O FEMININO NA OBRA DE FERNANDO PESSOA Andréia Cristina EMBERCIS1 (G. UEMS) Profa. Dra. Ana Paula Macedo Cartapatti KAIMOTI2 (UEMS) RESUMO: Este resumo refere-se a um trabalho monográfico em andamento e apresenta a primeira etapa de uma pesquisa cujo objetivo geral é investigar os modos como o feminino apresenta-se na obra de Fernando Pessoa, considerando a variação dessa presença nos textos dos vários heterônimos do poeta, em toda sua complexidade. Juntamente com os poemas do ortônimo Fernando Pessoa e dos heterônimos Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis, o trabalho também toma como objeto de pesquisa aquele que até o momento é o único texto da também única mulher entre os heterônimos, Maria José. Do ponto de vista dos estudos de gênero e da crítica feminista, a mulher é uma projeção dos desejos e fantasias de vozes masculinas, no discurso do poeta ou do escritor, que corroboram com a opressão social e histórica da qual ela é vítima na sociedade patriarcal. Partindo disso, procuramos investigar de que maneira e até que ponto a mulher na obra de Pessoa, sendo a ficcionalização do feminino na obra de um autor masculino, vai ao encontro desse caráter opressivo. PALAVRAS-CHAVE: Fernando Pessoa; Literatura Portuguesa; Estudos sobre as Mulheres Introdução Este trabalho refere-se a uma pesquisa que tem como objetivo investigar as presenças do feminino na obra de Fernando Pessoa, especificamente nos poemas “Eros e Psique”, do Pessoa ortônimo, “Lenta, Descança”, do heterônimo Ricardo Reis, e o texto “Carta da Corcunda ao Serralheiro” da heterônima Maria José. De modo geral, há poucos trabalhos que focalizam a obra de Pessoa nessa perspectiva, inserida no contexto dos estudos de gênero que pesquisam as formas de representação da mulher na cultura. Nesse sentido, essa área também se dedica a estudar a posição e o percurso da mulher na sociedade e a contribuição feminina nas diversas formas de atividade, a qual, muitas vezes, é anônima e silenciada. Conforme afirma Ferreira, na obra Pensar no feminino (2001), o conceito de gênero é um aspecto central dos estudos sobre as mulheres e não é entendido de forma pacífica. Ainda assim, em geral, nesse contexto, o gênero é considerado uma representação simbólica, culturalmente relativa, da masculinidade e da feminilidade. Especificamente, quanto ao discurso literário, Brandão (2004) afirma que o texto é uma folha em branco na qual a mulher circula entre o imaginário literário e social. Para a autora, o feminino é uma construção imaginária, “é sintonia e fantasma masculino” (BRANDÃO, 2004, p. 13), uma espécie de miragem, produto de um sonho alheio. Nos textos, o narrador ou poeta são felizes em fazer falar, por meio do deslocamento de vozes, o que é do homem, e aquilo que, dele, torna-se mulher. Particularmente, no caso da poesia, a mulher é aquela na qual se concretizam todos os desejos do eu - lírico masculino, desso modo a voz feminina que se ouve não é a da mulher e sim uma simulação da ilusão responsável por sua existência. Ao calar-se na voz do narrador ou do eu - lírico, a mulher idealizada assume um papel passivo, ficando estática diante do desejo de quem a descreve. Por isso a figura feminina é idealizada e, sendo assim, é inatingível. 1 Andreia Cristina Embercis, aluna do 4º ano do curso de Letras Português/Inglês da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul – UEMS/Dourados – [email protected] 2 Profa. Dra. Ana Paula Macedo Cartapatti Kaimoti, docente do curso de Letras da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul – UEMS – [email protected] UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MATO GROSSO DO SUL Unidade Universitária de Dourados VII EPGL - VI CNELLMS e IV EPPGL 27 a 29 de julho de 2011 A estudiosa portuguesa Isabel Magalhães (1996, 2001) é uma das poucas pesquisadoras que estudam a obra de Fernando Pessoa nessa perspectiva, segundo ela nas obras do poeta há uma presença feminina de forma secreta, porém forte, que permeia todo seu discurso poético como criação que vincula-se tanto aos traços simbolistas quanto aos traços modernistas da obra de Pessoa. Como construção poética, a mulher nessa obra é afirmada quando mostra-se, justamente, na forma de negativas e questionamentos do amor, do desejo, e também da própria criação por meio da linguagem. Nosso objetivo é estudar os poemas e a carta mencionadas acima, nessa direção, buscando identificar os vários modos de presença do feminino nos textos e entender