UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
A VOZ EM CANTO:
DE MILITANA A MARIA JOSÉ,
UMA HISTÓRIA DE VIDA
Lílian de Oliveira Rodrigues
João Pessoa
2006
LÍLIAN DE OLIVEIRA RODRIGUES
A VOZ EM CANTO:
DE MILITANA A MARIA JOSÉ,
UMA HISTÓRIA DE VIDA
Tese de doutorado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Letras,
área de concentração em Literatura e
Cultura, Centro de Ciências Humanas,
Letras e Artes da Universidade Federal da
Paraíba, como requisito parcial para
obtenção do grau de Doutor.
Orientadora: Profª. Drª. Maria Ignez Novais
Ayala
João Pessoa
2006
Catalogação na fonte
Biblioteca Pública Câmara Cascudo
R696v
Rodrigues, Lílian de Oliveira
A voz em canto: de Militana a Maria José, uma
história de vida/ Lílian de Oliveira. − Natal (RN): Ed. do
autor, 2006.
286p. ; il. (fot.)
F
Tese (doutorado) apresentada ao Programa de PósGraduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba.
1. Cultura popular – Rio Grande do Norte. 2.
Literatura popular – Rio Grande do Norte. 3. História de
vida. I. título.
CDD 301.298132
2006/05
CDU 001(813.2)
LÍLIAN DE OLIVEIRA RODRIGUES
A VOZ EM CANTO:
DE MILITANA A MARIA JOSÉ,
UMA HISTÓRIA DE VIDA
Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras,
área de concentração em Literatura e Cultura, Centro de Ciências Humanas,
Letras e Artes da Universidade Federal da Paraíba, como requisito parcial
para obtenção do grau de Doutor.
Tese aprovada com distinção em 08 de junho de 2006
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________
Profª. Drª. Maria Ignez Novais Ayala
Programa de Pós-Graduação em Letras/ UFPB
(Orientadora)
___________________________________________
Profª. Drª. Ana Cristina Marinho Lúcio
Programa de Pós-Graduação em Letras/UFPB
(1º Examinador)
____________________________________________
Prof. Dr. Gilton Sampaio de Souza
Departamento de Letras/ UERN
(2º Examinador)
___________________________________________
Prof. Dr. Luiz Carvalho de Assunção
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social/UFRN
(3º Examinador)
__________________________________________
Prof. Dr. Marcos Ayala
Programa de Pós-Graduação em Sociologia/ UFPB
(4º Examinador)
____________________________________________
Prof. Dr. Diógenes André Vieira Maciel
Programa de Pós-Graduação em Letras/UFPB
(Suplente)
___________________________________________
Profª. Drª. Rosilda Alves Bezerra
Programa de Pós-Graduação em Literatura e Interculturalidade/UEPB
(Suplente)
A João Batista Rodrigues (in memoriam)
Aquele que guardamos na memória transcende a
condição mortal. Se a memória não traz de volta o
tempo, tem a capacidade de eternizá-lo. Em toda a
minha existência, sempre estarás no tempo presente.
A Rosa, Simone, João Júnior e Solange
O amor que nos une, mantém vivo o que com vocês
aprendi. O respeito, a estima e o carinho que
compartilhamos são os pilares que dão sustento a minha
história de vida.
A Weldson François
Ancorei meu amor em teu porto seguro. E ele docemente
protegeu-me das tempestades. Desfez as miragens
presentes nos mares revoltos, com o sábio cuidado de
resguardar os sonhos. É grande a felicidade de ter teus
braços para ancorar minha ventania.
A Diva Sueli
O seu espírito livre ensinou-me uma nova maneira de
sorrir. A sua voz suave e plena encheu minha
imaginação e preencheu meu espírito com os encantos
de São Gonçalo. A você devo a semente que gerou este
trabalho.
A D. Maria José
A admiração que me motivou a procurá-la,
transformou-se em afeição sincera. Esta senhora
revelou-me, de forma lúdica e poética, a vida e a alma
da gente simples do Brasil.
AGRADECIMENTOS
Na trajetória da construção deste trabalho enfrentei um grande
obstáculo: o tempo. Ele me foi roubado. Arrebataram-no de mim com
tamanha brutalidade que experimentei, em momentos de desespero, a
fragilidade que me tirava as forças para continuar o percurso. No entanto,
talvez o mais importante aprendizado que eu tenha construído nessa
experiência tenha sido a capacidade de superação: percebi que esta aflora,
principalmente quando se está cercado por pessoas que trazem em si a
sensibilidade de poder voltar o seu olhar para o outro, quando isso se faz
preciso. Se o meu tempo foi roubado, muitos amigos cederam-me, como
dádiva, parte do seu, que já era escasso. Pude vivenciar o poder desse
espírito altruísta, uma espécie de sentimento que se desenvolve em grupos
que balizam suas relações pelo princípio da solidariedade. Aprendi isso com
D. Maria José e também com todos os que contribuíram para a
concretização deste trabalho. Por isso e por muito mais, tenho a agradecer,
mais quero fazê-lo de maneira especial a algumas pessoas:
À Professora Maria Ignez Novais Ayala, pela destreza com que me
ajudou a ouvir a voz de D. Maria José, na caudalosa mistura de discursos
guardada em sua fala. Com essa mestra aprendi que a acadêmica distância
de um objeto de estudo é impossível quando se lida com seres humanos.
Pesquisadora cuidadosa e criteriosa, a Professora Maria Ignez faz do respeito
à voz dos colaboradores de suas pesquisas o ponto de partida de seus
trabalhos. Ao conviver com ela, descobri que, mais do que uma característica
da profissional, o respeito à voz do outro é inerente à sua personalidade.
Agradeço-lhe o apoio, a orientação e a confiança em todas as fases deste
trabalho.
Aos Professores Marcos Ayala e Ana Cristina Marinho Lúcio
agradeço a gentileza de aceitarem participar da banca de exame de
qualificação deste trabalho em condições tão adversas. Mesmo com o tempo
exíguo e a data imprópria, a seriedade e a competência com que examinaram
o texto resultaram em proveitosas sugestões.
A Weldson François, meu grande companheiro, que suportou meus
momentos de angústia e ausência, cercando-me com seu amor e não
medindo esforços para ajudar-me no que fosse necessário.
A Diva Sueli, pela amizade e o companheirismo inabalável.
Compartilhei com esta grande amiga as tardes inesquecíveis na companhia
de D. Maria José. As conversas sobre a vida, a literatura, a arte, a cultura
eram nossas companheiras no caminho de São Gonçalo. Estes foram
momentos que ficarão guardados nos locais mais sagrados de minha
memória.
A todos os que fazem o Departamento de Letras do Campus
Avançado “Prof.ª Maria Elisa de Albuquerque Maia”, da Universidade do
Estado do Rio Grande do Norte, ao qual tenho o orgulho de pertencer. Esta
instituição é formada por indivíduos que aliam uma grande capacidade
profissional a um espírito de coletividade, raro nos meios acadêmicos. A
união deste grupo faz brotar o sentimento solidário, que o caracteriza e que
se revela nos gestos das pessoas. Gostaria de agradecer de maneira muito
especial aos professores Gilton Sampaio, Charles Ponte, Fátima Carvalho,
Deny Gandour, Aparecida Ferreira, Edileuza Costa, Eliete Queiroz, Jailson
da Silva e Marcos Luz, que, mesmo assoberbados pelas tantas tarefas,
multiplicaram o seu escasso tempo e dividiram-no comigo, quando
assumiram minhas atividades acadêmicas. O presente que me deram foi o
tempo de que eu necessitava para escrever este texto.
Ao amigo Gilton Sampaio, este Sísifo incansável, que não mede
esforços para ajudar a quem quer que seja. Seu entusiasmo e motivação
foram o esteio necessário para que este trabalho se realizasse, quando eu
nem mais acreditava. Agradeço as “repreensões”, o apoio, o carinho, a
preocupação e, sobretudo, a amizade.
Ao amigo Charles Ponte. Sua contribuição neste trabalho vai muito
além das promissoras discussões teóricas que tivemos, da leitura criteriosa
de partes do texto e da cuidadosa elaboração do abstract. Esse amigo foi
responsável por eu resgatar o ânimo perdido em meio às dificuldades para a
retomada da pesquisa e às tarefas diárias do Departamento. Sua amizade
sincera foi um bálsamo para minhas angústias. O misto de ironia e doçura
que compõe sua personalidade me fez, mesmo à sua revelia, acreditar mais e
mais na espécie humana.
A Alessandre Tavares, grande amigo com quem partilhei as
primeiras reflexões sobre este trabalho. Agradeço a sempre disponibilidade
de dialogar, mesmo estando comprometido com tantas atividades. O rigor e a
erudição desse pesquisador aliaram-se ao carinho, quando se propôs ler e
discutir comigo este texto.
A Nilza Barbosa, companheira que foi meu porto seguro enquanto
fui aluna do doutorado, ajudando-me com os detalhes burocráticos do
curso. Compartilhamos angústias e comemoramos sucessos. Ainda posso
ouvir a sua voz suave dizer com jeito meigo: “Vai dar tudo certo!”.
À amiga Sanzia Pinheiro, pelo carinho e apoio durante todo o
percurso desta pesquisa. Tive o prazer de tê-la como interlocutora. Seu amor
pela arte proporcionou a leitura cuidadosa e apaixonada deste texto.
A
Rosilda
Alves,
amiga,
quase
irmã,
com
quem
sempre
compartilhei alegrias e angústias vividas ao longo destes quatro anos. A ela
agradeço a preocupação constante com meu bem-estar e os frutíferos
debates sobre poesia, arte e literatura.
A Carlos Negreiro, amigo com quem, por muitas vezes, tive
oportunidade de discutir pontos importantes para o direcionamento desta
pesquisa. Agradeço o carinho e o desprendimento em compartilhar comigo
sua vasta biblioteca.
A Lúcia Pessoa Sampaio, amiga que, durante o percurso deste
trabalho, sempre me incentivou com seu exemplo. Seu apoio traduziu-se
para mim em palavras positivas e gestos solidários.
A Alex Xavier, pelas indicações de leitura que me nortearam, pelos
caminhos, para mim desconhecidos, da Sociologia e da História. Agradeço
por ter podido compartilhar seus livros, seu conhecimento e sua amizade.
A Crígina Cibelle e a Cezinaldo Rocha, jovens amigos que trilham
promissores caminhos pelas “letras”. Agradeço o incentivo, o carinho e o
apoio demonstrado em seus gestos amáveis.
A meus alunos e orientandos da UERN. O apoio que recebi de
todos eles, compreendendo minhas ausências e torcendo pelo meu sucesso,
foi fundamental para que eu tivesse a tranqüilidade necessária para escrever
esse texto.
A Maria Teresa de Oliveira, ex-Secretária de Educação do
Município de São Gonçalo do Amarante, agradeço o material sobre D.
Militana, o que muito contribuiu para a realização desse trabalho.
A minha prima Bianca, que assumiu de maneira carinhosa e
competente o cotidiano de minha casa, cuidando de mim e deixando-me o
tempo livre necessário para construir este trabalho.
A Edileusa Gonçalves, esta eterna mestra. Agradeço o olhar
perspicaz e competente com que realizou a revisão final deste texto.
A Zulmira Nóbrega, que me acolheu em sua casa, na cidade de
João Pessoa, sempre com sua maneira gentil e seu sorriso constante.
A Dona Albaniza e Seu Pedro Rodrigues. É impossível esquecer as
tardes, em Santo Antônio, em que me recebiam carinhosamente em sua casa
após as visitas a São Gonçalo. Ainda guardo com carinho o sabor do café
sempre fresco, da tapioca, do pão quente e das agradáveis e divertidas
conversas sobre as histórias da cidade.
A Ana Cláudia Mafra, que compartilhou comigo suas experiências,
nas muitas viagens entre Natal e João Pessoa. Agradeço o material teórico
referente aos estudos sobre cultura popular e a leitura cuidadosa do projeto
de tese.
A Wellington Medeiros, por compartilhar o gosto pela literatura e
pela arte, que deu o tom das nossas conversas, nas viagens entre Natal e
João Pessoa, no tempo em que cursávamos disciplinas juntos.
A Professora Drª. Elisalva Madruga, Coordenadora do Programa de
Pós-Graduação em Letras, agradeço a compreensão e o esforço empreendido
para que as questões burocráticas se resolvessem da melhor forma possível.
Às secretárias do Programa de Pós-Graduação em Letras, Socorro e
Roseane, que me atenderam prontamente, com grande cordialidade e
gentileza em todos os momentos em que necessitei.
Finalmente, ao CNPq pela concessão da bolsa de estudos, que
possibilitou o apoio financeiro a parte desta pesquisa.
Na era de vinte e cinco,
A dezenove de março,
Às doze horas do dia,
Foi aí meu nascimento.
A lua tava de minguante,
A maré tava de vazante,
A lua cortou minha sina,
A maré levou minha sorte
E agora eu digo:
Sou a mais sofredora do Rio Grande do Norte
D. Maria José
RODRIGUES, L. de. O. A voz em canto: de Militana a Maria José, uma
história de vida. Tese (Doutorado em Letras) Universidade Federal da
Paraíba, João Pessoa, 2006.
RESUMO
Este trabalho visa discutir algumas questões sobre a relação entre a
cultura popular e as experiências pessoais dos indivíduos que participam
dessas práticas culturais, pretendendo mostrar como literatura e a
história de vida se entrelaçam em discursos que marcam uma identidade
cultural. O estudo se detém na análise do relato pessoal de Militana
Salustino do Nascimento − nome de registro pelo qual essa senhora,
cantadora de romances de São Gonçalo do Amarante-RN, é conhecida no
cenário cultural do país − ou simplesmente de D. Maria José − nome pelo
qual a artista é conhecida em seu espaço comunitário. Tem-se, nessa
“duplicidade de nomes”, que configuram os espaços público e privado
desse sujeito, os dois modos de conceber a cultura popular: o primeiro se
preocupa com os “objetos culturais” e percebe essas manifestações como
frutos de uma herança distante, valorizando-as por isso; e um outro que
considera os contextos de produção nos quais essas práticas culturais
existem, evidenciando a voz dos sujeitos que nelas se inserem. Através da
metodologia da história de vida, utilizando-se a técnica da entrevista foi
possível conhecer D. Maria José. Na narrativa construída pode-se
identificar os mecanismos pelos quais ela reinventa literariamente a sua
experiência pessoal. A aproximação do universo particular da artista e a
discussão dos conceitos de memória, narrativa e oralidade permitiram
perceber a relação existente entre os versos que ela canta e o relato
pessoal de sua história. Pode-se pensar o canto da artista como uma
poesia que transborda dos poemas para a sua vida e que se refaz no
cotidiano, na relação com sua terra, sua religiosidade, seus familiares e
vizinhos. A análise realizada possibilitou compreender o universo de D.
Maria José a partir dos múltiplos discursos inerentes às práticas
populares e às relações socioculturais implícitas entre eles e a
comunidade.
Palavras-chaves: Literatura popular. Cultura popular. História de vida.
Memória.
RODRIGUES, L. de. O. A voz em canto: de Militana a Maria José, uma
história de vida. Tese (Doutorado em Letras) Universidade Federal da
Paraíba, João Pessoa, 2006.
ABSTRACT
This work aims at discussing some issues concerning the relationship
between popular culture and the personal experience of an individual who
partake in such cultural practices, intending to show how culture and life
history intermingle into discourses that mark cultural identity. The study
lingers upon the analysis of the personal account of Militana Salustino do
Nascimento − record name by which this lady, a romance singer from São
Gonçalo do Amarante-RN, is known in the national cultural scenario − or
simply D. Maria José − name by which the artist is known in her
community. There is, in this “nominal duplicity”, which portray the public
and private spheres of the individual, the two ways of conceiving popular
culture: the first deals with “cultural objects”, perceiving these
manifestations as fruits of a distant heritage, and, for that reason, values
them; and the second considers the production contexts in which these
cultural practices exist, highlighting the individuals’ voices inserted in
them. Though life history methodology, using interviewing techniques, it
was possible to know D. Maria José. In the constructed narrative, the
mechanisms by which she literarily reinvents her personal experience
could be identified. The approximation of the private universe of the
artist, as well as the discussion of the concepts of memory, narrative and
orality have permitted to perceive the existing relationship between the
lines she sings and the personal account of her history. Thus, the song of
the artist can be thought of as poetry that overflows from the poems into
her life and that is remade in everyday life, in the relationship with her
land, her religiousness, her family and neighbors. The analysis conducted
made possible to understand the universe of D. Maria José, starting from
the multiple discourses inherent to the popular practices and to the
sociocultural relations implicit between them and the community.
Key-words: Popular literature. Popular culture. Life history. Memory.
SUMÁRIO
12
INTRODUÇÃO.........................................................................................
15
1. DE MILITANA A MARIA JOSÉ: A CONSTRUÇÃO DE UM PERCURSO.....
15
1.1. Considerações sobre o estudo da cultura popular.................................
32
1.2. D. Militana: a romanceira do Oiteiro....................................................
56
1.3. Militana ou Maria José: o nome............................................................
62
2. A PESQUISA DE CAMPO: DEFININDO OS CAMINHOS........................... 62
2.1. O encontro de dois mundos: o pesquisador e o universo da pesquisa...
69
2.2. Pra começo de conversa... as entrevistas.............................................
78
2.3. A voz no papel: a transcrição................................................................
3. D. MARIA JOSÉ: A VOZ EM CANTO.....................................................
85
85
3.1. Ouvindo os silêncios: a escolha do repertório........................................ 91
3.2. Eu que narro, quem sou? .................................................................... 91
3.2.1. Primeiros Encontros ..................................................................
92
3.2.2. Transcrição 1 ............................................................................
104
3.2.3. Transcrição 2 ............................................................................
124
3.2.4. Transcrição 3 ............................................................................
147
3.2.5. Novos Encontros .......................................................................
148
3.2.6. Transcrição 4 ............................................................................
170
3.2.7. Transcrição 5 ............................................................................
196
3.2.8. Transcrição 6 ............................................................................
211
3.2.9. Transcrição 7 ............................................................................
231
4. UM MUNDO NA CABEÇA: MEMÓRIA, POESIA E COTIDIANO................
231
4.1. A voz-memória: narrativa e identidade.................................................
240
4.2. A narrativa do cotidiano.......................................................................
255
4.3. “Minha vida é um romance”: o universo poético de D. Maria José.........
CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...........................................................
FOTOS ...................................................................................................
ANEXOS ................................................................................................
265
269
278
286
INTRODUÇÃO
O senhor... Me dê um silêncio. Eu vou contar.
Grande sertão: veredas
João Guimarães Rosa
Uma voz que se conta, enquanto canta. É dessa maneira que esse
trabalho se propõe a ouvir a voz de D. Maria José, uma simpática senhora
que traz em si a síntese das práticas culturais populares. Benzedeira, artesã,
cantadora de cocos, benditos, excelências, romances, aboios, D. Maria José é
uma personalidade de grande destaque na comunidade em que sempre viveu
− o Sítio Oiteiro, na cidade de São Gonçalo do Amarante−RN.
Contando a história da sua vida, pretendo, neste estudo, lançar
um olhar sobre uma pequena parte do universo da cultura popular. Meu
olhar tenta abarcar, em um só plano, contexto e sujeitos de produção assim
como seus bens culturais, aqui representados pela palavra: ora pelo canto,
ora pelos versos, ora pelos relatos.
No entanto, apesar do “toque particular” da história de D. Maria
José, posso dizer que a sua vida se aproxima da de uma personagem saída
de um drama, um drama da vida real, não diferente de outras histórias de
outras “Marias Josés” que povoam as camadas populares deste país. E,
talvez por isso mesmo, nunca foi contada, ou, sobretudo ouvida. Isso porque
contar a sua história envolve pensar sobre o emaranhado de relações que a
constitui.
Talvez por isso, grande parte dos norte-rio-grandenses a conheçam
por D. Militana, a cantadora de romances de São Gonçalo do Amarante,
considerada por estudiosos da cultura popular do estado, “a guardiã das
memórias ibéricas” que tem na memória textos que são a nossa mais nobre
herança européia, conservada pela tradição.
Durante o percurso para “ouvir” o que D. Maria José tinha a dizer,
a história de vida, como técnica de pesquisa, permitiu-me aproximar-me
desse universo. A experiência vivida nas tardes de conversa em companhia
de D. Maria José possibilitou-me a aproximação de dois mundos diversos, o
do pesquisador e o do colaborador. Segundo Benjamin (1993a), o narrador
tira o que narra da própria experiência e a transforma em experiência dos
que o escutam. Partilhar da experiência de D. Maria José possibilitou-me
conhecer a sua cultura. Seu relato me deu a dimensão de como os textos
que ela canta estão inter-relacionados com as práticas cotidianas de sua
vida. Através das lembranças desfiadas do tecido de sua memória, pude
perceber que a palavra, no verso e no cotidiano, mune-se de significados
para contar, afirmar, reconhecer, negar, contestar, alegrar, resistir. As
palavras mais importantes deste trabalho pertencem a D. Maria José. São
elas que fazem deste estudo, mais do que um estudo sobre cultura popular,
um estudo sobre a memória e a vida dos produtores dessa cultura.
Para apresentá-las, este trabalho está dividido em quatro partes.
No capítulo 1, De Militana a Maria José: a construção de um percurso, ofereço
ao leitor um panorama dos estudos sobre cultura popular, com a intenção
de discutir as diferenças teóricas e metodológicas que distanciam os estudos
folclóricos da linha de estudos que considera a contextualização das práticas
culturais, adotada por este trabalho. Essa distinção se faz importante na
medida em que possibilita discutir e entender a construção da figura pública
da artista D. Militana. Por meio da divulgação de seu nome através de textos
da imprensa local e nacional, o trabalho articula o que é dito sobre D.
Militana à perspectiva sobre cultura popular adotada, constatando, na
existência dos dois nomes − Militana e Maria José −, que distinguem os
espaços público e privado desse sujeito, duas maneiras de conceber o
popular e suas práticas.
O capítulo 2, A pesquisa de campo: definindo os caminhos, descreve
o percurso que realizei na intenção de ouvir, no entremeio de discursos, o
que a voz de D. Maria José queria me dizer. Nesse espaço são discutidas
questões referentes ao trabalho de campo, como a relação entre o
pesquisador e o colaborador, as questões e os problemas postos na
elaboração e na realização das entrevistas, e as posições adotadas para
definir as escolhas que vão balizar a transposição do relato oral para o
escrito, constituindo o trabalho de transcrição.
No capítulo 3, D. Maria José: a voz em canto, apresento as
transcrições das entrevistas que constituem o corpus da pesquisa. Elas estão
expostas na íntegra, para que o leitor tenha a possibilidade de visualizar os
silêncios e as pausas que permeiam o conteúdo das conversas e o próprio
fluxo da narrativa. Incorporar a voz do sujeito ao texto foi a maneira
encontrada para ressaltar aquilo que o sujeito pesquisado quer dizer de si,
dando a sua voz a dimensão que ela ocupa neste trabalho.
No Capítulo 4, Um mundo na cabeça: memória, poesia e cotidiano,
procedo à análise do corpus a partir das categorias memória, cotidiano e
identidade, articulando-as com o universo poético desse sujeito, na
perspectiva de compreender como a história de vida contada por D. Maria
José constitui um tecido narrativo, no qual a memória dá a forma, e o
cotidiano, o contorno. A poesia, então, surge nesse contexto como o
elemento que esse sujeito apreende do cotidiano e transforma, dando-lhe
cor através da memória. Os versos que D. Maria José canta constituem, a
partir de sua memória, uma reelaboração que permeia o seu cotidiano e sua
vida. Essa discussão envolve a postura teórica adotada na pesquisa, que
considera as manifestações da cultura popular  no caso de D. Maria José,
os seus cantos  como práticas indissociáveis da vida cotidiana de seus
praticantes.
Benjamin (1993a) nos diz que a narração não visa transmitir o
“em si” do acontecido; ela o tece até atingir uma forma boa. Assim, convido
o leitor a tecermos juntos a história de D. Maria José. Estou certa de que,
ao fazê-lo, estaremos dando prioridade à voz do outro, ao discurso das
comunidades populares, ou, como preferem alguns, das gentes simples do
Brasil.
I
DE MILITANA A MARIA JOSÉ: A CONSTRUÇÃO DE UM PERCURSO
1.1. Considerações sobre o estudo da cultura popular1
A cultura popular é um terreno que oferece fronteiras móveis: seus
termos são sempre esquivos, dados a muitas definições e repletos de
ambigüidades. Defini-la não é tarefa simples, pois envolve, no dizer de Ecléa
Bosi (2000, p. 63), “escolha de um ponto de vista, e em geral, implica tomada
de
posição”.
Assim,
procurei
neste
tópico
cercar-me
dos
cuidados
necessários para me mover nesse espaço e tentar circunscrever, de maneira
breve, os caminhos em torno da expressão “cultura popular", com o intuito
de marcar a posição que estabelece os caminhos teóricos e metodológicos da
pesquisa.
A opção, então, foi investigar essas relações a partir de um breve
panorama voltado para as discussões sobre o estabelecimento da cultura
popular, articulando-o com os movimentos de interação entre culturas e com
os aspectos econômicos e simbólicos dos produtos populares, incluindo o
1
Como se propõe breve, este tópico, fatalmente, terá a ausência de algumas discussões e de alguns autores que
encenaram o debate proposto. Entretanto isso se justifica, já que o objetivo é apenas tentar “pintar o cenário” que
define os rumos dessa reflexão. Para tanto, a perspectiva de discussão escolhida não se orienta por uma
ordenação cronológica, mas busca estabelecer diálogos entre os autores abordados, circunscritos nas mais
variadas áreas do saber  Antropologia, História, Sociologia  que envolvem o tema.
contato destes com os meios midiáticos e a difusão por esses meios, uma vez
que García Canclini (1983, p. 12) afirma que é necessário redefinir o que é
hoje cultura popular e que esse novo olhar precisa de uma “estratégia de
investigação capaz de abranger tanto a produção, quanto a circulação e o
consumo”.
Ao proceder a uma investigação preliminar do termo “cultura
popular”, baseada no senso comum, nós, pesquisadores, somos remetidos
instantaneamente para a idéia de “povo”, uma determinada parte do
conjunto total dos participantes de uma sociedade, ou àquela que exclui os
dirigentes e a elite econômica. Percebe-se, nessa perspectiva, a conceituação
do popular por oposição ou, ainda, pela negativa. Aliando esse conceito ao de
“cultura”, tem-se a cultura popular como sendo um conjunto de práticas
culturais exercidas pelas camadas menos favorecidas da sociedade. No
entanto, com um olhar mais atento, vê-se que a cultura popular está
envolvida em relações muito mais complexas, que se moldam a diferentes
conjunturas e servem, às vezes, a interesses opostos. García Canclini (2006,
p. 1) percebe isso quando afirma:
Hay éxitos tristes. Por ejemplo el de palabras como popular,
que casi no se usaba, luego fue adquiriendo la mayúscula y
acaba escribiéndose entre comillas. Cuando sólo era utilizada
por los folcloristas parecía fácil entender a qué se referían: los
costumbres eran populares por su tradicionalidad, la
literatura porque era oral, las artesanías porque se hacían
manualmente. Tradicional, oral y manual: lo popular era el
otro nombre de lo primitivo, el que se empleaba en las
sociedades modernas.
Con el desarrollo de la modernidad, con las migraciones, la
urbanización y la industrialización (incluso de la cultura),
todo se volvió más complejo. Una zamba bailada en televisión
¿es popular? ¿Y las artesanías convertidas en objetos
decorativos de departamentos? ¿Y una telenovela vista por
quince millones de espectadores? Hay una vasta bibliografía
que habla de cultura popular en espacios muy diversos: el
indígena y el obrero, el campesino y el urbano, las artesanías
y la comunicación masiva. ¿Puede la misma fórmula ser
usada en tantos territorios?
Assim,
para
operar
a
reflexão
do
significado
do
popular
atualmente, dentro daquilo que pretendia neste trabalho, foi-me necessário
percorrer a construção desse conceito, para depois refletir sobre a
problemática colocada por García Canclini.
Burke (1989) observa que é principalmente na Alemanha, no final
do século XVIII e início do XIX, que essa visão da cultura popular tornou-se
bastante aceita e rapidamente os setores cultos da sociedade passaram a se
interessar por coleções de poesia popular, contos populares e música
popular. É na obra de Herder e dos irmãos Grimm que melhor se definem as
concepções e valorizações das produções populares. Não se trata apenas de
uma valoração estética, mas de se encontrar nelas um tipo de expressão que
estava em vias de desaparecimento.
"A descoberta do povo" foi a denominação do historiador inglês
para esse movimento e ele classificava as razões para que isso estivesse
acontecendo naquele momento histórico. Eram elas: razões estéticas, que se
referiam a uma insubordinação contra o artificial na arte culta e
conseqüente valorização das formas simples; razões intelectuais, que tinham
a ver com uma postura hostil para com o iluminismo, enquanto pensamento
valorizador da razão, em detrimento do sentimento e das emoções; e, por
fim, razões políticas, que estavam ligadas às hostilidades contra a França, e
seu iluminismo, alimentadas por países como a Alemanha e a Espanha.
Assim,
a
busca
das
identidades
nacionais
passava
obrigatoriamente pelo "resgate" das tradições populares. Isso não quer dizer
que os pesquisadores envolvidos tivessem que estar vinculados à questão
nacionalista, pelo menos no que diz respeito ao aspecto político desta. Burke
(1989) lembra, no entanto, que algumas edições de coleções populares de
canções, foram largamente utilizadas com o intuito de produzir sentimentos
nacionalistas.
A descoberta da cultura popular foi, em larga medida, uma
série de movimentos “nativistas”, no sentido de tentativas
organizadas de sociedades sob o domínio estrangeiro para
reviver a sua cultura tradicional (BURKE, 1989, p. 40).
A visão romântica estabelecia uma antinomia entre a imaginação,
a espontaneidade, a vida comunitária e a simplicidade, como atributos do
povo, e o racionalismo e o utilitarismo, representados pela ilustração. Na
mistura entre fascínio e nostalgia em relação a um mundo inacessível, a
busca dos românticos para encontrar essa pureza e essa vida orgânica do
povo, que faria frente aos artificialismos da vida burguesa preconizada pelos
iluministas, deveria dar-se pelo estudo da poesia popular. Essa produção
encarnava todo o espírito popular, no seu mais alto grau de singeleza e
pureza, representando, no dizer de Burke, o verdadeiro "tesouro da vida",
nessa empreitada de arqueologia romântica.
Mas, se há uma visão positiva da cultura popular no movimento
romântico, qual a idéia de “povo” que ela encerra?
Os autores românticos viam na poesia popular um tipo de
produção coletiva, desindividualizada, expressão dos anseios e desejos de
toda uma coletividade. Ela ganha a atribuição de “poesia da natureza”,
sublinhando, especialmente na obra dos irmãos Grimm, a eliminação do
caráter de autoria das obras. Ortiz (s/d, p. 23) observa:
Há neste ponto uma nítida contradição entre o movimento
romântico nacionalista e popular, e os ideais do Romantismo.
A visão egocêntrica do artista cede lugar ao anonimato da
criação. Desvaloriza-se no indivíduo a capacidade de
imaginação artística, ao mesmo tempo que a sensibilidade é
deslocada para o pólo do ser popular. Neste sentido, a poesia
de cultura é obrigatoriamente inferior à poesia da natureza.
Pode-se perceber, pela característica de anonimato atribuída às
produções populares, que o “ser popular” mencionado é uma condição
idealizada não por seu caráter socioeconômico, sua função social ou seu
modo de vida concreto, mas sim por ser guardião de uma memória
esquecida, que corresponde ao que há de mais isolado e, portanto, mais
conservado na cultura. Ortiz (s/d, p. 26-27) ainda esclarece:
Esta concepção terá grande influência no pensamento
posterior; ela estabelece a base de identificação entre os
intelectuais e seu objeto de estudo. Tudo se passa como se o
campo da cultura popular fosse análogo ao de uma formação
geológica. Na superfície encontraríamos o pensamento
letrado, com suas veleidades racionais e reflexivas. Descendo
pelas camadas sociais, penetraríamos no segredo das jazidas
escondidas. Por isso os pobres e os trabalhadores são
personagens secundários da curiosidade romântica; [...] O
intelectual, como um geólogo, caminharia pelas camadas
intermediárias, para finalmente recuperar os restos
arqueológicos cobertos pela poeira da história.
A influência destacada pode ser percebida quando essa cultura
tradicional se transforma em folclore e a imagem do geólogo define o
procedimento a ser utilizado pelo estudo. Na realidade, as elites intelectuais
redescobrem a cultura popular em meados do século XIX, a partir dessa
perspectiva. Como os românticos, os folcloristas cultivam as tradições. Para
eles, “o entendimento da cultura popular só é possível quando referido a
uma ‘substância de cultura’ pertencente ao passado” (ORTIZ, s/d, p. 27).
Para conhecê-la, era necessário recuperá-la em meio ao que havia sobrado
de sua existência.
Esse procedimento, no entanto, tem um propósito muito definido.
Certeau, Julia e Revel (2003, p. 55) destacam, em sua análise, o caráter
periculoso da cultura popular quando afirmam que esta “supõe uma ação
não confessada. Foi preciso que fosse censurada, para ser estudada.
Tornou-se, então, um objeto de interesse porque seu perigo foi eliminado”. O
perigo a que se referem os autores foi a disseminação dos livros da literatura
de colportage2 e o temor pelo modo como essas produções eram apreendidas
e manipuladas pelas classes populares. Chartier (1995, p. 187) exemplifica
esse comportamento, em relação aos textos da literatura picaresca:
brincando com as convenções e com as referências
carnavalescas,
parodísticas
e
burlescas,
foram,
possivelmente,
compreendidos
como
uma
descrição
verdadeira da realidade inquietante e estranha dos falsos
mendigos e verdadeiros vagabundos.
O receio se justificava na medida em que “essa cultura é tanto
mais ‘curiosa’ quanto menos temíveis são os seus sujeitos” (CERTEAU;
JULIA e REVEL, 2003, p. 57). Portanto julgar a cultura popular em vias de
2
Literatura divulgada, nos séculos XVII e XVIII, por meio de ambulantes e lida especialmente pelo povo.
extinção, dedicando-se a preservar-lhe as ruínas constitui “o gesto que a
retira do povo e a reserva aos letrados e amadores” (2003, p. 56).
Quando foi criada pela Folklore Society, na Inglaterra, em 1878, a
palavra “folclore” designava uma inovação que redefinia o estudo das
tradições populares. O folclore vai acompanhando aos poucos a modificação
da velha prática de antiquário para revelar contornos de uma disciplina
científica que consagrava um determinado tipo de análise da cultura popular
realizada sob o alcance do positivismo.
Os
folcloristas
se
reconhecem
como
grupos
que
levam
o
esclarecimento científico ao domínio popular e, para se caracterizarem como
pesquisadores, buscam um novo paradigma que diferencie seus trabalhos
dos estudos românticos. Iniciam pela crítica quanto ao excesso imaginativo
que adulterou as tradições folclóricas, diluídas pelo lirismo do romantismo.
Ao criticar a falta de método, os estudos folclóricos passaram a cumprir a
função de conhecimento dos hábitos primitivos e de sua sobrevivência no
mundo industrial. Assim, lançam-se os contornos da nova disciplina e o
folclore encarrega-se das lendas, costumes e crenças do povo, ou seja, dos
costumes das classes que foram menos alteradas pela educação e que,
portanto, não participam do “progresso”. Não se trata mais de colecionar
objetos, ao modo do espírito de antiquário, agora o povo é considerado como
um relicário: é o “arquivo da tradição”, e seu saber deve ser preservado. “Os
antiquários tinham lutado contra o que se perdia colecionando objetos; os
folcloristas criaram os museus de tradições populares” (GARCÍA CANCLINI,
2003, p. 210) e, por isso, deve-se lutar contra o tempo, pois o grande esforço
é para recuperar os traços de uma sobrevivência passada, no presente,
através da descoberta das reminiscências. “Resgatar antes que acabe” passa
a ser o lema para os estudos folclóricos.
Esse procedimento revela limitações que desenham uma postura
frente às classes que se pretende preservar. Ao situar a tradição apenas
como algo circunscrito a um tempo passado, o folclorista focaliza os objetos
culturais que pretende descrever com o olhar exótico e distante. Com isso, a
visão de “arqueólogo” por ele incorporada lhe permite perceber os costumes
populares como restos de uma estrutura social que se apaga e, por
conseqüência, ele desconsidera o contexto e as tensões que permitiram a
existência desses costumes. García Canclini (2003, p. 210) assim justifica:
Se o modo de produção e as relações sociais que geraram
essas “sobrevivências” desapareceram, para que preocupar-se
em encontrar seu sentido sócio-econômico?[...] Ao decidir que
a especificidade da cultura popular reside em sua fidelidade
ao passado rural, tornam-se cegos às mudanças que a
redefiniam nas sociedades industriais e urbanas. Ao atribuirlhe uma autonomia imaginada, suprimem a possibilidade de
explicar o popular pelas interações que têm com a nova
cultura hegemônica. O povo é “resgatado”, mas não
conhecido.
A trajetória européia dos estudos folclóricos encontra ressonâncias
no Brasil. O país, na segunda metade do século XIX, está preocupado com a
afirmação de uma identidade nacional, e a poesia popular aparece como um
interessante material que, por estar menos sujeito a mudanças, estaria mais
próximo de características genuinamente brasileiras. No entanto Ayala e
Ayala (1995) ressaltam que essa procura do típico terá diferentes
implicações, oscilando entre posições que percebiam as mudanças ocorridas
como deturpações ou, no caso de um país novo como o Brasil, associadas à
noção de progresso. Os estudos do folclore no país vão articular essas
posturas e gerar diferentes soluções. Assim, enquanto Celso de Magalhães
acredita que a poesia popular, nessa época, está passando por um processo
de degeneração de sua origem portuguesa, José de Alencar e Sílvio Romero a
percebem com uma transformação que revelaria traços próprios da cultura
brasileira e que, portanto, teria o poder de assegurá-la como uma cultura
independente.
Mas, apesar de as produções populares figurarem como as mais
legítimas representantes de nossa nacionalidade, as “fontes originais” estão
associadas à noção de rude, rústico e ingênuo, e o popular é concebido como
anacronismo, ou em oposição àquilo que entendemos por civilização. A
construção desse antagonismo articula-se com a crença do desaparecimento
das produções populares, uma vez que elas, por sua condição dita primitiva,
seriam consumidas pelos avanços tecnológicos da modernidade. Assim, o
cordel seria extinto pelos jornais e as danças e festas populares pelo contato
com novas dinâmicas sociais. Dessa forma de articular o problema, os
folcloristas definiram o seu método de trabalho. Como, para eles, o folclore é
o elemento que modera o processo cultural com seus instrumentos próprios
e necessários para a manutenção da ordem cultural nacional, é importante o
esforço permanente no sentido de preservar as tradições nacionais e, por
isso, justifica-se documentar o maior número possível de fragmentos de
práticas culturais e costumes desaparecidos ou em vias de extinção.
Cascudo (1984a, p. 24-25) afirma:
A literatura folclórica é totalmente popular mas nem toda
produção popular é folclórica. Afasta-a do folclore a
contemporaneidade.3 Falta-lhe tempo. [...] o folclórico decorre
da memória coletiva, indistinta e contínua. Deverá ser sempre
o popular mais uma sobrevivência. O popular moderno,
canção de carnaval, anedota de papagaio com intenção
satírica, novo passo numa dança conhecida, tornar-se-ão
folclóricos quando perderem as tonalidades da época de sua
criação.
Das
palavras
de
Cascudo
pode-se
perceber
claramente
a
importância do fator tempo na definição do folclore. Para determinar um fato
como folclórico, era necessário que este tivesse atravessado o tempo e se
mantivesse persistente. Ser uma sobrevivência do passado no presente. Esse
entendimento justificava estudarem-se os textos populares buscando-se
estabelecer suas origens, captando-se marcas étnicas e comparando-se
versões que se distanciavam geográfica e temporalmente, na busca de se
encontrar a matriz do texto. Esse procedimento de coletar e catalogar o
material recolhido reflete uma fluidez metodológica observada nas pesquisas
folclóricas que leva ao impasse observado por Ortiz (s/d, p. 53). Para ele, o
primeiro obstáculo que se impõe à nova disciplina é que:
Seu nome designa simultaneamente o objeto a ser estudado e
a própria ciência. Usa-se o termo “folclore” como sinônimo de
uma área científica e das tradições populares. É interessante
notar que os teóricos não se preocupam nunca com tal
3
Grifos meus.
indeterminação; mas podemos nos indagar se, por trás desta
equivalência semântica, não reside uma contradição
estrutural: a incapacidade de distinguir entre a perspectiva
teórica e o objeto apreendido.
É fato que os folcloristas, seguindo a trilha dos românticos,
contribuíram para a “descoberta do povo” nos estudos antropológicos, não
sendo demais afirmar que o exercício de catalogação e mapeamento
empenhado por esses pesquisadores oportunizou construir-se o cenário
onde desfilam danças, costumes, crenças e, com a evolução de seus
trabalhos, deu rostos aos participantes dessas práticas. Entretanto é preciso
reconhecer que escapam à sua investigação os processos sociais nos quais a
tradição se insere. Ao eliminar toda referência às práticas cotidianas que os
compõem e para os quais foram feitas, essa maneira de conceber a cultura
popular como a expressão de um povo pressupõe que uma determinada
personalidade exista a priori, e não como um produto das relações sociais.
Percebendo essa ausência nas pesquisas sobre o folclore e a
implicação
e
complexidade
que
essas
questões
levantavam,
novos
paradigmas foram construídos para os estudos da cultura popular. Essas
novas reflexões procuravam estabelecer relações entre as manifestações e
outros
elementos
sociais
e
culturais
que,
direta
ou
indiretamente,
participavam de um processo em constante transformação. No Brasil, essa
perspectiva crítica de análise surge motivada por uma ruptura de
concepções teóricas e metodológicas com relação aos estudos folclóricos e,
conforme Ayala e Ayala (1995), vai se configurando principalmente a partir
dos trabalhos realizados por Amaral (1976) e Andrade (1999), na década de
20 e, mais tarde, por outros pesquisadores, como Bastide (1959), Fernandes
(1989) e Xidieh (1993). Todos eles têm em comum a preocupação de situar a
análise das manifestações culturais populares no contexto sociocultural
mais amplo em que elas ocorrem. Vinculando-as ao seu contexto de
produção, percebem-nas dentro dos conflitos existentes entre os vários
grupos que compõem uma sociedade marcada pelas diferenças de classes.
Exemplifica essa nova postura o exame das narrativas populares
colhidas por Xidieh (1993). Em sua pesquisa, esse professor constrói um
estudo das narrativas de santos as quais circulam entre grupos rústicos
inseridos na área rural e em áreas urbanizadas do estado de São Paulo. Seu
trabalho teve como objetivo especificar a posição desses textos na cultura
popular, verificando suas funções na sociedade rústica pesquisada. Das
histórias recolhidas, o pesquisador extrai um sistema de informações que
permite penetrar no universo do homem rústico, registrando seus princípios
morais, suas práticas mágico-religiosas, que, no convívio social, apresentam
padrões de referência para comportamentos definidos ao longo da vida
dessas comunidades. Ao estudar a religião desses grupos, o autor pensa,
portanto, o folclore4 como indissociável da vida dos indivíduos que dele
compartilham.
E,
dessa
observação,
paulatinamente
constrói
uma
metodologia que discute os obstáculos presentes na coleta e no registro do
material, não pela recusa dos entrevistados a fornecê-lo, mas pela
dificuldade dos colaboradores de racionalizar algo que é presente e vivo de
existência em seu universo. Assim, o autor considera a paciência um dos
melhores instrumentos para o pesquisador, pois não se trata apenas de
recolher, mas sim de esperar que aconteça o que deve acontecer para que os
relatos sejam naturalmente expostos. Essa metodologia aponta para uma
postura de análise que leva em conta as transformações e mudanças
culturais, considerando-as face à interação entre as culturas e suas relações
sociais, uma vez que essas práticas são afetadas pelas condições de vida e de
trabalho das próprias populações. Assim, para Xidieh (1976, p. 2),
Numa mesma sociedade pode instaurar-se a dicotomia
sociedade global e sociedades incluídas, aquela que
homogeiniza e estas que subsistem apesar dos esquemas
formais propostos e impostos pelo sistema dominante e onde
podem concorrer com a cultura institucionalizada outras
formas culturais pertinentes aos grupos diferenciados
estruturalmente. [...] Cultura Popular é um fenômeno que se
marca historicamente, mas cuja data de instauração só pode
ser estabelecida sociológica e antropologicamente, mediante a
constatação de situações em que novos e velhos modelos de
vida sócio-culturais entram em conflito [...] o que
pretendemos sublinhar é que a cultura popular, não sendo
mais a cultura primitiva, perpetua, no entanto, por herança
4
Concluí que o autor considera uma sinonímia entre os termos “cultura popular” e “folclore”, a partir da acepção
que faz deles no trabalho.
ou por descoberta, inúmeros de seus traços e padrões: a
tradição e analogia, a consideração dos fatos da natureza, a
disposição mágica perante o mundo, o sentido da repetição.
Mas um ditado popular expressa também sua dinâmica ”de
hora em hora, Deus melhora” e está a indicar a possibilidade
de renovação e de reelaboração.
A idéia da possibilidade de reelaboração e de renovação de que
trata Xidieh faz pensar que a cultura popular não morre, nem se desgasta
pela aproximação e incorporação de elementos de outras culturas, porque o
povo a constrói no seu cotidiano, nas condições em que a pode fazer,
portanto não faz sentido tentar absolutizar os seus objetos ou manifestações
à maneira do folclore.
Então não parece útil, para explicar os processos culturais,
considerar apenas a identificação e a representação das manifestações
culturais.
Necessita-se operar um deslocamento de focalização para os
diferentes contextos, abrangendo as formas específicas de representação,
reprodução e reelaboração simbólica das relações sociais que o povo produz
no trabalho e na vida.
Pensar nessa problemática me faz considerar as observações de
Chartier (1995). Ao fazer suas próprias teorizações acerca do tema “cultura
popular”, considera-a uma categorização erudita. Ao mesmo tempo que a
afirmação é óbvia, ela explicita o que, muitas vezes, se encontra em estado
latente, como possibilidade, mas não devidamente claro. Para além de
enunciar as clivagens sociais, ela também explicita o poder de determinados
agentes ou grupos de nomear e definir outros grupos. O autor lembra que os
realizadores das práticas nomeadas como populares não costumam definirse como tal, e aqui posso acrescentar que isso só ocorre de maneira reflexa,
como resultado da incorporação, por parte dos setores subalternos, de
valores e conceitos oriundos dos setores hegemônicos da sociedade.
