de Diego ainda criança e o aperta com tanta força entre os dedos que o vidro se parte e lhe fere a mão. A seguir, a cena fílmica (Figura 88) do quadro dos noivos Frida e Diego Rivera (1931), pintado um ano depois das bodas do casal e dado de presente a Albert Bender, em agradecimento por este ter conseguir o visto de entrada de Diego nos Estados Unidos. 133 Figura 88: Cena da festa do casamento de Frida e Rivera Julie Taymor utiliza essa obra para criar uma cena muito original, fazendo com que o quadro ganhe vida, introduzindo aos poucos os convidados da festa de casamento, fazendo-os bailar dentro da obra pictórica que vai se convertendo em obra cinematográfica Na obra fílmica, Tina Modotti faz um discurso sobre o casamento, discurso que não está contido na obra literária. Ainda no filme, quando Frida descobre que Diego a traía com a irmã Cristina, o casal vivia em San Angel, em dois ateliers unidos por uma pequena ponte. Frida atravessa a ponte do amor, como era chamada, voltando para o seu ateliê e fechando a porta para Diego. Depois desse incidente, Frida corta os cabelos, e começa a vestir-se 134 com roupas masculinas. Taymor cria uma das cenas mais impressionantes e de impacto do filme. Figura 89: Sequência dos quadros fílmicos de Frida cortando cabelos. A sequência de cenas de Frida cortando os cabelos e bebendo é intercalada por planos de close, e planos gerais, terminando com uma animação de um trabalho pictórico de Frida: Autorretrato com cabelo cortado. Porém, no trabalho pictórico ela está com a cabeça erguida, nos encara, apesar da dor e sofrimento. Já o último quadro fílmico desta cena, mostra-nos uma Frida de cabeça baixa, entregue ao desânimo e à dor. A intercalação de planos, ora com o uso da câmera em close, ora do plano geral e inclinado, acentua o desequilíbrio emocional e psicológico em que Frida se encontra. 135 A posição de câmera em close, “[...] sem dúvida, é no primeiro plano do rosto humano que se manifesta melhor o poder de significação psicológico e dramático do filme, e é esse tipo de plano que constitui a primeira, e no fundo a mais válida, tentativa de cinema interior.” (MARTIN, 2007, p.39) Nesses quadros (Figura 89) Frida está registrada em close e primeiro plano. Se filmada de outra forma, não se veria o estado psicológico de dor e abandono em que ela se encontrava naquele momento. Frida é esta presença real, sem subterfúgios para as emoções, é a vida se manifestando de maneira sincera, porque, apesar de todo o sofrimento, ela gostava de estar viva e de se sentir viva, levava suas sensações até as últimas consequências. Figura 90: Auto-retrato com Cabelo Cortado, 1940 Fonte: Kettenmann, 1994 Essa obra de Frida recheada de simbolismos dá origem à cena que foi estudada anteriormente. No lugar de roupas femininas com que aparece na maioria dos autoretratos vemos aqui vestida com um terno de homem. Notamos que acabou de cortar o 136 longo cabelo segurando a tesoura ainda na mão. Os cabelos se contorcem e encaracolam-se espalhados pelo chão em volta da cadeira como se tivessem vida própria, enquanto uma das tranças cortadas repousa sobre sua perna. Sobre esse comportamento de Frida em relação a Diego: mostrar-se vestida com uma roupa tipicamente masculina, vestimenta de quem a magoou, ou seja, o “homem Diego”; Freire (2009, p.55) nos esclarece que existe [...] “em certo momento da experiência existencial dos oprimidos, uma irresistível atração pelo opressor. Na sua alienação querem, a todo custo, parecer com o opressor. Imitá-lo. Segui-lo”. Mas aqui Frida quer estar em pé de igualdade com ele, está acima de tudo, anulando a sua feminilidade, seus vestidos e cabelos compridos de que Diego tanto gostava. Frida não usa só as telas para representar experiências vividas, mas faz uso do próprio corpo como meio de representar o que sentia ao viver determinadas situações, e o ato de cortar o próprio cabelo é um exemplo disso. Ela