a relação que essas presenças estabelecem entre si e com a obra de Pessoa de forma geral. Para isso, o trabalho procura esclarecer, no âmbito dos estudos de gênero, questões relativas à obra de Pessoa na literatura portuguesa, particularmente à heteronímia, no modernismo português. Além disso, procuramos investigar a fortuna crítica, ainda que pequena, referente à presença da mulher nos textos do autor e a relação dessa presença com os heterônimos e sua constituição na obra de Pessoa como um todo. 1.Fernando Pessoa e o modernismo português O início do século XX, em Portugal, refere-se a um momento de crise da identidade nacional, quando o país passa por conflitos políticos responsáveis pelo fim da monarquia e pelo início de um governo republicano que já se inicia com o enfrentamento de problemas graves que culminarão, posteriormente, na ditadura de Salazar. O movimento saudosista, nesse momento, traz à tona a saudade, traço da cultura do país, que, em meio a tanto instabilidade, busca a verdadeira essência portuguesa, propondo a renovação da identidade nacional . Nesse clima, com o artigo “A Nova Poesia Portuguesa”, publicado em 1910 na revista A Águia, Fernando Pessoa propõe uma série de renovações para a literatura em Portugal. Pessoa deve então participar como colaborador da revista que será nomeada como sendo o órgão da Renascença Portuguesa, responsável pela renovação da intelectualidade do país. Em busca desse renascimento, em 1915, Fernando Pessoa juntamente com Mario de Sá Carneiro e vários outros autores resolvem fundar o Orpheu, uma revista na qual poetas, críticos, artistas plásticos e outros intelectuais procuram de fato posicionar Portugal em consonância com o que propunham as vanguardas artísticas no resto da Europa. Segundo Moisés (1968), o Orfismo foi o primeiro movimento do modernismo português. Os intelectuais que se reuniram no em torno da publicação da revista inspiravam-se nas ideias futuristas e estavam envolvidos com forte entusiasmo pelas mudanças culturais da virada do século XIX para o século XX. Desta forma, eram defensores de um incorformismo que era atribuído inclusive à atividade poética. Fernando Pessoa é o grande destaque desta geração, seguido por Mario de SáCarneiro, entre outros. A geração Orpheu conseguiu a transformação que se queria, pois derruba os mitos culturais, herdados do passado, gerando assim um processo libertador e criando um novo mito: a poesia, considerada como verdade última do artista.Cria-se a consciência do poder da palavra poética, desta forma o grupo Orpheu pode ser considerado sobretudo formado por poetas. Em Orpheu, transparecem os “ismos” com que Fernando Pessoa se reveste, durante o período inicial do modernismo português: o Paulismo, o Interseccionismo e o Sensacionismo. O Paulismo é considerado o primeiro movimento estético na obra de Pessoa, marcado pela estética do simbolismo decadente e direcionado ao modernismo. No Interseccionismo, há o entrelaçamento de dois planos: sonho e realidade, interior e exterior, subjetivo e objetivo. Há um entrelaçamento UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MATO GROSSO DO SUL Unidade Universitária de Dourados VII EPGL - VI CNELLMS e IV EPPGL 27 a 29 de julho de 2011 entre os três ismos, porém o Sensacionismo irá prevalecer em sua poesia e também na prosa por meio da idéia da sensação. De acordo com Moisés, Pessoa inaugura uma linguagem nova com várias características peculiares, na qual todo passado lírico português está absorvido, fazendo-se presente as grandes inquietações da humanidade do começo do século, que vivenciava uma crise de cultura e valores espirituais. Há um constante empenho em fazer a junção do pensar e sentir, fazendo com que haja, desta forma, a presença do ser e não ser, em sua poesia, na qual toda a negação mostra uma afirmação. 