A título esquemático, o historiador francês reduz, ressaltando o
risco de simplificação, as diversas definições de cultura popular a dois
modelos de abordagem e interpretação, a saber: o primeiro, que pensa a
cultura popular como autônoma, com lógica própria e completamente
irredutível à cultura letrada; e o segundo, que, focalizando as hierarquias
existentes
no
mundo
social,
percebe
a
cultura
popular
em
suas
"dependências e carências em relação à cultura dos dominantes" (Chartier,
1995, p. 179). Ressalta, ainda, o historiador que esses dois modos de
apreensão não são, muitas vezes, excludentes, ocorrendo até mesmo o uso
das duas formas por um mesmo autor, ou numa mesma obra.
Chartier (1995) também problematiza as datações que tentam dar
conta da iminente descaracterização, ou mesmo do desmantelamento da
cultura popular. Acrescento aqui mais um fator da suposta ruína: a
constituição, já no século XX, de
um sistema de comunicação e
entretenimento conhecido como “indústria cultural”, ou de comunicação de
massa.
Assim, Chartier opera um deslocamento de focalização para
enunciar que o problema da cultura popular não está em datar-se o
momento de sua ruína, mas sim em identificar-se como se dá o
relacionamento entre as formas impostas e aculturantes, de um lado, e as
táticas operadas pelos setores subalternos, de outro. Há, para ele, um
espaço entre as injunções constrangedoras e a recepção rebelde e matreira.
Essa linha de raciocínio vai levá-lo a pensar nos usos ou, ainda melhor, nos
modos de usar objetos, discursos etc., por parte do "popular", de modo que,
nesses usos, como práticas sociais, é que se possa encontrar o "popular".
Dessa forma, ele afirma que é
Inútil querer identificar a cultura popular a partir da
distribuição supostamente específica de certos objetos ou
modelos culturais. O que importa, de fato, tanto quanto sua
repartição, sempre mais complexa do que parece, é sua
apropriação pelos grupos ou indivíduos. Não se pode mais
aceitar acriticamente uma sociologia da distribuição que
supõe implicitamente que à hierarquia das classes ou grupos
corresponde uma hierarquia paralela das produções e dos
hábitos culturais. (CHARTIER, 1995, p. 184).
A questão dos usos diz respeito diretamente ao conceito de
“apropriação”. É através da apropriação que se dá a operação de "produção
de sentido" por parte dos setores não-hegemônicos. É por meio dela que a
recepção se torna "matreira" e "rebelde", “pois não se manifesta através de
produtos próprios e sim através de modos de usar os produtos impostos pela
ordem econômica dominante” (CHARTIER, 1995, p. 185). Com essa
operação, Chartier tenta superar as abordagens que qualificavam a cultura
popular como universo simbólico autônomo ou dependente.
A preocupação com a questão do uso, em detrimento de um recorte
que privilegie o objeto, também está presente, de forma contundente, nas
análises de García Canclini (2003), quando ele faz a crítica dos estudos
folclóricos latino-americanos, tomando-os estes como tributários de toda
uma linha de pensamento folclórico que remonta, como já visto, ao final do
século XVIII na Europa.
A despeito de todo o esforço para situar as produções populares
dentro da cultura nacional de seus países, essas iniciativas esbarravam em,
pelo menos, duas dificuldades teóricas e epistemológicas. O primeiro
problema diz respeito à identificação do folk com determinados grupos
isolados "cujas técnicas simples e a pouca diferenciação social os
preservariam de ameaças modernas" (GARCÍA CANCLINI, 2003, p. 211).
Nessa linha de raciocínio García Canclini afirma que os folcloristas se
empenharam muito em recortar o objeto, com sua materialidade, do
processo social que o gera. O segundo problema diz respeito aos vínculos dos
antropólogos
e
folcloristas
latino-americanos
com
os
movimentos
nacionalistas de seus países. Essa convergência concorreu para transformar
muitos desses pesquisadores em legitimadores de uma ordem que se
configura a partir da construção de uma identidade nacional. O problema se
agrava ainda mais quando determinados princípios, como "deixemos de
teoria; o importante é colecionar" (GARCÍA CANCLINI, 2003, p. 212), de
inspiração finlandesa, passam a fazer parte do modus operandi dos
folcloristas mexicanos. Como desdobramento dessa linha de ação, vai surgir
"um empirismo raso", com grande ênfase nos materiais e pouca atenção às
relações sociais que informam a produção desses bens.
Percebe-se aqui um duplo contato entre as formulações de García
Canclini (2003) e Chartier (1995): o historiador francês também afirma que
não é possível aceitar a idéia de que haja um paralelismo entre uma
hierarquia dos grupos sociais, de um lado, e uma hierarquia das produções
e hábitos culturais, do outro; o outro item de convergência se dá na
constatação de que o "popular" não está nos objetos, mas nas práticas
sociais que o conformam.
García Canclini (2003) parece estar mais interessado em captar a
cultura popular em seu devir, em situá-la dentro das novas relações de
produção e consumo, que se instauram em novos cenários nos quais a
cultura popular se situa. A sua crítica tenta, então, evidenciar os aspectos
ideológicos das operações conservacionistas, ou de "resgate das tradições
supostamente inalteradas" (GARCÍA CANCLINI, 2003, p. 218). Trata-se, por
essa linha de raciocínio, de indagar como as culturas populares estão se
transformando, em face das novas interações com a modernidade. As
constatações vão desde a inexistência de produtos culturais que estabeleçam
relações com grupos fixos até concluir-se que o popular se constitui por
processos híbridos que se engendram de forma complexa.
Uma mesma pessoa pode participar de diversos grupos
folclóricos,
é
capaz
de
integrar-se
sincrônica
e
diacronicamente a vários sistemas de práticas simbólicas:
rurais e urbanas, suburbanas e industriais, microssociais e
do mass media (GARCÍA CANCLINI, 2003, p. 220).
Sarlo (2004, p. 100) lembra aos leitores que “já se disse que o
interesse pelas culturas populares é contemporâneo ao momento de seu
desaparecimento”. A autora considera essa afirmação, porque as culturas
populares, em seu sentido “puro”, não existem mais, já que não há culturas
que estejam isentas do contato com o capitalismo e, com ele, da influência
determinante
dos
meios
de
comunicação
de
massas.
Hibridização,
mestiçagem, reciclagem e mescla são alguns nomes para definir o fenômeno.
A autora credita à comunicação de massa, em especial à televisão, a
responsabilidade por uma “nova cartografia cultural”, na medida em que
constrói um racha nas tradições. Definindo novos padrões para a
autoridade, essa comunicação reconfigura o tempo e espaço e lhes dá novas
dimensões. Para Sarlo (2004, p. 104),
A cultura da mídia converte a todos em membros de uma
sociedade eletrônica, que se apresenta imaginariamente como
uma sociedade de iguais. Aparentemente, não há nada mais
democrático do que a cultura eletrônica, cuja necessidade de
audiência a obriga a digerir sem interrupções, fragmentos
culturais de origens as mais diversas.
No entanto a participação da mídia na ressignificação dos modos
como os setores populares se relacionam com a sua própria experiência não
consiste numa absorção e incorporação pacífica das práticas dos setores
hegemônicos. Isso porque, se as classes populares realizam esses processos
compartilhando com a “alta cultura” as condições de produção, circulação e
consumo do sistema em que vivem, o fazem mediante práticas e formas de
pensamento próprias. Esse expediente permite resguardar-se o espaço
próprio da recepção, do uso e da interpretação que as classes subalternas
constroem em relação ao que absorvem. O olhar para essa questão tem,
então, que perceber, como questiona Certeau (2003a, p. 40),
Que procedimentos populares [...] jogam com os mecanismos
da disciplina e não se conformam com ela a não ser para
alterá-los; enfim, que “maneiras de fazer” formam a
contrapartida, do lado dos consumidores (ou dominados?),
dos processos mudos que organizam a ordenação sóciopolítica. Essas “maneiras de fazer” constituem as mil práticas
pelas quais os usuários se reapropriam do espaço organizado
pelas técnicas da produção sócio-cultural.
Assim, Certeau propõe o interesse não pelos produtos culturais
oferecidos no mercado dos bens, mas pelas operações construídas pelos
usuários desses produtos. Na perspectiva de marcar socialmente o desvio
dos dispositivos discursivos e institucionais que visam disciplinar as
práticas desses indivíduos, essa “criação anônima” insere-se nas práticas do
cotidiano.
Então, pode-se dizer que, se toda produção cultural dos setores
subalternos surge a partir das condições materiais de vida e nelas está
arraigada, as canções, crenças e festas são invariavelmente ligadas ao
cotidiano  modos de trabalho, de convivência, formas de pensar  das
comunidades que as praticam e trazem dentro de si usos e significações que
justificam comunitariamente sua existência. Ayala (2002, p. 1) exemplifica
essa posição quando percebe que
aprender a dançar, cantar e tocar instrumentos bem cedo, da
mesma forma que auxiliar nos serviços, são necessidades
para moldar o corpo e a resistência para o tempo do trabalho
e para seu oposto, o tempo das festas, também necessário à
vida.
No entanto, tal condição se permite alterações, uma vez que essas
comunidades não participam isoladamente das imposições e representações
do mercado. Ayala (2002) destaca o uso e o sentido do tempo histórico, que
comporta a coexistência paralela de um tempo comunitário, regido pelas
festas e experiências que constituem o universo da comunidade, e um tempo
industrial, comandado pelo relógio e no qual se impõe a disciplina do
trabalho. Em cada um deles, tem-se um modo de realização das
manifestações culturais em diferentes contextos, que vão da participação dos
sujeitos nas festas e danças, como brincantes ou devotos, o que acontece
nas casas dos amigos e no próprio povoado, até contextos em que são
regidos pela lógica do espetáculo, nos quais fazem apresentações em eventos
turísticos e culturais e são tratados como artistas. Esse processo pode gerar
conflito ou acomodar-se aos interesses dominantes.
O oscilar de tempos e contextos em que pode desenvolver-se a
cultura popular depende do acionar de experiências culturais e sociais de
seus participantes e, portanto, distancia-se do sentido do tempo − que já foi
discutido − em Cascudo. Não se pode pensar em sobrevivência de um tempo
passado no tempo presente se, de alguma forma, eles se comunicam e se
atualizam, num constante processo de hibridização. Assim, a reelaboração
das práticas populares se constitui num processo natural que enriquece as
representações dessas práticas. Como observa Ayala (1997, p. 168-169),
O processo de hibridização da cultura popular, a meu ver,
constitui sua maior riqueza. É a mistura que permite a
recomposição
de
danças
populares,
através
dos
remanescentes de diferentes grupos, que, por algum motivo
tenham parado de dançar  por perda dos mestres, mudança
de cidade ou de região, entre outras. A necessidade de manter
as práticas culturais encontra na mistura o procedimento
fundamental para impulsionar os artistas populares a
recompor suas atividades com as ruínas da experiência
individual (mas de base coletiva) que sobraram na memória de
cada um.
Dessa forma, o caminho para se perceber o complexo de relações
que envolve as práticas populares requer puxar os fios que enovelam a
caudalosa mistura daquilo que o povo produz no trabalho e na vida como
forma específica de representação do mundo. Pensar na preservação das
tradições populares é muito mais do que “guardar” objetos, cantos, danças,
textos e festas, como podem supor aqueles que insistem em que, ao fazê-lo,
proporcionam aos setores populares uma fonte de renda complementar, ou
aos turistas uma atração exótica. É preciso perguntar-se o que é hoje a
cultura popular, quais os problemas que se apresentam na sua produção e
execução e quais as relações que se estabelecem quando diversas culturas
se defrontam. Para obter respostas para tais perguntas, é necessário voltar o
olhar para aqueles que se representam por intermédio dessa cultura. É
nesse território que se constituem os contrastes e as relações que mantêm
essa cultura viva e presente.
No trajeto da pesquisa desta tese foi construída a posição que
define a cultura popular como conjunto de significados vivos que estão em
contínuo processo de modificação, existindo como um elemento indissociável
da vida das pessoas que dela compartilham. As práticas culturais por elas
exercidas não se reduzem a objetos culturais a serem colecionados, mas são
produtos significantes de sua atividade social e desse modo é que essas
práticas articulam-se na esfera do social e do político.
Por essa ótica, acredito ser impossível estudar essas relações sem
considerar a voz desse indivíduo que participa da produção de bens
culturais, considerando que ele é um sujeito agente na comunidade à qual
pertence, reproduzindo nela sua visão própria de mundo, seu estilo e suas
impressões, mesmo lidando com atividades que carregam o peso de uma
tradição distante de sua realidade.
Nessa perspectiva, tentei ver a figura de D. Militana, personagem
desta pesquisa. Conhecê-la requer ouvir sua própria voz. Para reverenciar
sua memória e admirar os versos que canta, precisei pôr em primeiro plano
seus modos de vida e o sentido que os poemas narrativos têm para esse
sujeito, pois o verso cantado, como produto cultural, é o resultado das
relações que ele mantém com a sociedade em que se insere. Dessa forma,
pude perceber o seu canto, como este se institui nos dois espaços que ocupa
− o público e o privado − e como esses diferentes espaços se articulam na
definição de uma prática cultural. A minha responsabilidade como
pesquisadora, diante deles é, portanto, aprofundar os sentidos para captar o
teor da voz que se impõe acima da artista consagrada D. Militana, e deixar
que surja nesse cenário a cadeia de elementos que permitem que seus versos
se afirmem onde realmente existem: no cotidiano.
1.2. D. Militana: a romanceira do Oiteiro
Após ter tomado posição em relação ao estudo da cultura popular,
propus lançar a atenção para a protagonista desta história. Escolhi um olhar
em perspectiva, por acreditar que ele permite a visão dos diferentes planos
sem, de fato, evidenciar em demasia nenhum deles e, assim, considera os
diversos detalhes que compõem o cenário analisado. Diante da experiência
com a colaboradora desta pesquisa, acredito que esse pode ser um
interessante caminho para procurar ouvir a sua voz em todas as dimensões
em que ela pode ecoar.
Conheci D. Militana no espaço público, já que pude apreciar
algumas apresentações da artista. Após analisar seu desempenho no palco,
constatei uma maneira de portar-se em público que foi sendo gradativamente
modificada. Assisti, pela primeira vez, a um show dessa artista na
CIENTEC5. Na ocasião, ela cantou apenas quatro cantos, talvez por seu
nome fazer parte de uma programação muito extensa de grupos populares a
serem apresentados. Embora em uma apresentação rápida, e com o
nervosismo que ela deixava transparecer, posso dizer que sua atitude no
palco
foi
marcante.
Ela
foi
anunciada
como
o
destaque
entre
as
apresentações culturais populares e fez jus à homenagem recebida com uma
postura dotada de uma altivez e seriedade. Ao entrar no palco, após um
breve momento de concentração, em que esperava o silêncio do público, a
artista iniciou o seu canto. Sentada numa cadeira, com postura firme e o
polegar apoiando o queixo, dando uma expressão instrospecta ao rosto,
cantou dois romances (A Bela Infanta e O romance da Nau Catarineta) de
forma solene, deixando fluir a voz gutural. Instantes depois, D. Militana
terminou a apresentação, de forma rápida, cantando o coco da lagatixa e sua
tradicional despedida. Após isso, levantou-se também rapidamente, apoiou
sua bolsa nos ombros e foi embora sem esperar os cumprimentos da platéia,
deixando claro o seu desconforto pela situação.
Em outra apresentação, realizada no Festival MADA6, no ano de
2003, sua figura parecia mais acostumada com o palco e mais desenvolta
para lidar com o público. Mesmo diante de jovens, uma vez que estes eram o
público-alvo do festival, não se intimidou: cantou e brincou com a platéia,
cantando pequenos versos para divertir e lançando adivinhas. Como a
apresentação descrita anteriormente, esta também foi rápida, mas, dessa
vez, a artista interagiu com o público, sendo mais receptiva ao assédio das
pessoas. No entanto ainda conservou o ímpeto de terminar o show quando
lhe convinha, pois o fez de forma abrupta.
Talvez a consciência de sua fama e importância tenha sido o
elemento principal para a desenvoltura de D. Militana junto ao público. Ela
tem motivos para pensar assim, pois, ao se perguntar a qualquer potiguar
que se interesse pela cultura popular do estado quais os personagens que
nela figuram de forma ilustre, o nome de D. Militana estará certamente
5
CIENTEC é a Semana de Ciência, Tecnologia e Cultura da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. No
ano de 2000, D. Militana participou do evento como um dos grandes destaques da programação cultural.
6
O Festival MADA - Música Alimento da Alma - é um evento que tem uma proposta alternativa à música
difundida no grande circuito musical nacional, buscando pôr em evidência grupos e bandas de todos os estilos
musicais.
participando desse panteão. E não é para menos, porque Militana Salustino
do Nascimento é considerada a mais famosa e conhecida romanceira do
estado do Rio Grande do Norte. Nascida no município de São Gonçalo do
Amarante, no povoado de Barreiros, ela viveu, até pouco tempo, no sítio de
sua propriedade, herança de sua família, o Sítio Oiteiro. Por essa razão é
também conhecida como “a romanceira do Oiteiro”. Hoje, por problemas de
saúde e pela idade já avançada, vive com uma filha, no Loteamento Alto de
Canaã, em São Gonçalo do Amarante.
Recentemente, em novembro de 2005, D. Militana foi uma das 34
personalidades agraciadas pelo Ministério da Cultura com a Ordem do
Mérito Cultural, comenda inédita para uma personalidade do estado do Rio
Grande do Norte. Na cerimônia, realizada no Palácio do Planalto, recebeu a
comenda do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva. A solenidade
contou com a presença de vários Ministros de Estado, entre eles o Ministro
da Cultura, Gilberto Gil.
No meio cultural norte-rio-grandense é unânime reconhecer que os
responsáveis por essa evidência do nome de D. Militana nos cenários
potiguar e nacional são o folclorista e pesquisador Deífilo Gurgel e o Projeto
Nação Potiguar, que tem a coordenação do pesquisador Dácio Galvão e da
fotógrafa Candinha Bezerra e cujo objetivo é mapear a cultura sonora do
estado do Rio Grande do Norte.
De fato, pode-se dizer que o professor Gurgel foi o “descobridor” de
D. Militana, entre muitos outros nomes catalogados nos dez anos de trabalho
do Projeto Romanceiro Potiguar (GURGEL, D., 1992) realizado quando ele foi
professor e pesquisador da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Ao
Nação Potiguar credita-se a revelação do nome da artista ao público
nacional, através da divulgação midiática de seus cantos, bem como a
apresentação da romanceira no espetáculo Lunário Perpétuo, do consagrado
artista nacional Antônio Nóbrega7.
A notoriedade de D. Militana é bastante justificada. Ela foi
proclamada pela pesquisadora Leide Câmara (2001) “a maior romanceira do
7
D. Militana já havia participado, no ano de 1999, do show do mesmo artista, com o patrocínio da Fundação
José Augusto.
Brasil”. A artista já se apresentou nos grandes centros do país, como Rio de
Janeiro e São Paulo, acompanhando artistas nacionais, e em outros estados,
como Sergipe, onde participou como figura central da 4ª Jornada de Estudos
Medievais. Além disso, gravou um CD/livro próprio8; participou de outros
três discos9; foi tema do ensaio fotográfico Gestos e Romances, realizado pela
fotógrafa Candinha Bezerra; tem seus cantos e sua história tematizados em
dois vídeos produzidos pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte
10;
fez uma participação no Projeto Música do Brasil, coordenado pelo
antropólogo Hermano Viana e apresentado pelas redes de televisão MTV e
Cultura; participou do espetáculo Auto de Natal
11,
em 2003, como uma das
únicas representantes dos artistas populares do estado; além de marcar
presença em outros tantos eventos musicais e acadêmicos, como os já
mencionados Festival MADA e CIENTEC.
A descoberta e a divulgação do nome de D. Militana têm o mérito
de apresentar ao público a figura enigmática dessa senhora que conhece e
canta, com voz firme e gestos imponentes, os mais diversos gêneros da
literatura oral, e essa é uma maneira legítima de prestigiá-la. Registrar os
cantos que permeiam o universo poético da artista ajuda a divulgar o
repertório sonoro popular do Rio Grande do Norte e, de forma justa, consagra
o nome daqueles que participam efetivamente dessa cultura.
No entanto, ao analisar mais detidamente a construção da
trajetória artística de D. Militana, me parece inegável que esse percurso está
significativamente contagiado pela perspectiva da preservação e resgate das
tradições populares, que, como já foi visto, limita as práticas culturais a uma
coleção de objetos e nega o olhar atento para a cultura popular e seus
8
O triplo CD/ livro chama-se Cantares e foi lançado pelo Projeto Nação Potiguar, em 2002, e produzido em uma
parceria entre a Fundação Hélio Galvão e o Scriptorin Candinha Bezerra. Com 54 cantos, nele estão reunidos
romances, xácaras, modinhas, cocos, romarias, aboios, enfim uma grande variedade de gêneros relativos à
literatura oral.
9
Os três CDs que têm a participação de D. Militana são: Violeiros & Cantadores, gravado em janeiro de 1997,
em Aracaju; Romances e Cantos de Excelências, (Fundação José Augusto-RN) e Songa Também dá Coco,
(Prefeitura de São Gonçalo do Amarante, 1999).
10
Os vídeos mencionados dizem respeito aos trabalhos da Professora Ivanilda Pinheiro da Costa, A Romanceira
do Oiteiro, e do Prof. Cláudio Cavalcante, A Romanceira, ambos produzidos pela Oficina de Tecnologia
Educacional da UFRN.
11
O Auto de Natal é o mais importante espetáculo do ciclo natalino na cidade de Natal. No ano de 2003, teve a
direção de Moacyr de Góes e a participação dos artistas nacionais Elba Ramalho e Lázaro Ramos. Em sua sexta
edição, o espetáculo apresentou uma versão sobre o auto poético Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo
Neto.
contextos. Essa constatação remete à idéia de que o olhar lançado para
prestigiar D. Militana não alcança o sujeito, portanto não permite visualizá-lo
a partir de seus referentes.
Para melhor aprofundar essas constatações, escolhi percorrer as
diversas publicações nas quais se destaca o nome de D. Militana. Entre
livros, encartes culturais, apresentações de trabalhos artísticos e artigos na
imprensa, revelou-se para mim o retrato da “romanceira do Oiteiro”, sobre o
qual quero refletir. Começo, então, pela própria denominação do gênero
poético-musical
que
ela
domina
e
que
motiva
a
denominação
de
“romanceira” a ela atribuída. O questionamento justifica-se, já que o
repertório da artista não se limita aos romances cantados, abrangendo,
como já foi dito, diversos gêneros da literatura oral. Então, pode-se creditar
essa denominação ao momento de sua descoberta, que se deu em meio à
pesquisa já referida sobre o romanceiro potiguar.
O estudo do romanceiro no Rio Grande do Norte tem uma
significativa referência ao passado histórico desses cantos. O romance, para
a poesia popular, é um gênero que se caracteriza, como descreve Nascimento
(Apud CIACCHI, 1988, p. 12),
como um poema narrativo dialogado, de transmissão oral,
com temática variada, predominantemente destinado ao lazer
ou ao trabalho, que se reelabora tradicionalmente em versões,
segundo os contextos culturais, mediante processos de
comutação, em nível de estrutura superficial, que reproduz
estruturas profundas textuais relativamente estáveis.
Oriundas da Península Ibérica e transplantadas para o Brasil
durante o período da colonização, supõem os estudiosos que essas
narrativas populares cantadas em forma de verso são fragmentos das longas
epopéias medievais que cantam os grandes temas universais. Distribuídas
da forma oral ou escrita, a estrutura narrativa herdada da Europa, em
paralelo com a versão fixada no códice manuscrito e no livro ou folheto
impresso, adaptaram-se tão perfeitamente aos temas e vozes nordestinos,
que estes os assimilaram e modificaram, acrescentando, suprimindo, e até
interpolando, umas vezes consciente, outras inconscientemente.
Com os estudos dos folcloristas, os romances foram aqui
descobertos. Os primeiros estudos devem-se à figura de Câmara Cascudo. A
ele, credita-se o pioneirismo em mapear com tantas cores e formas a
geografia da cultura do povo, não apenas deste estado, mas, por que não
dizer, do Nordeste brasileiro. Seu estudo mais específico sobre o romance foi
o livro Flor de romances trágicos (CASCUDO, 1982). A sua trajetória deixou
herdeiros, entre eles o estudioso Hélio Galvão, que coletou, na praia de
Tibau do Sul, 21 romances reunidos e publicados no livro Romanceiro pesquisa e estudo (GALVÃO, 1993), e o pesquisador Deífilo Gurgel, com o
projeto já referido. O método, o objetivo e o alcance de seu projeto, o
professor Gurgel descreve assim:
Somente a partir de 1985, iniciou-se no Rio Grande do Norte
uma pesquisa sistemática sobre o Romanceiro, patrocinada
pela UFRN e que levou o nome de “Projeto Romanceiro
Potiguar”. Tal pesquisa, que abrangeu todo o território do
Estado e durou até 1995, levantou um total de 416 versões de
romances [...]. Dessas versões, algumas são verdadeiras
preciosidades, como as onze do “Paulina e D. João”, de Hélio
Galvão, recolhidas nas mais diversas regiões do Estado; uma
única versão do romance religioso “Jesus Cristo e o lavrador”
ou “O Milagre do Trigo”, ausente nas coletas de outros
Estados e a única versão potiguar da “Xácara dos namorados”
ou “Florioso”, além de várias versões de romances religiosos
portugueses, ainda não coletados no Brasil. (GURGEL, D.,
1999b, p. 3)
Quanto aos nomes daqueles que trazem consigo o romanceiro,
Deífilo Gurgel (1999b, p. 2) lembra o poeta Fabião das Queimadas, enumera
alguns informantes e faz um alerta aos pesquisadores:
Tá na hora dos pesquisadores do Estado ganharem o bredo,
no rumo do Potengi, porque há informações de outros poetas
do romanceiro, na região. Quem sabe não surgirá por lá uma
novo Fabião das Queimadas ou vários deles?[...] Há muita
gente perdida nessas vilas e arruados, nesses pés-de-serra
sertanejos, esperando por nossa boa vontade de pesquisador.
Pode-se perceber, na apresentação do folclorista, o tom apaixonado
no qual ele relata a coleção de textos que conseguiu reunir com seu trabalho
de coleta. Um esforço justificado para quem acredita ser necessário reunir o
maior número de fragmentos que indicam a sobrevivência de um passado no
presente e que, portanto, precisam ser coligidos em um acervo que possa
salvaguardá-los da extinção. Para esse pesquisador, alguns textos são
“preciosidades”. A descrição remete imediatamente à imagem das formações
geológicas já descritas por Ortiz (s/d). Pela importância da distância
temporal e geográfica que esses textos têm para a pesquisa, pode-se
entender que a abordagem que é feita do romance, como manifestação
cultural, segue a preocupação de estabelecer as origens, captar marcas
étnicas, segmentos temáticos e determinar variações na estrutura verbal do
poema que revelam o grau de fidelidade em relação à matriz do texto.
A empolgação do pesquisador deixa entrever o papel secundário
dos sujeitos que relatam para ele os romances. Aliás, a própria denominação
de “informante” que confere aos sujeitos que colaboram com a sua pesquisa
os exclui da participação efetiva na atribuição dos sentidos dos textos. O
alerta que faz Gurgel aos pesquisadores promove uma inversão dos valores:
os artistas estão lá, mas precisam ser descobertos. Isso indica que
necessitam de que alguém os legitime como tal, ou seja, o lugar da
atribuição de sentido é de quem pesquisa, e não dos agentes que produzem
esses cantos. Pode-se imaginar o trabalho do pesquisador na cena descrita
por Burke (1989, p. 31) em relação à “descoberta do povo”:
Os artesãos e camponeses decerto ficaram surpresos ao ver
suas casas invadidas por homens e mulheres com pronúncias
de classe média, que insistiam para que cantassem canções
tradicionais ou contassem velhas estórias.
Apesar de citar os nomes, a referência aos “informantes” inviabiliza
um olhar mais atento para as personagens que cantam essas histórias. O
significado dos versos para suas vidas não desperta o interesse da pesquisa
e faz de suas vozes somente cantos de um espetáculo feito sob medida para
os que sempre se põem de fora daquelas “inocentes brincadeiras”, como se
nada daquilo fizesse parte de um mundo real, com pessoas reais, que têm no
seu modo peculiar de vida a explicação para seus dons.
O nome de D. Militana, ou Maria José12, nome pelo qual ela gosta
de ser chamada, está entre os destaques das descobertas do professor
Deífilob. Assim ele a define:
Se Fabião das Queimadas é a figura maior do romanceiro
potiguar, como autor de algumas peças do maior significado
para a literatura oral brasileira, Maria José, (na pia batismal
Militana Salustina do Nascimento) é, por sua vez, nossa
informante mais famosa como conhecedora de algumas
dezenas de peças raras dos romanceiros ibérico e brasileiro.
Maria José nasceu a 500 metros da cidade de São Gonçalo do
Amarante, num sítio chamado Oiteiro e tem tudo a ver com a
cultura lusitana, a partir do próprio nome da cidade (...) até
terminar por ela própria, Maria José, cujo nome de Militana
evoca hagiológios medievais (GURGEL, D., 1999b, p. 2).
O fato de “conhecer peças raras dos romanceiros ibérico e
medieval” eleva a cantadora à categoria de mais importante informante do
romanceiro. Ao apresentar para nós leitores, essa personalidade tão
importante, o professor constrói um elo com a cultura lusitana, que vai
desde o nome da cidade até o da romanceira. Pela lógica do folclore, os
romances, e, conseqüentemente, seus informantes adquirem status de valor
por serem a herança cultural de povos antigos. Por serem percebidos
cristalizados no tempo e vinculados a uma cultura hegemônica (européia),
esses textos se tornam reconhecidos. O romanceiro medieval redescoberto
nos sertões nordestinos nos vincula a um passado grandioso que reconstrói
para nós uma tradição imaginária, ou, como afirma Ortiz (s/d, p. 27),
referindo-se ao pensamento romântico sobre a cultura popular:
Em nosso caso, deveríamos talvez falar da invenção do
conceito de “tradição”. O entendimento da cultura popular só
é possível quando referido a uma “substância de cultura”
pertencente ao passado.
12
A questão do nome Militana ou Maria José tem várias implicações nas discussões propostas por este trabalho.
Assim, aprofundarei esse debate no próximo item deste capítulo.
A aura criada em torno da figura de D. Militana segue a mesma
linha nas diversas referências ao nome da artista no material de divulgação
de seu nome pela imprensa. Se seu destaque está nos textos que canta,
muito mais louvável é saber que esses cantos estão armazenados na
memória e ali chegaram pelo processo de transmissão oral, uma vez que a
romanceira não sabe ler nem escrever.
No entanto chama a atenção as referências feitas à memória de D.
Militana, que a aproximam de um arquivo vivo, já que guarda para si um
número fabuloso de romances. A matéria de divulgação do CD/livro escrita
pelo jornalista Mauro Dias para o jornal O Estado de São Paulo reflete essa
percepção, a partir de sua manchete: A memória de 700 anos de D. Militana.
O jornalista ainda completa:
Dona Militana canta romances, histórias centenárias, sobre
reis, e princesas, duques e plebéias, com cenário em Roma,
Milão (ou Milhão, como ela pronuncia), Bruxelas, monarcas
turcos e suas filhas – histórias terríveis, romances de amor e
de morte, de ciúmes e vinganças mantidas, por algum motivo,
a ser descoberto, num formato muito próximo ao da origem,
os cantadores medievais da península ibérica. [...] Dona
Militana não precisou recriar nada. Ela sabe, de memória,
como as coisas eram há 500, 600, 700 anos (DIAS, 2002, p.
1).
É, para mim, difícil imaginar como se constitui uma memória de
700 anos. Busquei auxílio na literatura e lembrei-me de um conto de Borges
(2001), Funes, o memorioso, que narra a história de um certo Ireneo Funes,
homem dotado de uma impressionante memória, capaz de reunir um volume
incomensurável de dados. Metáfora da memória infinita, a memória plena do
personagem é recheada de informações, que se acumulam e se prestam a
empreendimentos de classificação, tecendo para Funes um mundo alheio às
generalizações, mundo de detalhes, incapaz de síntese. Prisioneiro de sua
memória implacável, ele torna inútil a própria memória, que cultua. Incapaz
de escolher e, sobretudo, de esquecer, vive condenado eternamente à
repetição invariante. Os registros passados simplesmente se acumulam em
sua memória e ele, de forma resoluta, apenas os reproduz. Essa invariável
condição o leva à morte.
A história de Funes pode ser vista como uma alegoria daquilo que
se percebe nas palavras do jornalista como a memória de D. Militana. A
memória é uma categoria importante para se pensar a cultura popular,
porque esta é o centro vivo da tradição. Mas, afirmar que a artista “sabe de
memória como as coisas eram há 500, 600, 700 anos” significa considerá-la
apenas um repositório dessa tradição, anulando a sua vivência e experiência
com o mundo. É situá-la antes de seu tempo, desconsiderando sua
existência. Para o jornalista, como a memória de Funes, a de D. Militana não
recria, apenas reproduz; portanto torna-se inútil, anula-se.
A síntese é o que ressignifica a existência; sem ela, o acumular de
informações
destrói
os
tempos
idos,
com
suas
persistências
e
esquecimentos. Relembrar não é recuperar o passado na sua inteireza, na
sua pureza e totalidade, como pensava Bergson (BOSI, E., 2001, p.54), mas
é refazer, com base em idéias e valores de hoje, parte desse passado, pois a
memória é seletiva: nem tudo fica gravado ou registrado. Fica o que significa,
o que representa, e não do mesmo modo, mas levando em consideração as
experiências adquiridas pelas pessoas. Por essa ótica, D. Militana não é
somente admirável por sua memória, como repositório, uma vez que ela é
ativa. Os textos que canta não são somente dignos de atenção e registro por
serem frutos de uma herança distante, pois se reelaboram e se reconstroem
a partir das vivências desse sujeito. Enfim, são expressões de como esse
indivíduo significa e reelabora suas práticas culturais.
A relação incontestável entre a memória e a tradição me leva a
pensar o papel desta última em relação às culturas populares. Bornhein
(1997) ressalta que “tradição”, etimologicamente, vem do latim traditio,
designando o ato de passar algo de uma geração a outra, e relaciona esse ato
ao conhecimento escrito e oral. Ou seja, a tradição pode ser elaborada como
algo que é dito e entregue de geração a geração. Dessa forma,
Estamos, pois, instalados numa tradição, como que inseridos
nela, a ponto de revelar-se muito difícil desembaraçar-se de
suas peias. Assim, através do elemento dito ou escrito algo é
entregue, passa de geração em geração, e isso constitui a
tradição – e nos constitui (BORNHEIN, 1997, p. 18).
Se a tradição constitui o homem enquanto ser social, então é
difícil perceber D. Militana como percebe o crítico Tarik de Sousa. Em
matéria para o Jornal do Brasil, ele a considera
o elo perdido com uma Europa das cruzadas, de romances e
princesas, da Nau Catarineta e incontáveis histórias e causos
que enovelam fatos e lendas, algumas com mais de 500 anos.
[...] como Fabião (que não chegou a ser registrado em disco e
de quem há apenas uma imagem) Dona Militana integra a
linhagem de guardiões orais do romanceiro medievo [...] Dona
Militana conecta o Brasil das Elites desmemoriadas com a
parte mais nobre de sua ascendência (SOUZA, 2006, p.1).
Para melhor esclarecer como funciona o pensamento que norteia a
referência como “elo perdido” feita à artista, é necessário reportar-se ao
popular, olhando pelo prisma do folclore.
Já foi discutido que, para ele, o povo aparece como detentor de um
saber denominado tradicional, que guardaria as especificidades nacionais,
os elementos que compõem a identidade nacional e, por essa razão, se
justificaria a preservação de seu saber, em face dos avanços das mudanças
exteriores da modernidade.
García Canclini afirma que hoje existe, em amplas camadas
hegemônicas, uma propensão para o tradicionalismo, o qual pode combinarse com o moderno, desde que a exaltação da tradição se limite à cultura e
que a modernização se perpetue nos âmbitos social e econômico. Nesse
sentido, interessam mais os bens culturais - objetos, lendas, músicas - que
os agentes que os geram e consomem:
Essa fascinação pelos produtos, o descaso pelos processos e
agentes sociais que os geram, pelos usos que os modificam,
leva a valorizar nos objetos mais sua repetição que sua
transformação (GARCÍA CANCLINI, 2003, p. 211).
Dessa forma, valorizar esse conjunto de bens e práticas que
identificam o indivíduo com uma nação é apreciar a própria dimensão do
passado, carregando-o de um prestígio simbólico inquestionável: já que “o
patrimônio cultural se apresenta alheio aos debates sobre a modernidade ele
constitui o recurso menos suspeito para garantir a cumplicidade social”
(GARCÍA CANCLINI, 2003, p. 160). Assim, a evidência de que, se
compartilha um passado descaracteriza o modo como ele age sobre o
presente, levando os indivíduos para além das divisões de classes, etnias e
grupos que existem na sociedade.
Dessa forma, a “guardiã do romanceiro medievo” funda entre as
elites e as classes populares um passado glorioso comum que apaga as
diferenças e isenta os indivíduos, enquanto sociedade, de pensar nas
contradições sociais nas quais o conjunto de bens culturais que deve ser
preservado foi formulado. Esse movimento descompromete o ser social de
refletir sobre a necessidade de manter as condições materiais e “espirituais”
de existência do próprio povo, produtor do que se denomina tradicional.
No entanto, esse é um debate extremamente importante. Ao
refletir-se sobre as condições de sobrevivência dos grupos, dos brincantes e
dos artistas das classes populares, é necessário que se levem em conta as
lutas em torno da cultura, das tradições e formas de vida dessas classes.
Segundo Hall (2003, p. 248),
A “transformação cultural” é um eufemismo para o processo
pelo qual algumas formas e práticas culturais são expulsas do
centro da vida popular e ativamente marginalizadas. Em vez
de simplesmente “caírem em desuso” através da longa marcha
para a modernização, as coisas foram ativamente
descartadas, para que outras pudessem tomar seu lugar. [...]
Contudo as “transformações” situam-se no centro do estudo
da cultura popular. Quero dizer com isso, o trabalho ativo
sobre as tradições e atividades existentes e sua
reconfiguração, para que estas possam sair diferentes. [...] A
cultura popular não é, num sentido “puro”, nem as tradições
populares de resistência a esses processos, nem as formas
que as sobrepõem. É o terreno sobre o qual as transformações
são operadas.
Dessa forma, pisar no “terreno” indicado por Hall é perceber as
culturas populares através da sua conexão com os conflitos de classe e com
as condições de exploração sob as quais esses setores produzem e
consomem.
Porém, apesar de grande parte dos que revelam interesse na
existência e divulgação das manifestações populares no estado do Rio
Grande do Norte demonstrar justa preocupação com as condições materiais
de vida dos brincantes e dos grupos em que eles atuam, percebo que as
reflexões sobre os contextos sociais que circundam essas condições passam
ao largo do debate instalado.
A renovação recente dessa discussão foi motivada pela morte de
Manoel Marinheiro13, o mais importante mestre de boi de reis da cidade.
Segundo relato da imprensa, a falta de condições materiais do artista deixou,
por horas, seu corpo, morto abandonado no corredor do hospital público
Monsenhor Walfredo Gurgel, sem que sua família tivesse condições de
enterrá-lo. Esse fato chocou os natalenses e deixou exposta a questão do
trato com os artistas das classes populares, tão reverenciados pela elite
intelectual do estado.
Muitas vozes levantaram-se para o debate, e o nome de D. Militana
foi lembrado por todas elas como uma das artistas que vive essa situação de
precariedade e abandono preocupante. A indignação de todos foi expressa de
forma contundente na matéria Artistas vivem na miséria (ARTISTAS, 2004)
do jornal Tribuna do Norte. Nela, responsabiliza-se por essa situação o
despreparo e o descaso das instituições públicas em relação aos artistas. As
soluções apontadas para o problema vão desde proposições assistencialistas,
garantindo “ao menos uma pensão digna a quem tanto fez pelo Estado” até a
criação de uma espécie de “abrigo” para a moradia e o trabalho dos artistas.
A proposta é apresentada nesta passagem do texto:
O folclorista e escritor Deífilo Gurgel tem uma proposta para
garantir uma vida mais digna aos artistas populares do Rio
Grande do Norte. É a criação da Vila Chico Santeiro, uma
13
Mestre Manoel Marinheiro comandava o boi de reis de Felipe Camarão, no bairro do mesmo nome, na
periferia de Natal.
espécie de condomínio onde os brincantes morariam e
desenvolveriam sua arte, realizando apresentações para
visitantes. Durante o período em que não tivesse
apresentações, os artistas desenvolveriam atividades para o
sustento de suas famílias – como criação de peixes e animais,
produção de artesanato, entre outros. A proposta não é nova,
mas Deífilo Gurgel ainda não conseguiu apoio de nenhum
órgão oficial. O folclorista também lamenta o desinteresse do
Rio Grande do Norte pelas coisas de sua cultura. “Tem uma
coisa: sei que ninguém daqui iria visitar o local, mas todo
mundo que viesse do exterior iria visitar”, diz (ARTISTAS,
2004, p. 2-3).
É notória a precariedade da vida material em que vivem os artistas
populares e, por esse motivo, é também justa e oportuna a discussão sobre
formas de garantir-lhes subsistência e sobrevivência. Porém acredito que,
mesmo que difícil, é preciso pensar-se a questão dentro da amplitude devida,
para que as soluções não se limitem à busca de culpados ou venham criar
situações estranhas para aqueles que se quer ajudar.
É dentro dessa perspectiva que analiso a proposta da criação da
Vila Chico Santeiro. Sem duvidar da sinceridade de sua intenção, a
inusitada proposta do professor Deífilo merece uma reflexão mais atenta
sobre as implicações que traria para a vida dos artistas que se propõe
preservar.
A primeira delas está ligada à questão do desenraizamento. A
construção de um condomínio que reunisse os brincantes pressupõe a
retirada desses indivíduos de seus lugares de origem. Algumas questões vêm
imediatamente à tona. Por exemplo: como ficaria a relação com a
comunidade em que vivem e com a terra onde moram, que, muitas vezes, é
passada de geração a geração? Ao pensar nesse fato, relembro as palavras
de Weil (apud BOSI, E., 1999, p. 16) quando reflete sobre as raízes que
fazem um indivíduo pertencer a um grupo:
O enraizamento é talvez a necessidade mais importante e
mais desconhecida da alma humana e uma das mais difíceis
de definir. O ser humano tem uma raiz por sua participação
real, ativa e natural na existência de uma coletividade que
conserva vivos certos tesouros do passado e certos
pressentimentos do futuro.
Transferir esses artistas para um outro lugar significa apartá-los,
mais do que de um espaço físico, do espaço simbólico no qual esses
indivíduos se percebem como sujeitos no seu tempo e no seu espaço,
inseridos em determinadas dinâmicas sociais. Ou seja, afastá-los de sua
paisagem natal − sua terra, seus vizinhos, sua comunidade, suas festas,
seus familiares, a roça que cultivam, as árvores que lhes serviram de
brinquedo − é partir suas múltiplas raízes e, mesmo no caso de serem
nativos e compartilharem a mesma cidade e as mesmas tradições, tornar-seiam estrangeiros em um mundo artificial construído para eles. Sendo
migrantes, pode-se pensar essa modificação em termos de desenraizamento.
Talvez sem atentar para essas questões, o cantor e compositor
Galvão Filho apoiou a proposta de criação da vila: “Não tem como dar
errado, pois todos na vila falariam a mesma língua. O artista popular não
quer ser estrela; ele quer fazer sua arte” (ARTISTAS, 2004, p. 2).
A visão romantizada que o cantor tem dos artistas das classes
populares não lhe possibilita perceber que, mais do que artistas, ali estão
pessoas com existências diferentes, que não podem ser observadas apenas
pelo recorte demasiadamente estreito de sua atividade cultural. A esperada
harmonia baseia-se na crença de que o compartilhar de cantos, danças e
festas promova elos que transformem aquele grupo em uma nova
coletividade. O equívoco, no entanto, está em se acreditar na aparente
simplicidade da cultura popular. Ao pôr o valor das relações nos objetos
culturais que esses indivíduos compartilham, Galvão Filho desconsidera que
o homem do povo que participa da produção de bens culturais é um sujeito
agente na comunidade à qual pertence, nela desempenha um papel:
imprime, de maneira não de todo consciente, suas particularidades, seu
estilo, sua própria visão de mundo nas atividades que realiza, as quais
carregam o peso de uma tradição. Por isso ele parece ser imutável. As
manifestações populares são “um fazer dentro da vida”, no dizer de Ayala
(1989), e não podem ter existência sem os sujeitos e suas relações com o
mundo que os circunda. Portanto, como ressalta Ecléa Bosi (1999, p. 23), “o
enraizamento não se alimenta de imagens de um passado idealizado nem de
um futuro utópico”.
Uma outra implicação que eu gostaria de pôr em questão são as
propostas para a sobrevivência do grupo de artistas moradores da vila, que
se dividiriam de acordo com os períodos de “baixa” e “alta” estação turística.
No primeiro, os artistas proveriam seu sustento a partir de atividades de
subsistência, como criação de animais e produção de artesanato, algo que já
faz parte do cotidiano desses sujeitos. No período de alta estação, a vila
transformar-se-ia em atração turística, com a realização de espetáculos que
poderiam expor para o visitante, mediante pagamento, o resíduo das
tradições mais características do povo norte-rio-grandense. Pelo plano, a
renda seria revertida para a subsistência desses artistas.
Muitas questões que poderão ser postas sobre a realização desse
empreendimento. Por exemplo: a quem caberia a gerência administrativa e
financeira da hipotética vila? quais os reais interesses dos parceiros que
investiriam
no
empreendimento?
Apesar
de
estas
serem
questões
importantes, prefiro deter-me em um aspecto que acredito abranger muitos
outros e que ajudaria a refletir sobre a proposta deste trabalho: o tratamento
das manifestações culturais como produtos culturais.
Para García Canclini, essa relação de consumo com a cultura
popular, que ocorre principalmente no âmbito do turismo, agrega em si um
discurso profundamente ideologizado. Afirma o autor:
O que vê o turista: enfeite para comprar e decorar seu
apartamento, cerimônias "selvagens", evidências de que sua
sociedade é superior, símbolos de viagens exóticas a lugares
remotos, portanto, do seu poder aquisitivo. A cultura é tratada
de modo semelhante à natureza: um espetáculo. As praias
ensolaradas e as danças indígenas são vistas de maneira
igual. O passado se mistura com o presente, as pessoas
significam o mesmo que as pedras: uma cerimônia do dia dos
mortos e uma pirâmide maia são cenários a serem
fotografados (GARCÍA CANCLINI, 1983, p. 11).
Ao enxergarem-se as produções da cultura popular como produtos,
essas produções são reificadas. Tratadas como objetos de museu, adquirem
simbolicamente o valor de patrimônio. Em outra reportagem que trata da
mesma proposta da vila (MARIA JOSÉ, 2000), a noção de patrimônio é mais
explícita quando se diz que “o folclore potiguar poderá ser resguardado num
abrigo de preservação da memória popular”. Na mesma proporção em que
essas práticas culturais são enaltecidas como “peças” a serem preservadas e
apreciadas, opera-se o mecanismo de esquecimento dos sujeitos que as
consagram, e até mesmo os contextos nos quais se insere a produção.