amava Diego, talvez até mais que sua própria vida, o amava tanto que acabou submetendo sua vontade à dele, acabando por encontrar outra maneira de amá-lo. Como é natural, tratando-se de duas pessoas com personalidades tão fortes motivados por impulsos voluntariosos e manifestando o mais alto grau de sensibilidade, sua vida conjugal era tumultuada. Ela subordinou sua vontade à dele: de outro modo seria impossível viver com Diego. Ela olhava através de seus subterfúgios e fantasias e ria de suas aventuras, e zombava do colorido e da imaginação que desenvolvia em suas inacreditáveis histórias, ainda que as desfrutava, perdoava suas relações com outras mulheres, seus planos que a feriam, sua crueldade... Apesar das brigas, a brutalidade, atos rancorosos, inclusive o divórcio. Na profundidade de seus seres seguiam cedendo em primeiro lugar um ao outro. Bem, mas para ele, ela viria depois, de sua pintura e de sua dramatização da vida como uma serie de lendas, porem, ele ocupava o primeiro lugar, ainda que antes de sua arte. Sustentava que as qualidades de Rivera deviam corresponder com muita indulgência. Em todo caso, me disse uma vez com uma risada pesarosa, que ele era assim e que não podia amá-lo 49 pelo que ele não era. (t.n.) 49 Como es natural, tratándose de dos caracteres tan fuertes motivados ambos completamente desde adentro por impulsos voluntariosos e intensa sensibilidad, su vida conjunta era tormentosa. Ella sobordino su voluntad a la de él: de otro modo hubiera sido imposible vivir com Diego. Ella miraba a través de sus subterfugios y fantasías, se reía de sus aventuras, se burlaba del colorido y la imaginación que desarrollaba en sus increíbles historias, aunque las disfrutaba; perdonava sus relaciones com otras mujeres, sus estretagemas hirientes, su crueldad... A pesar de las peleas, la brutalide, las acciones rencorosas, aun el divorcio, em la profundidad de sus seres seguían cediendo el primer lugar el uno al otro. Más bien, para él, ella venía después de su pintura y de 137 É muito bem colocada na obra fílmica uma expressão de Frida dizendo que não poderia amar Diego pelo que ele não era. A cena se passa num café noturno, nos Estados Unidos da America, onde ela se encontra com uma das amantes de Rivera e que no caso é amante dela também. No ano de 1946, Frida realiza uma cirurgia, após a qual terá que colocar um colete de ferro para sustentar a coluna e amputará alguns dedos do pé, e mais adiante, também amputará a perna, pois o médico descobre que estão com gangrena. Constatase logo a seguir, nos dois fotogramas, o que ela escreve em uma página de seu diário “Pies para qué los quiero si tengo alas pa‟ volar” (KAHLO, 2008, p. 274) Fonte: Frida, 2002 Fonte: Kettenmann, 1994 Figura 91: página do diário de Frida com os dizeres em inglês na obra fílmica (à esquerda) e com os dizeres em espanhol no diário original (à direita). su dramatización de la vida como una serie de leyendas, pero para ella, él ocupaba el primer lugar, aun ante su próprio arte. Sostenía que a las grandes dotes de Rivera debía corresponder con mucha indulgencia. Em todo caso, me dijo una vez, con una risa pesarosa, que así era y por eso lo amaba. (apud WOLFE; HERRERA, p. 145). 138 Figura 92: Frida na cama com a perna amputada. Fonte: Frida, 2002 Outra observação importante é sobre a cena em que Frida, já muito debilitada, está na cama com apenas uma perna à mostra e, ao fundo na soleira da janela, mostrase muito sutilmente uma perna de pau indicando a amputação. Nesse quadro fílmico podemos ver isto mais detalhadamente e, ao lado da perna de pau há vários cactos com espinhos, sugerindo uma situação de dor. Entre todas as obras não textuais de Frida, o que melhor exemplifica as qualidades de olhar a morte e as dificuldades de frente com mais intensidade é sem dúvida La columna rota (Figura 9) pintada pouco tempo depois de sofrer uma cirurgia na coluna. 