1.1. A Heteronímia Muitos autores consideram o fenômeno da heteronímia como sendo a faceta mais intrigante da obra de Fernando Pessoa, por meio do qual o poeta cria vários textos atribuídos a outros autores e que são, de fato, textos diferentes entre si, embora relacionados com a totalidade fragmentária que forma a obra do autor (LOURENÇO, 1973). Para cada um de seus poetas-textos, Pessoa criou uma biografia, uma personalidade e uma formação cultural, profissão, caracteres físicos e ideologia, além de estabelecer uma relação entre eles. Pessoa criou vários heterônimos, segundo Lopes (1990, apud BESSE, 1998, p. 22), foram 72 deles, entre os mais destacados estão Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos, além da última de que se teve notícias recentemente, Maria José. Para Eduardo Lourenço (1973), a proliferação em poetas é a solução que Pessoa encontrou para enfrentar as suas próprias dificuldades literárias e também espirituais. Segundo ele, não podemos considerar os heterônimos como pessoas ou personagens, eles de fato são, antes de mais nada, realidades textuais, isto é, nada além dos poemas deixados pelo autor. Nesse sentido, cada um deles é um mundo poético em especial, fragmentos de uma totalidade que não se pode reconstituir a partir deles, isto é, eles são “a Totalidade fragmentada”, “plurais e hierarquizadas maneiras de uma única e decisiva fragmentação” (LOURENÇO, 1973, p. 31). Lourenço sugere que essa hierarquia pode ser retomada, entre outros aspectos, pelo modo como os poemas de Caeiro ligam-se aos outros textos, a partir de como Pessoa o definiu como o mestre de sua obra e da dos outros heterônimos. Essa é uma maneiras para se compreender direções mais gerais dos desafios que a obra pessoana apresentam ao leitor. Nesse sentido, Perrone-Moisés, em sua obra Fernando Pessoa: aquém do eu, além do outro (2001), afirma que Fernando Pessoa reconheceu ter aprendido tudo com Caeiro, considerado o pai dos outros poetas-textos. Pessoa o definiu como um panteísta sábio, conhecedor da calma a que aspiram os outros heterônimos. Já Ricardo Reis é considerado o epicurista triste, cujos versos contém um neoclassicismo científico. Álvaro de Campos, por outro lado, é radical, moderno, sensacionista. Segundo Maria Graciete Besse, em seu artigo “Fernando Pessoa\Maria José e a encenação do feminino” (1998), Maria José é o nome com o qual a aventura da despersonalização de Pessoa alcança seu grau máximo ao assumir uma voz feminina num único texto, uma carta, no qual ela expressa seu amor inconfessável por um serralheiro, Antonio. Ela é uma jovem de 19 anos, corcunda, que passa dias na janela a espera de ver passar o objeto de sua paixão. Devido a sua condição física, temia expor-se e falar do seu amor, então lhe escreve uma carta na qual expressa sua incapacidade diante deste sentimento e caracteriza-se pouco a pouco num discurso que encena a condição marginalizada de uma mulher por meio de traços formadores de uma imagem do feminino na cultura. 2. O feminino na poesia de Pessoa: aspectos gerais Muito já foi estudado da obra de Fernando Pessoa, porém a presença da muher em sua obra é um tema pouco explorado na fortuna crítica do autor. De acordo com Isabel Allegro de Magalhães, em UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MATO GROSSO DO SUL Unidade Universitária de Dourados VII EPGL - VI CNELLMS e IV EPPGL 27 a 29 de julho de 2011 “Fernando Pessoa e um Feminino em Falsete” (2001), as cartas de amor de Fernando Pessoa a Ophélia Queiroz são os únicos textos que mostram a relação do autor com uma mulher real. Magalhães explica que, nos poemas e outros textos de Pessoa há sempre uma recusa da mulher e podemos ver isso através dos advérbios de negação usados nesses momentos, por exemplo, ou, em outras circunstâncias, há uma repulsa pelo aspecto carnal da relação com o outro, a mulher, algo que fica evidente quando a mulher é tratada como amante ou companheira, por outro lado, quando esta mulher é posta como figura materna, nunca é rejeitada. Nesse contexto, ocorre também um afastamento da relação amorosa e o feminino representa de forma poética esta distância, apresentando-se de maneira efêmera como “uma presença meramente morfológica”, por meio da qual o amor e a mulher são mencionados para negar a sua possibilidade. A presença do feminino ocorrem também de maneiras particulares a depender do poeta-texto, do heterônimo, e também deve assumir outros traços, específicos, na obra ortônima de Pessoa, dessa forma o feminino é diferente para cada um dos Heterônimos e para Fernando Pessoa ele mesmo, sendo: ...estímulo a uma percepção mais intensa (em Caeiro), lugar do desejo contraditoriamente construído (em Pessoa-ele-mesmo e em Soares), objeto do desejo mais ou menos sexualizado (em poemas ingleses e em algum Álvaro de Campos), companheira silenciosa e quase metafisica (em Ricardo Reis) (MAGALHÃES, 2008, p. 39). Como mencionado anteriormente, diante dessa variação, porém, Magalhães encontra uma direção predominante: a anulação do feminino, a partir da qual a representação do feminino se dá de maneira a compor uma voz feminina sem identidade