Analisando-se essa proposta, em relação aos conflitos instalados
na sociedade, pode-se considerar, em última instância, aquilo que García
Canclini (2003, p. 162) chama de “teatralização do poder”. Observa o autor:
O patrimônio existe como força política na medida em que é
teatralizado: em comemorações, monumentos e museus. [...] a
teatralização do patrimônio é o esforço para simular que há
uma origem, uma substância fundadora, em relação à qual
deveríamos atuar hoje.
Como se pode perceber, essa discussão que envolve a subsistência
dos artistas populares é muito mais abrangente do que propõem (ou
deveriam propor) as políticas relativas à cultura pensadas pelos intelectuais
do estado, que oscilam entre o mercado e o museu. Mas, se elas estão
equivocadas, que pressupostos poderiam nortear os caminhos a serem
seguidos? Inicialmente pode-se observar o que afirma García Canclini (1983,
p. 135):
O popular não deve ser apontado como um conjunto de
objetos (peças de artesanato ou danças indígenas) mas sim
como uma posição e uma prática. Ele não pode ser fixado
num tipo particular de produtos e mensagens, porque o
sentido de ambos é constantemente alterado pelos conflitos
sociais. Nenhum objeto tem o seu caráter popular garantido
para sempre porque foi produzido pelo povo ou porque este o
consome com avidez; o sentido e o valor do popular vão sendo
conquistados nas relações sociais. É o uso e não a origem, a
posição e a capacidade de suscitar práticas e representações
populares, que confere essa identidade.
Assim, não será suficiente uma política que pense a organização da
produção cultural popular a partir da conservação das tradições. As classes
populares têm o seu modo de vida ligado a uma situação de precariedade
promovida pelo desigual acesso aos bens materiais e culturais na sociedade
atual. Preservá-los na situação social em que vivem é manter a estagnação
econômica à qual essa classe sempre foi submetida. García Canclini (1983,
p. 141), ao se referir às políticas culturais de preservação do artesanato do
México, afirma:
O que deve ser resolvido em primeiro lugar não é saber se é
conveniente preservar as formas tradicionais, mesmo que isso
os mantenha na miséria, sofisticar os procedimentos e
melhorar as suas qualidades para competir com a indústria
[...] A decisão fundamental é permitir uma participação
democrática e crítica aos próprios artesãos, criar condições
para que estes a exerçam. Uma política cultural que pretenda
servir às classes populares deve partir de uma resposta
insuspeita a esta pergunta: o que é que se deve defender: o
artesanato ou os artesãos?
Portanto para pensar a questão da sobrevivência dos artistas é
preciso perguntar-se na verdade o que e quem se quer preservar, ou melhor
reformulando, para quem se preserva e qual o sentido dessa preservação.
Preserva-se para não se enfrentar a impotência perante as desordens
sociais? Para se garantir uma tradição “autêntica” que serve como
estandarte e que se pode vender como produto cultural ao turista? Ou para
os pesquisadores que assumem a posição de arqueólogos descreverem seu
objeto em nome de um projeto que se define como cultural, e que tem o real
mérito de promover sua carreira acadêmica?
O silêncio sobre essas questões dilui o importante debate sobre as
relações que se articulam na divulgação da cultura popular. Quando essas
manifestações se transformam em espetáculos, tem-se os participantes
atuando na condição de artistas, regidos por contratos, acordos e
organização de uma produção artística. Ayala e Ayala (1995, p. 61) alertam:
É necessário vincular estas questões à estrutura social mais
ampla, buscando entender como atuam, neste contexto
específico, as relações de dominação, exploração, a ideologia
dominante, bem como as concepções e formas de
comportamento que se opõem, explícita, ou implicitamente à
reprodução das tendências dominantes na sociedade de
classes.
Assim, é preciso pensar o suporte material, organizacional e
financeiro que possibilita a apresentação de grupos e a divulgação das
manifestações culturais através dos meios midiáticos, como a gravação de
CDs e vídeos. É necessário analisar esses procedimentos
atentando para o tipo e grau de controle que têm os
produtores e os consumidores habituais (ou tradicionais)
sobre sua realização [...] Controle significa capacidade de
decisão, principalmente no que se refere à seleção dos
componentes estéticos do evento [...] não só no momento da
apresentação, mas no decorrer das demais atividades
necessárias à ocorrência da manifestação cultural – compra
ou produção de materiais necessários (AYALA e AYALA, 1995,
p. 63).
É nesses termos que pretendo debater as questões sobre a
divulgação da imagem de D. Militana através de apresentações públicas da
artista e da produção de CDs e vídeos. A falta de clareza em relação à
maneira como se desenvolvem os projetos e propostas que definem esse tipo
de política cultural gera especulações sobre as relações constituídas entre
produtores e artistas. É o que se pode perceber nos debates instaurados na
imprensa sobre
a situação de
precariedade
financeira, abandono e
exploração à qual está submetida D. Militana.
A reportagem do jornalista Alexandro Gurgel publicada no Jornal
de Hoje e intitulada Dona Militana, do estrelato ao abandono inaugura
publicamente esse debate. Após definir a importância da artista para a
cultura norte-rio-grandense, o texto denuncia a situação de abandono em
que vive e a exploração daqueles que atuam como “produtores” da cantadora.
Escreve o jornalista:
Apesar de guardar uma grande consideração pela fotógrafa
Candinha Bezerra, Dona Militana sente-se esquecida pela
mesma. “Ela mandou arrancar todos os meus dentes e
prometeu colocar uma prótese. Já se passaram cinco meses e
nunca ninguém mais apareceu por aqui”, desabafou. Dona
Militana também não recebe nenhum centavo dos royalties ou
direitos autorais com a venda do CD Cantares, desenvolvido
pela Fundação Hélio Galvão, dentro do Projeto Nação
Potiguar. A romanceira diz que recebeu apenas R$ 2 mil. Não
há nenhum CD em casa que ela possa vender ou mostrar aos
seus visitantes. Durante o Auto de Natal, ao lado da cantora
Elba Ramalho e do ator global Lázaro Ramos, Dona Militana
fez uma apresentação especial e até hoje não recebeu o cachê
prometido pela Fundação José Augusto, órgão responsável
pelo evento. Enquanto isso o Governo do Estado pagou uma
fortuna aos “artistas” nacionais pela participação na peça. “Já
cansei de ligar para a Fundação e ninguém diz quando minha
mãe vai receber o dinheiro” disse Benedita Nogueira, filha de
D. Militana (GURGEL, A., 2004, p.1).
Nos dias seguintes à publicação da matéria, os envolvidos nas
denúncias defenderam-se das acusações que lhes foram feitas. O presidente
da FUNCART
14,
a entidade realmente responsável pelo evento, encaminhou
cópia ao jornal do recibo que comprova o pagamento do cachê de um mil
reais à artista pela apresentação no Auto de Natal. Segundo o jornal, no
documento está registrada a impressão digital da beneficiada. Em nota
(FUNCARTE, 2004), o jornal publica a correção da informação divulgada.
Também se apressam em esclarecer as informações os produtores
culturais Dácio Galvão e Candinha Bezerra, coordenadores do Projeto Nação
Potiguar. Em matéria para o Jornal de Hoje intitulada Dona Militana,
defendem-se da “suposta quebra de contrato, falta de assistência e
abandono a um dos maiores ícones da cultura popular do RN”. A matéria
explica:
O primeiro contato entre as duas partes ocorreu no final dos
anos 90, quando o pesquisador e produtor cultural Dácio
Galvão realizava encontros de cultura popular pelo Estado,
através da Fundação José Augusto. O encontro proporcionou
a D. Militana a oportunidade de participar do CD Romances e
14
A Fundação Capitania das Artes − FUNCART − é uma instituição da administração direta do município de
Natal e substitui a Secretaria de Cultura do Município.
Cantos de Excelências editado pela FJA, com Direção artística
de Dácio. O CD foi lançado em todo o Brasil, com uma
exposição fotográfica feita pela fotógrafa Candinha Bezerra.
Foi quando o Brasil passou a conhecer e admirar o trabalho
de D. Militana. A partir desse primeiro contato outros dois
CDs foram gravados, dessa vez editados pelo Projeto Nação
Potiguar, coordenado por Candinha e Dácio. Após a gravação
dos dois discos, o vínculo profissional foi cessado, restando a
amizade. “O projeto Nação Potiguar não tem função de
assistência social. Não somos produtores de artistas
populares e não temos condições de nos responsabilizar por
todos que registramos” explica Candinha Bezerra. “Nosso
trabalho é mapear a cultura sonora potiguar e trabalhamos
com vários artistas. Pelo trabalho que desenvolveu, Dona
Militana recebeu dois mil reais pela gravação, além do
dinheiro referente à venda dos discos durante a noite de
lançamento. Dona Militana também recebeu sempre que foi
chamada para cantar, eu pagava pelos contratantes e
negociava diretamente com ela”, complementa Dácio. O
Projeto Nação Potiguar deu a notoriedade e a importância
para a história da cultura popular que D. Militana tem hoje.
[...] O trabalho realizado pelos produtores é referência nos
estudos da literatura oral em todo o mundo. O Nação Potiguar
já ganhou prêmios, além de ser uma das únicas iniciativas de
preservação da memória artística da cidade (D.MILITANA,
2004).
Seria leviano de minha parte, uma vez que estou distante da
veracidade dos fatos, debater as querelas em relação ao pagamento de cachê
ou à situação direta de abandono e exploração denunciada pela reportagem.
Ou melhor, este não é o propósito deste trabalho. Na verdade, a intenção
desta pesquisa é perceber as questões colocadas à luz das reflexões teóricas
adotadas, pois, pelo que já foi aqui discutido, salta à vista que o debate
instaurado deixa de fora elementos importantes para sua compreensão, que
eu gostaria de evidenciar.
Acredito que a raiz da desconfiança que a sociedade tem dos que
cumprem o papel de produtores culturais de grupos populares está na forma
como se dá a relação entre os produtores e os artistas. Pelas explicações dos
primeiros, fica clara a relação estabelecida entre as partes na gravação dos
CDs de D. Militana e nas apresentações: o trabalho feito foi remunerado. No
entanto outras questões evidenciam-se como importantes para se ir além da
relação comercial. Na reportagem, os produtores deixam claro que a proposta
que norteia o Projeto Nação Potiguar é “mapear a cultura sonora potiguar.” E
ressaltam, ainda, que ele não tem função de assistência social. Dizem eles:
“Não somos produtores de artistas populares e não temos condições de nos
responsabilizar por todos que registramos”.
Concordo com a postura não-assistencialista que assumem os
produtores; afinal grande parte dos artistas por eles divulgados
15
faz parte
do universo da cultura popular e são pessoas de grande importância para a
cultura do estado, portanto não são dignos do papel de submissão a uma
assistência que só dê conta de suas necessidades básicas. Não que eles não
precisem, pois, sejam verdadeiras ou não as denúncias, não se pode negar o
fato de que a citada artista, D. Militana, vive submetida a uma situação de
precariedade material e ausência de serviços básicos a que tem direito, aí
não só por sua condição de artista, mas pela de cidadã.
Pelo exposto, volta-se à discussão sobre o valor da preservação, e
aqui se pode questionar: qual a função de se “mapear a cultura sonora do
estado” e de “ser a única iniciativa de preservação da memória artística da
cidade” (inclusive sendo-se premiado por isso) se se desconsideram, no bojo
da concepção do projeto, as condições sociais e culturais dos sujeitos
envolvidos, como se elas não tivessem influência na manutenção daquilo que
se quer preservar? Nesse sentido, qual a significação da “notoriedade e [...]
importância para a história da cultura popular que D. Militana tem hoje”
para uma senhora que depende da boa vontade daqueles com quem
construiu um vínculo de amizade (entre tantos, os próprios produtores
Candinha e Dácio) para ter atendimento em seus problemas de saúde e
condições básicas de sobrevivência? Nessa relação de méritos, quem tem o
ganho maior?
Penso que essas reflexões denunciam as contradições que dizem
respeito ao lugar da cultura popular nas disputas simbólicas da atualidade.
Quero deixar claro que não tenho a pretensão de aqui definir os rumos de
uma política cultural. No entanto, ao pensar nas questões postas, reforça-se
em mim a idéia de que qualquer projeto cultural tem que considerar os
15
Segundo a mesma reportagem, “O Nação Potiguar lançou 15 discos, com as mais variadas manifestações
populares do Estado. Na lista estão Coco de Zambê de Tibau do Sul, a Orquestra Sinfônica do Rio Grande do
Norte e inúmeros repentistas e violeiros".
contextos de produção desses bens simbólicos e os sujeitos que os produzem
e, portanto, para se pensar em preservação de uma atividade cultural é
necessário criarem-se condições para que ela possa ser exercida. Como
membros da sociedade, o nosso papel, é ainda maior. García Canclini (1983,
p. 141-143) alerta:
Para que exista uma cultura popular não é suficiente
desbloquear os canais de participação coletiva, como se
existissem massas não contaminadas às quais só bastassem
que fossem retiradas grades, externas a elas, para que se
manifestassem livremente.[...] Não haverá políticas culturais
realmente populares enquanto os produtores não tiverem um
papel de protagonista, e este papel não se realizará senão
como conseqüência de uma democratização radical da
sociedade civil.
Ao meu ver a relação proposta pelo autor pode ser invertida: a
democratização da sociedade pode ser construída, ou pelo menos iniciada,
quando os discursos construídos sobre a cultura popular incluírem a voz
daqueles que a constituem. É minha crença nisso que justifica as escolhas
teóricas e metodológicas deste trabalho. Penso que, para a interpretação da
realidade em foco, é necessário, sobretudo, pensar-se a cultura popular
“como cultura presente em diálogo ou em confronto com outras produções
culturais também presentes” (AYALA, 2003b, p. 85). Essa perspectiva
desloca a noção de preservação dos objetos  tão constante, como foi visto
nos enfoques dos estudos sobre o popular no estado do Rio Grande do Norte
 para os sujeitos e suas dimensões socioculturais. O olhar proposto pelas
teorias que compreendem as tradições pela via da contextualização social, a
partir de seu próprio aparato teórico e analítico, promove a abertura
necessária para deixar ecoarem as vozes e gestos que identificam a presença
dos sujeitos não só através das transcrições dos textos orais e de registros
fotográficos, mas, como propõe Ayala (2003b, p. 84), de textos que, ao serem
lidos, produzam
a sensação de que sem aqueles textos e sem as falas dos que
fazem a cultura popular e encontram nela um sentido para
suas vidas, não avançamos no entendimento do que vem a ser
essa cultura ou essas culturas populares, tal a diversidade
encontrada nas maneiras de viver essas práticas culturais, de
entendê-las, de nomeá-las, de atribuir-lhes valor e sentido e,
por que não, de comprazer-se com elas.
Parto desse ponto para definir a relação pesquisador-sujeito
pesquisado. É fato que eu não conhecia o universo da cultura popular e a
experiência de convivência com minha colaboradora promoveu a interrelação de universos distintos. O vínculo criado entre nós possibilitou que eu
percebesse o caminho que ela indicava, aquilo que queria que fosse
apresentado sobre si e sobre os cantos que conhecia. Foi ouvindo
atentamente a história de D. Maria José que se revelou para mim a
coexistência de dois universos. E, a partir daí, pude constatar que se trata
apenas de um sujeito, mas que agrega duas representações: Militana e Maria
José
16
. “Militana” apesar de ser o seu nome de registro, não é o nome a
partir do qual esse sujeito se reconhece, nem em relação a si mesmo nem
como membro de uma coletividade. Militana tornou-se o seu nome público,
cunhado quase à sua revelia. É o nome da artista que encanta platéias, o
nome inscrito na capa de seu CD, que representa o “poço de memórias
ibéricas” (SILVA, 2005, p. 1) e serve de elo para a tradição. Ela já foi aqui
apresentada ao leitor por aqueles que querem “preservá-la”. “Maria José” é
seu nome familiar, comunitário, pelo qual ela se identifica na comunidade
em que vive e pelo qual é identificada pelas pessoas mais próximas a ela,
cotidianamente.
Por tudo que eu tenho discutido, não é a persona de Militana que
interessa a este trabalho, mas sim a senhora conhecida como D. Maria José,
nome que comporta o espaço particular, permeado de cantos, lugares,
experiências e histórias que se inserem dentro da vida dessa mulher. É essa
que pretendo revelar com a atual pesquisa.
Portanto perceber a trajetória de Militana a Maria José me permite
olhar a cultura popular a partir da ótica de quem se representa por meio
dela. Acredito ter deixado claro ser impossível determinar a importância da
artista para o estado do Rio Grande do Norte sem entender as relações
sociais presentes na vida e na comunidade onde ela está inserida.
16
O porquê será discutido no próximos item.
Não percebo a necessidade de “resgatar antes que acabe” os cantos
de D. Maria José, mas sim de entendê-los nas dinâmicas sociais presentes
nessa sua atividade. Dessa forma, este trabalho pretende construir a
narrativa de vida dessa mulher pela dimensão de sua voz. Agora, cabe a
mim, enquanto pesquisadora, a competência para apresentá-la.
1.3. Militana ou Maria José: o nome
Como já disse, pude observar D. Militana pela primeira vez na
CIENTEC − Feira de Ciência e Tecnologia − realizada na UFRN, no ano de
2000. Muito já tinha ouvido falar da romanceira que cantava romances
ibéricos e encantava platéias em todo o país. A sua participação num evento
científico fazia parte de uma preocupação de “valorização” e “resgate” das
manifestações populares do estado, a partir da exposição dos artistas para o
conhecimento da população mais jovem. Naquela oportunidade, causou-me
certo desconforto a maneira como aquelas “apresentações folclóricas”
desfilavam aos olhos do público de maneira acelerada. Entre elas, a figura de
D. Militana pareceu-me magnética, dotada de altivez e seriedade, que
propunha certa distância a quem desejasse aproximar-se (talvez, pelo
ambiente não-propício).
Meu segundo encontro com a romanceira se deu no mês de
dezembro de 2000. Na ocasião, fui à cidade de São Gonçalo do Amarante, em
busca do sítio onde ela reside. Perguntei a várias pessoas onde morava D.
Militana e, para minha surpresa, constatei que esse nome não era conhecido
na cidade. Por mais que procurasse, ninguém identificava quem era a artista
popular conhecida por cantar romances ibéricos e estrelar em espetáculos no
estado e fora dele. Após muito procurar, descobri que estava em busca de
uma desconhecida. Quem os moradores de São Gonçalo conheciam era D.
Maria José, a matriarca de uma família numerosa. Conhecida benzedeira, ela
é uma mulher respeitada por sua personalidade forte, que impõe respeito a
todos por sua bravura. É dona de uma história comum a muitas bravas
mulheres que acrescentaram ao papel de mãe, irmã e filha o de provedora do
sustento da família.
Compartilhando esse mundo com os moradores de São Gonçalo, D.
Maria José, ela própria, também chama a si mesma Maria José. A questão
merece esclarecimento e darei voz a ela para que o faça 17:
D. MARIA JOSÉ – Agora, porque no tempo que foram me batizar minha mãe
mandou botar o nome de Maria José e minha madrinha botou o nome de mamãe, o
sobrenome de mamãe, ela botou meu nome, agora ninguém sabia que meu nome
era Militana, depois que eu comecei a andar no meio do mundo, com os
documentos. Pronto! Quando eu chego na cidade. “Oh! D. Militana, D. Militana”, eu
fico putinha de raiva.
Lílian – Quando foi que a senhora começou a andar no meio do mundo?
D.MARIA JOSÉ – Primeiro eu fui pra Mossoró com o professor Gurgel. [...] O que
é que eu tava dizendo?
Lílian – Estava dizendo que foi pra Mossoró com o professor Gurgel.
[...]
Lílian – Como foi que ele lhe descobriu? O Professor Gurgel, como foi que ele
descobriu a senhora?
D.MARIA JOSÉ – Porque papai... ele andava muito, de oito em oito dia vinha
visitar papai.
Lílian – Ah! Era?!
D.MARIA JOSÉ – Era.
Lílian – Ele já conhecia seu pai.
D.MARIA JOSÉ – Era.
Lílian – Então seu pai ainda era vivo quando ele lhe conheceu.
D.MARIA JOSÉ – Tava. Ele vinha, ficava conversando um dia!
17
Os trechos aqui utilizados são fragmentos das entrevistas realizadas com D. Maria José e fazem parte do
terceiro capítulo deste trabalho.
Lílian – Faz quanto tempo que seu pai morreu?
D.MARIA JOSÉ – Vinte e cinco.
Lílian – Vinte e cinco anos?
D.MARIA JOSÉ – Vai fazer no dia 2 de setembro, vinte e cinco anos.
Lílian – Então faz tempo que ele conhece vocês, né?
[...]
Lílian – O professor Gurgel sabia que a senhora cantava, quando ele ia visitar seu
pai?
D.MARIA JOSÉ – Porque ele ia visitar papai de oito em oito dias, de quinze em
quinze dias. Quando se dava fé, ele chegava. Aí ele disse/... aí um dia papai cantou
um verso pra ele, porque ele só ia atrás de verso e ele andou fazendo umas fita
lá.
Lílian – Hum!...
D.MARIA JOSÉ – No dia que papai morreu ele veio aí [?] Aí ele disse: “E
agora”?Aí eu disse: agora fica por isso mesmo, mas aí ele disse: “Mas a senhora,
sabe”? Eu digo: eu sei, mais não estou querendo ser cantora. Aí ele inventou de
me levar pra lá, eu fui. Agora eu tô evitando, porque a pessoa sendo velha, sem
dente... ((risos))
(Transcrição 6 - 10/05/2005)
.....................................................................................................................
D. MARIA JOSÉ – Eu nasci em Barreiro, porque a sogra de mamãe, que era a
minha avó, era quando eu nasci no dia 19 de março, dia de São José, por isso que
eu digo ((recitando)): a maré tava de vazante e a lua tava de minguante. A lua
cortou minha sina e a maré levou minha sorte e eu sou a mais sofredora do Rio
Grande do Norte. [...]
(Transcrição 4 - 03/05/2005)
.......................................................................................................................................................
D. MARIA JOSÉ – Mamãe dizia: “vai buscar água Maria José”. E eu ia. Ela já
tava velhinha, num é? Aí eu botava água pra ela, eu enchia a casa d’água, e depois
ia botar água pra ela, barria o terreiro dela. E quando ela não pôde mais, arriou.
Aí eu botava o caixão, vivia permanente dentro do quarto. Eu botava ela no
caixão, quando acabar, dava um banho nela, enxugava, penteava os cabelos dela,
prendia e botava ela na rede. Aí ela dizia: “Quem paga o que tais fazendo comigo
é Deus.” Ela uma vez disse: “compadre Atanásio, a parte da terra que toca pra
mim é de Maria José, porque a filha que eu tenho é Maria José”. Que eu ainda
não tinha andado pelo meio do mundo, então ninguém sabia do meu nome. Era
Maria José.
Lílian - Seu nome de artista, né? (risos)
D. MARIA JOSÉ - Depois dos diacho dos meus documentos, o povo chega: D.
Militana, D. Militana. Eu espio pra parede ta lá D. Militana ((refere-se a uma das
placas que foram feitas pela prefeitura de São Gonçalo em sua homenagem e que
está exposta na parede de sua casa)), eu fico putinha de raiva. Aí Dácio sabe que
eu tenho raiva, aí qualquer coisinha ele diz: ”D. Militana, D. Militana.... ((risos)).
(Transcrição 5 - 05/05/2005)
No contato que estabeleci com a minha colaboradora, a questão
dos dois nomes que a identificam e a distinção entre os espaços que cada um
deles constitui foi uma constante. Observei que, nos três fragmentos
destacados, existe a explicação do fato de D. Maria José não gostar do nome
Militana − ter sido uma escolha de sua madrinha, para fazer uma
homenagem à mãe da afilhada −; como chegou ao conhecimento público esse
nome, que ela não reconhece como seu e que a identifica num espaço
diferente da comunidade da qual faz parte, incomodando-a talvez pelo que
ele representa; e do real motivo pelo qual ela se reconheceu como Maria José:
a homenagem a São José, seu santo de devoção, aquele que inspira os versos
que criou e com os quais constrói o inventário de sua própria vida.
Assim, acredito que a história dessa “duplicidade” de nomes é
bastante significativa para representar a percepção desse sujeito, construída
por diferentes espaços sociais por onde ele circula, uma vez que a concepção
da identidade como uma construção social é marcada por polissemias que
devem ser entendidas e circunscritas ao contexto que confere sentido a essa
identidade. Isso aponta para um caminho que distingue esse sujeito
enquanto indivíduo inserido em duas distintas coletividades.
Assim, pode-se dizer que a identidade do sujeito é uma montagem
humana dentro de um sistema. Essa reflexão é muito próxima do que Lacan
(apud DOR, 1990) afirma a respeito da identificação: que, na verdade, a
identificação é como um traço inscrito e que todas as imagens que o
indivíduo constrói em torno dele, aquelas que vão ser o seu eu, como as
imagens e identificações que ele tem de si mesmo, são colocadas de
acréscimo no único registro essencial da identificação, que é o nome que o
constitui. Ou seja, o que se pode dizer de um sujeito é apenas o seu próprio
nome; para todo o resto, a linguagem o deixa em desamparo.
Então, se o que nos distingue é o nosso nome, como se poderia
pensar a história dessa mulher que se identifica por meio de dois?
Em termos de identidade, pode-se dizer que, apesar de estar
associada
à
idéia
de
totalidade,
uma
de
suas
características
é
a
multiplicidade. Os papéis sociais são impostos ao indivíduo, desde o seu
nascimento, e assumidos por este na medida em que se comporta de acordo
com a expectativa da sociedade. Dessa forma, na relação com outros
homens, o indivíduo não comparece apenas como portador de um único
papel,
pois
diversas
combinações
configuram
uma
identidade
como
totalidade. Uma totalidade contraditória, múltipla e mutável, no entanto una.
O indivíduo, ao se apresentar frente a outro, comporta-se de uma dada
maneira. Neste momento as “outras identidades” pressupostas estão
ocultadas.
É assim que penso as “identidades” de D. Militana, ou D. Maria
José, e as tomo como alegoria para representar uma determinada postura
frente à concepção do popular. Existe, no espaço público, uma imagem
construída. Porque está inserida em determinada concepção que pensa a
cultura popular como sobrevivência do passado, desconsiderando os sujeitos
envolvidos nessas práticas, como já foi aqui discutido. Esse sujeito se
representa como Militana, mesmo sendo este um nome no qual não se
reconhece, aquele que não diz de si. ‘Maria José” é o nome para ela escolhido
pelos seus pais, pela sua comunidade e por si mesma. No início da
divulgação de sua imagem, ainda se manteve, mas foi modificado
posteriormente. Seria porque é um nome muito comum e não parecia
adequado à imagem que estava sendo erguida, ou porque o nome Militana
tem um impacto maior e “evoca hagiológios medievais e tem tudo a ver com a
cultura lusitana”, como afirmou Deífilo Gurgel, vinculando-o à noção de
tradição que comporta o folclore? Não tenho possibilidade de afirmar o real
motivo, mas entendo que o fato de D. Maria José não poder representar-se
pelo nome que a constitui como sujeito é revelador da participação que esse
indivíduo tem nas decisões sobre o “produto cultural” que é divulgado por
intermédio do seu nome.
Já que pretendo mostrar, neste trabalho, como a literatura e a
história de vida se entrelaçam em discursos que marcam uma identidade
cultural, na qual os cantos e a vida de D. Maria José formam um tecido
narrativo em que se podem identificar as representações que essa mulher
constrói do mundo e como se formam as relações do grupo social no qual ela
está inserida, optei, então, por construir o caminho de volta de D. Militana a
Maria José. D. Militana é, para mim, uma imagem − real, mas retirada do
universo onde se constituiu como sujeito − e, portanto, não interessa a esta
pesquisa. Proponho, então, voltar o olhar para Maria José, uma voz que se
conta enquanto canta.
No entanto devo deixar claro que esse caminho não foi traçado a
priori. Uma longa trajetória se deu até eu chegar a Maria José, e toda ela foi
conduzida por essa personagem. Foi “ouvindo” os seus silêncios e suas
recusas àquilo que eu oferecia que percebi o que esse sujeito queria dizer de
si. A metodologia adotada ajudou: permitiu-me pensar o canto da artista
como uma poesia que transborda dos poemas para a sua vida e que se refaz
no cotidiano, na relação com sua terra, sua religiosidade, seus familiares e
vizinhos. Suas palavras confundem-se com seus versos.
Como revelou Xidieh (1993), se está no universo da cultura
popular quando se capta sua maneira própria de “dizer” o mundo. Mas, para
isso, é preciso aproximar universos distintos, reconstruir significados e
“despir” os sentidos de uma gama de conceitos e preconceitos. A tarefa não é
fácil. Apresentarei, então, o percurso.
II
A PESQUISA DE CAMPO: DEFININDO OS CAMINHOS
Ao chegar a uma nova cidade, o viajante reencontra um
passado que não lembrava existir: a surpresa daquilo que
você deixou de ser ou deixou de possuir revela-se nos
lugares estranhos, não nos conhecidos.
As cidades invisíveis
Ítalo Calvino
2.1. O encontro de dois mundos: o pesquisador e o universo da
pesquisa
Após construir o percurso teórico que baseia a proposição de que
existem duas imagens compondo o sujeito pesquisado e que estas se revelam
a partir da duplicidade dos nomes da artista estudada, concluí o primeiro
capítulo definindo a posição teórica adotada, o que significa, no caso deste
trabalho, optar pela imagem de D. Maria José, que representa esse sujeito
no seu espaço particular. Agora, para conhecê-la, faz-se necessário
apresentar a postura metodológica escolhida.
Como essa postura tem implicação direta na perspectiva de
abordagem do objeto, principalmente em se tratando de um estudo sobre
memória e cultura popular, passo a descrever o itinerário da pesquisa de
campo,
cujos
resultados
estão
intrinsecamente
ligados
com
os
procedimentos metodológicos utilizados durante essa etapa.
Segundo Ayala (2003b), uma abordagem crítica do popular requer
a adoção de procedimentos metodológicos e teóricos que diminuam a
distância entre sujeito e objeto, afastando-se da racionalidade de cunho
positivista, sem, no entanto, supervalorizar a subjetividade, tão presente na
concepção do romantismo, na busca da “alma do povo”.
Refletindo sobre a observação da autora e considerando a
problemática sobre o estudo da cultura popular discutida no capítulo
anterior, comecei a pensar a pesquisa de campo. Para iniciar as reflexões
sobre o trabalho, tinha diante de mim um sujeito a quem me propunha
conhecer e um questionamento sobre a abordagem de estudo que
desconsiderava os sujeitos nas pesquisas sobre as manifestações populares.
As experiências do Laboratório de Estudos da Oralidade – LEO – da
Universidade Federal da Paraíba, que pude conhecer, e outras que tive
oportunidade de acompanhar18 foram de grande importância para definir os
caminhos que deveria tomar. Os procedimentos realizados pelo grupo do
LEO não só recorriam aos suportes metodológicos habituais da área de
Letras como buscavam apoio em outros métodos das Ciências Humanas
relativos à pesquisa empírica que possibilitavam colherem-se os dados da
pesquisa de campo mantendo-se sempre o cuidado de não se distanciarem
dos seus interlocutores e adotando-se, em relação a eles, uma postura de
profundo respeito pelo conhecimento que traziam para o trabalho.
A história oral foi um dos suportes metodológicos que pude
conhecer nessa experiência. O seu caráter dialógico exige do pesquisador
uma disponibilidade para lidar com a diversidade. Nesse sentido, era
considerado requisito imprescindível para a realização do trabalho a
disposição de ouvir e o interesse e o respeito pelos pontos de vista daqueles
que se propõem partilhar suas experiências com um grupo que extrapola seu
meio social e familiar. Tão importante se faz essa postura que Portelli a
considera um dos procedimentos fundamentais entre os que dizem respeito
à ética na história oral:
18
Durante o doutorado, tive a oportunidade de conhecer alguns pesquisadores que participaram do trabalho
desenvolvido em Barra de Camaratuba − PB, sob a orientação do professor Andréa Ciacchi, e de acompanhar
algumas visitas na fase inicial do projeto Embarcando na Nau Catarineta, desenvolvido no Centro Social Urbano de
Mandacaru, em João Pessoa, e coordenado pelos professores Marcos Ayala, Maria Ignez Ayala e Diógenes André
Maciel. Além disso, tive acesso a trabalhos de teses e dissertações, defendidas por pesquisadores que fazem parte do
grupo.
O respeito pelo valor e pela importância de cada indivíduo é,
portanto, uma das primeiras lições de ética sobre a
experiência com o trabalho de campo na História Oral. [...]
Nossa arte de ouvir baseia-se na consciência de que
praticamente todas as pessoas com quem conversamos
enriquecem nossa experiência. Cada um dos meus
entrevistados [...] representou uma surpresa e uma
experiência de aprendizado (PORTELLI, 1997c, p. 17).
Assim, a característica dialógica do método me possibilitaria
conhecer a colaboradora19 da pesquisa por meio do relato individual de sua
história. Ouvindo a experiência de D. Maria José, pelo relato específico da
história oral chamado de história de vida, essa “ciência do indivíduo” me
possibilitaria
manter
a
perspectiva
crítica
almejada
pelo
trabalho,
conservando o propósito de privilegiar a fala da colaboradora, para juntar as
peças que compõem o grande mosaico de sua memória, revelando como as
práticas culturais desse sujeito se vinculam à sua vida. Afinal, como
esclarece Portelli (1997c, p. 15), a história oral, mantendo o foco no
indivíduo, permite, através de seu discurso, a análise das estruturas sociais
e culturais e dos processos históricos.
A História Oral é uma ciência e arte do indivíduo. Embora
diga respeito – assim como a sociologia e a antropologia – a
padrões culturais, estruturas sociais e processos históricos,
visa aprofundá-los, em essência, por meio de conversas com
pessoas sobre a experiência e a memória individuais e ainda
por meio do impacto que estas tiveram na vida de cada uma.
Isso se aproxima do que afirma Queiroz (1991), ao conceituar a
história de vida. Para a autora, esse é um tipo específico de relato no qual o
narrador
conta
a
sua
existência
através
do
tempo,
reconstruindo
acontecimentos já vivenciados e transmitindo as experiências adquiridas, a
partir de uma narrativa individual dos acontecimentos que considera
19
Quero esclarecer que, apesar de alguns estudiosos da história oral se referirem aos participantes de suas pesquisas
como “informantes”, não adoto essa denominação neste trabalho, para evitar as implicações sobre o uso do termo
feito pelos folcloristas, discutidas no capítulo anterior. Em seu lugar, utilizo “colaborador”, termo sugerido por Bom
Meihy (2000) que julgo mais adequado aos propósitos desta pesquisa.
significativos. Naquilo que é dito se podem observar as relações que esse
sujeito delineia com os membros do seu grupo, de sua profissão, de sua
camada social e de sua sociedade global. Esse amálgama de relações que se
enovelam constitui o tecido narrativo, que cabe ao pesquisador desvendar.
Para construir esse tecido, empenhei meus esforços na intenção de
definir o caminho a ser percorrido e organizar o percurso, formulando o
trabalho a ser realizado. Segundo os manuais de história oral (THOMPSON,
P., 1998), (ALBERTI, 2004), (BOM MEIHY, 2000), para realizar a coleta de
dados através desse método, a técnica mais difundida é a da entrevista, que
pode ser caracterizada como uma conversação entre o colaborador e o
pesquisador mediada por um tema, que é proposto com base nos objetivos
da pesquisa. Para a condução da entrevista, as orientações variam entre
diferentes práticas, que polarizam a discussão sobre se cabe ao pesquisador
ou ao colaborador o papel de conduzir a conversa. Queiroz (1991), no
entanto, utiliza esse critério para diferenciar a técnica da história de vida da
do depoimento. Segundo a autora, a forma específica de agir do pesquisador,
ao conduzir o diálogo com o informante a partir de um roteiro predefinido e
desconsiderando qualquer informação que não esteja relacionada com o
interesse da pesquisa, caracteriza o depoimento. Assim, este busca obter do
narrador o essencial, descartando o que lhe parece desnecessário. Na
história de vida, embora haja uma condução sub-reptícia do pesquisador, é
o colaborador quem decide o que vai ser narrado, portanto nada de seu
relato pode ser considerado supérfluo. Sendo assim, a história de vida vê
aquilo que é narrado em todas as perspectivas possíveis. As recusas, os
silêncios, as retomadas, as reiterações e os gestos adquirem sentido próprio
a partir dos elementos contextuais que aparecem (ou estão implícitos) na
cena enunciativa e, portanto, devem ser levados em conta pelo pesquisador.
Para Paul Thompson (1998), a melhor maneira de se elaborar uma
entrevista é colher idéias e informações mapeando-se o campo e atualizandose por meio de leituras. Seguindo as orientações do autor, delineei as
justificativas e os objetivos da pesquisa, apoiada pelo material bibliográfico
que a subsidiava, delimitando o que seriam as áreas de interesse e traçando
um esboço daquilo que tinha o propósito de investigar.
Entretanto
possibilitaram-me
alguns
refletir
aspectos
acerca
de
de
minha
pontos
prática
importantes
em
campo
quanto
à
metodologia de pesquisa. Isso porque, mesmo cercando-me de todo cuidado,
iniciei a pesquisa de campo com menos certezas do que desejava. Não que
desconsiderasse o valor das recomendações do historiador em relação ao
planejamento do trabalho, mas sim porque sabia que estava diante de um
universo completamente desconhecido, por isso enigmático, para mim, uma
vez que a minha convivência com a cultura popular se dera principalmente
através de estudos e da participação como espectadora nas muitas
apresentações do gênero a que havia assistido. Entendi, então, que estava
diante do risco de recorrer a um método de pesquisa preestabelecido e,
mesmo procurando entender o universo a pesquisar, esse entendimento
podia não captar a vivência real das situações.
Assim sendo, tirei das experiências de Xidieh (1993) e Portelli
(2002, 1997a, 1997b, 1997c) o entendimento de que é durante a pesquisa de
campo, tomando contato com o universo a ser estudado, que o pesquisador
deve estabelecer seus caminhos metodológicos e, até mesmo, se necessário,
criar ele próprio uma metodologia que se aplique aos fins da pesquisa, se os
métodos existentes se mostrarem falhos para os seus objetivos. Com base
nisso, minha investigação partiu principalmente da suposição inicial de que
em campo iria deparar-me com um universo singular e a ele teria que
adaptar os meios de pesquisa para contornar as situações adversas que por
ventura ocorressem.
E elas aconteceram. Como toda pesquisa de campo, esta esteve
sujeita a inúmeros imprevistos, que foram desde panes no material de
gravação até interrupções por problemas de saúde da colaboradora. O saldo
desse trabalho foi a gravação de 15 horas de entrevistas. Durante o
desenvolvimento da pesquisa, circunstâncias de ordem particular levaramme a residir no município de Pau dos Ferros−RN, cidade distante cerca de
400 km da capital. Com todo o material de pesquisa de campo já
providenciado, o andamento do trabalho estava garantido, pois, na fase em
que se encontrava, já estava concluída a parte referente à gravação de
entrevistas e transposição para a forma escrita do material coletado. Eu
estava, portanto, iniciando a fase de transcrição propriamente dita (correção
do material e construção da chave de transcrição) e análise do corpus. No
entanto
um
fato
ocorrido
em
novembro
de
2004
prejudicou
o
desenvolvimento do projeto, uma vez que a quase totalidade dos documentos
orais coletados (das 15 fitas gravadas, consegui recuperar 3) foi furtada e
inutilizada. Em decorrência do sinistro, enfrentei muitos obstáculos para a
continuidade do projeto, pois teria que refazer todo o material, com a
dificuldade de estar residindo a cerca de 400 km de onde mora a
colaboradora do trabalho.
Mesmo assim, passado o impacto inicial da perda de quase três
anos de trabalho, adotei providências para refazer o material, reorganizando
o cronograma da pesquisa. Coletei, então,
novos registros orais, entre os
meses de maio e junho. Dessa forma, o período de coleta encerrrou-se em
julho de 2005
20.
Todo esse fato, apesar de trágico, possibilitou um novo olhar para o
trabalho que estava sendo construído. O tempo exíguo de que eu dispunha
para reconstruir a coleta de dados exigia de mim maior pressa para a
gravação dos novos relatos e esse fato refletiu no direcionamento das novas
entrevistas realizadas. Ao analisá-las, mais tarde, percebi a interferência de
minha voz e da de Diva − minha companheira nas visitas a São Gonçalo do
Amarante21 − na fala da colaboradora, principalmente nas duas primeiras
entrevistas. Por ser mais insistente nas questões colocadas, principalmente,
no que se referia à relação que D. Maria José estabelece com os versos que
canta, fui percebendo os silêncios, que se instauravam de forma mais
contundente no discurso. Quanto mais D. Maria José era questionada de
forma direta sobre os cantos que a tornaram conhecida, mais se esquivava
de responder e oferecia em troca as histórias cotidianas da convivência na
20
Embora as entrevistas apresentadas no corpus deste trabalho sejam datadas de maio de 2005, os encontros com a
colaboradora estenderam-se até julho, quando realizei os procedimentos finais do trabalho de campo, como
conferência de informações e esclarecimento de dúvidas surgidas na transcrição do material gravado.
21
Este trabalho teve a colaboração de uma amiga que é natural do município de São Gonçalo do Amarante. O
porquê de sua presença e as implicações para a pesquisa serão discutidas ainda neste capítulo.
comunidade, das aventuras de infância, das situações de dificuldade que
passou.
Ao comparar as entrevistas realizadas nessa fase com as realizadas
anteriormente nas quais as conversas fluíam mais naturalmente, encontrei
as mesmas recusas e histórias, contadas, às vezes, com a modificação de um
ou outro detalhe, mas conservando sempre o mesmo recorte narrativo. A
insistência na reiteiração da sua narrativa deixa claro que esse sujeito
elegeu um repertório para nós, minha companheira e eu, que revela
exatamente o que ele quer dizer de si. Diferente do que aconteceu em relação
a outras pessoas que visitavam D. Maria José, ela escolheu a mim e a minha
companheira para contar sua vida. A ênfase na narrativa do cotidiano
tornou-se a tônica das conversas. Acredito que essa escolha teve como causa
um conjunto de fatores que serão discutidos mais adiante. Por ora, creio que
a condução do trabalho reafirmava a perspectiva de que as práticas
culturais se relacionam a um presente, e são um “fazer dentro da vida”, no
dizer de Ayala (1989).
Essa experiência deixou ainda mais clara para mim a importância
do contexto sociocultural na investigação que me propunha realizar e me fez
refletir sobre os elementos que compunham o cenário da pesquisa. Percebi
que é na pesquisa de campo que o pesquisador sente as dimensões do tempo
e sua importância no interior das práticas sociais. Para ele, é necessário,
antes de tudo, saber lidar e, principalmente, respeitar as diferenças, sejam
as diferenças temporais que separam o trabalho científico do trabalho das
comunidades22, sejam as diferenças que marcam os espaços sociais a que
pertencem os sujeitos, entre elas a linguagem.
Portelli (1997a) ajuda a pensar essa relação entre diferença e
igualdade, nos domínios da pesquisa de campo. Ao definir a pesquisa oral
como um experimento em igualdade, ele ressalta o valor da diferença. O
autor lembra que “somente a igualdade nos prepara para aceitar a diferença
em outros termos que hierarquia e subordinação” (PORTELLI, 1997a, p. 23).
É importante ressaltar que igualdade, para ele, é a condição em que ambos,
22
A respeito disso, ver o artigo de Ayala (2002), que discute as diferentes temporalidades que coexistem na cultura
popular.
colaborador e pesquisador, se reconhecem como sujeitos e tentam, partindo
cada um de sua própria vivência (por isso considerando suas diferenças)
construir um referencial comum que lhes permita trabalharem juntos. Ao
que parece, pode-se concluir que colaborador e pesquisador, ao viverem essa
experiência comum, têm nesse campo de trabalho um ambiente significativo,
porque lhes possibilita, ainda que temporariamente, erguer um espaço social
que pode ser compartilhado por sujeitos diferentes. Nesta pesquisa de
campo, isso se evidenciou de maneira interessante. Para discutir esse
aspecto, passo a descrever o encontro desses “dois mundos”, a partir das
entrevistas.
2.2. Pra começo de conversa... as entrevistas
Já mencionei a incerteza que senti diante do universo singular com
que iria deparar-me, quando iniciei a pesquisa. De certo, tinha apenas uma
pergunta a nortear meu caminho: quais as relações que se estabelecem entre
os versos que D. Maria José canta e a vida cotidiana dessa mulher? E foi a
partir dessa pergunta que decidi começar a investigação, traçando o roteiro
da entrevista baseada na busca de informações a partir de perguntas que
indicassem as práticas cotidianas que circundavam esses cantos.
À procura de resposta para minha questão, já tinha feito, nos anos
de 2000 e 2001, algumas visitas de aproximação, que me deram material
para que formulasse o esboço do meu projeto. Após assistir pela primeira vez
a uma apresentação de D. Militana, fui à sua casa com o propósito de
conhecê-la. Nesse momento, foram levantadas as primeiras reflexões, pois foi
aí que me dei conta, mesmo que de maneira intuitiva, das diferenças
existentes entre a mulher que havia conhecido nos espetáculos e aquela
senhora que me recebia em sua casa com grande cordialidade. A partir desse
momento, constatei a duplicidade de nomes e, conseqüentemente, o espaço
público e o privado, que já foram descritos anteriormente.
Iniciei as visitas à colaboradora desse trabalho em janeiro de 2003,
dessa vez começando formalmente a pesquisa. Esses encontros, que
compreenderam a primeira fase da coleta, estenderam-se até agosto de
2004. A segunda fase foi realizada no período de maio a julho de 2005 e
aconteceu por causa da perda do material coletado anteriormente, como já
foi por mim explicitado. Em ambas as fases, mantive uma relativa
periodicidade semanal.
Na minha primeira visita formal, voltei à casa de D. Maria José, no
Sítio Oiteiro, acompanhada de uma amiga que tem familiares em São
Gonçalo do Amarante. Fui visitar a colaboradora com o pretexto de comprar
o CD Cantares, que havia sido lançado no ano anterior. Naquela ocasião, D.
Maria José não me reconheceu. Apresentei-me, expliquei-lhe as intenções de
minha pesquisa e pedi-lhe permissão para gravar em áudio nossas
conversas. Ela consentiu, mas era nítida em seu comportamento uma
desconfiança de minhas intenções, apesar de eu ter procurado certificar-me,
várias vezes, de que ela compreendia o que eu tinha exposto sobre o
trabalho. Essa desconfiança refletia-se de forma mais evidente, nas
entrevistas, nos momentos de constantes recusas a assuntos relacionados
aos versos que ela cantava e pelos quais era conhecida. Sempre que o
assunto era sugerido, D. Maria José era taxativa em desconsiderá-lo. Por
várias vezes, foi indelicada, advertindo a mim e a minha acompanhante de
que não cantaria “de graça” ou repreendendo-nos por querermos “aprender
os versos”.