139 Figura 93: Sequência fílmica: La columna rota 1 Baseada nesses dois fatos, a cirurgia da coluna e da amputação do pé, a diretora cria uma das cenas mais significativas do filme. Vemos Frida em uma paisagem de pedra com tonalidade de um azul muito frio, sugerindo de que Frida faz parte da paisagem, que também é de pedra ou gelo, ali parada estática, e ao mesmo tempo uma figura fantasmagórica. Mas a câmera focaliza os pés de Frida como se fossem os olhos 140 dela a mirar os próprios pés. Por meio destas cenas pode-se perceber a proporção do susto e da tensão em que Frida teria ficado ao ouvir o comunicado da amputação. Figura 94: Sequência em que lágrimas reais escorrem da tela enquanto Frida pinta. Figura 95: Cadeira de roda de Frida. Os quadros fílmicos dessa sequência mostram Frida chorando e as lágrimas saem da superfície da tela enquanto ela pinta (Figura 94), assim como as rodas da cadeira representam a substituição do pé que acabara de ser amputado (Figura 95) Em quase 25 anos de casamento, entre separações e reconciliações, traições mútuas, o casal teve a vida de um ligada à do outro. É fato que Frida até tentou separar-se de Diego, mas tinha um amor obsessivo por ele, e também é verdade que Diego a teria deixado se ela não fosse tão doente. Afirma Herrera (2007): “Muita gente acredita que Rivera teria abandonado Frida se esta não estivesse estado tão doente. Frida era capaz de submeter se a uma cirurgia mesmo que não fosse necessária, se 141 acreditasse que esta fortaleceria sua união com Diego.” (t.n.)50. Alguns médicos chegaram a relacionar o estado da saúde de Frida como psicossomático, pois a doença de Frida se agravava muito a cada crise que se apresentava em seu casamento com Diego. As sequelas da poliomielite eram certas, assim como as do acidente, porém encontravam em Frida um eco anormal. Ela tentava compreender. O que teria ela amplificado? Por quê? Sentia, indistintamente, como seu estado podia ser uma pressão afetiva diante dos outros. Quanto, no começo, ela o vivera de modo alarmante, chegando a ponto de se convencer de uma fatalidade de que nunca mais pudera libertar-se. Essas dores, essa angústia permanente tinham contribuído, estranhamente, para que ela se sentisse sempre viva. Não sentir nada depois de ter beirado a morte, teria sido o mesmo que morrer (JAMIS, l987, p. 245). 50 Mucha gente cree que Rivera hubiera abanonado a Frida si ésta no hubiera estado tan enferma. Frida era muy capaz de someterse a uma operación innecesaria, si creía que ésta fortalecería su unión com Diego” (HERRERA, 2007, p. 439). 142 Figura 96: Quadros fílmicos da morte de Frida. Na última sequência de quadros fílmicos de Frida tem-se a morte da pintora representada de forma muito criativa, onde Pietro e Taymor por meio de uma animação deram vida ao quadro O Sonho (1940) da pintora e fizeram com que explodissem fogos de artifício que incendiaram o dossel e a cama de Frida. Talvez uma alusão ao fato de seu corpo ter sido cremado. Tendo como dizeres finais as palavras de Frida, também presentes em seu diário: “Espero a partida com alegria... e espero não voltar jamais... Frida”. (t.n.)51 . 51 “Espero alegre la salida – y espero no volver jamas” (KAHLO, 2008, p.285). 143 3.3 Trilha sonora Prosseguindo à análise dos elementos fílmicos, a trilha sonora de Frida é um elemento crucial na produção desse filme, estando relacionada a muitas cenas e que ajudam a narrar a história, como por exemplo, a cena do assassinato de Trotsky. Um comentário sobre a análise da trilha sonora do filme segundo Marcel Martim (2007, p.125) é muito pertinente quando o que se quer é enfatizar o teor dramático da cena, que é no caso de Frida: “Neste caso, a música intervém como contraponto psicológico para fornecer ao espectador um elemento útil à compreensão da tonalidade humana do episódio”. Taymor trabalhou intensamente com o compositor Elliot Goldenthal para construir uma mistura de