própria. Com base na psicanálise freudiana e no seu retorno do reprimido, a pesquisadora parte do pressuposto que essa negação, sinal de repressão, tem o valor de afirmação. Mesmo questionados, o amor, o feminino e a sexualidade permanecem nos textos de Pessoa, mas só como figuras textualmente criadas ou figuradas, nessa função, que aqui se intensifica, da linguagem como “ausência da coisa” (2001, p. 37). Nesse sentido, a mulher que se figura não existe como “ser para si” mas se apresenta na terceira pessoa, “ela”, e, por outro lado, como um “em si”, o feminino em Pessoa só se faz existir pelos contornos intangíveis da sua figuração lingüística, mantendo uma distante relação com a sua realidade. A figura feminina pode ser considerada, assim, como sendo a linguagem. Na construção dessa figura há um relacionamento amoroso que é construído no “tecido das palavras”, no qual estas tem todos os atributos dos quais o ambiente feminino dispõe, aspectos necessários para o homem, o autor, vinculados ora a um corpo de mãe, ora a uma amante. Desse modo, Magalhães acredita que a identidade do feminino bem como a figuração da mulher na obra de Fernando Pessoa é construída discursivamente, sendo esta, para o sujeito do discurso, um nada, e, na maior parte das vezes em que se apresenta, uma figura com pouca duração, sendo até mesmo efêmera. Manuel Ferreira é outro estudioso, dos poucos que há, que também se lançaram no estudo dessas questões na obra pessoana. Focalizando a obra de Ricardo Reis e, nela, a presença das musas de seus poemas, Lídia, Neera e Cloe, sobretudo a primeira. Neera é apresentada por Ferreira como sendo uma presença quase impessoal, muito discreta que, desta forma, reflete a voz de Ricardo Reis. Cloe é uma figura feminina com muito mais proximidade a Ricardo Reis, despertando, desta maneira, no eu-lírico, um desejo sensual, diante disto Ferreira comenta que muitos autores a identificam como sendo a presença de Ophélia, a amada real de Fernando Pessoa. Lídia, por sua vez, é uma companheira de viagem, uma presença que ouve e não fala ou age frente aos conselhos da voz masculina. UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MATO GROSSO DO SUL Unidade Universitária de Dourados VII EPGL - VI CNELLMS e IV EPPGL 27 a 29 de julho de 2011 O autor afirma que Lídia não é portadora de voz nas Odes de Ricardo Reis, mas apresenta-se como um instrumento por meio do qual o eu-lírico reflete sobre o amor e sua constante e possível recusa. Nesse lugar, Lídia apresenta-se serenamente como um ventríloqueo do poeta, sua voz, uma mulher improvável, segundo Ferreira, sem alma, coração e sexo, para a qual o poeta faz um convite amoroso. Mesmo quando assume uma voz feminina como autora do texto, heterônima, no caso de Maria José, sua condição deformante, a corcunda e as dores lancinantes que sofre, descritas na carta ao serralheiro, seu objeto de desejo e paixão, representam, segundo Besse (1998), uma negatividade masoquista que impossibilita a realização do amor e da sexualidade, algo que se intensifica na forma do texto, um desabafo epistolar do qual o destinatário jamais tomará conhecimento: ... a forma epistolar de temática amorosa, a situação expectante da mulher apaixonada, a linguagem do corpo que se impõe como circulação dolorosa do desejo, a cronologia da memória que converge numa percepção circular do tempo, a forma suspensa da escrita, a importância da voz como forma de legitimação existencial, a figuração de uma marginalidade que aponta para uma situação sociohistórica particular, ou seja, o estatuto minoritário da mulher na sociedade “falogocêntrica”... (BESSE, 1998, p. 24). 3. A Princesa: projeção do Infante Entre os poemas que fazem parte do nosso corpus de pesquisa, escolhemos “Eros e Psique”, de autoria de Fernando Pessoa, ele mesmo, para apresentar uma primeira análise da presença do feminino na obra. Este poema é composto por trinta e cinco versos, distribuídos em sete estrofes que apresentam uma espécie de narrativa na qual o tema central é, a princípio, o amor e o sofrimento provocado pela distância do ser amado. No texto, há uma retomada das linhas ancestrais dos contos de fadas que tratam do príncipe e da princesa encantada, representantes arquetípicos do masculino e do feminino: ela dorme, enfeitiçada, a espera de um príncipe, o Infante, o único capaz de salvá-la. Enquanto ela jaz escondida, ele a procura e deve enfrentar dificuldades para encontrá-la. O poder masculino de enfrentamento e