Todo esse comportamento foi logo por nós compreendido e tinha
uma razão de ser facilmente estabelecida, já que, na época em que passei a
visitá-la, D. Militana já era uma figura que gozava de muito prestígio. Sua
notoriedade fazia com que um número considerável de pessoas a visitasse
constantemente. Curiosos, estudantes, professores, pesquisadores e pessoas
que representavam instituições públicas e privadas freqüentavam a sua casa
para saber mais sobre “a maior representante da cultura popular do Rio
Grande do Norte”, apreciar seus cantos, convidá-la para participar de
espetáculos e apresentar-lhe propostas de trabalho.
A partir dos relatos de D. Maria José sobre o assunto, ficou
evidente que grande parte dessas pessoas não dispensava à artista um
tratamento respeitoso, como aquele que se deve a alguém a quem se visita.
Provavelmente movidas por uma concepção de cultura popular que
desconsidera o sujeito responsável pelas práticas populares, essas pessoas
invadiam sua casa, tiravam-lhe fotos e exigiam que cantasse determinado
romance, coco ou bendito, irritando-a, por muitas vezes. No entanto
nenhuma delas havia se proposto escutar o que ela tinha a dizer. Daí a
desconfiança que marcava as atitudes de D. Maria José e que talvez a
levasse a questionar intimamente o que eu queria dela e o porquê de minha
atitude ser diferente da das outras pessoas.
O que suponho ser o questionamento de D. Maria José abre um
espaço para se refletir sobre uma constatação acerca do trabalho com a
pesquisa de campo, que diz respeito aos papéis do observador e do
observado – os quais, à primeira vista, se caracterizariam como pesquisador
e colaborador. Pode-se dizer que essas relações são mais fluidas do que se
imagina, pondo em xeque as visões que recomendam a objetividade e a
imparcialidade no trabalho com os entrevistados. Como lembra Portelli
(1997b, p. 36),
Os entrevistados estão sempre, embora talvez discretamente,
estudando os entrevistadores que os “estudam”. Os
historiadores podem reconhecer esse fato e tirar dele
vantagens, em vez de experimentar eliminá-lo em razão de
uma neutralidade impossível (e talvez indesejável).
Pude constatar melhor esse fato nas entrevistas que realizei com D.
Maria José. Isso porque, por mais que a conversa evoluísse de maneira
natural, os próprios elementos que compõem o cenário de uma pesquisa
atestam que aquela não é uma conversação comum. O gravador é um
elemento do campo de pesquisa que, apesar de estar aparentemente
esquecido, funciona como símbolo de que aquele não é um encontro que faz
parte do cotidiano daqueles sujeitos, reafirmando as diferenças existentes
entre o pesquisador e o colaborador.
Assim, quando elegem esse espaço de diálogo que nega a
imparcialidade, tanto o pesquisador como o colaborador são afetados pela
experiência da pesquisa. Ambos são sujeitos que experimentam, nesse
campo, uma relação de troca. O pesquisador, portanto, deve ter por objetivo
construir uma relação baseada na igualdade, como já foi discutido. No
entanto é preciso lembrar que essa igualdade não pode ser forçada, uma vez
que está subordinada às condições sociais e, portanto, só é possível
construí-la tendo-se a clareza de que ela implica o reconhecimento e a
constatação
da
diversidade.
Só
assim,
a
comunicação
poderá
ser
estabelecida, conforme afirma Portelli (1997a, p.9):
Uma entrevista é uma troca entre dois sujeitos: literalmente
uma visão mútua. Uma parte não pode realmente ver a outra
a menos que a outra possa vê-lo ou vê-la em troca. Os dois
sujeitos, interatuando, não podem agir juntos a menos que
alguma espécie de mutualidade seja estabelecida. O
pesquisador de campo, entretanto, tem um objetivo amparado
em igualdade, como condição para uma comunicação menos
distorcida e um conjunto de informações menos tendenciosas.
Assim, nas entrevistas, pude observar que a colaboradora avaliava
meu comportamento e o de minha acompanhante por meio das fissuras que
percebi na nossa comunicação. Nos fragmentos de entrevista destacados
abaixo, é notório como ela expressa sua desconfiança, mesmo em momentos
nos quais a conversa flui de maneira natural.
Lílian – Tá! Quem é o Santo Antônio aqui, desses que a senhora tem? Aquele que a
senhora cantou da vez passada é o bendito de Santo Antonio, não é isso?
D. MARIA JOSÉ – É.
Lílian – É esse?
D. MARIA JOSÉ – É.
Lílian – Como é a história dele, Dona Maria? A senhora sabe?
D. MARIA JOSÉ – Só pra eu dizer de novo!
Lílian – E o que é que tem? Eu quero saber da história do santo.
D. MARIA JOSÉ – Agora as meninas trouxeram. Benidita foi pra Juazeiro e
trouxeram um pra mim. Aí chegou: “taí mamãe, eu trouxe pra senhora.” Eu digo:
eu sinto muito, mas esse aqui não é São Benedito, não. É Santo Antonio.
Lílian – Ah é?! São Benedito é que é preto, não é?
(Transcrição 2 - 10/04/2003)
......................................................................................................................
Lílian – A senhora me disse uma vez que tinha uma tia que lia.
D.MARIA JOSÉ – Era tia Petronila, a mais velha irmã de papai; era só quem sabia
ler. Ela lia toda qualidade de folheto. Um dia, mandaram me chamar em Natal, só
pra mode eu cantar o verso de Antonino, óia? Perguntaram: A senhora sabe o
verso de Antonino? Eu digo: vocês sabem ler? Então pega um folheto, pra ler no
folheto. E eu que venha cantar verso pra vocês?
Lílian – Mas no folheto não tem o canto.
D.MARIA JOSÉ – Tem assim a pessoa queira.
Lílian – E é? Como assim?
D.MARIA JOSÉ – Porque é, tem que cantar no folheto, também. Onde é que os
cantor aprende? Num é nos folheto, não?!
Lílian – Mas, como vai saber o ritmo, a melodia?
D.MARIA JOSÉ – Eles botam.
Lílian – Como?
D.MARIA JOSÉ – Eles botam o ritmo.
Lílian – Então, é a senhora que bota nos seus?
D.MARIA JOSÉ – Óia, o que eu ia dizendo.
Lílian – Ia dizendo o quê?
D.MARIA JOSÉ – Você não disse que eu era quem botava ritmo nos meus?
Lílian – Eu estou perguntando; não estou afirmando, não.
D.MARIA JOSÉ – O verso mais comprido, que tem de aprender, é o de Marina e
eu canto ele todinho.
Lílian – É bonito. Por que é difícil de aprender?
D.MARIA JOSÉ – O verso de Marina? Porque Marina era. Ela foi muito safada,
era criminosa de não sei quantas mortes.
Lílian – Marina era criminosa? Por quê?
D.MARIA JOSÉ – Era, porque era. (SILÊNCIO)
Lílian – Qual a história do verso de Marina?
D.MARIA JOSÉ – Hum?!
Lílian – Conta a história de quê?
D.MARIA JOSÉ – Vexada pro mode aprender, né?
Lílian – Eu só tô perguntando a história do verso de Marina. E por que eu não
posso aprender?
D.MARIA JOSÉ – Porque eu estou com dor de cabeça, aí não quero cantar não.
Lílian – Não, mas não cante, eu quero só que a senhora conte a história, fala de
quê?
D.MARIA JOSÉ – Tem o verso de Marina, tem o verso, de... como é meu Deus?
Eu sei lá mais! ... O verso cantando eu ainda me alembro. Que Marina era filha de
um barão ou era de um rei, agora o rei não queria que ela casasse com Alonso.
Marina era uma princesa muito rica e educada, porém amava Alonso, que não
possuía [...]
(Transcrição 7 - 12/05/2005)
As entrevistas mostram que, mesmo em momentos diferentes da
pesquisa, a desconfiança, ainda que sutil, é uma atitude que se repete. No
primeiro trecho, que compreende a primeira etapa das entrevistas, D. Maria
José se revela reticente quando identifica que a pergunta está ligada ao tema
evitado por ela: os cantos. Mesmo que eu não pedisse para que ela cantasse,
a desconfiança sobre por que eu levantava o tema revela-se no comentário
feito por ela: “só pra eu dizer de novo!”. No entanto, quando questionada
sobre qual seria o problema de contar a história para mim, a saída que
apresenta é voltar para o tópico principal da conversa: as imagens dos
santos.
No último trecho, que corresponde à segunda fase da pesquisa, vêse um comportamento semelhante, mas que apresenta uma nuance
diferente. Nesse momento da entrevista, a conversa fluía com muita
naturalidade, mas, a certa altura, D. Maria José parece ter percebido que, a
partir de uma pergunta feita por mim, havia feito uma revelação
comprometedora a respeito da maneira como imprime o ritmo aos seus
cantos. Ao ser confrontada, retoma a situação apresentando o verso de
Marina, mas recusando-se a cantá-lo. Após dar algumas desculpas, deixa
transparecer o real motivo de sua negação: a mesma desconfiança de que
minha real intenção fosse aprender os cantos.
É interessante interpretar a reação de D. Maria José à luz da
distinção entre o espaço público e o privado, que já foi discutida
anteriormente neste trabalho. D. Maria José, no contato com o público e
com os desconhecidos que a visitavam, tinha aprendido que seus cantos
continham um determinado valor para essas pessoas e que essa troca era
mediada pelo dinheiro. Portanto aprender os cantos significava tirar dela
aquilo que era seu saber e pelo qual ela era conhecida e valorizada. No
entanto era minha convicção que aquela prática cultural tinha um valor
diferente daquele que havia se estabelecido nesse outro espaço, na
comunidade e na vida dessa senhora.
Ciente disso, minha reação às atitudes negativas da colaboradora
foi a de manter-me firme no propósito que tinha de continuar o nosso
diálogo sem estabelecermos, necessariamente, uma relação de troca, pelo
menos nos termos de valor aos quais ela estava habituada. Esse
posicionamento surtiu efeitos positivos, uma vez que, no próprio exemplo
citado, após o trecho em que se recusa a cantar, D. Maria José não só recita
e canta os versos como oferece um dos momentos mais belos dos nossos
encontros, relacionando o Romance de Marina às histórias da sua vida e
revelando para nós o real e absoluto valor daquele canto, permeado de
afetividade e de ensinamentos (como acontece com toda expressão da
literatura oral popular) para essa mulher e para sua comunidade.
Atentei, no entanto, para o cuidado na forma de indicar a posição que
eu havia adotado. Aos poucos e de maneira delicada, fui assegurando para
D. Maria José (ou talvez ela tenha afirmado isso para mim) que eu estava ali
para ouvir e tudo que iria ser dito seria conduzido pela sua escolha,
mediada, apenas, pela ação de sua memória. Essa postura foi responsável
pelo desenho que a pesquisa foi assumindo.
Algum tempo decorreu até que se pudesse estabelecer uma relação
de amizade que foi se firmando gradativamente e, junto a ela, foi nascendo
uma relação de confiança que foi se consolidando aos poucos, confiança
essa, como nos alerta Queiroz (1991, p. 76), tão necessária para a realização
da técnica da história de vida. A autora afirma:
A segunda exigência para o bom rendimento da técnica de
história de vida e depoimentos gravados diz respeito às
relações que se estabelecem entre o informante e o
pesquisador. Que não exista entre ambos, determinado grau
de confiança, e as respostas irão se limitando somente ao que
o entrevistado considera suficiente, não permitindo que o
pesquisador penetre muito a fundo em sua vivência. Um
relacionamento impregnado de simpatia e amizade constitui
condição importante para uma boa colheita de dados.
Porém acredito que outro fator teve influência para consolidar essa
confiança. Como não me era familiar o universo de São Gonçalo do
Amarante, cidade em que reside D. Maria José e que tem um histórico de
personagens e grupos de cultura popular, convidei Diva Sueli, a amiga,
pesquisadora da área de Educação, a quem me referi anteriormente, que
nasceu e se criou entre as brincadeiras de pastoril, os grupos de fandango,
os contadores de histórias e todo o universo de mitos, lendas e histórias que
constitui a cidade de São Gonçalo. A escolha da amiga, que me
acompanharia nas entrevistas, tinha o propósito de auxiliar-me nos
primeiros encontros, até que eu pudesse me familiarizar com aquele mundo
tão distinto do meu. No entanto a presença de Diva, que, de início,
destinava-se a me “ciceronear” no universo que circunda as pessoas de São
Gonçalo, tornou-se imprescindível no decorrer da pesquisa, uma vez que,
todas as vezes em que eu ia sozinha à casa de D. Maria José, ela me
perguntava: “E cadê a ‘outra’?”, voltando sempre a esse tópico durante a
conversa.
Entendi, portanto, que esse era um elemento importante a ser
refletido por esta pesquisa, pois pude constatar que a rápida relação de
amizade e de proximidade que fui desenvolvendo com a colaboradora tinha
uma correlação com o fato de essa relação ser intermediada por alguém que
vivera a infância na zona rural de São Gonçalo, sujeita a todas as
dificuldades e usufruindo das belezas que aquele mundo representava. Diva
compartilhava com D. Maria José esse universo e, mesmo que não fizesse
mais parte dele, havia um referencial comum, ao qual poderiam reportar-se.
Pode-se aproximar esse fato da experiência descrita por Portelli
(1997a) realizada com a classe operária de Terni. O fato de ter crescido na
cidade mudou o relacionamento do pesquisador com os entrevistados, que
não aceitavam com bons olhos a relação com intelectuais. No entanto o
oscilar entre a semelhança e a dissemelhança não garantia uma confiança
absoluta: “descobrir que havíamos nos encontrado, meninos, em um campo
de futebol, algumas vezes, produzia uma troca mais espontânea. Outras
vezes, o fato de ser um nativo somente sublinhava a diferença de classe”
(1997a, p. 19)
O hesitar entre a identificação e o estranhamento também pode ser
observado no comportamento da colaboradora da pesquisa. Em sua fala, D.
Maria José, muitas vezes, dirige-se a Diva para que confirme referências a
lugares, pessoas e acontecimentos da cidade, o que indica um alto grau de
familiaridade; mas, em outros momentos, desconfia das intenções da
interlocutora, principalmente quando esta faz referência aos versos que D.
Maria José canta. Nestas ocasiões, ela não faz, entre mim e Diva, nenhuma
distinção.
Mesmo alternando essa relação de confiança, acredito que o fato de
D. Maria José estar com alguém do mundo em que vive, partilhando
referências temporais e afetivas, alguém que também se dispunha a ouvi-la,
despertava-lhe a “desconfiança” de que aquelas pessoas, apesar de
desconhecidas, desejavam estabelecer com ela uma relação de proximidade
que se diferenciava daquela que havia experimentado com os outros
estranhos que tinha conhecido. Entendo que a presença de Diva no trabalho
de campo (pelo menos para estabelecer e firmar a relação com a
colaboradora) foi suficiente para me credenciar como indivíduo, se não
pertencente, pelo menos agregado ao universo de D. Maria José; portanto
apto a conhecê-lo.
É certo que todos esses elementos analisados foram constituindose e desfazendo-se nas diversas “idas e voltas” vividas durante o processo de
pesquisa de campo. No entanto, para o êxito desse processo existiam
barreiras iniciais que necessitavam ser desfeitas. Lentamente, por sobre elas
consegui estabelecer laços que me permitiram fiar o discurso no qual se
entremearam as vozes diversas que compõem o corpus da pesquisa. Agora, o
outro desafio que neste momento se apresentava era a passagem do universo
sonoro das entrevistas − tão vivo, cheio de cores e sensações − para o mundo
branco e preto da escrita. Esse processo, convido agora o leitor a conhecer.
2.3. A voz no papel: a transcrição
Depois da fase do trabalho de campo, outra etapa da pesquisa
começou a desenvolver-se: a transcrição. Ela compreende o ato de reproduzir
a entrevista oral num texto escrito, comportando todas as nuances que
permitam ao leitor do texto reportar-se ao momento em que a entrevista foi
realizada. Para grande parte dos pesquisadores, essa é uma tarefa complexa
e delicada, uma vez que é a responsável pela expressão do resultado do
esforço realizado no campo, constituindo o corpus da pesquisa.
A
grande
dificuldade
apontada
para
a
realização
desse
procedimento vai além do debate técnico, pondo em discussão questões
importantes para as pesquisas que trabalham com o relato oral. Segundo
Queiroz (1991), desde o aparecimento da história oral como técnica de
pesquisa, entre as discussões que se estabeleceram estava o debate sobre os
avanços tecnológicos que possibilitaram ao pesquisador novos meios para
captar o real. O gravador, ou qualquer recurso que se assemelhasse a ele,
era apontado como instrumento capaz de anular o possível desvio trazido
pela intermediação do pesquisador. Ele permitia apreender o momento da
narrativa, conservando as peculiaridades do instante de sua enunciação, as
pausas, os silêncios, as entonações e as rupturas. Porém logo se percebeu a
impossibilidade de uso, pois o material gravado, apesar de existir como um
arquivo a ser consultado, era de manuseio complicado, o que facilitava a
preferência pela apresentação da pesquisa na forma escrita. Dessa forma, o
potencial de uso do gravador foi reduzido a fornecer ao pesquisador um
registro próximo ao real, capaz de ser manuseado em diferentes momentos,
permitindo uma análise mais apurada do material coletado.
Assim, devolve-se ao pesquisador a responsabilidade de ser fiel ao
que lhe é narrado, pois o relato oral necessitará de sua intermediação para
realizar a correspondência entre os códigos oral e escrito da língua tentando
abranger a cena enunciativa que o uso deles pode ter. É nesse instante que
começam as dificuldades.
Entre os estudiosos da história oral, não existe uma postura única
para a realização do procedimento da transcrição. Isso se explica, em parte,
pelas variadas leituras do inventário de diferenças que separam o código oral
do escrito. Paul Thompson (1998) definiu a visão mais comum, da
transcrição integral, afirmando que ela deve, preferencialmente, incluir tudo
que está gravado, excetuando-se alguns tipos de digressões e o gaguejar à
procura de palavras. Para ele, deve-se, entre outras recomendações,
conservar a gramática e a ordem das palavras como foram faladas,
indicando-se no texto quando não se conseguir compreender uma palavra ou
uma frase.
No entanto, se, para Thompson (1998), a transcrição pode
perfeitamente encerrar-se em tal estágio, Bom Meihy (1991, 2000) defende a
necessidade de uma longa e elaborada edição, que compreende duas outras
etapas − a textualização e a transcriação − cada uma comportando um
conjunto de práticas, inclusive literárias. Para o autor,
Trabalhar uma entrevista equivale a tirar os andaimes de uma
construção quando ela fica pronta. Com isso, a primeira
tradição quebrada é a do mito de que a transcrição de palavra
por palavra corresponderia à realidade da narrativa. Porque
uma gravação não abriga lágrimas, pausas significativas,
gestos, o contexto do ambiente, é impossível pensar que a
mera transcrição traduza tudo o que se passou na situação do
encontro.
A experiência desta pesquisa apresentou-me essa dimensão. Nesse
tipo de trabalho, não é rara a possibilidade de o pesquisador deparar com
situações impossíveis de serem transcritas para a linguagem acadêmica.
Portanto o trabalho árduo de grafar a fala do outro pressupõe escolhas que
devem ser guiadas por parâmetros definidos a partir do contato que o
pesquisador travou com o universo pesquisado, buscando transpor para a
linguagem escrita a gama de sensações, gestos, cheiros, cores, humores,
afetos e movimentos que circundam o espaço no qual aconteceu o colóquio e
que, portanto, são muito significativos para a interpretação daquilo que é
efetivamente dito e que não pode ser somente expresso pela linguagem
verbal. Nesse sentido, pode-se destacar a importância do olhar atento do
pesquisador para essas situações, no momento da coleta e também no
momento posterior, de escuta das gravações, procurando compreender se
elas são elementos importantes para a análise dos dados.
Na técnica por mim adotada, imediatamente após os encontros eu
ouvia os registros orais coletados e apenas transpunha para a escrita a fala
dos participantes da conversa tal qual constava no registro das fitas cassete.
Paralelo a isso, também após as visitas, eu construía numa caderneta o
registro
escrito
daquilo
que
não
podia
ser
captado
pelo
gravador,
organizando um diário de campo. No entanto esse procedimento era apenas
o passo inicial do processo da transcrição23, pois a edição do texto, fase que
visa textualizar o relato oral, de modo a permitir que seja possível recriar,
dentro do código da escrita, a atmosfera da entrevista, comporta a criação de
um sistema de codificação próprio que identifique os elementos nãolingüísticos, tornando-os legíveis e permitindo o entendimento do significado
do discurso.
Ao transpor o registro oral para a forma escrita, a primeira
dificuldade que enfrentei foi a adaptação ao ritmo da fala de minha
interlocutora. As diferenças culturais que nos separavam tornavam, por
vezes, enigmáticas certas expressões e entonações próprias da variante
lingüística de D. Maria José. No entanto o contato e a relação de intimidade
que fui desenvolvendo com minha colaboradora me possibilitaram perceber
que, além de repetição de palavras, frases inacabadas, períodos confusos,
omissão de termos, característicos da língua oral, na fala de D. Maria José
23
Vale ressaltar que nem todas as conversas foram registradas, assim como nem todas as transcrições realizadas
constam no corpus do trabalho, no capítulo 3, pelas razões já explicitadas anteriormente.
existiam peculiaridades impressas na sua “maneira de dizer” as coisas, que
revelavam uma marca própria.
A voz de D. Maria José foi se revelando para mim contaminada por
uma musicalidade própria da literatura que parecia transbordar dos versos
que ela canta para sua forma de falar cotidiana. Por muitas vezes, ao tratar
de um assunto, ela terminava com um canto, como se esse fosse o caminho
natural de sua fala. Em outros momentos, nos quais se reportava a
situações da sua vida de sofrimentos, modificava repentinamente o tom da
conversa, fechando o assunto com um comentário ou um canto de natureza
jocosa. As longas pausas e os efeitos provocados no discurso pelas repetições
e pelas “fórmulas” utilizadas foram, aos poucos, ganhando lógica e
construindo um sentido mais amplo. Porém, para eu entender esse
movimento e dar-lhe, posteriormente, uma forma gráfica, foi-me necessário,
como indica Ana Cristina Marinho Lúcio (2001), aprender a fala desse outro,
acostumar-me com sua voz, aprender a lidar com as diferenças que separam
a linguagem científica da cotidiana, esta última marcada por uma série de
códigos nem sempre expressos nas palavras. Identificar essas diferenças
ajudou-me a me posicionar como um interlocutor que conseguia perceber os
diferentes tempos e espaços que constituem a forma de expressão de minha
interlocutora e transitar entre eles.
Embora a fala de D. Maria José seja o elemento central deste
trabalho, não pensei em retirar a minha fala e a de minha acompanhante do
texto, conservando-lhes a coloquialidade e as expressões próprias do código
oral, como, por exemplo, os marcadores interacionais. Como acredito que o
corpus construído é o produto do relacionamento mútuo entre pesquisador e
colaborador, também a fala de D. Maria José não foi alterada, conservando a
sua variedade lingüística. Esse procedimento teve o propósito de marcar a
identidade social de D. Maria José, na intenção de valorizá-la, atentando
para expressões e modos de pronúncia que personificam o discurso
narrativo. No entanto tomei o cuidado de não fazer dela um estereótipo,
lembrando, a partir das observações de Lúcio (2001), que o exagero nesse
recurso pode revelar a intenção de marcar as diferenças sociais, além de
transformar a narrativa num texto difícil de ser lido.
Achei por bem conservar as hesitações, repetições, pausas e
marcar os longos silêncios que se instauravam no discurso de minha
interlocutora,
por
acreditar
que
eles
continham
elementos
muito
significativos para a compreensão da narrativa. Esse recurso me deu, por
exemplo, a oportunidade de visualizar, nos textos, os grandes espaços que
revelam as recusas de D. Maria José de falar sobre os cantos. Nesses
momentos, uma grande sucessão de marcadores interacionais dá lugar às
respostas, evidenciando claramente que ela não quer falar.
Também optei por conservar a fala e registrar a presença dos que
freqüentaram o ambiente onde aconteceram as entrevistas. Suas vozes eram
complementos que ajudavam a perceber as relações que se construíam entre
D. Maria José e seus familiares e amigos. Quanto à apresentação gráfica do
texto,
achei
por
bem
acrescentar
informações
que
indicam
gestos,
expressões, movimentos, comportamentos e contextos situacionais que
ajudam a apresentar a cena na qual a conversa se passa. Esse recurso, no
entanto, foi utilizado de modo a complementar o texto, uma vez que, como
bem lembrou Lúcio (2001, p. 30), “a ênfase deve estar nas palavras, nas
pausas, nos recursos sonoros. Caso seja necessária uma descrição dos
gestos que ela aconteça no contexto narrativo”.
Com essas soluções, estava finalizado o formato de apresentação
da entrevista. Procurei sintetizá-lo na chave de transcrição apresentada no
final deste capítulo. O problema agora era: como reunir, em um bloco de
textos que tivesse uma unidade de significado, as diversas entrevistas, que
marcavam momentos diferentes do trabalho? Como transformá-las num
texto que fosse a expressão, na forma escrita, da “voz” da personagem desta
pesquisa?
A intenção primeira que eu tinha para a apresentação do corpo de
entrevistas era acompanhar a seqüência temporal dos encontros, para
permitir ao leitor perceber a gradativa modificação de meu comportamento e
do de minha interlocutora durante o processo de pesquisa. No entanto a
perda do material impossibilitou a realização desse intento, pois, dos relatos
orais colhidos na primeira fase, grande parte foi inutilizada, e o que pôde ser
recuperado não apresentava a significativa mudança à qual me referi, já que
era de datas muito próximas entre si. Descartada a possibilidade de
construir uma seqüência cronológica, pensei em organizar o material pelo
conteúdo temático das histórias. Porém essa solução apresentava o
inconveniente de cortar as falas e as seqüências, e acabei concluindo que
esse formato desestruturaria o texto, alterando o caminho construído pela
memória de D. Maria José no trabalho de erguer a trama narrativa que
revelava sua vida.
O processo de ouvir diversas vezes os relatos foi muito importante
para que eu encontrasse a solução. Observei, ao colher os novos relatos, que
as histórias contadas eram as mesmas já relatadas anteriormente e com
tanta proximidade que, por vezes, D. Maria José se reportava, em fala, a
acontecimentos e fatos que tinham um referencial no que tinha sido dito
meses antes daquele encontro. Percebi então que a tão insistente reiteração
dos mesmos fatos compreendia um recorte próprio de um repertório eleito
com um fim determinado. Para caracterizar a importância dessas repetições,
optei por organizar as entrevistas em dois blocos, que separam os primeiros
e os novos encontros, distinguindo as duas fases. Em cada um deles, a
entrevista é identificada pela data e, em seguida, como o momento da
gravação nem sempre corresponde ao momento em que eu e minha
acompanhante chegamos à casa da colaboradora, acrescentei uma espécie
de descrição da ocasião que antecede a gravação, com o propósito de situar o
leitor no contexto em que a narrativa acontece.
Por fim, o que pretendi fazer, nesse processo de transcrição, foi
construir para o leitor um texto que desse destaque àquilo que é o essencial
deste trabalho: a voz de D. Maria José. Permitir que se “ouça” essa mulher é
comprometer-se com aqueles que pertencem ao universo da oralidade,
tentando aproximar-se, o quanto possível, do seu mundo. Esse é o percurso
que fiz para atingir o propósito descrito. É chegada a hora de conhecer D.
Maria José, ouvir o que ela tem a dizer. Agucemos nossos sentidos, pois
começaremos pelo silêncio.
CONVENÇÕES UTILIZADAS PARA A TRANSCRIÇÃO:
((anotações entre parênteses duplos)) Anotações da entrevistadora que indicam
gestos, comportamentos, referências e
contextos situacionais para uma melhor
compreensão do diálogo.
...
Pausas breves
... ...
Cortes na seqüência da narrativa
[?]
Trechos incompreensíveis
puderam ser transcritos.
(SILÊNCIO)
que
não
Grandes pausas, que indicam reflexão e
momentos de hesitação.
Texto em itálico
Marcações para, declamações e rezas.
/...
Indicadores de corte na narrativa
♫ e texto em itálico
Marcações dos momentos em que D.
Maria José canta.
Algumas informações necessárias:
1. As falas de outras pessoas no discurso de D. Maria José são representadas
entre aspas, mesmo quando antecedidas de verbo de elocução. Esse recurso foi
utilizado para diferenciar essas falas da fala de nossa colaboradora em situações
de discurso reportado.
2. Na narrativa, foram mantidas as seqüências conforme a variedade lingüística
que D. Maria José usa.
3. As marcas regionais foram conservadas por acreditarmos que personificam o
discurso narrativo.
4. O uso de pontos de interrogação e de exclamação juntos identifica trechos no
qual a pergunta é enfática ou retórica.
III
MARIA JOSÉ: A VOZ EM CANTO
Conto para mim, conto para o senhor.
Ao quando bem não me entender, me espere.
Grande sertão: veredas
João Guimarães Rosa
3.1. Ouvindo os silêncios: a escolha do repertório
Ao escolher “ouvir” o que diz um relato oral, deve-se considerar os
múltiplos discursos presentes nas vozes que nele aparecem. Os enfoques
dados a este ou aquele aspecto do discurso hão sempre de recair sobre a voz
que fala, a que cala, a que nega, a que repete. Elas desempenham, cada uma
a seu modo, um papel importante na montagem do grande tecido narrativo
que revela o que os sujeitos envolvidos dizem de si, e do tema em debate.
Queiroz (1991) chama de discurso do “indizível” o que guarda
consigo aquilo que as palavras não conseguem captar e que, por isso, só
pode ser ouvido por um outro tipo de escuta, que considera os códigos
contidos nas pausas, nos gestos, nos olhares, e até mesmo no silêncio. É
sobre esse último que pretendo refletir neste espaço, pois, no relato da vida
de D. Maria José, a voz que cala constrói em seu silêncio uma gama de
significados que revelam as particularidades desse sujeito, apresentando,
nesse vazio de som, um aviso silencioso que me possibilitou encontrar a
direção para conseguir ouvir, além dos sons e das palavras, o que essa voz
quer apresentar de si.
Pode-se
dizer
que
desdobrar
a
questão
da
relação
entre
pesquisador e colaborador foi decisivo para eu encontrar o caminho deste
estudo, uma vez que pensar os papéis desempenhados pelos participantes
dessa experiência me levaria a refletir sobre as imagens que se formam entre
esses sujeitos que interagem na situação específica da pesquisa. Para o
entrevistado, o pesquisador é o estranho ser que vem de longe
24,
que possui
outros costumes e outra cultura e que está na posição de quem pergunta,
daquele que quer saber, e o seu ar inquisidor aparece até mesmo quando se
cala.
Já foi esclarecido aqui que a imagem que D. Maria José construiu
de mim e de minha acompanhante, no momento inicial da pesquisa, tinha,
provavelmente, como referência os outros desconhecidos que a visitavam,
além da imagem pública dela mesma, em plena divulgação local e nacional.
Por não ser uma pessoa anônima, ela tinha claro para si o que motivava as
pessoas a procurarem-na. No espaço público, mostrava-se engraçada e
comunicativa, mantendo a postura conforme o papel que lhe fora destinado.
Em casa, apesar de receber as pessoas e encantá-las com o seu repertório,
mantinha-se reservada, desconfiando sempre das intenções dos estranhos.
Isso porque os cantos que canta em seu espetáculo e mesmo aqueles com os
quais encanta os visitantes que a procuram são elaborações a partir de
condições
diferentes,
que
correspondem
a
uma
imagem
pública
já
construída e divulgada. Assim, no momento em que D. Maria José está com
o público, um conjunto de estratégias entram em cena, na sua postura, para
conservar e perpetuar a imagem de D. Militana. Ao se transformarem em
produtos, seus cantos merecem um tratamento comercial e é nessa base de
troca que lhe foi apresentada que ela estabelece a relação com os estranhos.
Lembrarei a seguir um momento da pesquisa que reforça essa postura.
Como já foi comentado no capítulo anterior, minha primeira visita
à casa de D. Maria José teve a motivação de comprar o seu CD. Nossa
conversa teve início a partir dos cantos por ela gravados. Ao perguntar-lhe
sobre O romance do lavrador, ela respondeu de forma desconfiada: “Você
quer que eu cante? Então pague. Quem canta de graça é galo!” Na ocasião,
24
Essa discussão tem referência nos trabalhos de Martins (1993b) e Lúcio (2001).
lhe respondi que o pagamento já havia sido feito, uma vez que tinha
comprado o seu CD. Em seguida, comecei a cantarolar o romance assim:
♫ tava um pobre lavradOr
de suor afadigAdo
Chegô casaca de couro ÊÊÊ...
Pois-se na cerca assentAdo. ♫
D. Maria José sorriu, e mudou de assunto. Muito tempo depois, ao
fim da visita, mais acostumada com a minha presença e a da amiga que me
acompanhava, ofereceu-nos um café. Chamou-me, então, para ir à cozinha e,
reservadamente, disse-me que minha forma de cantar estava errada, porque
“você não sabe dá o tom certo”. Ela se referia a um erro na cadência rítmica
das palavras finais, que eu havia cometido ao cantar. Nesse momento, para
mostrar a forma correta, cantou o “verso” todo, demonstrando que tem,
mesmo que intuitivamente, consciência dos elementos musicais que
compõem o seu canto:
♫ tava um pobre lavradOoor
de suor afadigAado
Chegô casaca de couro ÊÊÊê...
Pois-se na cerca assentAaado. ♫
Posso dizer que nesse dia presenciei dois momentos de D. Maria
José: o primeiro, aquele que faz parte da uma estratégia que a artista utiliza
para lidar com a imagem construída, intermediada pelo valor de troca
estabelecido, e o segundo, no qual ela revela seu canto como um presente,
uma maneira de demonstrar que gostou de mim, (suponho que porque não
insisti para que ela cantasse). No entanto, como eu ainda era desconhecida,
essa tímida demonstração de simpatia foi feita de maneira sutil e precisou
estar longe dos olhos dos outros para se revelar.
A cena descrita acima revela a imagem que a colaboradora da
pesquisa havia construído sobre mim. No entanto é preciso que eu volte à
problemática
das
relações
que
se
desenrolam
entre
colaborador
e
pesquisador, olhando pelo sentido oposto, o do pesquisador, pois esse
ângulo é fundamental para eu continuar essa reflexão. Focalizar a questão
implica uma auto-reflexão, de mim, enquanto pesquisadora, que se inicia
com as perguntas: Qual a imagem que eu tinha de D. Maria José no
momento em que fui visitá-la com minha acompanhante? O que ela tinha a
dizer correspondia àquilo que, em meu papel de pesquisadora, eu queria
exatamente ouvir? Para responder a essas perguntas, preciso refletir sobre o
percurso que me levou a procurá-la.
Já comentei que, no início da pesquisa, ao programar as
entrevistas, eu tinha memorizado um roteiro organizado a partir de questões
que envolviam os cantos e a vida de D. Maria José. O esboço continha
perguntas sobre sua vida familiar, as situações em que cantava, a relação
das brincadeiras e dos cantos que as acompanhavam, o trabalho, entre
outras questões. No entanto minha interlocutora impôs um desvio no
caminho que eu tinha previamente traçado. Quando era questionada quanto
à relação que estabelece com os versos que canta, ela respondia com
silêncios que se instauravam de forma mais contundente no discurso ou se
esquivava de responder e oferecia a narrativa do seu dia-a-dia. Incomodoume aquela situação, pois supunha que o que poderia estar oculto nas
entrelinhas do discurso forneceria a chave para poder “ouvir” o que ela
queria dizer. Decifrar esse código passou a ser uma inquietação. Apoiei-me,
então, no que afirma Martins:
No campo, o pesquisador se defronta com uma linguagem de
silêncio. Com o tempo, aprende a conviver com essa
população e descobre o que significa o seu silêncio. É uma
forma de linguagem e um meio de luta. É preciso uma
paciência enorme para ouvir esse silêncio. É ele que fala mais
do que outra coisa. Às vezes, numa situação de entrevista, o
entrevistado é capaz de ficar longo tempo calado. As poucas
palavras, intercaladas por pausas e acompanhadas por
muitos gestos, colocam o pesquisador diante da ampla
riqueza dessa fala dupla, que oculta e revela e, com isso, situa
quem fala e, também, quem ouve. (1993b, p.33)
Assim, tive certeza de que, se quisesse conhecer a história de D.
Maria José pela dimensão de sua própria voz, teria que me comportar com
ela como ninguém havia feito antes: teria que garantir-lhe uma escuta para
aquilo que ela desejava dizer de si. A metodologia adotada permitia essa
abertura, uma vez que ela tem na voz dos indivíduos que nunca foram
ouvidos a sua área de atuação. Os silêncios, as recusas e a insistência de D.
Maria José levaram-me à percepção de que, quando formulava as questões
que seriam referência para a entrevista, pensava nas relações dos cantos
com o cotidiano. Esse enfoque, apesar de buscar a relação com a vida de
minha interlocutora, tinha como ponto principal os cantos. D. Maria José
me fez “ouvir” em suas palavras e, principalmente, em seus silêncios o que
enfatiza Xidieh (1993): que na cultura popular há um momento social para
que as práticas culturais aconteçam, um momento em que elas se justificam
e funcionam:
As narrações registradas segundo a velha receita podem ser
as narrações mesmas, porém todas as coisas que as solicitam
e que nelas se entrosam de maneira a equacionar toda uma
situação não se registram não (XIDIEH, 1993, p.24).
Dessa forma também acontece com os cantos de D. Maria José.
Diferentemente do que eu pensava, para perceber as relações entre os cantos
e sua vida era preciso lançar um olhar para o seu cotidiano. Minha
colaboradora parecia indicar que era preciso contar o dia-a-dia, pois é nele
que essa relação é construída e consolidada. Como estávamos em “mundos”
e “tempos” que separavam culturas diferentes, foi D. Maria José a
responsável por indicar a melhor maneira de conhecer sua cultura. Por isso
ofereceu como narração as histórias próprias do cotidiano − da imagem de
mulher forte, que, mesmo na condição subalterna (pobre, negra e mulher),
consegue impor-se no setor hegemônico, marcado pelo discurso masculino e
das elites dominantes. Desse modo, apesar da insistência minha e de minha
acompanhante em perguntar sobre os cantos, D. Maria José conduz a
conversa para a rede de operações na qual estão envolvidas as práticas
culturais que eu queria ouvir e descobrir. O real sentido delas só pode
aparecer nas práticas cotidianas que as ambientaram e constituíram, pois,
como esclarece García Canclini (1983, p.43),
A especificidade das culturas populares [...] deriva também do
fato de que o povo produz no trabalho e na vida formas
específicas de representação, reprodução e reelaboração
simbólica das suas relações sociais.
D. Maria José sabe disso. Os cantos, na sua função original,
estabelecem relações fortes com as condições materiais de vida da artista.
Essas
condições
desenham
para
ela
um
cotidiano
de
privações
e
necessidade. Falar desses cantos, para Maria José, é falar dessas relações.
Impossível apresentar seus cantos sem construir a imagem da vida que lhes
deu sentido. Assim, percebi que contextualizar qualquer manifestação
cultural é dizer o “onde”, o “porquê” e o “quando” de sua presença. Identificála na vida de alguém é percebê-la no entremeio da linguagem como uma
experiência comum do trabalho e da família.
Ciente disso, compreendi que, à medida que me distanciava dos
aspectos externos à cultura popular, abria-se a possibilidade de posicionarme diante do sujeito pesquisado. Foi D. Maria José quem me mostrou que se
podia voltar a atenção para suas outras atividades, e que sua vida era quase
uma síntese do universo popular. Sua atividade de benzedeira, o papel
importante que desempenha na comunidade, sua função de cuidar dos
moribundos e de encomendar os mortos são faces dessa mulher tão
conhecida só partilhadas pela sua comunidade. Em vez dos cantos, que eram
contaminados com uma representação simbólica do dinheiro, nossa relação
possibilitou a D. Maria José oferecer outras histórias, outros cantos, muito
mais: a narrativa da sua vida era uma dádiva.
Apresento a narrativa resultante dessa experiência compartilhada,
no próximo item, através das transcrições completas das entrevistas, o que
constitui o corpus da pesquisa. Uma vez que se trata da história de vida
dessa mulher, optei por apresentá-las evidenciando D. Maria José como
sujeito, conservando os questionamentos das interlocutoras e as eventuais
opiniões de familiares e pessoas da comunidade que estavam presentes na
hora das entrevistas. O objetivo é trazer o leitor para perto da conversa para
que possa, de algum modo, participar das entrevistas e compartilhar esses
momentos de reflexão de D. Maria José sobre o que constitui seu mundo,
sua vida. A seguir, a construção da imagem que D. Maria José quer
apresentar será feita pela dimensão de sua própria voz.
3.2. Eu que narro, quem sou?
3.2.1. Os Primeiros Encontros
O bloco de entrevistas que compõe esta parte das transcrições é parte
das gravações realizadas entre janeiro de 2003 e agosto de 2004 recuperadas
entre o material da pesquisa que foi danificado. Consegui recuperar a quase
totalidade de três gravações realizadas nos dias 03 e 10 de março e 15 de
julho de 2003. Nesse momento, D. Maria José morava no Sítio Oiteiro e
estava no auge da divulgação pública de seu nome.
Nos primeiros encontros que tive com a artista, expliquei o porquê do
meu interesse em ouvir sua história de vida, o que foi recebido por D. Maria
José com um misto de alegria, por ter com quem conversar, e desconfiança
do real interesse que me movia. Aos poucos ela foi se convencendo de que
meu propósito era ouvir suas histórias, uma vez que eu deixava a memória
de D. Maria José estender-se livremente por todas as histórias que incluíam
desde brigas de família, aventuras de infância, agruras da vida de privações
até a sua performance como romanceira.
Nas conversas expostas a seguir, eu já tinha conseguido construir com
D. Maria José uma relação bem mais descontraída, do que quando iniciara
as idas ao Sítio Oiteiro. D. Maria José demonstrava-se feliz com a
possibilidade de conversar sobre a sua vida: por muitas vezes, pude perceber
a sua ansiedade em confirmar a visita seguinte. Quanto a mim, crescia cada
vez mais o envolvimento afetivo e a admiração por ela. Vejam-se, a seguir,
três flagrantes dessa realidade que marcaram esse momento da pesquisa.
3.2.2. Transcrição 1
Entrevista realizada em 03 de abril de 2003, no Sítio Oiteiro, São Gonçalo
do Amarante.
Chegamos, eu e Diva, ao Sítio Oiteiro, por volta das 14 horas. Esse
era o terceiro encontro com D. Maria José. Como de costume, a
cumprimentamos e ela recebeu–nos queixando-se de sua saúde. Para
animá-la, mostrei-lhe a máquina fotográfica que havíamos prometido trazer
para fotografá-la. Iniciei nossa conversa pedindo que ela falasse sobre sua
vida. D. Maria disse então o verso que criou para apresentar-se: Minha vida é
um romance, faz vergonha eu lhe dizer/ no dia em que nasci/ não achei o que
comer, Depois do verso, começa a contar sobre os seus filhos. Enquanto
preparo o equipamento de gravação, ela inicia sua narrativa...
D. MARIA JOSÉ – Quando me casei/... Sebastiana aquela que vem aqui, mas essa
que saiu não, a outra, a dona dessa casa aqui/... quando me casei ela estava com
oito meses. Já tinha enterrado Raimunda, a primeira, Joaquim o segundo. Já
tinha Francisca e Sebastiana com oito meses.
Lílian – Quer dizer que os primeiros filhos da senhora morreram, né?
D. MARIA JOSÉ – Morreram onze.
Diva – Onze?
D. MARIA JOSÉ – Eu só criei sete. Os outros onze Deus criou. Agora uma teve
quinze, outra teve dezesseis, outra teve quatorze, uma turma entre netos e
bisnetos. Riqueza na minha vida, só família!
Lílian – É uma grande riqueza!
D. MARIA JOSÉ – Nos dias de domingo se junta aí na porta, faz até medo esse
bando de bisneto. Mas eu já sofri demais. Como eu disse, quando eu nasci não
achei com o que me enrolar e nem comer pra comer. Papai nunca comprou um
dedal de leite pra mim e quem ajudou a criar a família foi eu.
Lílian – Hum rum!
D. MARIA JOSÉ – Porque a mãe dele não queria que ele comprasse nada pra mim,
ela não queria que papai casasse com minha mãe, queria que papai casasse com a
prima dele. Até estalar o olho da moléstia, ela estalou e ela queria que ele
casasse com ela pra ele amparar ela. Aí ele disse: “Tá vendo que eu não vou
deixar de casar com uma moça, pra mode casar com uma mulher usada, ainda mais
doente?” Aí ela ficou com raiva. Aí um dia morreu uma gata dela, ela já tinha
raiva de mim/...
Lílian – Hum.
D. MARIA JOSÉ – Aí a gata amanheceu o dia morta entre as trempe. Aí ela
disse: “Atanásio?” e ele: “Senhora?” ela: “Mande Maria José mais Maria Bune
botar a gata no mato.” Que lá tinha uma estrada e tinha uma pitombeira na beira
da estrada. Aí eu peguei numa perna, Maria Pena pegou na outra e comadre Bune
pegou na frente, mais Zorinha, aí eu disse: vamo cantar? “O que tu vai cantar
Maria José?” Vamo cantar pra aperriar Nanina, a gente chamava ela de Nanina,
que o nome dela era Firmina. Aí a gente saiu. ♫ Bichana morreu de velha, Bichana
da minha Nanina, Bichana morreu de fome, Bichana de minha Nanina, vamo
enterrar Bichana. ♫ Aí ela: “Tu visse se a gata morreu de fome?” Eu digo porque
ela é seca.
Lílian – ((rindo muito da história)) Ai, Dona Maria!
D. MARIA JOSÉ – Aí mamãe: “Maria José não vai mais levar comida de sua mãe,
porque ele leva a vasilha com a feira dela, e ela fica esculhambando ela.” Eu era
safada!/...
Lílian – A senhora não era peça boa não, né Dona Maria José? Tem a história de
um boi que a senhora matou também, né? A senhora me contou uma vez uma
história de um boi.
D. MARIA JOSÉ – Eu matei uma vaca.
Lílian – Ah, era uma vaca!
D. MARIA JOSÉ – Cheguemos no roçado eu e papai, nesse tempo era o plantio do
feijão. Cheguemo no roçado logo cedo, o sol tinha saído, a vaca por acolá, tava
tudo distruído, o milho e o feijão chega tava assim rebentado.
Lílian – Sei.
D. MARIA JOSÉ – Aí o que é que eu havera de fazer? Tirei as cercas do roçado,
não era assim antigamente?
Lílian – Ham.