poderosos solos de violão, arranjos românticos e reflexivos, e animadas faixas com influências folclóricas. A trilha sonora conta também com um dueto emocionante cantado por Caetano Veloso e Lila Downs, conhecida por misturar sons nativos americanos, latinos e africanos. Em Frida, Goldenthal diz que optou por adotar um intimismo melódico como trilha sonora, compondo melodias ou canções ao invés de fragmentos e motivos musicais. Para conquistar um clima ainda mais intimista, o músico escolheu um pequeno grupo de instrumentos acústicos: a pequena viola mexicana (vihuela), violão clássico, baixo mexicano (guitarron), acordeão, harpa mexicana, marimba e uma gaita de vidro, inventada por Benjamin Franklin. Descobriu também que os violões ofereciam toda a gama de lirismo e percussões da qual precisava. 144 Figura 97: Trecho da música, pintado na parede, tirado da obra Autorretrato com Cabelo Cortado. Não é só na sonoridade da música que se vê a importância da trilha, mas se o espectador do filme for um bom observador verá que as paredes do ambiente, onde se encontra Frida, estão cheias de palavras escritas em negro. Na verdade, estas palavras são trechos de uma música muito conhecida nos anos de 1940 e que Frida escreveu no quadro Autorretrato com Cabelo Cortado (Figura 90) que pintou nesse trágico episódio, quando da traição de Diego com sua irmã. Os versos dessa música apontam a razão pela qual Frida parece estar nessa cena com os cabelos cortados. A frase é esta: “Olha, se eu te quis, foi pelo seu cabelo, agora que está careca, já não te quero.” (t.n.)52 3.4 As cores de Frida As cores invadiam a vida e a obra de Frida, seja em suas telas ou em seus trajes. As obras de Frida, durante o ano em que ela e Rivera estiveram separados, as cores parecem ter a capacidade de chegar às verdades emocionais mais profundas. Como artista autodidata, começou a ter um sentido diferente, e muito pessoal da cor. Sua paleta surgia de seu amor pelas assombrosas combinações de rosa, roxos, verdes e amarelos que vêm das artes decorativas do México. Escolhia as cores da mesma maneira que escolhia suas roupas – com um cuidadoso e bom cálculo estético. Em 52 “Mira que si te quise, fué por el pelo, ahora que estás pelona, ya no te quiero” (HERRERA, 1994, P.55). 145 alguns de seus trabalhos, como Hospital Henry Ford (figura 66), os tons pastéis formavam uma desunião irônica diante do doloroso tema. Em algumas pinturas posteriores, a escolha de cores é igualmente difícil e com frequência ainda mais discordante e complexa. O céu suave, e as brilhantes flores no Autorretrato dedicado ao dr. Eloesser, Frida Kahlo, 1940 (Figura 27), por exemplo, somente acentuam o calafrio de premonição da artista. Sua riqueza de detalhes nos recorda algumas imagens de Cristo nas igrejas mexicanas que se encontram rodeadas de flores, veludo e ouro. O enfoque idiossincrático de Frida em relação à cor se manifesta em uma espécie de poema em prosa no seu diário. Figura 98: Página do diário de Frida Fonte: Kahlo, 2008 146 Escrevendo uma lista de matizes53, em que circunda com linhas coloridas as palavras na própria cor, em que, na frente de cada uma delas, as palavras relacionamse, de forma desordenada, com significado pessoal a cada matiz. Segundo Herrera (l998), eis a lista destas cores eleita por Frida: O verde: luz tépida, e boa. Purpura: Asteca. Tlapalli (palavra que significa “cor” usada na pintura e no desenho). Velho sangue de figo, o mais vivo e antigo. Café: Cor de mole (tipo de molho preparado com pimenta e especiarias). Cor de folha que cai. Terra. Amarelo: Loucura, doença, medo. Parte do sol e da alegria. Azul cobalto: eletricidade e pureza. Amor. Preto: Nada é negro, na verdade nada. Verde Folha: folhas, tristeza, ciência. A Alemanha toda tem essa cor. Amarelo esverdeado: mais loucura e mistério. Todos os fantasmas usam roupas desta cor...no mínimo roupas intimas. Verde escuro: cor de más noticias e bons negócios. Azul marinho: distancia. A ternura também pode ser desta cor. 54 Magenta: sangue? Pois bem, quem sabe! (t.n.) 53 Esta lista de cores está escrita no diário de Frida, mas algumas delas não levam o nome de identificação, apenas a mancha do matiz feita com lápis de cor. Devido a isso, foi necessário recorrer ao livro de Herrera para melhor entendimento. 