a espera passiva do feminino apresentam-se no poema: Conta a lenda que dormia Uma Princesa encantada A quem só despertaria Um Infante, que viria De além do muro da estrada. Ele tinha que, tentado, Vencer o mal e o bem, Antes que, já libertado, Deixasse o caminho errado Por o que à Princesa vem. A Princesa Adormecida, Se espera, dormindo espera, Sonha em morte a sua vida, E orna-lhe a fronte esquecida, Verde, uma grinalda de hera. UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MATO GROSSO DO SUL Unidade Universitária de Dourados VII EPGL - VI CNELLMS e IV EPPGL 27 a 29 de julho de 2011 A voz que narra expõe as dificuldades do Infante e o sonho adormecido da princesa, ela se mostra no poema como uma mulher imaginada e imóvel, apaziguada e impossível, próxima da negatividade do feminino, de sua realização e atividade, que Magalhães, Ferreira e Besse encontraram, de formas diferentes, na obra pessoana. Esse caráter negativo é confirmado no final da narrativa, no poema, de forma muito contundente, o encontro entre os arquétipos, o eu e o outro, o homem e a mulher, o masculino e o feminino, revela-se um encontro do eu consigo mesmo, do masculino diante de si: Longe o Infante, esforçado, Sem saber que intuito tem, Rompe o caminho fadado, Ele dela é ignorado, Ela para ele é ninguém. Mas cada um cumpre o Destino Ela dormindo encantada, Ele buscando-a sem tino Pelo processo divino Que faz existir a estrada. E, se bem que seja obscuro Tudo pela estrada fora, E falso, ele vem seguro, E vencendo estrada e muro, Chega onde em sono ela mora, E, inda tonto do que houvera, À cabeça, em maresia, Ergue a mão, e encontra hera, E vê que ele mesmo era A Princesa que dormia. Essa mulher que se revela o próprio homem, essa busca pelo feminino que se torna um encontro consigo mesmo é muito reveladora, acreditamos, da presença geral da mulher na obra de Pessoa: como voz de um outro, o autor ou eu-lírico masculino, seu ventríloquo e projeção de seus desejos, inclusive o desejo, impossível, de vivência plena da realidade. Como figura formada por palavras e reduzida à linguagem, é nela que ela existe, imaginária, sonho do homem, irreal. Ainda que a pesquisa esteja em andamento, podemos provavelmente considerar que essa Princesa arquetípica, cuja capacidade simbólica está concentrada inclusive em sua maiúscula alegorizante, representa essa mulher imaginada e sonhada, inacessível, que se apresenta de variadas formas na obra do poeta e que, voz em falsete, esconde em si o próprio eu masculino que a deseja e, ao mesmo tempo, adia continuamente o encontro com esse feminino. Conclusões iniciais Como simulação de uma voz feminina projetada pelo masculino, a mulher na obra de Pessoa aparece como o retorno do reprimido, sintoma de uma negação do desejo pela plenitude existencial, alegoria do encontro total com a vida e com a realidade que se mostra impossível. UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MATO GROSSO DO SUL Unidade Universitária de Dourados VII EPGL - VI CNELLMS e IV EPPGL 27 a 29 de julho de 2011 Desse modo, a presença do feminino nos textos pode ser considerada sinal de um enfrentamento constante da sensação de irrealidade, traço que Lourenço considera como um dos mais marcantes na totalidade fragmentada da obra pessoana. Atribuir à mulher esse caráter de sonho, miragem e fantasma do eu-lírico e da voz masculina, tornase aspecto especialmente complexo numa obra baseada num processo intenso de despersonalização e vivência, na linguagem, de outros modos ser. Desejar a mulher como símbolo de sentidos socialmente construídos na sociedade patriarcal – algo que se manifesta na posição passiva que essa presença assume, de variadas maneiras, nos textos dos heterônimos – culmina, no caso do texto de Maria José, em ser mulher de uma determinada maneira: marginalizada, consumida pela dor e pelo isolamento, incapaz de viver plenamente seus desejos. Quem é essa mulher senão a própria imagem que Pessoa projetou de si nos seus textos? Nesse ponto, a biografia do autor interessa na medida em que esclarece pontos de sua obra ficcional e mostra-se incorporada nela, visceralmente. Menos que Ophélia, mulher real, as mulheres de Pessoa parecem ser a Princesa adormecida do poema “Eros e Psiquê”: são o próprio Infante, o Masculino, o eu-lírico, seres de linguagem, ficcionais, como foi, a própria vida do poeta, reduzida e simultaneamente ampliada na vivência exclusiva da arte. 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