D. MARIA JOSÉ – Eu fui, tirei um pau, tirei um pra mim e outro pra Bune. Eu
disse: Bune! Ela disse: “essa vaca dá.” Eu digo: não deixe a vaca dá em mim, que eu
não deixo a vaca dá em tu. Aí quando eu cheguei, que falei, a vaca se levantou, se
espriguiçou, se espriguiçou e fez assim pra comadre Maria Bune. ((faz gesto com
a cabeça)) Sentei-lhe a vara, o pau bateu, a chiringada de mijo avuou. Aí quando
ela alevantou-se, eu disse: pegue o cassete, vamo matar ela, lá do outro lado. E
outra vez, eu tava fazendo a cerca ali, quem fazia essa cerca era eu mais Tia
Cantu/... porque pra enfincar as estacas, Tia Cantu ia mais na frente cavando, aí
disse: “morresse Maria José”, era o boi, eu tava de coca quando ela disse,
“morresse Maria José.” Eu meti dos pés, o bicho já vinha mesmo assim, quando
ele freou eu enterrei dos pés, me alevantei, mas ô cipoada bonita! O pau bateu,
ele caiu. [?], assim encostando o espinhaço no chão, bateu, ele caiu. Aí João Moita
disse: “matasse a vaca”. Aí eu fui, chegou no aceiro do roçado, na cerca. “Eita
Maria José e agora? Matasse a vaca do homem.” Eu que mim importa! Mas, ela
não come mais em roçado de ninguém.
Lílian - A senhora matou porque ela tava comendo lá dentro do roçado?
D. MARIA JOSÉ – Tava comendo, tinha furado a cerca, passou a noite comendo
dentro do roçado.
Lílian – E o dono da vaca o que foi que fez?
D. MARIA JOSÉ – Hum?!
Lílian – E o dono da vaca?
D. MARIA JOSÉ – Pere aí... Aí João Moita disse: “vamos botar a bicha pra fora”,
aí na brecha que ela tinha saído, tinha uma vareda e lá tinha um pé de moita.
Lílian – Sei.
D. MARIA JOSÉ – João tirou a tampa da cerca embaixo. Aí eu disse: vamo ver se
tu tem força mais eu, aí ele enfiou um pau assim, eu enfiei outro e bolamos ela
pra o pé da cerca. Quando ela encostou, nós passamos pro lado de fora, aí ele
pegou nos dois pés e eu peguei nas duas mãos e arrastemo ela e botemo debaixo
dum pé de moita trubá. Aí João chegou e varreu por onde ela passou, aí nós nem
comecemo a apanhar o feijão que vem chuva. Aí João disse: “olhe Maria José
como Deus te valeu.” Isso foi na sexta-feira, quando foi no domingo eu ia pro
roçado mais papai e encontremo o dono da vaca. “Atanásio?” Papai disse:
“Senhor?!” “Tu não visse a minha vaca por aí, não, aquela vaca cinzenta de chifre
grande?” Papai disse: “Vi não, porque eu só venho pro roçado de oito em oito dias,
quem vem pro roçado é as menina.” Ele disse: “tu não visse, não, Maria José?” Eu
digo: vi não. Aí ele disse: “faz três dias que a vaca não vai pro curral, a bezerra
tá só berrando e ela não vai.” Aí papai disse: “ela ainda pode aparecer.” Eu digo:
ela vai muito aparecer! ((risos))
Lílian – Mas Dona Maria, a senhora matou a vaca!
D. MARIA JOSÉ – Aí ele arrodeou e viu a vaca morta e disse: “Atanásio, tu bem
que dissesse que ela morreu engasgada com moita trubá, tá lá debaixo do pé de
moita trubá, não presta mais nem pra tirar o couro.” Eu digo: Nunca mais ela vai
comer em roçado de ninguém.
Diva – Foi tudo planejado.
Lílian – E seu pai nunca soube que foi a senhora?
D. MARIA JOSÉ – Morreu e nunca soube.
Lílian – Ah, meu Deus! a senhora era muito danada, viu?
D. MARIA JOSÉ – Uma vez eu tava com dezoito anos, Didi tava noiva com um
cara que ele era meio baixo e forte. Fomos só nós três, eu, ele e comadre Maria,
irmã minha. Quando cheguemo lá em cima, tem uma vereda grande que saí lá de
trás do cemitério, quando cheguemo lá em cima, Didi na minha frente, eu atrás de
Didi e comadre Bune atrás de mim. Aí, comadre Bune disse: “mim solta Chico, mim
deixa Chico”, quando que eu me virei para trás, ele tava agarrado com ela. O que
é que eu ia fazer? Ele botou ela no braço e ia dando a volta pra entrar na vereda.
Eu digo: não é de ser assim.... A gente andava cada uma com duas facas que era
pro mode as cobras de viado, e eu sortei o facão aqui junto a minha perna, peguei
o cabra nos músculo, as unhas, essa, essa e essa, quatro unhas, eram grandes, aí
foi, eu peguei ele aqui nos músculo e segurei, aí ele soltou ela, quando ela
mergulhou por debaixo, dei três arrasto pra cá, três empurrão pra lá e joguei ele,
quando joguei, ele caiu lá dentro dos garranchos, ficou só com a sola dos pés de
fora. Aí quando ele se endireitou, saiu, aí arrastou a peixeira, “vou botar-lhe o
fato abaixo.” Eu digo: bota fio de rapariga, eu nunca vi um fio de rapariga botar o
fato abaixo de uma filha de um homem, quero ver agora, bota! E eu com o olho na
munheca dele, se ele manejar a mão ou o pé, eu empurro o facão e toro a munheca
dele e com a faca dele, eu mato ele. Aí ele levou um corte assim, que rasgou o
peito, ficou encarnado de sangue, o desgraçado. Aí, Didi disse: “vai-te embora
Chico, vai-te embora, vai-te embora, deixe de ser frouxo.” Agora eu tô pagando!
Lílian – Por que Dona Maria que a senhora diz que está pagando?
D. MARIA JOSÉ – Pois num é assim? O povo diz quem faz aqui, paga aqui, né?
Lílian – É.
D. MARIA JOSÉ – Tem uma amarelinha acolá do rabo grosso, que disse que ainda
tira minha goga. Todo dia eu me sento aqui no batente, ela só quer ser falante, só
fala em valentia ((Chega Benidita, a filha de D. Maria, e senta-se para conversar
conosco))
D. MARIA JOSÉ – ((falando com a filha)) Veio de tarde, por que filhinha?
Benidita - Porque não deu tempo vir de manhã.
D. MARIA JOSÉ – Entra, senta, ainda tem cadeira ali, lá dentro ainda tem.... Sim!
Aí ele chega em casa encarnado de sangue, aí a mãe dele disse: “o que foi isso,
Francisco?” “Foi a filha de seu Atanásio, e eu vou dá parte dela.” Aí ela disse: “tu
vai dá parte da menina, ela é quem sabe porque fez isso, ela é chamada, diz o que
passou-se, tu é quem fica preso e ela vem pra casa.” Aí era um corte desse
tamanho nas costas, em cima da pá, “foi ela com o facão.” Eu digo: não, foi ele nos
garranchos. “Tu já visse as pessoas cair emborcado e se cortar nas costas?” ela
falou com ele. Aí ele disse: “pois eu vou mimbora pra nunca mais ver aquela égua.”
Aí foi-se embora pra Goianinha. Aí não passou um mês, a carta chegou, que ele
tinha morrido, tinha criado inflamação por dentro e tinha morrido.
Lílian – Eita, Dona Maria!
Diva – Não foi a senhora que matou, foi a infecção.
DONA MARIA JOSÉ – ele morreu porque quis. Não tratou-se porque não quis.
Diva – É, não foi ao médico porque não quis. ((risos))
DONA MARIA JOSÉ – também levar ela pra dentro do mato, ele não levou, e se
ele quisesse ter levado, tinha morrido no mesmo canto.
Lílian – Foi se fazer de engraçado, né Dona Maria?
DONA MARIA JOSÉ – Agora não, agora eu tô velha!
Lílian – Tranqüila, mais ainda usa o facão!
DONA MARIA JOSÉ – o facão tá lá dentro.
Diva – vamos pegar pra gente tirar um retrato aqui na calçada, pra senhora ficar
do jeito que a senhora fica aqui na calçada, a senhora não diz que fica/...
Benidita - A senhora ainda usa o facão, mãe?
DONA MARIA JOSÉ – Eu vou dormir sozinha, sem o facão de uma banda?
Diva – Ela diz que senta aqui na calçada, com o facão dela, de noite!
D. MARIA JOSÉ – De noite eu me sento aqui e o facão tá aqui. Você não diz que
vai tirar minha foto?
Diva – vou.
DONA MARIA JOSÉ – Aqui morreu um.
Lílian – é mesmo? Nessa casa?
DONA MARIA JOSÉ – É eu nasci em Barreira, a minha era do outro lado.
Quando eu me casei, eu fiz minha casa, a meu punho, fui nos mato, tirei madeira,
mandei armar a casa, envarei, enchaminei, mandei [?], aí cavei barro e tapei.
Lílian – Essa outra casa?
DONA MARIA JOSÉ – Essa outra aqui foi feita pela prefeitura.
Benidita – Essa aqui foi a prefeitura que fez.
Diva – Enchamiar que a senhora diz são os amarros?
DONA MARIA JOSÉ – Emaderei.
Diva – E não enchamiou?
DONA MARIA JOSÉ – Enchamiei ela todinha. Enchamiar é...
Benidita – Enchamiar é encher de barro.
Diva – Enchamiar é colocar os amarros ou encher de barro?
DONA MARIA JOSÉ – Enchamiar, botar os inchame e fincar os inchame, é
envarar a vara de apoio, depois é que a gente vai tapar.
Lílian – Aí tapa com o barro.
DONA MARIA JOSÉ – É. Agora o que firma é botar a madeira pra cima.
Lílian – Essa casa onde a senhora morou, ainda existe?
D. MARIA JOSÉ – Existe só o lugar.
Benidita – Só o lugar e era aqui mesmo no sítio Oiteiro, mas era lá pra cima.
Diva – Não era aqui do lado?!
D. MARIA JOSÉ – Era aqui do lado, ainda tem o alicerço do cimento e o cimento
fui eu que fiz.
Diva – Então a senhora mora aqui desde que nasceu?
Lílian – Não a senhora nasceu em Barreiro, não era Barreiro?
D. MARIA JOSÉ – Era. Nasci em Barreiro, mas vim pra cá com três mese.
Lílian – Barreiro, onde?
D. MARIA JOSÉ – Lá na Vila Guamaré. Nasci lá perto do Amarante. Um dia eu fui
cantar numa gravadora, Aí Dácio disse: “se despeça do povo! Não vai se despedir
de ninguém, não?” Pra quê homem? Ele pensava que eu não sabia o sobrenome
dele. Aí eu fui/... eu digo: vou me despedir do povo. Ele disse: “homem, se despeça
de mim primeiro.” Aí eu digo: agora deu o diabo, aí eu cantei assim, ele queria que
eu cantasse de outro jeito. Aí eu cantei: ♫ lá em Barreiro, aonde eu nasci, em São
Gonçalo, aonde eu me criei, eu vou mimbora pra meu Sítio Oiteiro, adeus terra
Natal, adeus. Aí ele disse: “e não vai se despedir de mim não?” Aí eu disse: vou
desperdir-me de todos porque é minha obrigação, ♫ Adeus Candinha Bezerra,
Adeus ♫ Aí ele disse: “eu não tô dizendo que essa mulher é o diabo.” Eu disse: se
eu fosse o diabo tinha rabo e eu não tenho rabo. Você vai tirar o retrato ali?
((referindo-se a Diva que está com a câmera fotográfica na mão))
Diva – Vamos lá!
D. MARIA JOSÉ – E eu? Parece que tô fedendo!
Lílian – Deixe de coisa!
Diva – Esqueceu que/...
D. MARIA JOSÉ – Olhe, coidado, ((referindo-se a Diva, quamdo tentava
posicionar-se para tirar a foto)) Não vá cair e quebrar o pau. O pau que eu digo é
o espinhaço.
((interrupção da fita porque acabou um lado de gravação. Após alguns instantes,
enquanto eu mudo o lado da fita, D Maria José começa a contar uma história de
uma briga que aconteceu com seus tios.))
D. MARIA JOSÉ – Eles dois irmãos, quando terminaram de brigar, os cassetes
podia torcer assim que se abria, quando soltava os cassetes se fechavam e as
apragatas de sangue nos pés.
Lílian – Dois irmãos.
D. MARIA JOSÉ – A rua do buchocho ficou fechada.
Lílian – Foi mesmo?
Diva – Povo brabo!
D. MARIA JOSÉ – Tanto proquê, sabiam que eles eram brabo, sabia por o pé no
chão.
Lílian – E seu pai? Seu pai também era brabo?
D. MARIA JOSÉ – Papai morreu com 80 anos, ia fazer oitenta e dois no mês de
Santana, dia dois de Santana, nunca brigou com ninguém, chegava um lá em casa
importunando ele por briga, eu mais mamãe era quem tomava a frente. Um dia
chegou Chico Tene, não sei que hora da noite, sobrinho de papai, “saí pra fora seu
beleco, você não é homem, seu nada, seu esse, seu aquele outro.” Aí mamãe/... era
uma hora da madrugada e papai ia lá pra beira da Lagoa das Urnas pra tirar
taboca. Papai disse: “quer saber, eu vou dá um ensino a Chico.” Aí mamãe disse:
“deixa, ninguém suja as mãos com o próximo, não se dá bem, deixa que a gente
toma conta.” Mamãe saiu com a tesoura, eu peguei a faca, de tirar cipó, que era
de dois gumo, eu fazia dois gumo na faca... ... porque se alguém fosse pegar eu
puxava, tinha que tirar os dedos fora. Papai disse: “essa minha filha, não presta
não”. Aí era só, arre égua, vuco, vuco na pedra pra desmanchar. Aí no outro dia,
eu deixava a faca com os mesmos gumo. Sim! Aí chegaram esculhambando papai, e
era sobrinho dele. Tia Antonia era irmã de papai. Tinha Antonia, Helena, Anedina
e Chico Tene, os quatro: três filhos e a velha, bateram na porta: “saía pra fora
Atanásio que a gente quer lhe mostrar uma coisa”/...
D. MARIA JOSÉ – Aí eu saí, mais mamãe. Mamãe: “Maria José tu não abre a
porta.” Vou abrir e mandar eles entrar de um em um. Tudo de uma vez, não, mas
de um em um. Aí fui abrir a porta, mamãe abriu a janela e eu abri a porta. Nessa
casa, quem pensar que vai me dar uma tapa e ficar por isso, tá enganado, e quem
pensar que eu vou presa, também se engana, pode ir pro inferno três dias a
dentro, correndo que eu não me importo não. Presa eu não vou não, o soldado me
prende aqui, mais eu me sorto. É isso.
Diva – É braba do jeito que é, qual é o soldado que vai querer prender a senhora?
O soldado chega aqui/...
D. MARIA JOSÉ – Não é o soldado ser brabo, é porque assim que eu seguir pra
rua, o telefone vai pra Candinha.
Lílian – A senhora confia nela, né!
Diva – ((posicionando-se para tirar a foto)) Hum é mesmo! Lílian é com esse
cachimbo que eu quero tirar. Lílian deixa ela sentar perto de você, que eu acho
que é a posição que eu não tô conseguindo tirar a fotografia, aqui desse outro
lado, senta aqui desse outro lado, ela com esse cachimbo na boca é que é uma
maravilha. Deixa ver se eu consigo agora.
Lílian – Esse vento aqui é muito gostoso!
D. MARIA JOSÉ – Chegou um vaqueiro e foi levar os animais pra tomar água, por
que tava muito calor. Ele tava debaixo do sol e tinha o vento e a lua. Aí o sol vai e
pergunta: deles três qual era o mais bonito? Aí ele olhou pra lua, olhou pro sol,
olhou pro vento, aí disse: “o mais bonito é o vento.” Aí o sol disse: “deixa estar
desgraçado, quando eu te pegar no alto sertão, eu te mato encriquiado.” O vento
disse: “não há sol quente sem o ar do vento frio.” A lua disse: “quando eu te
pegar, eu te mato de frio, te mato gelado.” Aí o vento disse: “não há lua fria sem
o ar do vento quente.” Aí escapou. E é mesmo! O sol pode estar quente de estalar
tudo, aí faz um vento frio, acalma.
Lílian – Aí serena tudo. Às vezes tá frio, uma brisa suave!
Lílian – Dona Maria a senhora me disse uma vez que sua tia lia folheto com a
senhora aí na mangueira, não era?
D. MARIA JOSÉ – Como é?
Lílian – Que a sua tia lia folhetos aí na mangueira. Como era isso?
D. MARIA JOSÉ – Ela lia e papai aprendia a cantar.
Lílian – Ah! quer dizer que ela lia? Seu pai também aprendeu com ela?
D. MARIA JOSÉ – Todo sábado e todo domingo ela ia pra debaixo da mangueira,
porque ela era sozinha. O marido dela morreu, ela ficou só, teve uma filha que
morreu com sete anos, morreu a sogra, morreu marido, morreu tudo e ela ficou
sozinha. Aí, ela se via lá sozinha, fechava a porta e ia lá pra casa.
Lílian – Aí lia os folhetos.
D. MARIA JOSÉ – Um dia desses eu tava aqui, aí chegou mais um cara de
Manaus, o homem, o pescoço era dessa grossura, desse cumprimento, com uma
cara cumprida, aí chegou e disse: “eu vim aqui pra senhora cantar o verso de
Marina.” Eu digo: só tá ruim que eu não vou cantar, uma que eu tô adoentada da
minha cabeça e não vou cantar. “Cante só o verso de Marina.” Eu digo: meu
senhor, eu não vou cantar, não, sabe por quê? Porque galo pra cantar se bota
milho.
Lílian – Tá certo.
D. MARIA JOSÉ – Aí as meninas espiaram pra mim e começaram a rir. Aí ele
disse: “Apois se então, vamos pra Manaus comigo que a senhora ganha dinheiro.”
Eu digo: tá pensando que eu toco concertina ou rebeca? São cinqüenta e três
versos/... que eu cantei lá pra gravadora. Agora ficou um que eu não cantei.
Lílian – E foi, por quê? Por que a senhora não cantou esse?
D. MARIA JOSÉ – (SILÊNCIO) Sei não. Porque não, porque eu esqueci.
Lílian – Esse é especial, né?
D. MARIA JOSÉ – É foi o coco da fome. Ele diz assim: ♫ no ano de oitenta e um
eu vou lhe contar o pior/ brigava a mãe com os filhos/ e os netos com os avós/
pro mode um mandacaru e batata de um potó [?] velha vamos embora, senão nós
morre de fome. ♫ Aí eu não cantei não! (SILÊNCIO)
Lílian – Ele era muito triste, não era?
D. MARIA JOSÉ – Hein?
Lílian – Ele era muito triste?
D. MARIA JOSÉ – Ele era valente, aí ele pegou um pano, foi na casa de não sei de
quem e aí ela botou quatro litros de farinha, quatro rapaduras e quatro pares de
bolachinhas. Aí o marido dela era safado, pegue cachaça pra ele num levar o que
ela deu. Aí diz assim: ♫ Seu Joca eu vou embora, “não Roberto, espera aí, para
melhorar da bola, beba um quarteirão de Ani.” ♫ A pessoa beber um quarteirão
de cachaça, hein!? Aí ele disse que quando tomou a aguardente, não sentou mais o
pé no chão, aí quando bebeu a aguardente deu logo pra valentão, aí pegue cassete
em gente.
Lílian – É cachaça tem isso, né?
D. MARIA JOSÉ – Aí pegue cassete em gente, ficou por detrás da porta, quem
entrava ele derrubava. Aí ele disse que viu quando o inimigo dele, corre Janjão
que é Roberto! Aí quando o diabo do Janjão foi passando, ele meteu-lhe o reio e
ele caiu do lado de fora. Aí mandaram eu cantar, mas eu não cantei não.
Lílian – Quer dizer que nesse CD, não tem essa que a senhora cantou, agora.
D. MARIA JOSÉ – Tem um que tem a despedida.
Lílian – Esse que a senhora disse agora a pouco da gravadora, né? A senhora
inventou/...
D. MARIA JOSÉ – Não sei como inventei isso, o culpado disso foi o professor
Gurgel.
Lílian – Por quê?
D. MARIA JOSÉ – Eu tava em casa, as meninas estavam embaixo da mangueira,
que ele era amigo de papai, aí ele chegou procurou por papai, aí as meninas
disseram que papai tinha morrido, aí ele mandou elas cantarem o quê? O bendito
de Santo Antonio, aí elas disseram: “não, eu não sei não.” Aí ele disse: “e quem
sabe o verso de Antonino?” “Só se souber comadre Maria, que era quem andava
mais papai, no roçado, nesse meio de mundo.” Aí me chamaram. Mas, se eu
soubesse que elas iam ficar ranhenta comigo por causa disso, eu não tinha ido.
Lílian – Ah! E foi Dona Maria?
D. MARIA JOSÉ – Aí eu fui, quando cheguei, elas disseram: “Seu Gurgel tá
perguntando se você sabe cantar o bendito de Santo Antonio.” Aí eu disse: e
vocês não sabem, não? Aí eu cantei. Aí eu cantei o outro, aí ele inventou de me
levar pra Mossoró... parece que foi pra Mossoró. Aí quando chegou lá tavam
vasculhando a igreja e Santo Antonio tava em pé, mesmo em frente à porta. Aí eu
fiquei olhando. Aí ele disse: “vamos se sentar ali Dona Maria.” Aí eu disse: deixa
eu salvar o santo. Aí ele se pôs em pé assim e disse: “cabá eu mandei a senhora
cantar e a senhora cantou diferente, né?” Porque são dois bendito de Santo
Antonio, um se canta em enterro e o outro se canta em missa.
Lílian – É de louvor o canto, né?
D. MARIA JOSÉ – ♫ Antonio que estás na Itália/ deixa o sermão para sempre/e
vem livrar teu pai da morte/ que vai morrer inocente/ o inimigo é a justiça/
minha a justiça real/ [?],/ eu quero sentenciar/ alevantar o homem morto/ pelo
Deus que nos criou /[?],/ pelo Deus se alevantou /[?]/ este homem que matou. Só
que o pai dele não conheceu ele, aí se levantou e disse: esse homem, não me
matou,/ antes me aconselhou/ como o pai que me criou. /O homem que me matou/
Aí na [?]. /Oh! Meu padre reverendo,/ diga onde é tua morada,/ que eu quero lhe
visitar pra que não se cumpra mais./♫ Aí Santo Antonio disse: “/de ti eu não
quero nada,/ se não a sua benção,/ agora eu vou pra itália/ acabar meu sermão,/
as mulheres de joelho,/ fazendo uma romaria /[?]/ cantando as Ave-Maria”. Eu
me chamava Fernando /antes da [?] /mudei meu nome pra Antonio./ Foi aí que ele
conheceu que era [?].♫
((D. Maria nos conta a história de Santo Antônio. Que ele viveu na Itália grande
parte de sua vida. Ali ele soube que seu pai estava preso, porque era acusado de
ter matado um jovem . Então foi defender o pai, mas os juizes não quiseram
acreditar nele. Disse Santo Antônio: se vocês não acreditarem em mim, farei o
morto falar. Foram ter com o morto e o morto falou não ser o pai de Santo
Antônio o assassino. Termina seu relato concluindo: “Essa é a história do
Bendito”))
Diva – Oh! Que lindo Dona Maria.
((NESSE MOMENTO HOUVE UMA INTERRUPÇÃO NA FITA))
3.2.3 Transcrição 2
Entrevista realizada em 10 de abril de 2003, no Sítio Oiteiro, São Gonçalo
do Amarante.
Quando cheguei com Diva, às 14 horas, D. Maria José estava nos
esperando. Esta era nossa quarta visita. Nós a cumprimentamos dizendo
que estávamos com saudades das nossas conversas. D. Maria José nos
convidou para entrar informando que acabara de botar a água do café no
fogo. Entrego-lhe então o pão que trouxemos para acompanhar o café e,
enquanto ela o deixa na cozinha, acomodamo-nos na sala. Ela volta ansiosa
para conversar, pois mostra-se aborrecida com alguns acontecimentos
ocorridos no dia anterior. Perguntei o que tinha acontecido. Ela nos
respondeu:
D. MARIA JOSÉ – Umas crentes tiveram aqui.
Lílian – Umas crentes?
D. MARIA JOSÉ – Hum.
D. MARIA JOSÉ – Aí, ela chegou, aí tava sentada lá acolá ... Aí disseram: “mulher
venha aqui!” Eu digo: não precisa chamar criatura, que é só eu me levantar e ir,
não precisa ninguém chamar. Eu sou nojenta!
Lílian – Rum.
D. MARIA JOSÉ – Aí eu vinha de lá pra cá, quando chego aqui, elas viraram a
frente pracolá e deram as costas pra dentro de casa. Eu digo: e eu sou o cão pra
vocês me darem as costas? “Não, porque eu não gosto dessas calungas.” Eu digo:
diga de novo que num gosta! “Ah! Mulher eu vim aqui”/... era bem quatro/... “pra
mode a senhora receber Jesus, se entregar a Jesus, pra ir pra festa da gente,
pular, dançar, ofertar a Jesus.” Aí eu disse: Agora, em qual lugar a senhora viu
Jesus dançando, pulando? “Mas, ele fica contente, fica satisfeito da gente pular,
pra quê que a senhora não tira essas calungas?” Eu digo: ora, a estrada é larga, o
mundo é grande e a porta também é larga, pode se despedir da porta, pode ir
embora. “Não manda nem gente se sentar.” Na minha casa não se senta crente
pra vir desfazer dos meus santos, não! Pode ir embora, aqui anda todo mundo,
mas pra vir desfazer dos meus santos, não. Pode ir embora. Como é que eu chego
na sua casa, eu me importo com sua a lei, né?
Lílian – É verdade!
D. MARIA JOSÉ – Eu não vou chegar na sua casa mandar você botar os santos
que tem na parede, botar no mato.
Lílian – É muita falta de respeito, né?
D. MARIA JOSÉ – É a gente deve prestar atenção aonde pisa. Aí ela disse: “se a
gente soubesse não tinha vindo.” Aí eu disse: veio porque quis, pois não lhe
chamei, a senhora sabe que a casa é minha, a vontade é minha, o coração é meu, a
terra também é minha. Aí foram embora. Aí chegaram acolá em cima e disseram:
“aquela mulher dacolá é bruta!”
Lílian – Vem lhe ofender e depois a senhora que é bruta, né Dona Maria?
D. MARIA JOSÉ – Ainda vem dizer que sou bruta!
Lílian – Dona Maria qual é o Santo Antonio? ((aponta para a banca de santos no
quarto de D. Maria, que é visível da sala.))
D. MARIA JOSÉ – Ei! Sente daquele lado que eu vou acender o cachimbo.
Lílian – Tá! Quem é o Santo Antonio aqui? Desses que a senhora tem? Aquele que
a senhora cantou da vez passada é o bendito de Santo Antonio, não é isso?
D. MARIA JOSÉ – É.
Lílian – É esse?
D. MARIA JOSÉ – É.
Lílian – Como é a história dele Dona Maria, a senhora sabe?
D. MARIA JOSÉ – Só pra eu dizer de novo!
Lílian – E o que é que tem? Eu quero saber da história do santo.
D. MARIA JOSÉ – Agora as meninas trouxeram. Benidita foi pra Juazeiro e
trouxeram um pra mim. Aí chegou: “taí mamãe, eu trouxe pra senhora.” Eu digo:
eu sinto muito, mas esse aqui não é São Benedito, não. É Santo Antonio.
Lílian – Ah é! São Benedito é que é preto, não é?
D. MARIA JOSÉ – Mas, Santo Antonio é moreno.
Lílian – Ah é? Mas, ele não tá moreno ali não.
D. MARIA JOSÉ – Às vezes eles fazem um Santo Antonio muito moreno, espia
ele ali na banca, no quarto.
Lílian – Só um instantinho. ((começo a olhar os santos que estão na banca do
quarto de D. Maria. Ela vai para lá)).
D. MARIA JOSÉ – Tá vendo?
Lílian – Ah, tô vendo aqui, mas não é moreno não Dona Maria.
D. MARIA JOSÉ – Esse aí é moreno.
Lílian – Não, é esse que está no cantinho aqui, perto de Nossa Senhora? Esse
aqui, o que está com um menininho no braço?
D. MARIA JOSÉ – É o menino Jesus, esse aqui é Santo Antonio.
Lílian – Esse aqui é qual?
D. MARIA JOSÉ – Esse aqui é São José, Nossa Senhora Rainha dos Anjos, São
Raimundo, Nossa Senhora da Conceição, meu padrinho Frei Damião, São Lázaro,
Nossa Senhora do Monte Serrado, Nossa Senhora da Conceição, São Sebastião.
Lílian – Nossa Senhora do Monte Serrado? Não é Nossa Senhora Aparecida, não?
D. MARIA JOSÉ – Ô! É Nossa Senhora Aparecida mesmo.
Lílian – É Nossa Senhora de Aparecida!
D. MARIA JOSÉ – É Nossa Senhora das Pragas e Padre Cícero.
Lílian – É ele ali tá moreno.
D. MARIA JOSÉ – Qual?
Lílian – Santo Antonio!
Diva – É. Ele ali tá bem moreno.
Lílian – Por isso que ela ((Benidita)) falou
D. MARIA JOSÉ – É, ela tá bem moreno.
Lílian – É por isso que ela pensou que era São Benedito.
Diva – Deixa eu perguntar uma coisa Dona Maria?
D. MARIA JOSÉ – Mas, visse? Vê se eu impato ela perguntar?
Diva – A senhora disse que trabalhava na maré?
D. MARIA JOSÉ – Minha vida todo sábado era ir pra maré.
Diva – Sim. Mas, era pra pescar pra casa, né?
D. MARIA JOSÉ – Pra casa.
Diva – Mas, trabalhar a senhora não trabalhava não, né?
D. MARIA JOSÉ – E isso não é trabalho, não?
Diva – Eu digo assim, trabalhar pra ganhar dinheiro.
D. MARIA JOSÉ – Eu lutei tanto na minha vida, que hoje em dia tô sem coragem,
sem força nas pernas. Com idade de sete anos a companhia de papai era eu. Ele ia
pro roçado e me levava, fazia um fogo, botava uma panela no fogo lá no rancho, lá
perto de Maçaranduba, lá na baixa de Maçaranduba. Aí fui crescendo e andando
mais ele pro roçado, pra todo canto me levava, pra arrancar toco, pra arrancar
moita, era pra limpar, pra fazer cerca, só eu. Nós era nove, mas só quem
acompanhava ele era eu. Quando eu fui “encaxando” aí foi que ficou pior pra mim
trabalhar. Ia trabalhar em Santa Fé. Sabe onde é Santa Fé?
Lílian – Não.
Diva - Santa Rita.
D. MARIA JOSÉ - fui trabalhar em Santa Rita. Eu ia trabalhar e quando chegava
de tarde, ia botar água pra encher uma jarra grande, que tinha na cozinha, um
pote no pé da jarra, um pote no corredor, na sala do meio tinha um pé de pote
dessa altura. Enchia tudo d’água e uma jarra grande no jardim. Que o jardim de
mamãe pegava de uma biqueira a outra. Ela fez uma faxina, uma faxina baixa, e a
jarra era no canto da faxina. E tinha que deixar água pra ela aguar o jardim de
manhã, que no meu tempo mamãe nunca botou água, só quando eu era pequena,
nem água e nem lenha. Enchia tudo d’água pra nós poder jantar. Enchia tudo. Olhe
o café tá cherando!
Diva – Quer que eu faça o café?
D. MARIA JOSÉ – Mas ói. Tu faz? Vamo que eu vou botar café pra nós.
((vamos todas para a cozinha)).
Diva – Faço. Onde estão as coisas?
D. MARIA JOSÉ – A minha foi.... Se eu me sentar num canto pra contar minha
vida, vocês dizem que é mentira, trabalhava a semana todinha, na sexta-feira
recebia dinheiro: pegue papai. Que um pai de família sustentava onze boca com
cinco mil reis? Sustentava não.
Lílian – De jeito nenhum Dona Maria.
D. MARIA JOSÉ – Ele ia pra feira e eu ia pra onde? Ia pra maré no sábado.
Quando era dia de domingo eu ia pra missa, quando chegava da missa, ia pescar na
levada. Minha vida era essa.
Diva – Qual era a levada que a senhora pescava?
D. MARIA JOSÉ – A levada grande ali.
Diva – Aqui do São Gonçalo? Do alagadiço?
D. MARIA JOSÉ – Era.
Diva – ((pergunta para Lílian)) Sabe o que é faxina?
Lílian – Não, é uma limpeza?
Diva – Não. Faxina é uma cerquinha baixa, faxina alta, uma cerca alta, aquelas
varinhas unidas umas às outras, nunca viu?
Lílian – Ah, sim! Aquilo que é faxina?
Diva – “Os fofoqueiros estão tudo na faxina”, ou seja, as mulheres não têm o que
fazer, né? Porque não tinha muro, aí ficavam na faxina, sem ter o que fazer.
Lílian – Fica tudo na faxina! Que coisa interessante!
Diva – Fica tudo na faxina, falando mal da vida alheia.
((D. Maria nos convida para ir até o quarto para explicar sobre os santos))
D. MARIA JOSÉ – Não é todo mundo que eu chamo aqui, não!
Diva – Ainda bem que a senhora gosta da gente!
D. MARIA JOSÉ – Não, a pessoa não vive me fazendo raiva, eu gosto de todo
mundo.
Diva – Quem é São Lázaro?
Lílian – Não é o que tem as chagas no corpo? As feridas no corpo?
Diva – É.
D. MARIA JOSÉ – É o mesmo. Aquele/... esse santo ainda é vivo. Só morre
quando se acabar o mundo.
Diva – É?
D. MARIA JOSÉ – Porque ele não tem pai, ele era todo feridento, aí vivia
pedindo esmola pra dar de comer as duas moças que tinha em casa, duas irmãs. Aí
quando foi um dia, saiu mais o cachorro pedindo esmola, aí saiu e não voltou, aí
elas passaram a noite e quando passou dois dias elas saíram atrás dele, saíram
chorando. Aí encontraram Nosso Senhor e ele perguntou: “Por que vão
chorando?” Aí elas foi disseram. Aí ele saiu mais elas quando foi, viu ele caído em
cima de uma pedra, já tava varejado e o cachorro deitado lambendo a perna dele,
aí foi ele pegou na mão dele e disse: “levanta Lázaro e vai pedir tuas esmolas e
andar até o mundo se findar, quando o mundo terminar, tu terminarás tua vida.”
Lílian – Então ele vive pelo mundo, ainda?
D. MARIA JOSÉ – Deve viver pelo mundo, mais não é mais chagado e aquele
santo ali é do oco de pau.
Diva – Santo do pau oco?
D. MARIA JOSÉ – O pau dele é oco mesmo que ele mija.
((Todas riem muito)).
Diva – Tem razão, nem tinha pensado sobre esse aspecto.
Lílian – Quem é o santo do pai oco, hein Dona Maria?
D. MARIA JOSÉ – Esse aí.
Lílian – É São Francisco.
D. MARIA JOSÉ – Esse São Francisco aí era lenheiro, aí todo dia ele ia pro mato
tirar lenha. Aí tirava aquela lenha e vendia pra dá de comida aos filhos. Aí quando
foi um dia, ele foi pra lenha e não veio mais. E todo dia de manhã amanhecia o
dinheiro debaixo da porta e a mulher começou a se aperriar. E haja o mundo se
derribar de chover. Aí tinha esse pau seco, que não tinha mais folha, agora era
ocado de certa altura até embaixo. Aí ele se viu no meio da chuva e entrou no oco
do pau e aí foi santo. E haja o povo procurar. Aí a polícia disse que aquele pau era
seco, não tinha nem uma galha e está cheia de galha e todo florado e cheio de
andorinhas. Aí, no meio das andorinhas tinha três pombinho branco, repare, meu
quadro é pequeno, mas dá pra ver as andorinhas.
Lílian – É tem quatro.
D. MARIA JOSÉ – Aí quando chegaram ele tava, aí o delegado disse: “vê se tira
ele, sem botar o pau abaixo, aí abriram mais pra cima e tiraram ele.”
Diva – Por isso chama santo do oco do pau.
Lílian – E esse quem é Dona Maria?
D. MARIA JOSÉ – Qual?
Lílian – Esse que tá com o leão aqui.
D. MARIA JOSÉ – É São Amâncio.
Lílian – São Amâncio?
D. MARIA JOSÉ – São Amâncio, o anjo da guarda.
((Neste momento há um corte na fita))
Diva – A senhora não tem nem um irmão, não?
D. MARIA JOSÉ – Tenho, mas, ele foi criado com tanta preguiça que ele não
arrancava nem um mato no pé da parede e papai fazia os gosto e mamãe dizia:
“Maria José tu acha que pode sair uma hora, duas horas da madrugada que chova
que não chova e Gaspar é só aí dentro de casa fazendo raiva.” A vida era com uma
baladeira no meio do mundo, mas eu não, às vezes papai dizia: “assim eu vou
arrancar essas cargas de mandioca, eu faço só mais Maria José.” E fazia!
Lílian – Seu irmão nunca ajudou?
D. MARIA JOSÉ – Eu tô dizendo que ela nunca plantou um pé de capim pra mode
não trabalhar.
Diva – Tá vivo seu irmão?
D. MARIA JOSÉ – Parece que vai fazer três anos que ele morreu. Casou,
abandonou a família pra não dá de comer, preguiça que só ele. Enquanto eu... esse
meu filho que tava aqui, ((refere-se a Zé Luiz, seu filho)) quando esse menino/... o
pai foi embora pra Poço de Pedra me deixou sozinha. Ele pegou a trabalhar com
quatorze anos de idade, daqui pra milharada, todo dia ele ia logo cedo, na hora de
pegar pra trabalhar ele tava lá, ainda hoje trabalha, mas ele não! Abandonou a
mulher com quatro filhos não dava a ela uma palha podre. Mamãe reclamava, aí ele
ia pra dentro de casa. Quando mamãe morreu, ele ainda tava na casa dele, depois
que mamãe morreu, ele deixou a mulher e veio pra dentro de casa. Aí papai
adoeceu e passou quatro meses arriado. Passou um ano doente e quatro meses de
arriação. Aí a gente dizia: Gaspar, por que tu não compra uns vidros de remédio
para papai e pergunta se papai tá doente. “É, se eu tivesse recebido dinheiro era
bom. Só vai receber quarta-feira”, que era do dinheiro da [?]. Calçava e comia do
meu bolso. A sorte era eu e comadre Severina. Comadre Severina ia trabalhar eu
ficava. Também, papai trabalhou até não poder mais ir pros matos. Ele foi pros
matos, quando demo fé, mei dia em ponto chegou o carroceiro com ele na carroça,
acharam ele lá na encruza, lá pras lagoa das urnas, deitado no chão. Eles
apanharam, botaram na carroça e vieram deixar em casa. E assim/... aí comadre
Severina disse: “não vai mais trabalhar não, eu dou de conta.” E ficou trabalhando
pra alimentação dele, a sorte dela foi que ele tinha um sobrinho que era
compadre dele, que era amigo dele, aí ele chegava: “pegue Severina pra comprar
as coisas pro compadre Atanásio.” Mas Gaspar, também, só deu pra ele, deixou a
mulher e não morreu abandonado por aí. Porque morreu fazendo tudo feito na
roupa, na rede, por dentro de casa, por todo canto e a mosca não tomou de conta
porque a mulher veio buscar na casa dele, aí levou ele pra casa.
Lílian – Depois de tudo, né?
D. MARIA JOSÉ – Depois de toda ingratidão que ele fez com ela, ela fez o que
pode por ele, morreu, não deu seis meses, ele veio buscar ela, não deu seis meses
ela morreu. Sim, aí como eu ia dizendo, aí eu ia pra casa de farinha mais papai.
Chegava lá papai dizia: [?] ele se largava e ia pros matos quando chegava em casa
ia fazer fumo, quando chegava na casa de farinha a mandioca já tava fria. Aí eu
dizia: vambora papai moer? Aí ele pegava nos dois garrotes ele pegava de um lado
e eu do outro e ia moer. Tia Cantu dizia: “tu tem uma filha moça, ou tem um cabra
macho?” Papai dizia: “ainda bem que ela tem coragem de trabalhar.”
Lílian – Era uma mulher forte, que ele tinha com ele.
D. MARIA JOSÉ – Ainda mais eu dizia: papai abóie, aí ele dizia puxa na frente, aí
eu começava aboiar pra mode ele levar pra frente. Um dia Dácio mangou de mim
porque ele disse: “e o que era que a senhora aboiava?” Aí eu disse: eu puxava
assim ♫ o veio da roda é meu e a mandioca é de seu dono, sevadeira de minha
alma, deixa-me dormir um sono, eia, oou. ♫” Aí o velho tomava de conta. Aí Dácio
disse: “a senhora não era gente não, a senhora era um cão de rabo”. Aí eu digo:
então se arrancaram o rabo. ((risos)).
Lílian – Aí, a senhora começava e ele continuava e ia seguindo?
D. MARIA JOSÉ – Eu começava aí ele levava o aboio pra frente. E um dia, ele
arrancou oito cargas de mandioca e de madrugada eu fui mais ele, era bem duas
horas da madrugada nós fumo. Aí eu disse: vambora Bune, fazer companhia a
gente? Era minha irmã. Comadre Bune, Vije Nossa Senhora! Era escorona, não ia
nem pra beira do fogo fazer um café e papai, Vije Maria! Não queria tomar um
café, feito por ela, nem a pau.
Lílian – Era ruim, era D. Maria?
D. MARIA JOSÉ – Hum?
Lílian – Era muito ruim?
D. MARIA JOSÉ – Era porque ela ia fazer o café com desaforo, quando não fazia
só aquela água tingida, fazia forte demais.
Diva – Só pra não mandar fazer.
D. MARIA JOSÉ – Só pra não mandar ela fazer.
Diva – Tenho uma irmã assim.
D. MARIA JOSÉ – Aí, papai dizia: “olhe quando for butar comer pra mim”....
Porque ele trabalhava nos matos tirando madeira e a gente não deixava comer
choco pra ele, cozinhava comida pra gente e depois botava comer no fogo pra ele
e tinha que ser eu, quando ele ia comer, dizia: “esse comer não foi Maria José que
cozinhou.”
Lílian – Só confiava na senhora.
D. MARIA JOSÉ – Porque tudo dele era comigo. Ele trabalhava de noite quando
ele tava fazendo cerca, ele chegava: “Maria José?” Inhô! “Venha lavar meus pés.”
Só se deitava depois que eu lavava os pés dele. Agora eu queria bem a meu pai.
Diva – A senhora sente saudades dele?
D. MARIA JOSÉ – Eu? Quando eu me sento aí no canto da casa sozinha, lembro
de papai mais mamãe! Se ele fosse vivo, já tava muito velhinho, morreu com
oitenta e dois, e faz vinte e cinco, fez vinte e cinco esse mês.
Diva – Morreu com oitenta e dois então teria cento e sete anos.
D. MARIA JOSÉ – Mamãe tava com noventa, parece que era noventa e oito, ela
morreu com sessenta e três e faz trinta e três, trinta e seis que ela morreu. Ela
era mais nova do que ele vinte anos. Aí inventei de me casar só pra ser besta,
pensei que me casando fosse melhor.
Diva – Fosse melhor, por quê?
D. MARIA JOSÉ – Foi muito pior porque fui trabalhar pra criar família e o
homem... comer e beber. Não teve jeito.
Diva – Ele não trabalhava, não?
D. MARIA JOSÉ – Ele trabalhava, mas ia pra feira, todo mundo vinha da feira
cedo, e ele só vinha depois de mei dia, bêbado. Um dia ele chegou tão bêbado que
na passagem da porta, a bosta caiu mesmo em frente à porta. Eu digo vá apanhar
a bosta, que eu não sou empregada de bosta não, a calça deixe lá no banheiro que
amanhã você vai lavar, aí ele foi e entendeu de me bater só que ele tomou o ponto
errado.
Lílian – Não sabia com quem tava mexendo, né?
D. MARIA JOSÉ – Eu de gente só tinha os óio de cachorro, agora tô muito boa,
tô velha, acabada, doente. Mas, tem uma cabrocha aí que disse: “eu só vejo falar
na goga daquela velha, mas eu ainda tiro a goga dela.“ E eu todo dia mim sento ali
no batente. Um dia, ela na carreira que vinha pulou dentro da casa de Sebastiana,
Ednete tava raspando coco sentada na raspadeira. Ela na carreira que vinha pulou
dentro da casa dela, agarrou-lhe pelos cabelos e deu-lhe um tapa, quebrou a
porta, sacudiu a tábua da porta no meio do terreiro, aí eu me levantei daqui ia
saindo pra lá espiei pra ela. Que eu não sou bem gente, não!. Ele agora tão cedo
não saí daí. Tá passando o CD. ((refere-se a Zé Luiz, seu filho, que está ouvindo o
CD “Cantares” na sala))
Lílian – Ele gosta de ouvir?
D. MARIA JOSÉ – Gosta, foi eu que dei a ele, agora os meninos de lá arranharam,
aí ele trouxe pra cá e vem passar.
Lílian – Hoje ele vem ouvir aqui?
D. MARIA JOSÉ – Hum?
Lílian – A senhora cantava pra ele essas coisas?
D. MARIA JOSÉ – Hum?
Lílian – A senhora cantava pra eles essas coisas? Pra eles quando eram pequenos?
D. MARIA JOSÉ – Não. Não cantava pra eles não, mas eu só trabalhava cantando.
Lílian – Ah!..
D. MARIA JOSÉ – Só se eu tivesse com raiva.
Lílian – Ah, a senhora cantava quando tava com raiva, era?
D. MARIA JOSÉ – Pra não ouvir ninguém falar comigo.
Lílian – Minha sogra também é assim, quando tá com raiva, tá cantando.
D. MARIA JOSÉ – Eu trabalhava. Quando tava em casa trabalhava que só bicho.
Mamãe dizia: “eu tô vendo a hora Maria José afracar.” Ela tinha cuidado comigo
eu trabalhava desde menina, direto. Não tinha esse negócio que tá doente, não
vai trabalhar, tá doente não vai pra maré, eu não dizia nem a ela, ia trabalhar. Era
tirando unha de véio, era pegando siri, não dizia nada. Quando ela sabia, aí fazia
uma garrafada pra mim.
Lílian – Como é uma garrafada, D. Maria?
D. MARIA JOSÉ – A gente pisa cumim e alfazema, quando acabar butava meia
garrafa de cana. É pra ir tomando de colher em colher, não é pra ir tomando pro
mode se acostumar não. ((risos))
Zé Luiz – Vou levar. ((refere-se ao CD))
D. MARIA JOSÉ – Tá certo, mas tem um que gagueja.
Zé Luiz – Mas foi arranhado depois que chegou aqui.
D. MARIA JOSÉ – Não senhor, ele veio arranhado que quando eu botei ele, que
ele pegou a tocar, no fim tava arranhado.
Zé Luiz – Não.
D. MARIA JOSÉ – Ora, se tu trouxesse pra cá por que tava arranhado, agora
queres botar os arranhões nas minhas costas. Foi você que disse: “arranhou meu
CD. Eu trouxe pra cá.”