54 El verde: luz tíbia y buena. Solferino: Azteca. Tlapali (palabra que significa “color” usado en pintura y el dibujo).Vieja sangre de tuna, el mas vivo y antiguo. Café: color de mole, de hoja que se va; tierra. Amarillo: locura, enfermidad, miedo. Parte del sol y de la alegria. Azul cobalto: electricidad y pureza. Amor. Negro: nada es negro, realmente nada. Verde hoja: hojas, tristeza, ciencia. Alemania entera es de este color. Amarillo verdoso: mas locura y mistério. Todos los fantamas usan trajes de este color...cuando menos, ropa interior. Verde oscuro: color de anúncios malos y de buenos negócios. Azul marino: distancia. La ternura también puede ser de este azul. Magenta: Sangre? Pues, quién sabe! (HERRERA, l998, p.147). 147 Figura 99: El sueño, 1940 Fonte: Kettenmann, 1994 Figura 100: Quarto de Van Gogh, 1889 Fonte: The National Gallery Para exemplificar e ilustrar o que foi falado sobre as cores utilizadas por Frida em suas obras foram escolhidas duas telas da artista e uma de Van Gogh. Inicia-se esta análise por uma cor que é muito corriqueira no período de 1940 nas obras de Frida. O Amarelo. Várias pinturas de Frida deste período estão dominadas pelo amarelo que serve para acentuar o pesado estado de ânimo. O amarelo para a artista é loucura, enfermidade e medo. Nessas obras, esta cor não está cheia de sol, mas ofusca nossos olhos. O fundo amarelo do autorretrato de Frida (figura 5), encomendado pelo engenheiro Sigmund Firestone, por exemplo, faz o véu negro de Frida ainda mais fúnebre. A colcha amarela de El sueño (figura 99) é como uma alucinação, “[...] anunciadora do declínio da velhice e da aproximação da morte.” (CHEVALIER, 2009, p.41) Frida estava sempre às voltas com essa companheira fiel. A cadeira amarela, no frio Autorretrato com cabelo cortado (figura 90), tem a inapropriada alegria da cama e da cadeira amarela, representadas também, na obra Quarto de Van Gogh (figuras 100). Confirmando a atmosfera sufocante que o amarelo cria no ambiente, Chevalier (2009, p. 40) demonstra que o amarelo é: Intenso, violento, agudo até a estridência, ou amplo e cegante como um fluxo de metal em fusão, o amarelo é a mais quente, a mais expansiva, a mais ardente das cores, difícil de atenuar e que extravasa sempre dos limites em que o artista desejou encerrá-la. 148 Vale a pena tecer um breve comentário sobre a cena abaixo, que talvez passe despercebida para a maioria das pessoas ao assistirem ao filme ou talvez a considerem sem importância. Figura 101: O pássaro azul. Fonte: Frida, 2002 Esse pequeno pássaro azul está preso nas mãos de um garoto, passageiro no bonde que também leva Frida e Alejandro, e que, certamente ao chegar ao seu destino, seria encarcerado em uma gaiola, mas na hora do acidente, esse destino muda quando o menino não tem mais controle sobre a mão que o segura, e o pássaro se liberta. Uma alusão ao que Frida escreveu em seu diário “pés para que os quero, se tenho asas para voar?” Como anteriormente citado em seu diário, Frida coloca significados pessoais nas cores. Para ela o azul tinha uma relação muito forte com o amor e a pureza. Chevalier (2009, p. 107) amplia esse conceito quando diz que: “[...] o azul não é deste mundo; sugere uma ideia de eternidade tranquila e altaneira que é sobre-humano.” A cor traz em si uma linguagem própria, uma carga informativa grande e nos estudos realizados por Guimarães (2000), o azul é considerada a cor “mais fluídica”, ao que Chevalier (2009, p. 107) acrescenta ser essa cor: “Imaterial em si mesmo, o azul 149 desmaterializa tudo aquilo que dele se impregna. É o caminho do infinito, onde o real se transforma em imaginário”. Enquanto o amarelo é a cor “mais concreta” e muito usada nas obras de Frida, também era considerado por ela como a cor da loucura e da enfermidade. “[...] em várias culturas vamos encontrar o amarelo relacionado à loucura, à mentira, à traição” (GUIMARÃES, 2000 p. 89). Frida andava nesse meio fio e vivia estes dois extremos de modo muito intenso. O pássaro acima representado no filme com asas de cor azul “fluídicas” simboliza o imaginário de Frida na busca de uma liberdade e transgressão de sua dor em respeito e reverência a si mesma e à vida. “Acaso não é o azul a cor do pássaro da felicidade, o pássaro azul, inacessível embora tão próximo?” (CHEVALIER, 2009, p. 107). O corpo de Frida era feito de dor material, a loucura do espírito transmutando para a carne, o casulo que teimava aprisionar as asas, precisando ser rompido para que ela pudesse voar. O corpo era amarelo e alma era azul. 150 Figura 102: Autorretratos com Macacos, 1943 Fonte: Kettenmann, 1994 CONSIDERAÇÕES FINAIS “Eu ando pelo mundo prestando atenção Em cores que eu não sei o nome Cores de Almodóvar Cores de Frida Kahlo, cores, Passeio pelo escuro...” (Esquadros, música e letra de Adriana Calcanhoto) Diante de tantos questionamentos que ainda envolvem a vida desta grande mulher do século XX, acredita-se ter lançado luz à possibilidade de investigação de muitos pontos cruciais da vida e da obra de Frida Kahlo. Frida teve uma vida marcada pela dor e transcendeu, por meio de suas pinturas, os aspectos mais reservados de sua intimidade. Falando de si mesma, abertamente, falou para todos sobre questões do ser humano, e de forma muito particular, questões que fazem parte do universo feminino. O filme de Julie Taymor reforça esses aspectos da vida íntima de Frida e Diego. A coragem e a despretensão moldaram a obra de Frida Kahlo em algo extremamente original, livre de normas. Por não se preocupar em seguir uma escola ou tendência estética, se transformou numa artista dotada de forte sensibilidade e estilo particular. Frida não se importava em agradar o olhar comum. Sem nenhuma dúvida, esse é o aspecto mais interessante na sua arte, podendo ser constatado nas obras literárias e no filme sobre sua vida. É nesse enredo que se dá a trajetória da heroína. Com a exibição de Frida nas telas de cinema do mundo todo, cristaliza-se o mito e o transforma em produto midiático. 152 Falar da mulher Frida é falar de uma lutadora diária, uma sobrevivente. Uma mulher pertinaz, porque ao longo de toda a vida, o que mais observa é a teimosia em continuar a viver. Frida vive o contraponto. Vai da dor física e do sofrimento da traição que afligiam corpo e alma - à alegria das festas e do gosto pela vida. Quanto maior era o sofrimento, mais ela se arrumava e se enfeitava. Nesses momentos, as obras tornavam-se mais coloridas. É constatada essa exuberância de cores também na obra cinematográfica, que mostra o talento da diretora em contrastar as nuances da palheta que Frida deixou à mostra. O contexto histórico de colonizações e invasões extra-culturais desencadeou uma identidade marcadamente conflituosa da sociedade latino-americana. É certo que existem as particularidades de cada país, porém, a imposição de modelos culturais preestabelecidos é uma forte característica de todos eles. Nesse sentido, Frida passa a exercer um papel importante ao defender a autenticidade nacional contra qualquer tipo de arte que copiasse modelos ou qualquer movimento artístico em voga. Suas próprias convicções políticas e sociais estão presentes em suas obras, desenvolvendo assim uma estética particular e afastando-se das influências estrangeiras. As imagens criadas por ela são modos de se relacionar e de se comunicar dentro da multiplicidade emblemática, cultural e sexual. Suas pinturas representam elementos como ataduras simbólicas