Zé Luiz – Que conversa é essa,mãe? Já vou.
D. MARIA JOSÉ – Tá cedo. Não tomasse café, não?
Zé Luiz – Não.
D. MARIA JOSÉ – Pro quê?
Diva – Com medo da chuva, café com chuva faz mal.
Lílian – A senhora ainda tem CD?
D. MARIA JOSÉ – Não esse aí é o último.
Diva – Não, Benidita disse que ainda tem um.
D. MARIA JOSÉ – Ah, Benidita tem um mesmo.
Lílian – Quinta-feira é quinta-feira santa, tem algum problema se eu vier D.
Maria? A senhora faz jejum, alguma coisa assim?
D. MARIA JOSÉ – Se tem algum problema?
Lílian – Sim. Posso vir lhe visitar?
D. MARIA JOSÉ – Pode, qualquer dia que vier, não tendo nojo da casa.
Lílian – De jeito nenhum.
D. MARIA JOSÉ – E eu nem tava me lembrando, José disse: “mamãe aquelas
meninas disseram que vinham hoje aqui.” Eu digo que conversa é essa? “Elas
disseram.”
Diva – Vai se acostumando com a gente vindo toda semana, vai se acostumando. É
bom né, conversar?
D. MARIA JOSÉ – É bom conversar? Às vezes mim ponho aqui sozinha, aí eu digo:
meu Deus, por que eu sofro tanto, só vivo toda engembrada! Eu digo: quem mata
vive em boa vida, agora eu, sou quem sofro tudo.
Lílian – Fez tanta coisa boa né, D. Maria?
D. MARIA JOSÉ – É certo que eu apanhava tanto.
Diva – Devia ser muito danada também, não?
D. MARIA JOSÉ – Porque eu era ruim. Papai/...
Diva – Olhe aí, tá vendo.
D. MARIA JOSÉ – Papai não contava história, podia tá enfadado, cansado do
jeito que tivesse. Ele recebeu uma queixa... ... olhe se eu mesmo não era safada!
Papai dizia assim: “ô Maria José?” Inhô. “Vá ali na rua, vá lá em Zé Bento, que
fica mais perto. Compre isso, isso e isso e compre um cruzado de fumo. Olhe tô
sem fumo e cuspo no chão, se você chegar o cuspe tiver seco você apanha.” Eu
desbandeirava no meio do mundo mais comadre Bune, podia ser em tempo de
inverno, porque em tempo de inverno lá da volta da cerca pra cá era um lago só, lá
na entrada da rua tinha outro. Na carreira que a gente vinha, vinha um menino ou
dois... na carreira que vinha eu prantava a mão no pé do ouvido, o menino caía
dentro d’água e eu saía de carreira no meio do mundo. Quando eu chegava papai
já sabia, os meninos vinham fazer enredo, aí papai dizia: “entre pra dentro, bote
as coisas lá dentro pra mode ter um ajuste de contas que eu mandei você ir pra
rua, não mandei você dar nos outros não.” Metia-me o reio, eu dizia: quando eu
pegar eles, eles mim pagam. Aí um dia mamãe disse. De quinze em quinze dias a
gente ia lá pro fim das barreiras, lá pra dentro da maré, pra casa de mãe Joana,
a mãe de mamãe. Ela fazia aquelas compras, botava numa cesta e a gente ia
deixar. Aí, quando foi um belo dia, eu e Maria de comadre Adélia, nós duas tinha
os cabelos pixaim. Agora Maria de comadre Adélia só fazia amarrar o cabelo, eu
penteava o meu, era muito, aí amarrava assim no meio e fazia um totó. Aí
comadre Maria Bune, tinha o cabelo por aqui, tanto ela como comadre Maria
Torre, aí ela abria assim e ficava toda coberta. Aí, lá perto de Santo Antonio
tinha uma mangueira de frente o beco que vai pra rua do butoco?
Lílian – Sim.
D. MARIA JOSÉ – Aí, a gente fumo pela ladeira, aí eu na frente mais Maria de
Comadre Adélia, eu com a cesta, levava massa, levava goma, levava uma tapioca
feita debaixo do forno desse tamanho, levava carne pra mãe Joana, levava café,
açúcar e comadre Bune levava três cuias de farinha, ia pegada na boca do saco e
comadre Maria Torre pegada no fundo do saco. E o tenente tava na porta e eu
não dei fé do tenente, né? Ele tava na janela, debruçado na janela de manhã logo
cedo. Fumo passando debaixo da mangueira, aí comadre Maria Bune disse: “óia
Maria não deu certo? As duas da cabeça de currupio na frente, nóis mais
branca”/... comadre Maria Bune era da sua cor, a mais preta era eu, Dores,
compadre Gaspar e comadre Severina, porque puxemo o povo de papai e os outros
puxaram o povo de mamãe e a cor de mamãe./... “A gente branca do cabelo bom
atrás, elas deviam vir atrás.” Aí, eu mim pus em pé mesmo embaixo da mangueira,
butei a cesta no chão, aí. O que é que estaís dizendo, Bune? “Sim! As duas de
cabelo de cunhão de cavalo.” Prantei-lhe a mão no pé do ouvido, a mão bateu ela
caiu, ela ia até com um vestido de seda verde, que ela só trabalhava pra ela, só
caprichava pra andar na pinta, aí ela levantou-se caqueando debaixo da
mangueira. Ah, e você quer outra? Prantei a munheca ela caiu quando ela caiu/...
Lílian – Era sua irmã, não era?
D. MARIA JOSÉ – Era minha irmã, irmã de pai e mãe, aí o tenente olhou pra mim
e fez assim com a cabeça. Quando ela veio, peguei ela pelo cabelo e dei-lhe só
duas tapas. Você mais nunca fique fazendo pouco de mim no meio da rua. Chegou
em casa, ela disse a mamãe e mamãe: “é, quem foi que mandou tu e o que foi que
fizesse com ela?” Eu disse foi por isso, isso e isso. “É pro que tu não tens
vergonha, tu não sabes que sóis irmã dela. A mãe que é mãe tua, é mãe dela e o
pai que é pai teu é pai dela também.” “É, quando papai chegar eu vou dizer.”
Quando papai entrou do serviço ela disse a papai. Aí papai arrastou as cordas, aí
mamãe disse: “tá, a surra que tens que dá em Maria José, dê em mim.” Eu digo: e
se eu apanhar, quando eu for prum canto mais ela eu corto a ponta da orelha dela
que é pra ela não fazer mais pouco de mim. Papai disse: “é o quê, Maria José?” Eu
corto a ponta da orelha dela. Quando ela chegar, chega cabana. Papai disse: “tá
bom, tá bom.” Um dia... Agora eu só fazia as coisas na minha razão, agora eu tinha
braço e tinha corpo... Um dia, foi na barreira, eu, Maria Tena e comadre Bune,
agora o povo tinha cortado aquele mato dos pés da cerca, cada vergote de pinhão,
eles tinham cortado, agora mesmo de frente, por trás do engenho de matoso,
tem a ladeira, no pé da ladeira assim, aonde finda. Aí tinha um poço, o poço era
fundo como daqui lá no tronco daquela Jaqueira, o poço era fundo, aí a gente
vinha conversando. Aí, ”ei! Venha tomar banho mais eu”, tomando banho no poço,
Zé Jacaré, eu digo o quê? “Eu tô dizendo que venha uma, tomar banho mais eu.”
Eu digo vai chamar tua mãe pra tomar banho mais tu, cabra sem vergonha. Aí, ele
disse: “apois você não vem, eu vou buscar.” Aí ele veio nuzinho como nasceu.
Diva – É aquele Jacaré que mora ali em Jacaraú?
D. MARIA JOSÉ – É Zé Jacaré mesmo.
Diva – Mas vejam, só. Que atrevido!
D. MARIA JOSÉ – Aí, lá vem ele nuzinho. Aí, quando ele chegou pegou no braço
de Maria Tene. Quando ele pegou no braço de Maria Tene, as coxas dela, eram
dessa grussura assim, o vestidinho por aqui assim, uma negona dessa grussura!
Quer dizer que eu também era forte, mas ela era mais alta do que eu e mais
forte, eu trabalhava e ela não trabalhava, porque quem trabalha no meio do
mundo, passa fome. Aí, quando ele pegou no braço dela, comadre Bune sacudiu um
punhado de areia no fussim dele. Quando ela sacudiu o punhado de areia, eu digo:
agora aqui é no pinhão, taquei-lhe a vergota de pinhão, quando ele se envergou pra
frente, eu dei-lhe nas caixas do peito, aí foi pau. Ele corria pra riba de uma, arde,
e eu metia-lhe o reio. Aí, Maria Bune foi o jeito entrar no rolo também. Demo
uma surra em Zé Jacaré. Ele não agüentou mais, saiu de dentro d’água, foi
simbora. Quando foi de noite papai ia fazer um pagamento a Tota Pereira, aí
quando papai chegou, ele morava mesmo em frente a Tota Pereira... aí ele chegou
lá, nu da cintura pra cima e disse: “seu Atanásio?” Papai disse: “oi?” “Repare aqui
minhas costas.” Aí papai reparou as costas dele, um cabra novo, geme por onde
pau pegava! Aí, papai disse: “que diabo foi isso Zé?” “Foi a sua filha.” “A minha
filha? Por que ela fez isso com tu?” “Porque eu tirei uma brincadeira com ela, aí
elas não me mataram porque eu corri pra dentro d’água.” Aí papai disse: “é, eu vou
pra casa, daqui pras oito horas eu tô chegando lá, venho dá uma surra nela na sua
frente.” Aí, Tota Pereira disse: “não, você não pode dizer assim que vai dar uma
surra na moça na porta dele, que você não sabe que alguma coisa ele fez. Uma
mulher só faz um serviço desse com um homem ele dando pé, se ele não desse
motivo, ela não tinha dado, por isso aí, você não dá, por isso aí se você der na
menina, nós não somos colegas mais nunca.” Aí, papai chegou em casa e disse:
“Maria?” Mamãe disse: “oi” “Se tu visse as costas de Zé Jacaré, o que foi que
Maria José fez! É cada nó dessa grossura assim de fora a fora. Os peito dele, a
barriga, só queria que tu visse.” “Mas Maria José ficou doida?” Eu digo: e eu ia
deixar comadre Bune e Maria Tene pra mode tomar banho na lagoa nu mais ele. Aí
papai disse: “deixe eu pegar aquele cabra safado.” ((risos))
Diva – Tá vendo como mudou a história?
D. MARIA JOSÉ – Quando ele via papai era rua no mundo, pra papai não pegar
ele. Ele era safado.
Lílian – A senhora era danada, mas não era sem justificativa, não era Dona Maria?
D. MARIA – É, um dia, eu tava aí, repare minha idade. O cara ia fazer dezessete
anos, com dois meses, ia servir o exército, e olhe pra minha idade, eu tava com
doze anos. Eu ia buscar leite lá no Breu pra compadre Gaspar. Agora o rio tava
com água, atravessava e vinha na canoa pra despachar o leite pro povo aqui da
rua. Aí, nós fumo ver água ou o leite, aí Raimundo de seu Vicente foi na frente,
papai disse “vocês não vão pela levada não, que a levada tá muito cheia”, a lama
por aqui cheia, chega tava por fora. “Vocês vão pela rua que é melhor pra vocês”,
aí nos fumo pela rua. Ele de lá da casa dele, que ficava de detrás da igreja, de lá
ele via nós. Aí, tem um pé de tamarineira e um pé de ariticum, agora tinham
tirado os galho da tamarineira pros carros passar, que os carros tavam
carregando cana lá do outro, lá do Capitão Moraes. Aí, nós saimo. Quando fumo
chegando, ele tava nu da cintura pra cima, aí ele alevantou-se, quando alevantouse pegou no braço de comadre Bune, quando ele pegou no braço de comadre Bune,
eu sentei-lhe a garrafa na cabeça, aí ele soltou comadre Bune e quis me pegar, aí
foi tarde, aí peguei cipó de tamarino. Aí, era eu e comadre Bune entrou na dança,
meteu-lhe o reio nele também. Aí, seu Luiz Duquinha ia pro Breu e vinha no
cavalo, vinha observando tudo. Aí, comadre Bune foi, parece que eu sortei o cipó
e peguei ele, aí quando peguei ele, peguei nos braços dele assim e dei-lhe dois
arrasto, sacudi assim, dei-lhe um solabanco. Quando eu sacudi ele e voltei, aí ele
disse “agora eu vou matá-la.” Aí, seu Luiz Duquinha foi chegando e disse: “que
diabo é isso, você tão velho, mais tão velho, mais do que as meninas, espera as
meninas no caminho pra mode arengar com as meninas?” “É, quando seu Atanásio
vier na rua, eu vou mostrar o que foi que ela fez.” As costas o bicho era bem
claro, as costas chega tava incarnada de cipó de tamarino. Aí Luiz Duquinha foi
mais a gente, peguemo o leite, aí ele disse: “vão por dentro que é mior.” Mas papai
disse que nós não fosse por dentro que a levada tava muito cheia, aí Luiz
Duquinha veio mais a gente até aí a curva. Quando foi de noite, papai foi lá pra Zé
Bento, seu Vicente viu papai, aí foi buscar ele e mostrou as costas dele a papai.
Aí papai disse: “eu tenho que dá uma pisa em Maria José, Maria José só falta mim
pôr doido, e eu vou dá-lhe uma surra aqui no meio da rua, vou levar ela pra lá pra
casa de seu Vicente, pra dá uma pisa nela.”
Lílian – Seu pai teve trabalho com a senhora, né? Tem muita gente por aí que
apanhou da senhora aqui?
D. MARIA JOSÉ – ((risos)) Aí, quando Luiz Duquinha foi chegando, papai tava
dizendo que ele já tinha feito a queixa a papai. Papai tava dizendo que ia em casa
deixar as coisas e trazer eu. Seu Luiz Duquinha disse: “compadre Atanásio, desde
solteiro que nós somo amigo e hoje em dia somo compadre, mas se você der em
Maria José porque deu uma surra em Raimundo, que se eu não tivesse chegado
ele tinha agarrado nos cabelos dela, eu era quem tinha dado, porque eu vi, já vi no
fim, mas eu ia descendo e ela não perde pra ninguém. Eu achei pouco a surra que
ela deu nele e o senhor pra mode vir fazer queixa a compadre Atanásio, devia
levar seu fio lá pra mode ele dizer tudinho o que foi que fez também. Porque ela
quebrou a garrafa nele!” A cabeça ficou assim da garrafa, danei-lhe o litro na
cabeça! Papai disse: “eu vou deixar de mandar Maria José pros canto, pro mode
não mim dá trabalho, eu não sei a quem Maria José puxou desse jeito.” Porque
papai nunca brigou com ninguém. A pessoa ia lá em casa com zuada com ele, como
a irmã foi, a gente era quem enfrentava. Eu era quem enfrentava mais mamãe.
Lílian – Ele era calmo e sua mãe, era assim também?
D. MARIA JOSÉ – Mamãe, mamãe não gostava de briga, não.
Lílian – Puxou a quem assim briguenta?
D. MARIA JOSÉ – Puxei ao pai de papai e ao pai de mamãe.
Lílian – Eles eram assim?
D. MARIA JOSÉ – O pai de papai mais dois irmãos brigaram duas horas de
relógio em Santo Antonio.
Lílian – Ave Maria!
D. MARIA JOSÉ – O sangue fazia chinelo nos pés deles na rua de Santo Antônio.
O povo era tudo de porta fechada pro mode eles. E papai morreu e nunca brigou
com ninguém. Só uma vez que ele saiu de noite foi pra um o filho da puta safado,
que ele já morreu. Que ele tinha um cachorro, a cancela ficava como essa
mangueira e a casa dele ficava como aquela derradeira mangueira. E o cachorro
ficava na porta pro povo passar precisava gritar antes de chegar perto. E ele não
brigava com o cachorro não, as meninas mais a mulher eram quem saíam pra
brigar com o cachorro e o cachorro era grande. Aí papai ia lá pro Breu e o
cachorro avuou pra cima de papai como uma fera. Aí papai andava com um
pauzinho na mão, ele já sabia, quando ele chegou perto de papai, papai sentou-lhe
o reio, ele caiu. Quando ele caiu, ele disse: “se você dé outra, você se arrepende
Atanásio.” Aí papai disse: “eu não tenho minha perna pra cachorro morder.” O
cachorro ciscou os gritos, levantou e foi em cima de papai e papai arrastou a
faca. Aí ele, “se você furar meu cachorro, Atanásio...” Papai sentou o reio no
cachorro, o cachorro caiu. Aí deu três cipoadas no cachorro, aí parece que o
cachorro morreu, que ninguém viu mais o cachorro.
Lílian – E ele fez o que com seu pai?
D. MARIA JOSÉ – E o que era que ele haveria de fazer? Papai disse: “se você
vier, o que eu fiz com o cachorro, faço com você também.” Aí, a mulher começou a
falar que ele queria trocar a vida dele com a vida do cachorro! Ou queria matar
um homem por causa do cachorro! Ele disse: “você não tava na porta, não viu
quando o cachorro partiu, pro quê você não brigou com o cachorro?”
Lílian – É verdade! E as brincadeiras? A senhora gostava de brincar de quê? D.
Maria?
D. MARIA JOSÉ – Eu gostava, quando não estava trabalhando, quando era noite
de lua, a gente brincava congo, a gente brincava boi, era de tudo. Um dia eu tive a
idéia de brincar de bicho. Vamos brincar de bicho, vamos brincar, eu sou o bicho,
aí tinha um saco de estopa grande, aí entrei no saco de estopa e as meninas
amarraram a boca do saco, aí desci de cabeça abaixo atrás das meninas, desci
bolando de cabeça abaixo, tum, tum, cheguei lá em baixo, na porta de Tia Cantu,
eu tive aquele medo de mim mesma e meti o grito dentro do saco. Papai disse:
“tais com medo é de uma surra!” Aí Tia Cantu disse: “visse a astuça dessa menina:
entrar dentro de um saco pra fazer medo.” No tempo que eu era gente!
Lílian – Era bom, não era? As brincadeiras em noite de lua?
D. MARIA JOSÉ – Era.
Lílian – E os meninos, não brincavam, não, na época da lua?
D. MARIA JOSÉ – É... a gente era bem besta pra brincar mais menino macho.
Lílian – Por quê?
D. MARIA JOSÉ – Porque papai não queria não.
D. MARIA JOSÉ – Um dia Luiz Moita, meu primo que ainda tá vivo/... Faz três
anos e dois meses que ele tá doente. Dão banho nele, dão comida na boca dele,
trazem ele pra sala pra ele tomar vento. Aí, a mulher dessa grossura. Ela é minha
prima e minha comadre, é a madrinha de Benidita. Você não viu falar em Belinha?
Diva – Eu já ouvi falar.
D. MARIA JOSÉ – Morreu. Já vai fazer um ano e ele ficou, a filha casada é quem
faz tudo só, tem duas filhas ou é três. Mais uma mora na cidade, não sei aonde e
essa mora aí, é quem faz tudo pra ele. Quem tem a vida comprida puxa por ela.
Lílian – É verdade.
D. MARIA JOSÉ – Aí, um dia quando ele era solteiro, eu era solteira, no final da
descida, era a casa de Tia Cantu, daquele lado. A gente varria daqui pra lá, e ela
varria de lá pra cá, era tudo limpinho. Nesse tempo o Oiteiro era Oiteiro. Só foi
Oiteiro enquanto papai foi vivo e eu era gente. Agora não posso mais limpar. Se
eu pegasse em dinheiro, ia mandar limpar ele todinho. Agora tem que botar essa
mangueira no chão e essa outra da folha escura e uma que tem lá do outro lado.
Lílian – Por que, D. Maria, tem que botar no chão?
D. MARIA JOSÉ – Porque eu vou botar ela no chão? Porque faz raiva quando ela
tá carregada, quem vai e quem vem mete rebolo, mete rebolo, é manga verde, é
folha, é uma danação por manga, tanto faz a gente falar como não. Sem ser os
daqui mesmo, são os de fora. Eu vou mandar butar ela no chão e outra que tá
arriscado ela butar essa casa aí no chão. E outra por um capricho. Eu conversando
mais Raimundo, eu digo: quando eu pegar em dinheiro vou mandar butar essa
mangueira no chão. Compadre Daniel, o dono da casa, ia passando, vortou pra trás,
“o que é que a senhora tá dizendo?” Eu tô dizendo que vou mandar butar a
mangueira no chão. Ele disse: “aqui quem manda sou eu.” Eu digo o que mamãe
deixou plantado, enraizado, ninguém manda. Quem pode mandar sou eu, eu vou
mostrar a você como um dia mando botar ela abaixo. Eu peguei em dinheiro que
dá pra butar elas todas três no chão e alimpar o quintal. Nas viagens que andei
por esse mei de mundo, arranjei dois mil real, dava muito bem, mais fui comprar
minha geladeira, fui comprar as cadeiras, fui comprar um filtro. Agora quem
quiser que se vire. Mais eu pego, eu tenho fé em Deus que ainda pego em
dinheiro. A primeira coisa que eu faço é mandar butar elas abaixo. Eu mostro a
ele que boto elas abaixo, essa mangueira ficava detrás da casa de mamãe.
Lílian – A casa de sua mãe era aqui? Faz quantos anos que ela existe, essa
mangueira?
D. MARIA JOSÉ – Quantos anos? Ela já tá velha, porque ela quem plantou, e
quando mamãe morreu, ela já tava butando. E já faz trinta e seis anos que mamãe
morrreu. Aí já vai muitos anos, né? E aquela primeira, daquelas ali, aquela
primeira é mais velha do que eu cinco anos.
Lílian – Ah, é? Essa daqui do canto?
D. MARIA JOSÉ – Não, aquela outra, lá do outro lado, a primeira.
Diva – É preciso a gente vir um ano todinho pra vir conversar com D. Maria e
ouvir suas histórias.
((Fim da fita))
3.2.4. Transcrição 3
Transcrição da entrevista realizada em 15 de julho de 2003, no Sítio
Oiteiro, São Gonçalo do Amarante.
Como de costume, eu de Diva escolhemos o horário da tarde para
visitar D. Maria José. Encontramo-la no batente de sua casa, fumando seu
cachimbo. Essa era a sexta entrevista realizada com ela. Seu humor estava
bom, mas ela apressou-se em contar um acontecimento da semana anterior,
quando um desconhecido tentara entrar em sua casa. D. Maria José começa
a relembrar a história enquanto tiro o gravador....
D. MARIA JOSÉ – Aí esse cara que pediu a esmola e foi simbora. Quando foi de
noite, eu mim deitei, fechei a porta, o menino logo pegou no sono e eu fiquei
acordada, que de noite custo a pegar no sono, só pensando o que não presta. Aí
quando dei fé, fizeram mesmo assim na porta, o chinelo que eu calço de noite pra
andar dentro de casa é aquela de plástico que pisa e ninguém sente.
Lílian – Sei.
D. MARIA JOSÉ – É. Aí, saí do quarto pra fora com o facão na mão, aí cheguei no
mei da casa, olhei e não vi ninguém, aí eu fui devagarinho, quando eu girei aqui o
trinco deu sinal, aí ele pulou lá no canto da casa, eu digo: devia ter aberto a porta
e butado a mão, agora a porta tá aberta, quer vir entrar, pode entrar, agora o
bagaço fica aí na porta. De manhã o delegado vem buscar. Ele foi simbora.
Quando foi depois, empurraram a porta, salabancaram, eu digo: agora eu vou.
Deixei essa luz apagada e a da outra sala acesa. Aí eu vim, cheguei, quando eu
brechei, parece que viram a réstia, por que essa pareia aqui clareia lá. Aí pularam
aqui nesse canto, eu abri a porta todinha, todinha e digo não quer voltar não, a
porta tá aberta? Aí mim encostei pra esse lado e pensei: se ele entrar eu dano o
facão com toda força. O facão é pesado, o facão não é maneiro não. Quer ver o
facão? ((Vai buscar o facão no quarto para nos mostrar)).
Lílian – Deixa eu ver. Ô mulher braba!
D. MARIA JOSÉ - Será que tem um diabo que agüente uma facãozada dessa?
((empunhando a arma)).
Lílian – Nossa, D. Maria!
Diva – Mas, é afiado?
Lílian – Não queira saber não.
Diva – Não, quero não, quero não.
Lílian – É melhor não querer saber. ((risos)).
D. MARIA JOSÉ – Não querem experimentar, não é? Raimundo disse, “mamãe a
senhora é maluca?” Não sou maluca não, eu tô na minha. É a ordem que eu tenho
de juiz, de delegado, de Candinha... de todo mundo: passou daculá pra cá com
cabimento, já sabe o que é que vai comer! Eu nasci de nove meses no meio do
tempo. Caí no meio da vida. Mim criei no tabuleiro trabalhando, trabalhando...
Com sete anos peguei a andar no meio do mundo mais papai, mim criei
trabalhando. Um cara lá: “a senhora conta o começo da sua vida,” pra quê? O
senhor vai me dar uma loja? “Não,é pro que eu quero saber.” Ele queria fazer
jornal. Eu digo: não senhor, a minha vida quem vai saber é Deus e mais ninguém. Ô
Rafael. ((chama o neto para comprar fumo))
Rafael – Senhora?
D. MARIA JOSÉ – Repare aí se ainda, se tem fumo em cima desse catatau.
Traga!
Lílian – Qual era o verso que ele queria que a senhora cantasse?
D. MARIA JOSÉ – De Marina.
D. MARIA JOSÉ – Eu digo: o verso de Marina é cumprido e eu não vou cantar o
verso de Marina, sabe por quê? Porque estou doente da minha cabeça e não posso
cantar agora. Ele disse: “vamos pra Manaus, lá a gente trata da senhora bem, lá a
senhora vai ganhar dinheiro.” Eu digo: irá ou não. “Porque a senhora diz isso?”
Porque quando a gente vê muita farofa é sinal de pouca bosta. Eu não vou, não
quero morrer no mei do mundo, quero morrer no mei dos meus filho. “Não, a
senhora só passa duas semanas mais a gente.” Não, vou não.
Lílian – Duas semanas é muito tempo, né?
D. MARIA JOSÉ – Eu vou passar duas semanas fora do meu povo?! Não.
Lílian – É muito tempo!
D. MARIA JOSÉ – O verso de Marina diz assim: ♫“Marina era uma princesa
muito rica e educada, porém amava Alonso que não possuía nada. Alonso foi
injeitado, criado por um ferreiro trapio, morto de fome, sabe quem, assim,
muitos dias não come,” ♫ e por aí segue.
Lílian – Que bonito! A senhora gravou esse em disco?
D. MARIA JOSÉ – Eu penso que gravei. Agora, tem um CD aí, mais ele tem uma
parte que tá arranhado. José levou pra lá e quando veio, veio arranhado. Tem o
verso de “Marina”, tem o de “Alzira”, tem o “Côco da Lagartixa”.
Lílian – Qual é aquele que faz “dão, darão, darão”. ♫Por que choras minha filha,
dão darão, darão”. ♫ Não é assim?
D. MARIA JOSÉ – É. ♫ que eu te ouço soluçar dão, darão, darão. Que eu te ouço
soluçar, dão, darão, darão. Entre dentro dessa roda, dão, darão, darão. É você a
mais formosa, dão, darão, darão. Na camarinha ficar, dão, darão, darão. Na
camarinha ficar, dão, darão, darão. ♫
Diva – Agora você sabe o que é camarinha, Lílian?
D. MARIA JOSÉ – Antigamente era camarinha, agora é quarto. Aí, ele o pai
disse: ♫ “escolha o que tu quiser”, “o que eu quero é casado e tem família, o que
eu quero é casado, dão, darão, darão, é casado e tem família, dão, darão, darão.”♫
Aí ele o pai diz: ♫ “ô diabo, ô diabo, dão, darão, darão, eu quero o conde aqui, dão,
darão, darão, eu quero o conde aqui.” ♫ Aí, o conde chega, aí ele diz: ♫ “quero que
mate a condessa, dão, darão, darão, pra casar com minha filha, dão, darão, darão,
pra casar com minha filha, dão, darão, darão. Quero que traga a cabeça, dão,
darão, darão, nesta adorada bacia, dão, darão, darão, nesta adorada bacia, dão,
darão, darão.”♫ Aí ele chega em casa chorando, aí a esposa pergunta: ♫ “por que
chora meu marido, por que te ouço soluçar?” ♫ Aí, ele vai e diz: que é o rei que
quer que mate ela pra ele casar com a filha dele. Aí ela vai e diz: ♫ “bote a mesa
criada, dão, darão, darão, pra comer por despedida, dão, darão, darão, pra comer
por despedida, dão, darão, darão. Se sentaram-se na mesa, dão, darão, darão,
nem um, nem outro comia, dão, darão, darão, nem um, nem outro comia, dão,
darão, darão. As lágrimas eram tantas, dão, darão, darão, que pelos pratos
corriam. ♫ Que povo besta pra chorar, né?!
Lílian – É.
D. MARIA JOSÉ – ♫ “Forra a cama criada pra dormir por despedida, dão, darão,
darão, pra dormir por despedida, dão, darão, darão.” Aí ela diz: “ô criada, ô
criada, dão, darão, darão, mim dá cá esse menino pra mamar por despedida, dão,
darão, darão.” ♫
Lílian – É muito triste esse verso.
D. MARIA JOSÉ – Aí diz: ♫ “mama, mama, meu filhinho, dão, darão, darão, esse
leite de amargura, dão, darão, darão, esse leite de amargura, dão, darão, darão,
que amanhã por essa hora, dão, darão, darão, tarei eu na sepultura, dão, darão,
darão.” ♫
Diva – Meu Deus do céu!
D. MARIA JOSÉ – ♫ “Tarei eu na sepultura, dão, darão, darão, o sino na Sé
tocando, dão, darão, darão, meu bom Deus quem morreria, dão, darão, darão, pra
mim fazer companhia, dão, darão, darão.” Foi aquela bela infante, dão, darão,
darão, que vos casaram bem casado, dão, darão, darão, coisa que Deus não queria,
dão, darão, darão, coisa que Deus não queria, dão, darão, darão. ♫ Ela/... Tá
vendo, ela que quer tomar o marido da outra. Ela não podia fazer o que fez.
Lílian – A senhora cantava aonde assim?
D. MARIA JOSÉ – Papai cantava, pedia a mim os folhetos, papai gravava, cantava
nos roçados e eu aprendia.
Diva – No roçado ele também cantava?
D. MARIA JOSÉ – Papai só trabalhava cantando.
Lílian – Por que a senhora acha que ele só trabalhava cantando?
D. MARIA JOSÉ – Porque era divertido. Papai era homem divertido. Papai
ensaiava boi, papai ensaiava congo, papai ensaiava fandango, papai ensaiava
quadrilha, mais era quadrilha, não era essas porquera de hoje.
Lílian – Pode chamar de porquera, porque eu também chamo, parece um carnaval.
D. MARIA JOSÉ – Isso é uma porquera, só pra darem peido no meio do povo.
Diva – Quadrilha era naquela época da gente.
Lílian – E a senhora sabe as Jornadas também?
D. MARIA JOSÉ – Hum?
Lílian – A senhora cantava com ele as “Jornadas do Fandango”?
D. MARIA JOSÉ – No CD tem, tem a... cumo é?... Esqueci.
Lílian – Quando a senhora tá triste, a senhora também canta?
D. MARIA JOSÉ – Quando eu tô triste? Canto não.
Lílian – Canta não?
D. MARIA JOSÉ – Eu tô sentada lá dentro maginando, tô sentada lá na cozinha.
Lílian – Sozinha! Pensando!
D. MARIA JOSÉ – Pensando na vida. Quando eu morrer, eu não sei o que será da
minha vida. ♫Eu só não quero dizer: quando eu morrer meu caixão vai fumaçando
e o povo fica dizendo essa defunta vai fumando. ♫ ((risos))
Lílian – A senhora sempre tem uma musiquinha, né, Dona Maria, pra acompanhar?
D. MARIA JOSÉ – É, ficar calada não presta não.
Lílian – É verdade.
D. MARIA JOSÉ – Tá, aí outro dia José entrou, ouvi bater na porta, saí ligeiro.
Porque a porta tando fechada, eu encosto a janela abrindo a porta, a janela vem,
aí eu mim alevanto. Aí ele abriu a porta e entrou, quando ele chegou aqui eu digo:
♫ ouvi bater na porta, pensei que era Joana, Valha-me Nossa Senhora, que até o
vento mim engana, ♫ ele disse: “pronto.” Mais eu não canto mais, que a derradeira
coisa que tem na minha boca, era essa presa aqui. Aí eu botei o cachimbo no
queixo e fui passar por debaixo da rede, o diabo do cachimbo enganchou na rede
e levou assim de vez, a presa caiu no meio da casa, abriu minha gengiva aqui.
Lílian – Aí meu Deus! ((risos))
D. MARIA JOSÉ – Rasgou a gengiva daqui até aqui, agora se peita pra doer/....
Diva – Tem que tirar.
D. MARIA JOSÉ – Ficou só o farelinho, mesmo aqui.
Lílian – Tem dentista em São Gonçalo?
D. MARIA JOSÉ – Eu digo quando eu pegar em dinheiro vou lá em cima tirar ao
menos esses cacos aqui.
Lílian – Tire, porque dói.
D. MARIA JOSÉ – É ruim demais.
D. MARIA JOSÉ – Aí, eu só fumo segurando o cachimbo.
Lílian – Não tem mais dente pra segurar. ((risos))
D. MARIA JOSÉ – De dente inteiro só tem esses três, mas não serve nem pra
segurar o cachimbo! ((risos))
Lílian – D. Maria, a senhora gosta dessa vida de ficar cantando no meio do mundo
assim? O povo te leva pra lá, leva pra cá.
D. MARIA JOSÉ – Correndo dinheiro, eu gosto.
Lílian – É claro! Mas o que eu quero dizer é se acabou com seu sossego, esse
negócio?
D. MARIA JOSÉ – Agora só não vou mais Gurgel. Pra ele não canto mais, não.
Lílian – Por quê?!
D. MARIA JOSÉ – Ele chegou, mim levou pra Mossoró/...
Lílian – E foi ele quem começou com isso, não foi?
D. MARIA JOSÉ – Foi, aí ele, Benidita deu um tranca nele porque ele disse:
“quem fez essa casa foi Candinha? A senhora deu em andar mais Candinha pelo
mundo, quem fez essa casa foi ela? Repare se ela fez sua casa, quem fez sua casa
foi o prefeito.” Aí Benedita disse: “claro, quem fez a casa foi o prefeito porque
ele compreendeu que ela merece. Se ele não compreendesse que ela merecia, ele
não tinha feito, repare se ela saía daqui mais Candinha se ela ficava abandonada.
Subia era de elevador pra dormir lá em cima nos hotel, ia de avião, não ia pagar
com o dinheiro dela, que isso ele não tem nem para pagar um carro, ia e vortava. E
o motorista vinha deixar ela em casa e vinha buscar. Ela não ia pedir a seu
ninguém. E ela, Candinha, não vinha com um CD na mão pra entregar a ela, um CD,
como o senhor veio. Quando Candinha fez apresentação do CD eu sei que pra mim
ela trouxe cinquenta CD.”
Lílian – Que bom! Deu um dinheirinho bom.
D. MARIA JOSÉ – Também ele pegou o carro e saiu, as meninas só faltaram
morrer de rir. Porque quando cheguemos lá na Paraíba ele disse: “eu vou na
peixada mais minha rainha.”
Lílian – Minha rainha, quem é? É a mulher dele?
D. MARIA JOSÉ – Sim! ... Que tem assim, não sei se vocês sabem aonde é?
Lílian – Rum!
D. MARIA JOSÉ – Que tem um pau todo cortado redondo, uma ruma de madeira
e um barraquinho que vende as coisas na frente. Aí ele disse: “a senhora fique aí,
que eu vou pra peixada.” E foi simbora pra peixada.
Lílian – A senhora fique aí, aonde?
D. MARIA JOSÉ – Debaixo do pau. Nem deu ordem pra mode dá um café, nem
tomar café, nem nada e foi-se embora.
Lílian – Nem perguntou se queria ir pra peixada também, né?
D. MARIA JOSÉ – Seu Severino disse: “mais tá bom, como é que seu Gurgel traz
a senhora.” Porque ele só mim chama Maria José. Eu cresci como Maria José,
Militana agora pro mode os documento.
Lílian – Gurgel lhe chama de Maria José ou de Militana?
D. MARIA JOSÉ – Só chama de Maria José. Ele disse, num é melhor o nome dos
documento, não? Mas aí eu digo: não, mais já estou acostumada com Maria José.
Lílian – Ah, sim!
D. MARAIA JOSÉ – Aí, ele foi-se embora mais ela, e eu fiquei, Seu Severino
ficou mais eu. Seu Severino: “mais como pode, o sol se pôs e ele nem chega.” Aí
Seu Severino mandou butar um café, aí veio macaxeira com [?] aí eu disse, seu
Severino tire esse negócio de cima da macaxeira, aí ele disse: “a senhora não
come, não?” Não senhor. Aí ele foi, mandou arretirar e eu tomei o café, mas eu
não era besta não, na minha bolsa tinha três recheado, ((pacotes de biscoitos
recheados)) aí eu tomei café. Ele disse vamos olhar ali, aí fumo espiando as coisas
pra aqui, pra acolá e quando chegou a hora, e ele sem chegar, e quando chegou a
hora de cantar, eu subi no palanque, tava cantando, aí cantei, quando ele chegou,
eu já tava cantando. Aí tinha ido um filho dele atrás da gente. Quando chegou,
encostou o carro, perguntou a Seu Severino por ele e Seu Severino disse: “ele
saiu.” Aí ele disse: “como é que papai traz a mulher pra cá, e sai sem dirigir
nada?” Aí deu um batido nele quando ele chegou. Eu digo: eu não ando mais, mais
ele, aí veio mim dá cem reais e tirou vinte pra dar aos homens que foi dizer
poesia. Eu não saio mais mais ele. Agora ele quer que eu vá pra Mossoró e eu não
vou.
Lílian – Tá certa, pra ser mal tratada, não tem graça.
D. MARIA JOSÉ – Candinha disse... ... por certo ele falou pra Candinha, que ela
mandou dizer pelo repórter, que eu não fosse. Agora se ela for pra Campinas, eu
vou. A professora disse aqui, a professora é de lá, de Natal.
Lílian – Quando é Dona Maria, Campinas, quando é?
D. MARIA JOSÉ – Parece que do mês de agosto pra o começo de setembro, ela
vai pra Campinas.
Lílian – Com Candinha a senhora vai, né?
D. MARIA JOSÉ – É, mais com ele eu não vou mais não. Vou nada! Quando foi pra
dormir, ele mim deixou no meio da rua mais seu Severino e a filha de Benidita,
Lídia e disse “eu vou aqui na casa da minha irmã.” Foi pra casa da irmã, por lá
jantou mais a mulher e não perguntou nem pra onde eu ia, se não fosse Seu
Severino! Aí seu Severino foi, tinha uma coisa assim, Seu Severino foi falou, aí
disse: “eu tomei conta, dou conta.” Aí desse lado assim tinha duas camas pra
gente, e do outro lado tinha cama pra um só. Ele disse: “qualquer coisa encarque
nesse botão vermelho ali que eu escuto.” Tá certo. Aí Seu Severino ficou na de lá
e dormimos eu e Lídia na outra, mas a faca tava aqui comigo.
Lílian – A faca a senhora não larga!
D. MARIA JOSÉ - Eu fui pra São Paulo aí quando chegou no aeroporto, Antônio
Nobre mandou me buscar só com o motorista. Aí, entremo no carro, tava eu e
Marina. Quando demo fé o motorista subia e descia ladeira, subia e descia a
ladeira, porque São Paulo não é todo assim? Haja subir ladeira e descer ladeira,
entrava em avenida e saía em avenida. Aí eu levei uma garrafa de álcool, tirei da
bolsa, butei assim, puxei a tampa de vidro de álcool, deixei ele em ponto. Aí
Marina olhou e disse: “mamãe pra que a senhora fez isso?” Eu digo eu não sou
besta não, vai que eu fique perdida aqui dentro de São Paulo. Mas eu hei de achar
a delegacia e pedir socorro pra mode ir mim deixar em Natal. Mais se ele tentar
arguma coisa, ele se vê comigo. Aí ele saiu, o pobre tava era ariado.
Lílian – Coitado! Que sufoco! O pobre correndo perigo com D. Maria dentro do
carro e nem sabia. ((risos))
D. MARIA JOSÉ – Aí, já não sei por onde passemo /... não tem rio prum lado, rio
pra outro e o aterro no meio? Já foram lá?
Diva – Eu só tive umas duas vezes em São Paulo, Lílian é que conhece.
D. MARIA JOSÉ – Nós passemo lá e ele desconfiou e olhando pros lado, e já
aperriado, de vez em quando passava as mãos na cabeça, Aí eu pensei: se ele
entrar em casa diferente, tô morta.
Diva – O que a senhora chama de casa diferente?
D. MARIA JOSÉ – Você não sabe o que é uma casa diferente não?!
Diva – Não.
D. MARIA JOSÉ – Hum?!
Diva – É aquelas casas de luz vermelha?
D. MARIA JOSÉ - É casa de mulher da vida!
Diva – Ah, sim!
D. MARIA JOSÉ – Aí, tinha um moreninho e ele perguntou ao moreninho onde
ficava o canto pra onde a gente ia. Aí ele disse: “deixaste muito atrás. Você
segue, adepois de descer a ladeira lá embaixo, segue as esquerdas e quando
chegar no final, entra pra direita e repara que o letreiro tá em cima.” Ele virou o
carro e nós fumo bater lá.
Lílian – Dona Maria, o motorista tava perdido! ((risos))
D. MARIA JOSÉ – É. Perdido no mundo.
Lílian – E Dona Maria fazendo mau juízo dele, com medo de ir pra casa diferente!
((risos))
D. MARIA JOSÉ – Sim, aí quando foi tantas horas, Candinha aqui mandou
Rossana pra ficar com a gente e Rossana foi.
Lílian – Rossana é aquela que estava com a senhora naquele dia que eu lhe
encontrei? Naquele dia que a senhora foi cantar, lá na Ribeira?
D. MARIA JOSÉ – É. Ela é cheia de farofa.
Lílian – Ela é a secretária de Candinha, né?
D. MARIA JOSÉ – É. Aí ela foi, chegou foi caçar onde a gente jantar e essas
coisas, um lugar pra dormir, aí quando foi de manhã, aí ela trouxe o pão, trouxe
um pedaço de picanha, e era aquela carne cinzenta. Eu olhei pra carne, aí eu
disse: tire à parte, que eu num quero, não! Aí ela perguntou: “Dona Militana a
senhora anda com uma faca no corpete?” eu digo, eu tô em terra alheia, se na
minha terra, eu não mim desaparto dela, imagine na terra dos outros. Aí, olhei
assim e disse: tu vai dá tua carne de cobra pro diabo, pra mim mesmo não. Aí, ela
disse: “como é que a senhora sabe que é de cobra?” Aí eu digo, esse diabo é carne
de cobra, quero não. Aí ele pegou a rir, aí vortou pra trás e perguntou “a senhora
quer ovo?” Eu digo: traz, mais traga ovo sem ser de jacaré. Quando foi a mei dia,
lá vem ela com carne. Eu digo: óia eu não quero sua carne. Ela disse: “porque a
senhora tá cismada?” Eu digo: pro que na televisão eu vi os cabra matando cobra:
mataram uma sucuri, mediram da cabeça três palmos, mediram do rabo três
palmos, quando acabar cortaram, tiraram o fato, tiraram o couro, foram lá pro
riacho, lavaram, cortaram e botaram no saco plástico pra mode trazer pra cá.
Mataram duas, pra trazer pra São Paulo, lá na mata de São Paulo. Aí, ela disse:
“tá ruim pra senhora passar.” Aí quando a gente viemo, chegamo com Candinha o
motorista foi buscar a gente no aeroporto, quando a gente cheguemo, agora, eu
tive vergonha porque tinha dois policiais na frente, cheguemo assim, o carro
encostou, que ela desceu do carro, eu desci primeiro, aí ele disse: “Mas Dona
Candinha, Dona Militana não levou a faca!” Aí ela disse: “o que Rossana?” “Dona
Militana não levou a faca!” Aí eu disse: Dona Candinha, não mande mais gente da
boca larga viajar comigo, que eu não gosto de gente da boca larga, gente falador,
gente da língua pesada. Só gosto de andar com gente que o que vê, deixa. O
soldado ria, só faltava morrer de rir, aí veio Seu Rivaldo, “Dona Militana levou a
faca, ela tá certa. Em terra estranha ninguém anda com as mãos abanando e
mulher é muito pior.” Aí eu disse que não viajava mais com ela.
Lílian – É mulher tem que se proteger, Aliás, vida pra mulher é muito difícil, não
Dona Maria?
D. MARIA JOSÉ – É sim!
Lílian – Vida pra mulher antigamente era mais difícil ainda, não era?
D. MARIA JOSÉ – Era, aí em Uruaçú e Jacaraú, aí tinha uma moça que não era
certa do juízo. Aí foi um dia butar água, que era ela quem butava água em casa.
Na casa dela tinha duas que era empregada, tinha outra casada, tinha dois irmãos
mais não botava, aí ela foi pra cacimba. Aí quando chegou na cacimba, encheu o
pote, botou na cabeça, aí chegou um home e chamou ela pra ir pros mato. Aí ela
disse: “deixe eu vou deixar a água em casa, deixe eu voltar.” Aí ele disse: “tá
certo.” Ficou esperando sentado na beira da cacimba. Aí ela chegou em casa,
pegou a faca de mesa afiada, botou dentro do seio e chegou foi encher o pote,
ele disse: “deixe o pote, depois você enche.” Ela disse: “não primeiro vou deixar
cheio.” Aí ela encheu o pote, ele chamou ela pra fazer safadeza, aí ele mandou ela
se deitar, quando ele quis se aproximar ela passou a faca na nojenta, tirou com
saco e tudo. Quando acabou empurrou ele com os pés que ele caiu.
Lílian – Quem foi essa? Como é o nome dela?
D. MARIA JOSÉ – Maria Doida. Aí quando chegou em casa com os olhos
acatitados, com o pote d’água, o pai viu a roupa dela suja de sangue, disse: “o que
foi isso Maria?” “Foi nada não! Foi nada não! Foi eu que mandei Mané pro inferno,
ele foi fazer uma viagem.” O pai disse: “o quê menina?” “Foi Mané que foi fazer
uma viagem, é porque ele veio com conversa comigo e eu meti a faca nele.” Aí o
pai disse: “tô reado!” Aí lá foram ver, chegaram e tava Mané morto. Aí ela foi
arrumar a roupa pro mode ir simbora, aí ele disse: “não, nós toma conta.” Quando
a polícia chegou, foi buscar ela, aí ela disse: “vou, eu vou mais levo minha faca.” Aí
ele disse: “leve, pode levar que é pra mode mostrar ao delegado.” Aí veio o pai
dela e os dois irmãos, quando chegou, aí o véio, o Moura, era quem era o mandão.
Aí o delegado disse que ela ia ficar presa, aí o véio Moura disse: “Não, quem
merecia ir preso era ele. Mas, como a menina prendeu ele pra sempre, a menina
vai voltar pra casa dela. Agora o senhor venda sua casa, procure outro canto pra
morar, pode os irmãos dele procurar vingança.” O velho butou ela na casa do
irmão dele na cidade, eu até visitei a casa dele. Vendeu a casa dele e foi embora
pra Natal, até hoje vive por lá, foi Maria Doida!
Lílian – Coitada, ela tava se defendendo!
D. MARIA JOSÉ – Ela era amulecada, mais sei lá, mais quem é que não tem medo
quando vê aquela arrumação. Ela atracou a bicha véia e passou-lhe a faca.
Lílian – Ela planejou, porque primeiro ela veio em casa buscar a faca, não foi não?
D. MARIA JOSÉ – Foi. Ela disse: “eu vou em casa, deixa eu voltar, a calha tá
seca, deixe eu ir deixar logo esse pote d’água, quando eu voltar aí nois resolve.”
Lílian – E resolveu, né?
D. MARIA JOSÉ – Aí deixou a água, chegou cá, encheu o pote, ao invés dele
capar ela, ela capou ele.
Lílian – Mas tem que ser assim, né dona Maria, pra se defender.
D. MARIA JOSÉ – Mulher forte era Marina. Marina, o pai dela foi prendeu,
mandou butar Alonso na cadeia por que ele pediu a mão dela e disse pra não levar
comida pra ele. Aí chamou ela, “você deu confiança a um bandido que agora mim
envergonhou?” Ela disse: “quem mandou pedir, fui eu, se matarem Alonso e
atirarem ele no mar, me lançarei num abismo, com ele irei pra lá.” Aí ele disse:
“pois eu já mandei prender. E garanto que mais de três dias ele não tem de
aturação.” Ela diz: “eu lhe mostrarei!” Aí mandou chamar o guarda, o guarda
chegou, ela tava no jardim, “pra que me chamaste?” Ela disse: “mande soltar
Alonso que tá preso, que te faço um agrado.” Aí ela disse que dava dez mil conto
a ele, ele ia pro Japão mais Alonso, lá ele fazia a combinação. Ele coçou a cabeça,
foi e soltou Alonso. Alonso chegou, ela tava no jardim, ela foi buscar, deu cem a
Alonso e deu dez a ele. Aí ela disse: “quando escreveres para mim, pra não ser
descoberto serei Januária Mendes, filha de Herculano Terto, a que escrever pra
ti, Marcos, filho de Terto.” Aí quando foi com três dias, o cara, o primo dela
apareceu. Aí o rei disse que deu ela ao moço, aí ele pediu Marina em casamento
pra casar no outro dia. Aí ela disse: “eu não caso, como Alonso para mim não tem
outro nesse mundo.” Aí ele foi disse que ela esquecesse de um bandido que
envergonhava o barão. Aí ela ficou com mais raiva, aí quando foi no ato do
casamento, ela disse a criada: “mande que dobrem o sinal.” Aí dobraram o sinal e
no lugar de tocarem a chamada de missa, tocou o sinal. Aí foram vestir ela, ela
colocou o punhal no seio. Quando chegou na hora que o noivo deu a mão pra ela,
ela cravou o punhal e ele caiu. Quando ele caiu, ela deu uma punhalada em cima do
coração. Aí o irmão dele correu em cima, ela plantou-lhe o punhal. Aí ela virou-se
pro pai dela: “Tais satisfeito Barão?/ Viu como uma mulher faz?/ Cumpri minha
jura, ou não” Aí ele mandou butar ela na prisão e ordenou que não deixasse levar
água nem pão, aí ela antes de ir, fez uma carta e mandou pro Japão. Mandou
contar a Alonso, na carta dizia o seguinte: “Alonso, quiseram mim casar a força,/
que não me casava jurei/ lá nos pés do padre/ meu noivo matei,/ matei mais o
irmão dele/ que veio se intrever na questão.” Aí Alonso veio botar, aí de doze
horas da noite, procurando uma pessoa que desse notícia, aí encontrou um velho,
ele vinha com uma enxada, perguntou se ele era carcereiro, ele disse: “sou
carcereiro.” Ele perguntou: “o senhor tem a chave da prisão onde vive a filha do
barão?” Ele disse: “é com essa daqui que eu abro a porta, eu penso que amanhã ela
amanhece morta.” Aí ele disse: “senhor dou-lhe vinte contos de reis pro senhor
abrir a porta. Ele disse: “você faz minha desgraça.” Ele disse: “você vai comigo
pro Japão.” Aí o velho foi abriu a porta, Marina tava desmaiada. Aí ele levava
leite, esquentou o leite e começou a butar na boca dela, desmaiada de fome, aí
foi, ela abriu os olhos e disse: “eu tava sonhando com Alonso, ele tava aqui a meu
lado.” Gritou, chamou por ele, ergue o olho abençoado. Aí de doze horas da noite
ele tirou ela da prisão. Aí vinha ele, ele e o velho, aí invadiram cinco oficial, cinco
soldados. Aí Mariana matou dois, Alonso matou dois, ou Marina matou três e
Alonso matou dois, era seis e ficou um que correu e foi levar notícias ao rei.
Alonso chegou na beira do cais, falou pro capitão do navio, aí ele disse: “mais o
barco tá vazio.” Aí ele disse, o velho disse: “eu vou lhe conservar, eu sei aonde
tem uma alcova, onde nós vamos ficar.” Alcova se chama um subterrâneo, eles
ficaram dentro. O Barão chegou, corregeu o navio todo, não encontrou ninguém,
voltou pra trás. Aí doze hora do dia Alonso saiu fora, aí ele disse: “embarque,
conduza a moça comigo até o Japão conte, pode sair do meu barco se me fizerem
de mim ponte.” Aí tomaram o barco e seguiram. Quando chegou em certa altura...
o Barão, ela ia em cima do convés e conheceu o mastro do navio do Barão, aí o
capitão preparou-se, mas foi quem primeiro morreu. Aí na luta, bala vai, bala vem,
aí caiu uma tauba e eles caíram dentro d’água, eles dois e o Barão tava morrendo
afogado, Marina pegou ele pelos cabelos, tirou e jogou dentro do navio e saiu se
desviando mais Alonso no braço. Aí ela diz: “Alonso eu fui pedida na terra e o
casamento é no mar, os peixes são o sacerdote e ele é de vir nos casar.” Aí uma
voz disse: “tem paciência Marina que o pouco chega.” Aí chega uma tauba, a tauba
que caiu, mais deixa, que a tauba era a mãe dela. Aí ela reclamando, aí aquela voz
diz: “deixa de reclamação que a pouco chega uma onda que salvará sua vida.” Ela
diz: “Oxente! Quem és tu que tais falando?” “Marina, eu sou tua mãe que venho
te acompanhando daqui em diante ando por ti zelando” com pouco tempo ele
encostou na praia. Quando encostou na praia, aí vinha um pescador e viu eles no
chão, aí soltou um grito “serás alma do outro mundo ou será sarteador?” Aí
Alonso disse: “nem somo alma do outro mundo, e nem somo sarteador, nós somos
dois naufragados, lutemos o dia inteiro, e estamos congelados." Aí ele foi em
casa, trouxe uma capa pra Alonso vestir e trouxe uma roupa da mulher dele pra
Marina. Aí diz Alonso, vestiu Marina que já tinha esmorecido e saiu. Aí ele foi
perguntou se não tinha quem vendesse, quem tivesse um navio, essas coisas não
sabe? Ele disse que conhecia Manasés, aí ele disse: “Manesés e Maciel esses são
meus amigos, só tem que nunca vi.” Aí mandou o recado, ele mandou o navio e eles
pegaram o navio, seguiram no meio do mundo, foram simbora pro Japão. Adepois
deles casados, foi dois irmãos e mataram Alonso. Mataram Alonso na porta da
igreja, quando eles tavam saindo, eles atiraram nele. Na hora que eles atiraram
ela mandou a polícia prender, a políca prendeu, ela mandou fazer um forno,
prenderam assim, com não sei o quê e botou dentro d’água. De dia quando a maré
tava cheia, quando a maré tava seca, a água ficava por cima dos pés, e quando a
maré tava cheia a água pelo pescoço. E de noite, ela mandou butar noutro canto. E
nesse dia ela mandou butar fogo no forno e mandou butar eles dentro, o forno
pegou fogo e assou todinhos. Ele morreu assado. O cara que matou Alonso,
morreu assado em cima do forno.
Lílian – Marina era parecida com a senhora, num era?
D. MARIA JOSÉ – Hein?
Lílian – Marina era parecida com a senhora.
D. MARIA JOSÉ – Era nada. Eu não tinha essa coragem de matar ninguém
queimado não.
Lílian – Uma lutadora. Todas essas suas histórias. Já prestou atenção, que são de
mulheres fortes?
D. MARIA JOSÉ – Como é?
Lílian – Todas essas suas histórias são de mulheres fortes.
D. MARIA JOSÉ – Porque a gente não deve ser morta dentro da saia, não. Muito
embora que às vezes se cague de medo. ((risos)) O que se faz já tá feito, não tem
mais jeito. (SILÊNCIO)
Lílian – É, esse de Marina que a senhora contou a história agora, é aquele que o
homem de Manaus queria que a senhora cantasse, esse verso?
D. MARIA JOSÉ – É.
Lílian – Ele é grande, é uma história grande, né?
D. MARIA JOSÉ – É uma história cumprida.
Lílian – Mas é bonita, muito bonita!
Diva – Muito bonita ela.
Lílian – E essa mulher matou quem o pai queria que ela casasse e matou o
assassino do marido.
D. MARIA JOSÉ – Marina é que nem eu, ninguém me engana com um olho, não!
Sou besta não!
Lílian – Tá certa, D. Maria! (SILÊNCIO). São histórias de mulheres corajosas,
né?
D. MARIA JOSÉ – O cara que mim procurou pra mode mim botar na gravadora
aqui de São Gonçalo/...
Lílian – Hum!
D. MARIA JOSÉ – Aí eu tava sentada aqui com as costas pra cima e a frente pra
baixo. Aí ele veio aqui pra cima e entrou aí na casa de baixo. Eu não vi. Eu tava
cantando ♫“Ô ingrato se tu tinhas outra amante,/ por que e para que tais mim
enganando,/ se algum dia tu voltares a minha porta,/ não te quero, nem que tu
venhas chorando./ Ainda te vejo, tu em minha porta pedindo esmola,/ medingando
pão,/ te dou a esmola porque tu sois pobre,/ mais nunca, nunca eu te darei o teu
perdão.”♫ Aí, ele chegou aí: “isso é que é um peito!...” Eu tava cantando mesmo em
cheio. “Quando for amanhã de quatro horas, eu venho pra cá pra senhora gravar
umas modas e uns versos pra mode eu butar na gravadora.” Eu digo: tudo bem,
agora precisa tutu. Aí ele disse: “tá certo.” Aí foi-se embora. Aí eu digo: Valdo,
se Zé Aviador chega aqui e mandá eu cantar, a primeira que eu vou cantar... que
ele não é corno?... a primeira que eu vou cantar é essa ♫ “Quando eu vim da minha
terra que o meu senhor mim comprou/ eu vinha com mal sentido na mulher de meu
senhor./ [?] e meu senhor [?] eu com preto não [?] quanto mais preto melhor./
Quando é no dia de santo, que meu senhor vai, vai pra feira, fico minha senhora
numa espriguiçadeira. /Quando é no dia de domingo que meu senhor vai pra
missa,/ minha senhora, mim chama nego, pego vem fazer preguiça ♫. Aí Valdo
disse: “mamãe não cante.” Eu digo se ele vier mim mandar cantar eu canto isso,
que é pra ele não vir mais mandar eu cantar, ele bota na gravadora e os outro vão
acanalhar ele. Ele não quer que eu cante alguma coisa pra mode butar na
gravadora?
((SILÊNCIO))
D. MARIA JOSÉ – É. Eu vou mandar arrancar essas raízes aqui, ((referindo-se
aos dentes, que foram retirados)) que aqui não tem nem um, nem um, tá limpinha,
chega tá fina! Tanto a inferior, como a superior. Aí eu vou mandar tirar essas
raízes, aqui tem um dente, aqui, tem um queixal aqui, eu vou mandar arrancar,
quando acabar eu mando butar só aquelas chapa de pino só pra agüentar o
cachimbo, que fica feio que só, a pessoa vai cantar a boca fica incuída pra dentro
que nem um maracujá.
((todas riem muito))
Lílian – Essa mulher não existe não! ((rindo muito))
D. MARIA JOSÉ – É de tá chorando, por certo?!
Lílian – Tá certo. E hoje, a senhora canta quando?
D. MARIA JOSÉ – Hum?
Lílian – Quando é que a senhora canta, aqui quando quer rir da gente assim, né?
D. MARIA JOSÉ – Como é?
Lílian – Quando quer rir dos outros, é?
D. MARIA JOSÉ – Quando eu quero mangar dos outros, eu mango mesmo.
Lílian – Aí manga cantando, não é isso?
D. MARIA JOSÉ – ((risos)). Quer que eu diga, né pra você gravar. Eu sei que já
mangam de mim por aí. Magina se não mangam duma véia sem os dentes, cantando!
Lílian – Que é isso, D. Maria!
D. MARIA JOSÉ – Ora se não!
Diva – A senhora sempre morou aqui? Ou morou em outro lugar, Uruaçu?
D. MARIA JOSÉ – Eu mim criei aqui, é porque no CD diz assim: ♫ Lá em
Barreiras aonde eu nasci, em São Gonçalo aonde mim criei, eu vou embora pra
meu sítio Oiteiro, adeus terra natal, adeus! ♫
Lílian – Então a senhora veio para cá pequenininha?
D. MARIA JOSÉ – Eu vim pra cá com vinte e dois dias e daqui só saio pro
cemitério.
Diva – Só fez nascer mesmo nos Barreiras!
D. MARIA JOSÉ – Porque mamãe era de Barreiros e papai era daqui, isso daqui
era de papai.
Lílian – A senhora é mais velha de seus irmãos?
D. MARIA JOSÉ – A mais velha de toda irmandade sou eu e a mais safada.
Diva – Tem que ser a mais forte, a mais velha assim tinha que ser. A senhora se
casou lá?
Lílian – Eu queria tirar uma foto da senhora com esse cachimbo.
D. MARIA JOSÉ – Pra quê? Tem uma aqui, ó.
Lílian – Mais, essa aqui a senhora ainda tinha dente. ((risos)).
D. MARIA JOSÉ – É, eu não tô segurando?
Diva – Quando a senhora se casou morou aqui também?
D. MARIA JOSÉ – Foi. Porque o homem que eu mim casei não era daqui, era de
“Passagem do Meio”.
Lílian – Teve um tempo que a senhora me contou que foi morar em outro lugar,
acho que foi quando seu marido morreu.
D. MARIA JOSÉ – Agora quando ele morreu, eu digo, vou passar uns dias fora
daqui, fui pra Santo Antonio, passei dois meses em Santo Antonio. Aí mim
aperriaram pra mode eu ir morar no Gostoso, eu fui lá que é em Santo Antonio
mesmo.
Diva – Eu sei onde é o Gostoso.
D. MARIA JOSÉ – Aí compadre Raimundo, meu primo, saia dali, aquele não é
lugar pra senhora morar não.
Diva – Realmente ali é a parte pesada de Santo Antonio.
D. MARIA JOSÉ – É porque fica mesmo na encruzilhada. Aí eu vim morar ali, mas
lá do outro lado, daquele bambuzeiro pra cá uma entrada que tem, tem quatro
casas, eu morava numa. Eu digo: quer saber, eu vou mimbora pra minha casa. Aí
vim embora pra casa, só com um quarto. Era tudo aberto, a sala, a cozinha era
tudo aberto.
Lílian – Por que tavam fazendo sua casa, não era isso?
D. MARIA JOSÉ – Não, fizeram depois que eu tava aqui.
Lílian – Sim!
D. MARIA JOSÉ – Tá com uns quatro anos, não tá Zé? ((pergunta a seu filho que
chegou a pouco e senta-se na sala para conversar conosco.))
Zé Luiz – Essa casa aqui?
D. MARIA JOSÉ – Hum!
Zé Luiz – Tá com mais.
Lílian – Tá recente.
Diva – Quando a senhora morou em Santo Antonio, seus filhos moravam todos
com a senhora?
D. MARIA JOSÉ – Só tava comigo Raimundo.
Diva – Todos os outros eram casados. Todos eles moram aqui por perto da
senhora?
D. MARIA JOSÉ – O que mora mais distante de mim é esse aí, que mora lá em
cima, mas todo dia ele vem tomar a benção a mim.
Diva – Todos os dias ele vem dá uma olhadinha na senhora.
D. MARIA JOSÉ – Se ele não vier de manhã, que ele trabalha, mais quando é
nessa hora vem direitinho.
Diva – Muito bem, é sinal que a senhora foi uma boa mãe.
D. MARIA JOSÉ – Não tem quem tenha mais amor a ele do que eu. O pai morreu
ele ficou com quatorze anos. Não, quando o pai mim deixou foi simbora, ele tinha
quatorze anos. O pai mim deixou foi pra Poço de Pedra, passou quatorze anos,
dois meses e dezoito dias. Ele começou a trabalhar com quatorze anos pra mim
ajudar.
Lílian – Ele é o mais velho?
D. MARIA JOSÉ – É, dos homens é.
Lílian – Quem é a mais velha mesmo?
D. MARIA JOSÉ – É Francisca, mora lá no canal. Já ta com a cabeça ficando
branca, ainda quer arrumar homem.
Lílian – Ela tá certa. Sua cunhada não queria com cento e vinte anos? ((risos)).
D. MARIA JOSÉ – Agora ela casou.
Lílian – Foi?!
D. MARIA JOSÉ – Num morreu.
Lílian – E por que a senhora acha que ela casou?
D. MARIA JOSÉ – Ela vivia dizendo “esse moreno não servia nem pra barrer
canfunelo.” Aí Dácio disse: “que diabo é cafunelo?” Eu digo: você não sabe o que é
canfunelo? Ele disse, “eu não.”
Diva – Igual a mim, não sei o que é uma casa diferente. ((todas riem muito))
D. MARIA JOSÉ – Vocês não sabem o que é canfunelo, não?
Diva – É o cemitério.
D. MARIA JOSÉ – É o cemitério.
Lílian – Eu também não sabia não, Dona Maria.
D. MARIA JOSÉ – E ele: “Vije! É um cemitério?” Eu digo: é.
Diva – Só não sabia dessa sua casa diferente, eu conhecia outros nomes, agora
casa diferente!
D. MARIA JOSÉ – A casa diferente é a casa de rapariga. Aí ao invés deu entrar
lá, ele é quem ia entrar.
Lílian – Ia mandar ele pro canfunelo, né?
D. MARIA JOSÉ – Era. Aí dentro do carro ele bateu assim, assim acidentou-se.
Lílian – Ainda tinha o álibe! Essa mulher! Tá esperando a mãe, ele é? ((referindose ao filho de Benidita))
D. MARIA JOSÉ – É que ela tá com a menina no hospital.
Diva – A menininha dela?
D. MARIA JOSÉ – Ela tá com febre. Tem um feijão verde que ela disse que eu
botasse no fogo e eu nem tava mim lembrando, conversando, mim lembrei agora.
Diva – Nós não vamos atrapalhar sua luta, vamos lá Lílian pra não atrapalhar,
vamos lá pra Dona Maria fazer a comida dela.
D. MARIA JOSÉ – E empata? É só eu ir lá butar no fogão, o fogão fica
cozinhando e eu venho cá mim sentar.
Lílian – Pode ir cozinhar seu feijão senão sua filha vai lhe dar um carão.
((todas se dirigem para a cozinha e lá continuamos a conversa))
Lílian – Tá melhor a perna daquele cinzento?
D. MARIA JOSÉ – Daquele cinza?
Lílian – É.
D. MARIA JOSÉ – Meti-lhe limão pra cima, visse?
Lílian – E foi Dona Maria?
D. MARIA JOSÉ – Meti-lhe limão pra cima, passando limão nas pernas e passo um
negócio que tem aí, aí elas tão alimpando.
Lílian – Vou trazer um hidratante para senhora.
D. MARIA JOSÉ – Se não mim chamam: é a nega cinzenta! Presta não.
Lílian – O garotinho ficou aqui com a senhora? ((referindo-me ao neto que passou
a tarde conosco))
D. MARIA JOSÉ – Ficou.
Lílian – Mas ele é até obediente, né D. Maria?
D. MARIA JOSÉ – É, quem não é, é o outro. Entre pra dentro de casa, chegue
Rafael? Rafael?
Diva – Ele tá brincando aqui na frente.
Lílian – Rafael é o nome do anjo. Ah não, o anjo é Gabriel.
D. MARIA JOSÉ – Tem São Gabriel e São Rafael.
Lílian – Ah! Tem São Rafael também, né?
D. MARIA JOSÉ – São Rafael! São Miguel é o pesador das almas.
Lílian – Quem?
D. MARIA JOSÉ – São Miguel é o pesador das almas.
Lílian – Como assim, Dona Maria, o pesador?
D. MARIA JOSÉ – Aquele que tiver muito pecado não entra no céu não.
Lílian – Quer dizer que é ele quem decide, né?
D. MARIA JOSÉ – ♫ Existia no mundo um pecador obstinado/ matou o padre e
padrinho e o pai por quem foi gerado. Tinha o crime por amigo/e Deus por seu
intrigado. Matou o pai que o gerou /e a mãe que concebeu/de nada teve remorso/
tal foi o destino seu. ♫ Aí ele caiu doente. Aí o anjo da guarda, ele veio e disse a
ele:” ninguém pode viver sem dar conta dos seus pecados.” Aí ele veio e disse a
ele que não pensasse no que fizesse, deixasse que ele defendia. Aí ele deu uma
vertigem e o demônio/... ((para um pouco para lembrar e continua cantando)) ♫
Ele deu uma vertigem/ o home expirou./O demônio tava perto/ativo se
conservou/ o anjo da guarda veio/ e o diabo se amassou. O diabo pergunto: “ó
anjo,/ o amigo vem a negócio,/ essa alma não mim pertence, /nela eu não quero
sócio,/ eu trabalho e para mim e o resultado é o pior♫
Lílian – O diabo ficou perto o tempo todo?
D. MARIA JOSÉ – Até ir pro cemitério. Aí o anjo da guarda disse: ♫”cale-se
infeliz maldito,”/ lhe disse o anjo da guarda:/ “essa alma só pode ser sua /depois
da sentença dada,/ ele não foi a juiz/ para ser sepultada.” ♫ Aí a alma seguiu, o
anjo da guarda acompanhou, aí quando chegou lá, nos pés do altíssimo, Nosso
Senhor disse: “antes que te confesse/ publica, por tua boca/ que benefício
fizesse.”/ ♫Ela faz censura/contasse certos passado,/ porque, o meu próprio
pai/ também foi assassinado./ Tinha o crime por amigo/ e Deus por meu
intrigado.”♫ Aí Nosso Senhor disse: “por minha justa sentença,/tu tais
condenado.”♫ A alma soltou um grito/ no receber da sentença,/ o demônio tragou
ela,/ levando no ar suspensa,/ dizendo consigo mesmo,/ que felicidade imensa./ A
alma se vendo aflita/ no terror das agonias/ caiu nas mãos de Maria/ ainda com
esperança/ de pela Virgem ser socorrida. “Virgem, ó Virgem Maria,/ filha do
Espírito Santo,/ mim cubra com o vosso divino manto,/ vinde mim socorrei, de
vossos pés não mim levanto.” ♫ Aí Nossa Senhora diz: ♫ “Ó alma tu fique aí/ que
vou falar à Jesus/ Digo que te prometi/ e sei que Ele mim atende sabendo que eu
sou por ti” O demônio quando viu/ a Virgem Pura partir/, disse ao outro
companheiro:/ “lá vai a compadecida, /mulher que com tudo se importa/ e quer
ganhar questão vencida.” ♫
Lílian – Ah, esse verso eu acho que conheço!
D. MARIA JOSÉ – Aí o anjo a acompanhou. Aí Nossa Senhora falou pro Nosso
Senhor, e o Nosso Senhor disse: “Ainda não faz meia hora que ela aqui confessou,
eu já dei a sentença dela e não posso mais com nada.” Aí Nossa Senhora disse: ♫
“infinito Jesus que mostra vosso poder,/ se ela tiver castigo por ela hei de
sofrer.”/ “Se minha mãe mim pede eu sou um juiz fiel,/ pra ver que jeito dar,
mandei chamar São Miguel.” /São Miguel chegou sorrindo/ e disse: “pronto
Senhor.”/ Ele disse: “Miguel você vá defender um pecador/ pra ver se pode
aterrar a razão de um traidor.” / O demônio quando viu /a alma salva, dum lado/
lançava fumo e fogo/ grunia desesperado./Danava o dente no couro/ como um cão
que ta danado. ♫ Quando a alma viu, saiu cantando: ♫ “louvada seja Maria amparo
dos desgraçados, seja nossa sempre guia.”♫
Lílian – Como é o nome Dona Maria, o nome desse verso?
D. MARIA JOSÉ – Não é o verso da “Alma do desobediente”, é o verso
“desobediente”. Ele matou pai, matou a mãe e São Miguel livrou ele dos pecados.
Isso prova que Nossa Senhora é misericordiosa, a gente quando tá desesperado,
pode se pegar com ela. A alma só foi solta, porque Nossa Senhora pediu.
Lílian – Ah, sim. Só porque Maria pediu.
D. MARIA JOSÉ – E tem um bendito que diz: ♫ “ô Maria, ô Maria,/ você veja
quem te chama/ atende aquela triste alma/ que tá perdida, que te chama.”♫ Aí
Nossa Senhora vai diz: ♫ “vai Miguel, vai Miguel, pegue aquele jumentinho, pega
aquela alma [?]”♫. Quando São Miguel chegou o inferno estremecia, as almas
tiveram [?] de alegria. Aí diz: ♫ “não seja tolo Miguel que essa alma não vai lá [?]
que essa alma não vai lá, essa faz três dias [?], não seja tolo Miguel que essa alma
não vai lá.” Aí ele vai e diz: “não seja tolo [?] que essa alma vai é já, a virgem da
Conceição foi quem a mandou buscar.”♫ Aí o cão empurrou a alma, saí alma por
que aqui não quero te ver. [?] a [?] pode valer. Aí São Miguel [?]. É rara a noite
que eu não rezo o rosário de Nossa Senhora da Conceição.
Lílian – É mesmo? Quer dizer então que ela tem o poder de interceder mesmo não
é? Nossa Senhora pode mudar o destino da gente?
D. MARIA JOSÉ – Toda noite eu rezo o rosário de Nossa Senhora. Esse menino
quando era pequeno disse: “vó, a senhora reza o rosário, como é que a senhora
reza o rosário?” Eu disse: olhe a gente pega, reza o Pai Nosso, e diz assim: minha
Virgem, Nossa Senhora da Conceição, vois sois [?] cercada de anjo, coroada de
flores, vós fostes aquela que disseste que quem vos chamaste cento e cinqüenta
vezes no dia, vois a valeria, valha minha Virgem da Conceição. Aí a gente pede o
que quer, aí diz: valha minha Virgem da Conceição! valha minha Virgem da
Conceição! Aí ele dizia: “valha minha Virgem da Conceição, valha minha Virgem da
Conceição.” Aí o pai meteu o pau a rir e pegaram a mangar dele e o menino ficou
chorando.
Lílian – Que maldade, o bichinho rezando, pedindo a proteção.
D. MARIA JOSÉ – Era valha minha Virgem da Conceição e findou chorando.
((ELA DIZ UMA ORAÇÃO QUE NÃO CONSIGO ENTENDER.))
Lílian – Essa é o quê, uma oração?
D. MARIA JOSÉ – A oração de São João.
Lílian – Oração de São João!
D. MARIA JOSÉ – Eu rezo ela toda.
D. MARIA JOSÉ – Se eu for contar minha vida. (SILÊNCIO) Minha vida é um
romance, dizer eu sei que é duro,((reelabora)) faz vergonha eu lhe dizer que no
dia em eu nasci, não achei o que comer, e assim vou levando a vida do jeito que eu
puder.
Lílian – É Dona Maria, que bonito, agora essa foi a senhora que criou? cante ele
de novo, tão bonito!
D. MARIA JOSÉ – ((Dona Maria reelabora)) Se eu contar a minha vida /faz
vergonha eu lhe dizer,/ no dia que eu nasci/ não achei o que comer,/... eu não digo
mais não, você quer aprender.
Lílian – Estou admirando, achando bonito. E por que eu não posso aprender?
D. MARIA JOSÉ – Quando eu nasci assim mamãe dizia chorando que não achou
nem um paninho pra amarrar o imbigo, nunca comi uma colher de leite. Minha vida
sempre foi muito sofrida. (SILÊNCIO)
((fim da fita))
3.2.5. Novos Encontros
As entrevistas que se seguem foram realizadas em maio de 2005.
Após alguns meses sem visitar D. Maria José, voltei, juntamente com Diva, a
procurá-la para estabelecermos novos contatos.
Encontrei a colaboradora da pesquisa morando com sua filha
Benidita. As freqüentes crises de pressão alta tinham inspirado o cuidado da
filha, que a levara para morar consigo, em sua casa no Loteamento Alto de
Canaã, próximo ao Sítio Oiteiro, em São Gonçalo do Amarante.
Ao reencontrar D. Maria José, expliquei-lhe que estava morando em
outra cidade e, por esse motivo, nunca mais tinha aparecido para conversar.
Ela revelou que sentira falta de nossas conversas e reclamou da solidão e
dos constantes problemas de saúde que a afligiam. Contei-lhe o que
acontecera com o material coletado ainda no Sítio Oiteiro e perguntei-lhe se
seria possível realizar novas gravações. D. Maria José lamentou o ocorrido e
mostrou-se bastante disposta a retomar as tardes que tínhamos passado
conversando.
Visivelmente abalada pelas crises de pressão alta e um pouco
decepcionada com as pessoas com quem contava para dar-lhe assistência,
D. Maria José recebeu-nos outra vez, com grande cordialidade, e assim
continuamos nossas conversas...
3.2.6. Transcrição 4
Transcrição da entrevista realizada em 03 de maio de 2005, na casa de
Benidita, no Loteamento Alto de Canaã, São Gonçalo do Amarante.
D. Maria José, dessa vez, aguarda que eu prepare o gravador para
iniciar a conversa. Pergunto-lhe como ela gostaria de começar a contar
novamente a sua vida. Ela reinicia sua narrativa:
D. MARIA JOSÉ – Grave aí. Sempre fui assim. Do meu coração só quem sabe é
de Deus, que foi ele que criou, mas eu nunca levei conversa pra casa. As minha
conversa eu que resolvia. Um dia/... Dácio na gravadora, eu cantando e ele
olhando. Aí quando eu terminei de cantar ele disse: “num vai se despedir não?” Eu
digo: vou. “Cante aquela despedida bonita”. Eu fui e cantei diferente. “Aí ele
disse: “quando essa beleza tem uma menina do olho comprida e outra redonda,
num é de boa.” Eu disse: quem foi que lhe disse isso? “Eu num tava espiando pra
seus olhos?!” Aí eu disse: eu num tava espiando pra olho de ninguém, pra ninguém
vir espiar pra os meus. Aí ele disse: “quantos a senhora não matou, hein?!”
((risos)). Eu não matei ninguém não. O cara morreu foi porque quis. ((risos)). E se
houver precisão, ainda faço de novo.
Lílian – Ah, essa história!
D.MARIA JOSÉ – Qual?
Lílian – Essa, que a senhora matou alguém?
D.MARIA JOSÉ – Porque saiu eu, minha irmã e uma prima minha, mais velha de
que eu dez anos. A gente tinha uns dezoito anos, por aí assim. Aí nos fumo
simbora pros mato. Ela ((a prima)) era dessas que passava a noite todinha na
frente da casa mais o namorado. Aí quando a gente cheguemo, ela disse:
“vambora”. A mãe disse: “num vai nem tomar café?” Ela disse: “eu vou comendo”.
Aí botou uma besteira, saímo e fumo simbora. Quando cheguemo lá em cima, lá de
trás do cemitério. O povo tinha ido tirar madeira. Lá tinha madeira bem boa: [?]
e candeia, um pau que cai a folha e ele fica verde, assim de fora a fora. Aí, Didi
na minha frente, eu atrás de Didi e Bune atrás de mim, comadre Maria Bune, uma
irmã minha. Ela era mais alva de que eu.
Lílian - Como era o nome dela?
D.MARIA JOSÉ – Era Maria. Quando ela foi nascer mamãe ia botar o nome dela
de Bruno, aí quando nasceu, ficou Maria. Mamãe chamava ela de Maria Bune.
Lílian – Ah, sim!
D.MARIA JOSÉ – Aí a gente saímo. Quando dei fé, comadre Bune diz: “Deixa
Chico, me solta Chico.” Aí quando eu me virei pra trás/... Papai dizia que quando a
gente fosse pros mato a gente levasse duas facas. Uma na mão e outra guardada.
Eu só andava com o facão de papai e a minha faca com dois gume na cinta, que era
pra mode as cobra de viado, num sabe? Porque quando ela sacode o bote, o que a
pessoa leva na mão cai, e a pessoa tando com outra faca, até cum uma furada de
agulha ela solta.
Lílian - Sei.
D.MARIA JOSÉ – E eu era sem vergonha, só andava prevenida. Aí quando dei fé,
ela dizendo, me solta Chico, me solta Chico, que eu me virei, ele tava agarrado
com ela, tinha botado no braço e ia dando a volta pra entrar nos mato. Quando
ele ia dando a volta, eu tomei a frente dele, soltei o facão em cima da perna e
agarrei nos dois músculos. Essas quatro unha era desse tamanho ((mostra a unha
grande pontiaguda do polegar direito)). Agarrei nos dois músculo dele e apertei,
quando eu arrochei ele soltou ele e no que ele soltou eu sacudi e ele caiu lá dentro
do garrancho, ficou só com a sola dos pés de fora. Aí ficou me chamando pra eu
tirar ele do garrancho. Eu disse: sai do garrancho sozinho, sem vergonha. Porque
se ele saísse, eu já tava com o facão na mão. Aí ele levantou-se, arrastou a faca
de doze polegadas e disse: “Agora eu vou botar o teu fato abaixo.” Aí eu disse: eu
nunca vi um filho de uma puta botar o fato de uma filha de um homem abaixo. Ele
disse: “então vai ver agora.” Veio pra cima e eu meti-lhe a faca. Levou um corte,
ficou encarnado de sangue, foi tanto sangue! Aí ele levou um corte em cima do
peito, chega abriu. Inda quis vir pra cima de mim, eu digo: vem. Veio e lascou-se.
Diz que ele morreu lá pras banda de Goianinha, mas eu num tive nada com isso
não.
(SILÊNCIO)
D. MARIA JOSÉ - Agora acabou-se a muié, às vezes eu digo: é isso mesmo, quem
fui, quem sou, quem serei! Um dia eu vinha de Macaíba, ... ... já mãe de família, ...
... vinha de Macaíba, eu, Tereza, Nazaré e Antonio Pitoco. Antonio Pitoco correu,
veio esperar por a gente, lá. De lá pra cá, Tereza não sabia que eu andava armada,
aí eu vinha de lá pra cá, eu assim, por esse lado, ela pro Sul, Nazaré pro outro
lado, conversando mais Antonio Pitoco, aí lá vem um cachorro preto, desse
tamanho! ((mostra com a mão)) Aí Tereza disse: “dá caminho a esse cachorro,
Maria José!” Eu digo: se ele não me der caminho eu mato! “Tu não tais vendo que
sem uma arma, sem um pau, não mata esse cachorro, um cachorrão desse?” Mas
eu ... a faca desse tamanho, ((indica um tamanho pequeno)) dessa largura, eu
mandei fazer a preposto.
Lílian – A mesma faca?
D.MARIA JOSÉ – Era. Tinha dois gumo na faca, até que papai quando pegava a
faca de bobeira, aí ele desmanchava os gumo em cima da pedra, quando ele saía,
eu fazia os gumo novamente Aí quando cheguemo, na primeira bueira, lá vem o
cachorro. Aí ela disse: “Dá caminho ao diabo desse cachorro, Maria José!” Não
dou. Aí, quando cachorro foi chegando assim, perto da minha perna, eu aqui tirei
a perna, puxei a faca, botei a faca no cachorro e levei o cachorro pra barreira. Aí
disse: matei o cachorro ou não matei, Tereza? Aí eu digo: agora vou ver se ele
morre, mesmo. A faca chega furou do outro lado da terra. Aí ela disse: “matasse
o cachorro alheio! Mesmo assim, tu fazia com compadre Raimundo”? Eu digo:
fazia com ele, o que faço com qualquer um, olhe pra pinta do meu olho, que uma é
redonda e outra é comprida. Num nasci gente, não. Aí ela disse: “tu como sois
safada!”. Aí digo: não diga de novo! Viemo simbora. Quando chegou das cajazeiras
pra cá, eu achei um cabo de enxada descascado, peguei o cabo novo, vou botar
nas costas, vou levar esse cabo pra botar na minha enxada, que é pra limpar os
terreiros, aí ela disse: “e tu vai passar no meio da rua, com esse pau nas costas?”
Eu digo: e o que é que tem? Só não quero passar com roubo. Aí Antonio Pitoco,
conversando mais a gente, disse: “madrinha Tereza! Óia a vaca de Seu”... como é
o nome do home?... ((tenta lembrar)) É um home que tem pra banda dacolá, que é
rico que só, não sei o que ele... Aí ele: “vaca de Dr. Jales, a vaca, ela tanto dá
como morde”, eu digo: De onde é que tu não apanha de uma vaca dessa? A vaca
mesmo assim, e eu do lado da vaca, Pitoco pro Sul e ela pro Norte. Quando a
gente cheguemo perto, a vaca soltou-se. Eu larguei o cabo da enxada em cima, o
pau bateu e ela caiu se mijando. Quando Antonio Pitoco viu a vaca cair se mijando,
fez carreira no meio do mundo, foi esperar por a gente do outro lado do rio.
Ainda uma semana dessas, ele teve falando: “a senhora aprontou muita coisa!”.
(SILÊNCIO) Mas agora? Agora até um passarinho mim bota no chão.
Lílian – A senhora ainda usa, Dona Maria?
D.MARIA JOSÉ – Uso, eu botei ela lá dentro agora.
((chega Sebastiana filha de D. Maria))
Diva e Lílian – Oi Sebastiana, como vai?
Sebastiana - Tô bem e vocês?
Sebastiana – Bença mãe? Tá melhor?
Lílian – Ela tava doente?
Sebastiana- Essa noite foi até pro hospital!
Lílian - Foi mesmo D. Maria?
Sebastiana – Foi, ela quase que morria, chegamo tarde da noite. Inda viemo de
pé, que num tinha carro e a ambulância num quis vir pra deixar?
Lílian – Não, por quê?
D.MARIA JOSÉ – Por que só tinha o direito de vir buscar, deixar não. Aí nós
viemo bem devagarinho.
Lílian – Por que a senhora não reclama isso? A senhora que tem acesso a esse
povo, prefeito, secretário... tem que reclamar.
D.MARIA JOSÉ – Esse povo liga nada.
Lílian – Mas a senhora faz show, conhece eles. A senhora é importante D. Maria.
D.MARIA JOSÉ – Importante! ((diz com ar de deboche)). (SILÊNCIO) Esse
povo, só faz conta da gente pobre no tempo de política. Aí promete o céu com as
estrela. Depois.... Só vem aqui quando é pra mode eu cantar. Aí me leva pra um
lado, me leva pra outro. A pessoa num tenha fé em Deus não, pra ver! Agora o
prefeito fez uma coisa de bom. Minha casa tava lá no oiteiro tava caindo e ele
mandou levantar.
((Acaba o lado da fita. Enquanto mudo, D. Maria passa a falar de sua infância))
Diva – Dona Maria a senhora plantava pra vender?
D.MARIA JOSÉ – Como é?
Diva – Feijão, arroz...
D.MARIA JOSÉ – Não.
Diva – Ou era só pra comer?
D.MARIA JOSÉ – Comer, papai não vendia, não. Ele vendia feijão, assim: a gente
ia apanhar, ele trazia daqueles sacos de estopa, desse tamanho, vinha cheio com
um cordão passado na boca.
Diva – Sei.
D.MARIA JOSÉ – Eu trazia na cabeça, no ombro, na cabeça, no ombro e a menina
trazia no balaio, que era pra comer. Aí chegava em casa, ele amarrava os mói de
feijão. Trazer da baixa de Massaranduba pra cá feijão pra vender, pra fazer dez
mil réis, oito mil réis, doze.
Lílian – Mas, a senhora ia vender ou as pessoas iam a sua casa comprar?
D.MARIA JOSÉ – Eles iam comprar lá em casa. Aí mamãe... mamãe... que papai
saía de duas horas da madrugada pra ir cortar madeira nos matos, ele cortava
madeira.
Lílian – Ele vendia também, madeira?
D.MARIA JOSÉ – Não, ele tirava madeira, os outros pagavam pra ele tirar.
Lílian – A senhora aprendeu a tirar madeira com ele, então?
D.MARIA JOSÉ – Eu tirava madeira pra cerca.
Lílian – Desde que idade, a senhora trabalhava com ele?
D.MARIA JOSÉ – Eu andava mais papai desde, os sete anos de idade, eu
trabalhei demais. Quando mim casei, fiquei no mesmo rojão, trabalhando.
Lílian – Nunca deixou, Dona Maria, de trabalhar?
D.MARIA JOSÉ – /... Eu podia ter ficado solteira até agora, num era mió?
Lílian – A senhora acha?
D. MARIA- (SILÊNCIO)
Diva– E a sua mãe, como era o nome dela?
D.MARIA JOSÉ – Mamãe chamava Maria.
Lílian – Maria, de quê?
D.MARIA JOSÉ – Maria Militana do Nascimento.
Lílian – Maria Militana?
D.MARIA JOSÉ – Não foi por isso, que minha madrinha botou meu nome de
Militana?
Lílian – Ah, sim!
Lílian – Como era ela, lembra?
D.MARIA JOSÉ – Mamãe? Mamãe era de sua cor. Meus irmãos... Quatro puxou o
avô de mamãe e eu e os outros puxemo à família de papai.
Lílian – Então, Maria Militana do Nascimento e a senhora é Miitana Salustino do
Nascimento, só pegou o Salustino do seu pai? Não, seu pai era Nascimento
também, não era? Como era o nome todo do seu pai.
D.MARIA JOSÉ – Era Atanásio Salustino do Nascimento.
Lílian – Não pegou o nome do marido, não, a senhora, então?
D.MARIA JOSÉ – Não, eu era casada no padre, só no padre. Não era no civil não.
(SILÊNCIO) Eu saí da casa de papai com dois vestidos, como eu já disse. Você
perguntou de minha mãe, não foi?
Lílian – Sim, o que ela fazia?
D.MARIA JOSÉ – O trabalho dela era fazer renda.
Lílian – Ah! Ela fazia renda?
D.MARIA JOSÉ – Mamãe fazia renda, fazia bico, aí depois eu comecei a fazer
cesta...
Lílian – A senhora aprendeu a fazer cesta com ela?
D.MARIA JOSÉ – Não, com papai!
Lílian – Com seu pai? Ah, então, seu pai. Ele fazia cesta.
D.MARIA JOSÉ – Papai trabalhava segunda e terça no roçado, quarta, quinta e
sexta era nas cestas.
Lílian – Aí, ele vendia na feira?
D.MARIA JOSÉ – Aí, ele vendia em Natal.
Lílian – A senhora gostava mais do seu pai ou da sua mãe?
D.MARIA JOSÉ – Meu pai mais minha mãe, ainda hoje, tenho eles guardado no
peito. Grave aí, ((aponta para o gravador)).
D.MARIA JOSÉ – Em casa nós era nove, mais meu pai só, só chamava por mim.
Lílian – Confiava na senhora!
D.MARIA JOSÉ – Porque, só quem reconhecia o que era um pai e uma mãe, era
eu. Quando ele adoeceu, passou um ano se queixando. Mamãe dizia assim: se Deus
visse que era pra ela ficar viúva, tirasse primeiro ela e deixasse papai. Por que
pra ela não agüentar borracheira de filho e nem carão de genro.
Lílian – Sua mãe morreu primeiro?
D.MARIA JOSÉ – Foi, morreu de repente.
Lílian – Foi?
D.MARIA JOSÉ – Não deu tempo nem se botar na rede, nem em cama, nem em
nada. Ela sentou-se na rede, rezou ainda, rezou o credo. No dia que eu tomei
banho frio de uma barriga de duas, que eu tive, uma morreu com sete dias e a
outra morreu com .... foi com três meses.
(SILÊNCIO)...
D.MARIA JOSÉ – Aí ela acabou de tomar café, aí teve por ali conversando e eu
fui pra casa. Que eu toda noite, eu ia tomar a bença, que, da minha porta da
frente, eu via a porta de trás de lá, ficava pertinho. Não passaram lá não, no
Oiteiro? Num tem aquela casa desse lado e aquela e aquela mangueira daquele
lado?
Lílian – Tem.
D.MARIA JOSÉ – A casa dela era daquele lado, mas sendo mesmo naquele alto
que tem.
Lílian – Eu sei.
D.MARIA JOSÉ – Aí eu disse: eu vou já na casa de minha mãe. Aí fui lá, cheguei,
eu tava com quarenta dias de resguardo, aí quando cheguei, entrei. Quando eu saí
na porta, no meu ver comadre Eva ia saindo com um pano amarrado na cabeça.
Ôxente! Cumadre Eva com a cabeça amarrada? Aí eu cheguei, entrei, tomei a
bença a ela, quando eu fui chegando que tomei a bença a ela, ela foi se levantando
da rede pra ir botar o rosário no pescoço de Santa Terezinha, que ela tinha uma
banca, como eu tenho aí.
Lílian – Hum.