para a fratura verdadeira de seu corpo. A exibição de sua fragilidade é de extrema coragem de exposição do “eu”. De fato, suas idéias e seu comportamento não eram muito afeitos às mulheres da sua época. Ela se parecia como sua criação artística: extremamente chocante, longe de padrões estéticos préestabelecidos e sem a preocupação de agradar a maioria das pessoas. A pintora diferencia-se por uma identidade múltipla, sincrética, de rompimento de fronteiras, que desapruma conceitos estáveis e questiona estabilidades. Metáfora da contradição inerente à condição humana. Frida jamais pintou sonhos e fantasias, mas a realidade que a cercava. Não conseguia, tampouco queria outro caminho porque apenas desejava expressar-se e, muitas vezes, purgar suas máculas ou simplesmente corresponder-se consigo mesma, afirmando: “Eu pinto-me porque estou muitas vezes sozinha e porque sou o tema que 153 conheço melhor” (KETTENMANN, 1994, p.18). Uma forma particular de permanecer viva, ligada à realidade e por isso negava veementemente a classificação de surrealista que Breton lhe atribuíra. Dentro dessa perspectiva, é preciso considerar que Frida elabora um biografismo ao redor de suas obras, relaciona todas as interpretações possíveis na esfera de sua vida privada, seus infortúnios e desavenças. Sua obra era tudo o que tinha para se comunicar, e assim conseguir atenção e autoestima. A obra de Hayden Herrera, por se tratar de uma exaustiva pesquisa, é considerada pela crítica o retrato definitivo de Frida. Destaca-se a seriedade dessa biografia, transformada em pilar de sustentação para a narração cinematográfica de Julie Taymor. Fazendo uso sensível dessa linguagem, por meio de posicionamentos de câmera, produziu um depoimento contundente e, mais que isso, um documento audiovisual, que fala da dor, da condição frágil e das efemeridades que acometem os seres humanos. Conclui-se, pois que, a obra cinematográfica reforçou, amplificou e reiterou a construção do mito Frida Kahlo. Sua busca por uma arte verdadeira sem limites estéticos e sua comunicação direta, cumpre a função de aproximar-se do outro pela exposição de sua vida íntima. A autenticidade de Frida era um ato necessário e urgente. Com a cinematografia, esse mito extrapolou as fronteiras mexicanas, tornandoa uma personalidade famosa e popular. Frida é um filme que encanta, de cuidadoso roteiro, destacando ainda uma bela estratégia visual criada para dar vida às pinturas da artista. A popularização do filme levou Frida Kahlo para as prateleiras de consumo como se constata na atualidade. Frida apareceu recentemente na capa de uma revista brasileira de artesanato popular, representando sua imagem dentro de um relicário (anexo 1). A partir do dia 30 de agosto de 2010, começaram a circular no México, as imagens de Frida Kahlo e de Diego Rivera estampadas nas notas de 500 pesos (anexo 2). Agora Frida é POP, sua imagem está inserida na cultura de massa, tornou-se famosa e popular além das fronteiras mexicanas. 154 Sem cores de dúvida, Frida, após a exibição cinematográfica, é uma artista consagrada não só pelo grande valor de sua obra, mas também pela marcante personalidade: exótica, ambígua e excêntrica, destacando-se por uma vida incomum e pela capacidade de criar uma imagem popular de si mesma. Do contrário continuaria presa a um grupo seleto de admiradores que teriam acesso às suas obras nos museus, em exposições esporádicas que percorrem o mundo ou em sua Casa Azul, transformada em acervo cultural, no bairro Coyoacán, um subúrbio da cidade do México. 155 Figura 103: Autorretrato, 1930 Fonte: Kettenmann, 1994 156 REFERÊNCIAS 1. BIBLIOGRAFIAS ARISTÓTELES. Aristóteles: Vida e Obra. São Paulo: Nova Cultural, 1996. AUMONT, Jacques. A imagem. Tradução: Estela dos Santos Abreu e Cláudio C. Santoro Campinas: Papirus, 1993. ______O olho interminável: cinema e pintura. 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