D.MARIA JOSÉ – Aí quando ela foi botando o rosário, fastou de costa e disse:
“ai, meu Deus, que dor eu tô na cabeça”, e caiu sentada, no que ela foi caindo,
disse: “ai que dor”, que foi caindo, comadre Benidita, minha irmã foi chegando,
pegou ela pela cintura, mas não agüentou o peso dela, que ela era dessa grossura,
aí caiu sentada com ela. Não deu tempo de botar em canto nenhum. Aí papai
chegou e disse: “É isso mesmo... tá se acabando, minha Maria”. Aí botou a vela na
mão dela, só gastou o bico da vela, ia morrendo sem vela. Papai passou, passou,
quando foi um ano.... ((para um pouco e tenta lembrar)) dois anos, com dois anos
que ela morreu, ele morreu. Ele Caiu doente, aí eu ia pra lá, fazia as coisas pra
ele, era ele só mais comadre Severina. Ela tem que trabalhar, ele doente, ela ia
pros mato, trazia cipó, fazia as cestas, compadre Mané comprava. Aí no dia
assim, que eu vi que ele tava pior, eu ia pra lá passava a noite todinha, No domingo
eu fui pra lá, que eu ia todo dia, passava a noite, vinha pra casa fazia uma coisa e
outra e ia pra lá. Quando foi no dia que ele morreu, aí eu tava sentada na cama
dele, mesmo assim, eu botei a cadeira, mesmo assim encostada na cama e ele
deitado, só de ciroula, as ciroula desse tempo era por aqui, se lembra? ((risos))
Ele só de ciroula, nu da cintura pra cima, deitado, aí eu digo: o senhor fique aí que
eu vou trabaiar, mas volto. Comadre Severina dizia: “eu vou dormir um pedaço da
noite”, e dormia a noite todinha. E eu passava a noite acordada. Aí ele disse: “isso
é que é um calor minha filha!” Eu digo: o senhor quer tomar um banho? “Quem
mim dera eu tomar um banho!” Tinha Gaspar, que era filho, que tinha deixado a
mulher e tava dormindo lá e tinha o neto de Raimundo, Sérgio, e tinha o cunhado
de papai e tinha Neto. Aí eu perguntei: o senhor quer tomar banho? “Quem mim
dera eu tomar um banho!” Aí eu peguei uma bacia, desse tamanho, botei no meio
da casa, na sala, amornei a água, quebrei bem a frieza da água, tirei ele, sentei
numa banca e tirei a roupa dele sozinha, porque comadre Severina tinha ido pros
mato. Aí tirei a roupa dele, dei banho nele, ensaboei a cabeça dele, aí ele ficou
tão limpinho! Aí quando dei banho nele, enxuguei ele, e isso com as portas tudo
fechada, aí enxuguei ele, vesti a roupa, botei ele na rede, ele ficou chorando. Eu
digo: porque o senhor tá chorando, papai? “Porque tu sendo minha fia, eu com
genro, com neto e tu sendo minha fia, tu é quem mim dá banho?” Aí eu disse: e eu
não tinha marido. Não sei o que é que um home possui, não? Aí, deixei ele na rede,
depois tirei ele da rede e botei na cama, que era uma caminha de sorteiro, porque
ele passava um tempo na rede e ia pra cama, ver se estirava a coluna.
(SILÊNCIO). Aí botei ele na cama e dasatei a rede e fui pra dentro, fazer um
café. Quando eu tirei aqui, a chaleira do fogo, que olhei, ele tava assim, aí eu fiz
carreira, deixei a vela e a caixa de fósforo no bolso, e cheguei onde ele tava: o
que é papai? Ele disse: “tô indo embora minha fia, tome conta do terreno, não
deixe gente de fora fazer casa, aí é pros fios e netos.” Eu digo: tudo bem, não
tenha cuidado, não. Aí eu disse: Gaspar, ajeita aqui papai, que papai tá morrendo,
ele disse: “vai buscar minhas chinelas no derradeiro quarto.” Que era dois
quartos grandes, a sala e cozinha. Eu digo: tinha muita graça eu deixar papai nas
últimas pra ir buscar teu chinelo, porque não trouxesse pra debaixo de tua rede?
Fiquei sentada, aí botei a vela na mão dele. Eu disse: chegue, ajeite aqui papai! Ele
disse: “ajeite.” Peguei aqui as pernas dele, torci os quartos pra ele ficar assim e
ele estirou as pernas, peguei por aqui, trouxe ele, carreguei, aí ele disse: “cuidado
pra não ir brigar com ninguém, pro mode não ir apanhar.” Eu digo: não tenha
medo, não. “E outra coisa, cuidado que você é meia doida.” Eu digo: eu sei, mais no
meio das doidices mim lembro do senhor. Ele até achou graça. Aí ali mesmo ele
morreu. Ele morreu, eu disse: cumadre Severina, a hora é essa, aí ela no lugar de
vir pra onde eu tava, fez carreira.
Lílian – Severina, sua irmã?
D.MARIA JOSÉ – Sim, fez carreira chamando as irmãs. Porque elas dizia: “eu não
posso passar a noite, que José só dorme mais eu”, a outra dizia: “eu não posso
passar a noite, que Mané só dorme se eu estiver em casa”, outra dizia a mesma
coisa. Comadre Bune dizia: “eu não posso passar a noite mais tu, porque faço a
bóia muito cedo da madrugada.” Eu digo: não precisa não, não precisa de nenhuma,
garanto que morrer sem vela ele não morre. Aí peguei vesti a camisa dele puxei a
camisa, subi a cueca, que tava lá embaixo, botei a vela na mão dele, ali mesmo, me
deu conselho, me deu conselho e ali mesmo morreu, não fez careta, não fez nada.
Eu vim chorar com três dias.
Lílian – Foi mesmo, Dona Maria!
D.MARIA JOSÉ – Com três dias, foi que eu sentada imaginando: é isso mesmo,
papai tanto que lutou pra criar a gente e morreu sozinho na minha companhia, mas
não tem nada não, aí comecei a imaginar, o que ele fazia, o que ele dizia e chorei.
Mesmo assim foi mamãe.
D.MARIA JOSÉ – No enterro de papai, faltou uma pessoa pra fazer 100 pessoas.
Lílian – Foi mesmo?
D.MARIA JOSÉ – Foi, mesmo assim foi o de mamãe, porque todo mundo gostava
dele.
Lílian – Seu pai era uma pessoa conhecida, não era Dona Maria, na cidade?
D.MARIA JOSÉ – Era, agora/... (SILÊNCIO)
Lílian – Como era o grupo que ele tinha? O grupo de fandango, ele tinha tempo pra
isso tudinho, o que eu me admiro é isso, porque ele trabalhava muito, né? E aí ele
brincava também.
D.MARIA JOSÉ – Ele saía de casa duas horas da madrugada, três horas.
Lílian – Era? Aí ia pra onde, pro roçado?
D.MARIA JOSÉ – Ia tirar madeira, tirar madeira pra [?]. Agora, Minervino, no
dia, com bem um ano pelo menos que papai morreu, aí foi no outro ano, porque
papai morreu no mês de agosto. Já é quase no meio do ano, não é?
Lílian – É. O mês de agosto é mais do que o meio do ano.
D.MARIA JOSÉ – É, aí no outro ano Minervino foi ensaiar o fandango. Minervino
ensaiou o fandango e no dia de apresentar, na véspera do Natal, ele saiu com a
barca, aí cantou: ♫ a rua de São Gonçalo, nunca mais se alegrou, o velho mar e
guerra Jesus Cristo já chamou. ♫ Quando ele disse assim, caiu, aí quando ele
caiu, o povo trouxeram ele pra casa, aí ele melhorou e tudo.
Lílian – Caiu por quê? Ele desmaiou, foi?
Diva – De emoção. Se emocionou.
D.MARIA JOSÉ – Foi. Aí, diz ele que quando tava cantando isso, que elevou a
vista, papai tava lá no patamar da igreja. Ele era quem dizia, não sei, não. Aí
Minervino morreu.
Lílian – Qual era a função de seu pai no fandango?
D. MARIA JOSÉ – Era mar e guerra.
Lílian – Aí nunca mais a barca saiu?
D. MARIA JOSÉ – Não, a barca seguiu, apanharam Minervino, troxeram pra dar
remédio, e continuaram.
Lílian – Saía todo ano, era no Natal, Dona Maria?
D. MARIA JOSÉ – Hum?!
Lílian – Era no Natal que saíam?
D. MARIA JOSÉ – Era. Ele passava seis meses ensaiando.
Lílian – Começava no meio do ano?
D. MARIA JOSÉ – Começava.
Lílian – Eles ensaiavam onde, Dona Maria? A senhora ia ver?
D. MARIA JOSÉ – Papai não deixava a gente sair daqui pra ali...
Lílian – A senhora lembra quais eram os personagens?
D. MARIA JOSÉ – É o mar e guerra, O piloto, o capitão, o mestre, o contramestre, o vassoura e o ração, o gajeiro, eee... o gajeiro...., agora não sei o nome
do outro.
D. MARIA- (SILÊNCIO)
Lílian – A senhora sabe os cantos?
D. MARIA JOSÉ – Hum!?
Lílian – Os cantos da barca? São grandes os cantos da barca?
D. MARIA JOSÉ – São grandes?
Lílian – Os cantos?
D. MARIA JOSÉ – Os cantos?
Lílian – Os versos da barca?
Diva – A senhora viu uma barca sair?
D. MARIA JOSÉ – Vi.
Diva – Era bonito, não era?
D. MARIA JOSÉ – Era. Fazia a barca toda de pano, o piloto vai no leme.
(SILÊNCIO...)
Lílian – Qual era a hora do dia que ensaiava, seu pai?
D. MARIA JOSÉ – Era nos sábado.
Lílian – Ah! Nos sábados.
D. MARIA JOSÉ – No sábado de noite ele ajuntava a turma e iam ensaiar o
fandango.
Lílian – Era gostoso, não era a brincadeira?
D. MARIA JOSÉ – Eu não digo que era gostoso que eu não comi. ((risos))
Lílian – Era divertido, então, não era?
D. MARIA JOSÉ – Era. (SILÊNCIO)
Diva – A senhora não namorou, não, com aqueles marinheiro da barca?
D. MARIA JOSÉ – Como era?
Diva – Não namorou não, com aqueles marinheiros da barca?
D. MARIA JOSÉ – Não.
Lílian – Por quê? Seu pai não deixava, não?
D. MARIA JOSÉ – Deixava nada, papai era, papai era osso!
Lílian – A senhora teve a quem puxar, né?
D. MARIA JOSÉ – Só que ele nunca brigou com ninguém.
Lílian – E era?
Diva – E essa fama de brigona da senhora, vem de onde?
D. MARIA JOSÉ – Não sou briguenta, não. ((risos))
((D. Maria Torna-se reticente e fica calada até que seu neto chega. Ela levantase, vai buscar algo para entregar-lhe, despede-se dele e volta para conversar
conosco. Diva relembra o assunto da mãe de D. Maria))
Diva – Dona Maria e a sua mãe, ela fazia renda pra vender, ou ela só fazia
costurar pros filhos?
D. MARIA JOSÉ – Ela fazia pra vender. Aí depois começamo a fazer cesta pro
INCRA, começamo a trabalhar pra cooperativa, aí a gente fazia balaio de caçote,
fazia balaio, fazia cestinha, aí fazia depósito e fazia aquelas cobeias, fazia o
fundo desse tamanho, arrematava botando assim, e arrematava as pernas pra
sair pra dentro assim e daqui fazia o pé, quando tava nessa altura a gente botava
pra cá, botava umas pernas, emendava as pernas, fazia a saia, ficava bonitinho.
Era fruteira.
Lílian – Mas, a senhora aprendeu a fazer renda, não?
D. MARIA JOSÉ – Eu, no dia que mamãe foi me ensinar, aí começou a mim
ensinar, aí eu [?].
Lílian – Ela tinha aquela, ela tinha aquela coisa: os bilros?
D. MARIA JOSÉ – Era, a almofada.
Diva – Aquela almofada, eu acho bonito, minha vó fazia.
D. MARIA JOSÉ – Agora, um dia ela quis me açoitar, porque quando saiu aquele
negócio: ♫ olé mulher rendeira, olé mulher renda, tu mim ensina a fazer renda
que eu te ensino a namorar. ♫ Ela disse: “pêra aí sem vergonha!” Aí eu fiz
carreira. Tanto negócio que o povo canta, agora que é véio.
Lílian – Naquela época, né?
D. MARIA JOSÉ – Hum. Agora você se sente ali, que eu vou fumar.
Lílian – Tá certo, tá bom.
((houve uma interrupção na conversa pela chegada do genro de D. Maria, que ligou
o som. Após alguns instantes, saímos da varanda e vamos para a frente da casa.)).
Lílian – Dona Maria, conte aquela história do seu nome, como é que foi colocado o
seu nome?
D. MARIA JOSÉ – Colocado o meu nome?
Lílian – Sim.
D. MARIA JOSÉ – Aonde? ((risos))
Lílian – Que a senhora se chama Militana.
D. MARIA JOSÉ – Militana ... ((por um instante D. Maria faz um silêncio. Depois
suspira e muda o assunto)) Eu já tô véia, tenho dois filho, não quero eles em
enrasque, tem meus genros não quero eles em enrasque.
Lílian – Tem dois filhos, a senhora?
D. MARIA JOSÉ – Hein?!
Lílian – Tem dois filhos, a senhora disse?
D. MARIA JOSÉ – Tem dois filho home, só é dois home, cinco mulher e dois filho
home, morreu seis filho home e o resto foi tudo, mulher. Por Deus que morreu
tudo. Foram dezoito filho. Sete eu criei, onze Deus criou. Só ficou essas cinco
mulher e dois home, sete e eu nunca chorei por nem um. Quando via que tava
morrendo, botava a vela na mão, vá meu filho morar com Deus. Quando morre um
filho tem gente que fica reclamando, falando e agravando a Deus. Não sabe! Deus
tira porque sabe que tá fazendo o bem.
Lílian – Eles morreram pequenininhos, os seus filhos?
D. MARIA JOSÉ – Foi. Um morreu com três meses, um quatro ou com seis meses,
outro com um ano e assim morreu tudinho.
((UM GRANDE SILÊNCIO...))
Diva – A senhora nasceu onde, Dona Maria?
D. MARIA JOSÉ – Hein!?
Diva – Onde a senhora nasceu?
D. MARIA JOSÉ – Nasci em Barreiro. Quer bem que eu diga, pra você gravar aí.
((aponta para o gravador))
Diva – É, eu quero que a senhora diga, eu acho tão bonito!
D. MARIA JOSÉ – O dia do meu aniversário?
Diva – Sim, quando a senhora faz aquela despedida, aquele verso, eu acho tão
bonito!
D. MARIA JOSÉ – Nasci em Barreiro, aí quando eu fui pro Rio de Janeiro, quando
eu fui sair, aí eu disse: ♫ Lá Barreiro, aonde eu nasci, em São Gonçalo aonde eu
me criei, eu vou embora pra meu Sítio Oiteiro, adeus Rio de Janeiro, adeus. ♫ Aí
tornei a dizer e era tanto menino, que fazia medo, sentado no meio da estrada, aí
eu cantei e esses menino era uma gritaiada, pulando, era aquela fofoca medonha,
aí chegou uma mocinha franzina, com o cabelo que passava da bochecha da bunda,
aí disse: “a senhora é que é Dona Militana?” Eu digo: é. Aí ela disse: “com vida [?]
e saúde da senhora é a derradeira viagem que a senhora faz, é pro Rio de
Janeiro, não é o povo de fora que vão fazer, se queixe do seu sonho.” E é a última
viagem que eu fiz, seu sonho é quem vai fazer, com ciúme, com inveja/...
Diva – No aeroporto do Rio de janeiro?
D. MARIA JOSÉ – Foi.
Diva – E a senhora conhece essa moça?
D. MARIA JOSÉ – O quê?
Diva – A senhora conhecia essa moça, que fez essa previsão?
D. MARIA JOSÉ – Conhecia nada, conhecia não, ela tava era rodeando onde eu
tava, ((chega Zé Luís, o filho mais velho de D. Maria)). Olhe aí, um dos meus
filhos!
Lílian – Seu filho? Ah! Lembro dele, ele sempre ia lá no Oiteiro não? Como vai?
Zé Luís - Bem. Mamãe gosta de conversar, não é?
Lílian - Eu gosto de conversar com ela também.
D. MARIA JOSÉ – Ele e Marina puxaram a cor do pai e os outros puxaram a mim
que sou morena.
Lílian – O marido da senhora era mais claro, era?
D. MARIA JOSÉ – Era. Ele era mais claro do que eu, agora tinha a fala
atravessada. Ele falava assim, ((fala enrolando a língua)) e os óios da cor do fogo.
ele era assim, viu [?]
D. MARIA JOSÉ – Deus te abençoe!
((Dona Maria faz sinal abençoando seu neto))
Lílian – Tá falando!
D. MARIA JOSÉ – É?
Lílian – Como vai, vai bem?
((falando com o neto que chegou))
Zé Luis – Tá bom!
D. MARIA JOSÉ – Esse quando o pai morreu, ficou com quatorze anos. Quatorze
anos aí foi trabaiá em vacaria, pra mode ajudar a criar os outros.
Lílian – Seu filho mais velho?
D. MARIA JOSÉ – O mais velho.
Diva – Dona Maria, a senhora nasceu em Barreiro e foi morar no Oiteiro, com
quantos anos?
D. MARIA JOSÉ – Eu nasci em barreiro, porque a sogra de mamãe, que era a
minha avó, era quando eu nasci no dia 19 de março, dia de São José, por isso que
eu digo ((recitando)): a maré tava de vazante e a lua tava de minguante. A lua
cortou minha sina e a maré levou minha sorte e eu sou a mais sofredora do Rio
Grande do Norte. Aí disseram - foi lá no Rio de janeiro – eles disseram: “e porque
a senhora diz que foi a mais sofredora?” Eu disse: porque quando eu nasci, não
havia roupa pra vestir, não havia pano pra me enxugar, não havia, não havia comer
pra comer, eu me criei com papa de farinha bruta, mamãe pisava a farinha,
peneirava numa meia e fazia comer pra mim, não fui criada com leite, nem com
carne, nunca comi... Nunca comprou um dedal de leite pra mim. Sempre fui sem
sorte, quando inventei de me casar, saí de casa com dois vestidos e uma rede
emendada e um lençol emendado, tá vendo? Agora, hoje em dia eu tenho com que
dormir, tenho a roupa pra sair, tenho pra vestir em casa. Posso até emprestar
uma roupa a um que não tiver/...
Lílian – O Oiteiro era sítio de quem?
D. MARIA JOSÉ – O Sítio Oiteiro?
Lílian – Sim, era de sua avó?
D. MARIA JOSÉ – Era de papai.
Lílian – Do seu pai? Mas foi ele que comprou, ou ele recebeu herança do avô?
D. MARIA JOSÉ – O pai de papai comprou aquele terreno
Lílian – Sim.
D. MARIA JOSÉ – Na época que ele comprou, comprou por sessenta mil reis,
nesse tempo era “mi reis” e uma besta amojada.
Lílian – O que é amojada, Dona Maria?
D. MARIA JOSÉ – Não sabe, não?
Lílian – Sei não.
D. MARIA JOSÉ – Não sabe também, não?
Lílian – Ela sabe que ela é daqui.
D. MARIA JOSÉ – Eu não sou daqui, nem vim pra ficar. E a minha vó, por parte
de pai: “não é pra comprar nada, que menino quando nasce, enrola com mulambo
véio.” E papai fazia os gosto a ela, que era só um fio que tinha, era ele. Porque
ela... ... morreu o marido dela, morreu, às vezes os meninos diz: “tu só puxasse o
avô da gente, tu tais vendo a [?], pra tu não tem medo, tem não."
Lílian – Sua avó era dura, então né?
D. MARIA JOSÉ – Minha avó?
Lílian – Sim, essa que disse isso com a senhora, a mãe de seu pai?
D. MARIA JOSÉ – É, porque ela criou mais raiva de mim porque depois de eu
grande/...
Lílian – A senhora conheceu ela?
D. MARIA JOSÉ – Conheci. Papai, todo sábado, ele fazia a feira e mandava eu
deixar o quinhão dela. Ele era quem dava de comer a ela. Aí, eu ia, chegava,
Nanina, era Firmina o nome dela, e a gente chamava Nanina. Eu dizia: Nanina? “O
quê?” Tá aqui, que papai mandou. Ela dizia: “deixe aí”, a gente deixava em cima do
fogão e fincava pra casa. Quando foi um dia, morreu uma gata dela [?]. Aí papai:
“Maria José?” eu disse: “inhô”. Ele disse: “vá levar aquela gata de mamãe e vá
interrar lá em cima.” Eu digo: sim senhor. Aí cheguei, chamei Maria Neuma, que
era fia de uma tia minha, era minha prima comadre Maria Bune [?], uma pegou
numa perna a outra pegou noutra, uma pegou numa mão e outra pegou noutra, aí
saímo cantando: ♫ Bichana morreu de véia, bichana de minha mina, bichana
morreu de fome bichana de minha mina. ♫ A véia ficou com ódio de mim e fumo
cantando, e a gata morreu de fome, a gata morreu de maga e fumo deixar a gata
lá em cima. Aí, ela disse: “Atanásio?” “Senhora?” “Maria José foi enterrar a gata
e ia cantando assim, assim, assim”. Aí papai: “Ô mamãe, e ofende?” Ela: “não, ia
dizendo era porque ia botar a gente no mato. Era, mais era fazendo pouco de
mim”. Aí pronto.
Lílian – Como era o nome de seu avô?
D. MARIA JOSÉ – Meu avô era Joaquim.
Lílian – A senhora nunca falou dele. A senhora conheceu seu avô?
D. MARIA JOSÉ – Não conhecia. Não cheguei a conhecer ele não.
Lílian – E por parte de mãe?
D. MARIA JOSÉ – Por parte de mãe, eu conhecia, era um velho encharruscado.
Lílian – Como era o nome dele?
D. MARIA JOSÉ – De quem? Do pai de mamãe?
Lílian – Sim, era.
D. MARIA JOSÉ – Era Alfredo.
Lílian – E sua avó?
D. MARIA JOSÉ – Minha avó era Joana.
Lílian – A senhora gostava deles, Dona Maria?
D. MARIA JOSÉ – Eu gostava, ele era tão mal encarado, que quando a gente tava
brincando debaixo da mangueira, que via, ele corria pra dentro de casa e deitava
debaixo da cama, puxava o lençol da cama pra ficar arrastando no chão.
Lílian – Morava todo mundo assim no Oiteiro, seus tios também,
D. MARIA JOSÉ – Meu avô morava em Barreiro.
Lílian – Ah! O seu avô é que morava lá!
D. MARIA JOSÉ – Mamãe quando foi descansar de mim, foi lá pro Barreiro, pra
casa dele.
Lílian – Pra casa do pai dele, no caso?
D. MARIA JOSÉ – Sim, na casa do vô Joaquim.
Lílian – Aí depois, ela voltou [?], mas sua avó, essa que não gostava da senhora, e
morava no Oiteiro?
D. MARIA JOSÉ – Era, era, morava no Oiteiro. O Oiteiro não era dela?
Lílian – Era isso.
D. MARIA JOSÉ – Às vezes, eu fazia [?]. Um dia nós fumo buscar o leite de
Gaspar, eu tava com doze anos. Aí papai disse/...
Lílian – Quem é Gaspar?
D. MARIA JOSÉ – É irmão meu, ele morreu, já vai fazer três anos.
Lílian – Quantos irmãos a senhora tinha?
D. MARIA JOSÉ – Nós era nove. Morreu uma que ia interar vinte anos, é agosto,
setembro, outubro, né?
Lílian – Hum!
D. MARIA JOSÉ – Ela ia interar ano no mês de outubro e morreu no mês de
agosto.
Lílian – Ela morreu de quê?
D. MARIA JOSÉ – Ela começou com uma dor nas pernas, uma dor de cabeça, um
cansaço nas pernas, uma dor de cabeça e aí foi. Se tivesse levado ela pro
hospital, ela não tinha morrido.
Lílian – Pro hospital, sim!
D. MARIA JOSÉ – Quando Gaspar nasceu, eu tava com doze anos.
Lílian – Então é a senhora primeiro, aí depois vem quem?
D. MARIA JOSÉ – Era eu e comadre Maria Bune e comadre Raimunda.
Lílian – Ah, tá! Maria Bune, a senhora fala muito dela nas suas aventuras.
D. MARIA JOSÉ – Ela puxou a cor de mamãe, era da cor dessa menina com o
cabelo preto.
Lílian – Então é a senhora, Maria Bune, e qual é a outra que a senhora disse?
D. MARIA JOSÉ – É comadre Bune, Raimunda, Gonçala, Dores, Eva, Severina e
Gaspar.
Lílian – Ah! Então, Gaspar é o caçula.
D. MARIA JOSÉ – É!
Lílian – Só teve um homem!
D. MARIA JOSÉ – Só teve um fio home.
D. MARIA JOSÉ – Eu trabaiava no sol quente. Papai botava um roçado na baixa
de Massaranduba e quem colhia esse roçado, era eu, plantava de tudo, do
feijão.... Ele ia com a enxada e eu ia ajudar ele, ele levava comer pra botar no
fogo, quando ele tirava uma carreira, eu já ia mais na frente.
Lílian – A senhora trabalhava no roçado. O que é que vocês plantavam, Dona
Maria?
D. MARIA JOSÉ – Plantava roça, milho, feijão, jerimum. Plantava de tudo.
Lílian – E roça, é o quê?
Diva – É macaxeira?
Lílian – A macaxeira, e plantava pra quê? Pra vocês comerem mesmo, ou pra
vender na feira?
D. MARIA JOSÉ – Nunca vendeu mandioca, nunca vendeu mandioca!
Lílian – Foi?
Diva – E fazia o quê, com a mandioca que a senhora plantava?
D. MARIA JOSÉ – Fazia farinha.
Lílian – Fazia farinha? Ele tinha casa de farinha?
D. MARIA JOSÉ – Não. Arrendava a casa de farinha, era sete cuia de farinha
pra pagar.
D. MARIA JOSÉ – Um dia, ele alugou seis carga de mandioca, ele disse: “eu faço,
seis carga de mandioca eu faço, mais Maria José.” Aí, Ciço dizia: “compadre
Atanásio quer acabar com Maria José, porque uma menina tão boa. Porque vai
arrancar mandioca, leva ela pra ajuntar mandioca, é arrancando e ela ajuntando,
quando é de tarde, leva pra casa de farinha.” Ele dizia: “quem não tem cachorro,
caça com gato. Eu não tenho fio home pra me ajudar, quem pode me ajudar é ela.”
Aí no dia que ia colher a mandioca, o moedor mandou dizer que tinha adoecido,
comeu feijão preto com coco e deu uma dor no estômago dele e ele tava se vendo.
Aí papai disse: “agora sim, eu não posso arrumar outro moedor.” Mandou atrás de
Miguel Mulato, só que Miguel Mulato tinha ido pros mato. Ele ficou, aí eu disse:
vambora moer papai. “Tu tais doida Maria José, tu não tais vendo que tu não mói,
que tu não pode moer mandioca?” Eu digo: vamo moer a mandioca?
Lílian – Por quê? É na mão, Dona Maria?
D. MARIA JOSÉ – Nesse tempo era, agora não é mais não.
Lílian – Agora é na máquina, não é?
D. MARIA JOSÉ – Ele disse: “apois vamo teimosa.” Ele botou o rodete na roda,
eu digo: aboie papai, papai abóie, papai. Ele disse: “puxe na frente”, aí eu cantei:
♫ O veio da roda é meu e a mandioca é de seu dono, cevadeira de minha alma,
deixa-me dormir um sono ♫. Aí ele começava: “essa menina não é gente, não.” Aí
começou a aboiar. Aí eu disse: ♫ marcha, marcha meu cavalo, nessa marcha
miudinha, que é pra ver se chegamos cedo, na casa da mulatinha ♫. Papai disse:
“quem te ensinou este aboio, Maria José?” Aí eu disse: não mandasse eu aboiar?
Um aboio mais outro aboio e assim foi as seis carga de mandioca. Quando foi de
madrugada, ele mim chamou: “Maria José, vambora pra casa de farinha”, foi ele,
eu e comadre Bune. Ele disse: “Maria José, vai peneirar a massa mais Maria
Bune.” Ele tirou a prensa de massa, aí eu mais comadre Bune, comecemos a
peneirar, ele botou na primeira gamela, que ele botou caiu no pé fogo aí eu ia
deixar queimar? Meti a munheca pra cima.
Lílian – Ele aboiava junto?
D. MARIA JOSÉ – Papai?
Lílian – Tipo assim, ele perguntava e a senhora respondia? Um cantava, outro
cantava e respondia o aboio.
Lílian – E a senhora aprendeu, aonde?
D. MARIA JOSÉ – Han ?!
Lílian – E a senhora, aprendeu aonde esse aboios?
D. MARIA JOSÉ – Em canto nenhum.
Lílian – Ah! Quer dizer que a senhora criou o aboio?
D. MARIA JOSÉ – Eu não ia moer? Aí papai chegou e disse: “Essa Maria José não
tem jeito, não!”
D. MARIA JOSÉ – Assim quando era de noite, noite de lua a gente se soltava no
terreiro, era eu e comadre Maria Bune, minha irmã, comadre Raimunda e Santina,
Maria de comadre Adélia, comadre Eva. A gente brincava de boi, a gente brincava
de tudo no mundo, mas quando foi um dia, eu disse pra comadre Bune: eu vou
entrar. Eu entro pra dentro do saco e vocês amarram o saco. Aí, peguemo a
brincar, fazendo o boi, o bicho correndo atrás das meninas, no fim os bichos
empurraram o saco, o saco desceu bolando de cabeça abaixo e eu mim assombrei
dentro. Foi tanto do grito que chegou no terreiro de Zé, e o irmão de papai e
disse: “que diabo é isso?”
Lílian – Saiu, a senhora de dentro do saco?
D. MARIA JOSÉ – Eu saí de dentro do saco. Aí um dia, lá na frente da casa de
Tia Cantu, tinha um barreirão que cavaram o barro pra aquelas casas, quase
todas, aquelas que era de taipa. Aí era um inverno pesado, o barreiro tava cheio,
chega tava por fora, a barreira do lado de cá, era dessa altura assim ou mais alta,
pra lá era mais baixo. Aí compadre Luiz meu primo, era meu primo e padrinho de
Benidita. Aí, nessa época, ele era rapaz sorteiro, tava sentado mesmo assim, no
tronco do coqueiro, com as mãos assim. Aí Tia Cantu disse: “Mas Luiz, essa
menina tem tanta força, essa criatura mói mandioca, vai pro mato, tira madeira.
Com ela aquele terreno, nunca foi abaixo.” E era mesmo. Quando começava a
sortar os varão, as estaca ficava podre, ia pro mato mais Tia Cantu, tirava um
monte de estaca, tirava as estacas, tirava varão, cavava um buraco e fazia a
cerca. Hoje em dia tudo tá abaixo, tanto do lado de cá como o do lado de lá. Mas,
eu sei quantas braças tem de largura, são vinte e cinco braças de largura.
((fim da fita))
3.2.7. Transcrição 5
Transcrição da entrevista realizada em 05 de maio de 2005, na Casa de
Benidita, Loteamento Alto de Canaã, São Gonçalo do Amarante.
Cheguei com Diva ao Oiteiro por volta das 14 h. Tínhamos combinado
a visita anteriormente. Segundo Benidita, a filha que mora com D. Maria
José, ela estava nos aguardando ansiosamente. Já havia perguntado várias
vezes se nós viríamos mesmo. Nesse dia, encontramos D. Maria José muito
pensativa,
sentada
no
quintal,
em
baixo
das
mangueiras.
Estava
preocupada, não se sentindo muito bem por causa de uma crise de pressão
alta. Percebemos que ela não estava bem e demonstramos grande apreensão.
Benidita nos falou da preocupação com a saúde da mãe e com a angústia de
não ter condições de tratá-la, devido às dificuldades de transporte,
assistência... Ofereci-me para levá-la ao médico e tentamos, com a ajuda de
Benidita, convencer D. Maria José. Ela resiste. Convida-nos a sentar e
conversar, alegando que a conversa sempre ajuda a melhorar, pois a faz
esquecer da solidão e dos problemas. Concordamos, com a condição de que
ela tome o remédio e nos informe de qualquer piora. D. Maria José aceita e
Benidita nos serve um café. Em alguns minutos, ela está conversando
conosco com bastante entusiasmo. Começa falando da doença, das
angústias, mas depois, descontrai-se e sua memória transporta a todas nós
para o tempo de suas aventuras de criança... Preparamos o gravador e...
D. MARIA JOSÉ – Um dia eu tava cavando buraco para fincar as estacas, era um
dia de sábado, aí Seu Assis do tinha um novilho raciado. As orelhas... era aquelas
lapa de orelhas. Aí Tia Cantu tava assim na frente, aí disse: “morreste Maria
José!” Eu enterrei dos pés, com um ferro de cova desse comprimento do cabo, eu
enterrei dos pés, dei uma cipoada nesse bicho, o pau bateu ele caiu, mijou-se foi
todo. Tia Cantu: Mataste o boi de compadre Assis! Papai chegou da feira e o boi
no chão. Aí ela disse: “Atanásio?” Ele disse: “Oi?” “Olhe aqui, Maria José matou o
boi de compadre Assis.” Aí Papai. Disse: “é o que é que hei de fazer? Se ela
matou, tá morto. Porque ele tem gado e pode comprar outro touro, e ela eu não
tenho outra filha dessa não. Essa aí é meus pé e minhas mãos.” Eu era pra tudo no
mundo.
Lílian – Então a senhora era companheira de seu pai?
D. MARIA JOSÉ – Era eu a companheira dele, era eu. Se levantava de duas horas
das madrugada. “Maria José!” Inhô? “Vambora”, e eu ia.
Lílian – E a senhora gostava da companhia dele?
D. MARIA JOSÉ – Gostava. Ai! Queria bem a meu pai. Eu queria dizer para você
que ele morreu só na minha companhia.
Lílian – E a senhora conversava muito com ele, além de cantar juntos?
D. MARIA JOSÉ – Ele não conversava, ele não conversava porque ele só
trabalhava cantando. Ele cantando e eu botando tudo nos ouvidos.
Lílian – Ele cantava com a senhora, ele cantava e a senhora cantava também?
D. MARIA JOSÉ – Não. Ele cantava só.
Lílian – E a senhora não cantava com ele, não?
D. MARIA JOSÉ – Não.
Lílian – Por que, Dona Maria?
D. MARIA JOSÉ – Hum?
D. MARIA JOSÉ – Era só aprendendo.
Lílian – É. Mas, na casa de farinha a senhora não aboiava com ele?
D. MARIA JOSÉ – Aboiava, na casa de farinha, eu aboiava.
D. MARIA JOSÉ - Eu comecei a aboiar foi só. Porque ele não mandou eu
aboiar? Porque ele pensava que eu não aboiava.
Lílian – Ele pensava que a senhora não sabia, porque a senhora ficava só ouvindo.
D. MARIA JOSÉ – Aí ele: “Abóia, Maria José!” ... Eu digo: Eu não sei! Ele
disse: O que foi que tu aprendeu? Eu disse: nada, (SILÊNCIO) eu não estou na
metade do corpo que eu era. Cansei de papai/... chegava com a carga de
mandioca, tirava o capuz de cima, aí ele pegava um caçuá. “Maria José segura o
caçuá”, Quando ele tirava o dele, que era por cima do outro, eu tirava o outro.
Quando ele despejava o dele, eu despejava o meu. Agora, foi-se embora tudo!
Lílian – Mas, agora a senhora não precisa mais fazer isso!
D. MARIA JOSÉ – É eu não posso mais!
D. MARIA JOSÉ – Titia Petronila, minha tia por parte de pai ((a mais velha))
adoeceu, não tinha quem fizesse nada pra ela, não tinha família, uma filha que
teve, morreu com sete anos. O marido morreu. E ela ficou. Eu é quem fazia tudo
pra ela. E era só três irmãs mulher e mais papai.
Lílian – Hum!
D. MARIA JOSÉ – Bem! A irmã que comia na casa dela não, pisou lá. Aí eu fui
buscar água. Cheguei, eu digo, mamãe foi pra lá, eu fui mais mamãe. Mamãe disse:
encha os potes que eu vou aqui na casa de comadre Petronila, eu digo a senhora,
eu encho quando a senhora voltar. Olhe, a morte de titia foi assim: ela tinha um
pé de coqueiro desses cocos vermelhos. Só um. Aí o bicho só botou um cacho.
Lílian – Sei!
D. MARIA JOSÉ – Aí botou só um cacho de coco, com oito cocos, aí ela disse:
“Bonifácio, tire aí esses cocos, que eu vou fazer uns beijus de mandioca mole.” Aí
Bonifácio tirou os cocos, descascou um, quando abriu, a carne do coco era rã que
chega tava entupido, aí chamou ela, ela veio disse: “vije! Quem diacho foi que já
viu a rã entrar nos cocos sem ter canto pra entrar.” Aí foi ele abriu outro e assim
foi todos os oitos entupidos de rã.
Lílian – Nossa!
D. MARIA JOSÉ – Porque ela trabalhava de chapéu, e um dia eu vi ela cortando
os pés da mangueira com uma chibanca. Eu digo: vige! Aí ela tinha enterrado uma
latinha com dinheiro no pé dessa planta. Aí ela disse: “quer saber? Vou já
desenterrar aquele dinheiro pra mandar comprar uma rede. Minha rede ainda tá
boa, mas eu vou comprar outra.” Aí ela cavou o dia todinho e não achou essa lata.
Por que quem enterra dinheiro, depois de passar sete semanas, o dono vai cavar e
não acha mais. Agora se aquela pessoa que enterrou der a outro, aí a pessoa ((que
recebeu)) vai diretinho e encontra o dinheiro, mas a que enterrou não acha não.
Porque depois que enterrou, quem toma de conta é o rabuge.
Lílian – O rabuge?
D. MARIA JOSÉ - O cão!
Lílian – Ah, sim!
D. MARIA JOSÉ – Sim! Aí ela pirou do juízo.
Lílian – Foi mesmo!
D. MARIA JOSÉ – Ela chegava na casa de mamãe, aí papai dizia: “Maria, quando
tu for botar o almoço, bote para comadre Petronila, que parece que ela não vai
botar a panela no fogo.” Aí a mamãe mandava chamar ela botava o prato pra ela,
botava o pedaço de carne, ela tirava e enfiava na brecha da parede, os pedaços
de carne. Aí mamãe dizia: “Atanásio, comadre Petronila num tá boa do juízo!”
Lílian – Nossa!
D. MARIA JOSÉ – Quando pensou-se que não, ela arriou. Ninguém sabe de quê.
Eu já era casada quando tomava conta dela.
Lílian – Sei.
D. MARIA JOSÉ – E eu era quem cuidava dela, tirava ela a muque, botava em
cima de um caixão, caixão de gás, que carregava lata de gás não era grande assim.
Lílian – Sei.
D. MARIA JOSÉ – Mamãe dizia: “vai buscar água Maria José.” E eu ia. Ela já
tava velhinha, num é? Aí eu botava água pra ela, eu enchia a casa d’água, e depois
ia botar água pra ela, barria o terreiro dela. E quando ela não pode mais, arriou.
Aí eu botava o caixão, vivia permanente dentro do quarto. Eu botava ela no
caixão, quando acabar, dava um banho nela, enxugava, penteava os cabelos dela,
prendia e botava ela na rede. Aí ela dizia: “Quem paga o que tais fazendo comigo,
é Deus.” Ela uma vez disse: “compadre Atanásio, a parte da terra que toca pra
mim é de Maria José, porque a filha que eu tenho é Maria José.” Que eu ainda
não tinha andado pelo meio do mundo, então ninguém sabia do meu nome. Era
Maria José.
Lílian - Seu nome de artista, né? ((risos))
D. MARIA JOSÉ - Depois dos diacho dos meus documentos, o povo chega: D.
Militana, D. Militana. Eu espio pra parede ta lá D. Militana ((refere-se a uma das
placas que foram feitas pela prefeitura de São Gonçalo em sua homenagem e que
está exposta na parede de sua casa)), eu fico putinha de raiva. Aí Dácio sabe que
eu tenho raiva, aí qualquer coisinha ele diz: ”D. Militana, D. Militana....” ((risos)).
D. MARIA JOSÉ - Sim! A derradeira coisa que eu fiz... eu digo, ela usava duas
redes, tinha uma rede guardada, bem alvinha, eu armei na sala. Titia, a senhora
não quer tomar um ventinho lá fora? Ela disse: “Quero minha filha.” Aí eu armei a
rede, levei ela no braço e botei dentro da rede, aí fui buscar água, a derradeira,
no derradeiro pote da água, a cacimba, era trinta metros de fundura. Aí no
derradeiro, pote da água, eu deixei o pote para encher quando eu voltar, e fui,
quando cheguei ela tava deitada de banda pelas direita, toda encuída dentro da
rede, aí eu olhei assim e disse: mamãe me dê essa vela aí que titia está morrendo,
Ela disse: “tá não que indagora ela chamou Atanásio”, eu digo: mas, ela tá
morrendo. E papai tava em Jundiaí tirando madeira, na hora que ele foi assar a
carne, ela se apresentou na frente dele. Aí ele disse: ”Gonçalo, eu não vou mais
fazer a bóia não! Eu vou já mimbora comadre Tutu morreu, comadre Petronila
morreu”, chamavam ela de Tutu.
D. MARIA JOSÉ – Ela era a irmã mais velha. Aí quando eu tirei ela de dentro da
rede, que a pessoa tirar um defunto sem fazer jeito de nada, a pessoa tirar a
muque de dentro da rede, a pessoa é preciso ter força, né?
Lílian – É muita força, com certeza.
D. MARIA JOSÉ – Aí, ela, eu botei a vela na mão dela, e ela morreu chamando
ele, eles eram assim, eles dois. O marido dela morreu e quem dava o sustento era
papai. Aí mamãe sentada em riba da mesa, “deixa de tua loucura Maria José,
comadre Petronila chamando Atanásio e tu diz que ela está morrendo!” Eu digo:
Ela tá morrendo. Aí ela disse: “minha filha, eu vou simbora, não tenha medo de
mim não, que eu não lhe faço medo.” Aí eu fui acendi a vela, botei na mão dela. Aí
ali mesmo ela morreu. Eu digo: mamãe quando eu tirar ela pra botar no chão... ela
têm duas tábuas largas, forrei, fiz travesseiro de outra rede, aí, quando acabar,
eu digo: mamãe quando eu pegar ela, que suspender, a senhora puxe a rede para
baixo, pra ela não enganchar os pés. Mesmo assim eu fiz, enfiei as mãos por aqui,
por aqui, tirei ela e botei, aí cobri ela, aí Arnaldo, o sobrinho dela chegou e disse:
“isso é que é uma misera, Titia tem Tio Antonio, se bem que tem meu Tio, eu não
digo que não tá aqui, e Maria José tirou Titia da rede sozinha. Maria José tem
muita força.” Eu digo: Tenho muita força não! Aí ele: “Se tu tem tanta força que
sacudiste o home dentro do barreiro d’água.”
Lílian – Mas e os outros tios?
D. MARIA JOSÉ – Minha mão está fedendo a sarro. ((refere-se ao fumo do
cachimbo))
Lílian – Hein! Dona Maria José e as outras tias?
D. MARIA JOSÉ – Minhas outras tias?
Lílian – As irmãs de seu pai?
D. MARIA JOSÉ – A outra irmã de papai?
Lílian – Tinha filhos, a outra irmã de seu pai?
D. MARIA JOSÉ – A outra irmã de papai? Tinha Bonifácio.
Lílian – Todos eles moravam lá no Oiteiro também?
D. MARIA JOSÉ – Era todos eles moravam lá no Oiteiro. Tia Cantu quando
morreu eu não fui lá não, não fui porque o povo dela - genro, neto... tudo era
crente. Os crentes foram quem tomaram conta, aí eu não fui lá.
Lílian – Ah! Sim!
D. MARIA JOSÉ – Porque eles usavam uma reza e a gente usava outra.
Lílian – São diferentes?
D. MARIA JOSÉ – É, aí eu não fui.
Lílian – Depois que a senhora enterrou muita gente, não foi? Assim cuidou
pessoas que estavam/...
D. MARIA JOSÉ – Esse povo mais velho do Oiteiro tudinho fui eu.
Lílian – De quem tava morrendo, a senhora ia lá, botava a vela...
D. MARIA JOSÉ – A mãe de mamãe era dos Barreiros. Pai fez farinha, mamãe
encheu uma cesta assim, botou um bolo de massa, botou uma tapioca feita
debaixo forno, dobrou e botou na cesta, botou uma porção de negócio dentro da
cesta, um saco com três quilos de farinha. Comadre Bune levava o saco e eu
levava a cesta. Quando eu estava cansada do saco, eu levava a cesta e ela levava o
saco. No derradeiro dia que a gente tinha, quando cheguemos lá na Rua de Santo
Antonio, debaixo daquela mangueira que tem, ia eu e comadre Adélia na frente e
ela e Maria Torre atrás. Os cabelos dela era por aqui debaixo da pá. Aí ela disse,
só para fazer pouco da gente. “O tenente tá debruçado na janela”, que a casa
dele ficava mesmo em frente à mangueira. Aí ela disse: “Óia Mariinha! a gente
como somos as patroa, vamo atrás e as outra, as empregada, vão na frente, tudo
carregada! Ói a cabeça delas duas.” Aí eu parei! O que é que eu ia fazer? Fiquei
em pé, quando ela chegou perto dei-lhe uma tapa bem pequena, ela caiu porque é
mole. ((Todas riem da história)).
D. MARIA JOSÉ – Fastei a munheca, ela caiu com o vestido que ela usava, um
vestido de seda, que ela só trabalhava pra ela, ela não dava um tostão em casa.
Lílian – Nossa!
D. MARIA JOSÉ – E eu? O meu já sabia, eu ia pra feira, sabia que papai ia pra
feira, mamãe gostava muito de toucinho dentro do feijão, aí eu ia pra feira. Eu
trazia, comprava toucinho, comprava peixe, comprava o que eu podia comprar e
trazia um bolo pra mamãe, que mamãe apreciava muito bolo de padaria, todo
sábado eu trazia. Aí comadre Bune quebrava na seda e eu, não. Eu tava
dizendo... Parece que eu já disse isso a você, não disse?
Lílian – Isso o quê?
D. MARIA JOSÉ – Rita telefonou pra mim, perguntou o dia do meu
nascimento, o ano que eu nasci, perguntou que idade eu tinha. Eu disse: Eu digo
o tempo que eu nasci e você faça as contas.
Lílian – Então diga aí pra gente fazer as contas?
D. MARIA JOSÉ – Eu digo assim: na era de vinte e cinco a dezenove de março
às doze horas do dia, foi aí meu nascimento, a lua tava de minguante, a maré
tava de vazante, aí ela disse, o que foi que teve a lua? Eu digo a lua cortou
minha sina e a maré levou minha sorte. Eu digo, está falando a maior sofredora
do Rio Grande do Norte. Aí ela disse: “agora eu me lasquei”, e eu digo: não já
nasceu lascada? E isso era falando no telefone do seu Rivaldo, e seu Rivaldo
((Seu Rivaldo é o motorista de Candinha Bezerra, que se responsabilizava por
levar e trazer D. Maria José das apresentações)) só faltava morrer de rir. Ela
disse: “quantos filhos a senhora tem?” Eu digo: agora eu não digo não. Eu não
digo não, porque se eu disser você não vai achar bom. Aí ela disse: diga! Eu
dizendo e seu Rivaldo disse: “a senhora não é bem gente não, não é Dona
Maria?” Eu digo: de gente só tenho os olhos de cachorro.
Lílian – D. Maria, a sua relação com seus filhos era assim parecida assim com essa
sua com seu pai?
D. MARIA JOSÉ – Como é?
Lílian – Sobre a senhora vivia com seus filhos a mesma coisa que vivia com seu
pai?
D. MARIA JOSÉ – Eu trabalhei tanto para criar meus sete filhos, criei eles a
meu prumo. Tive dezoito, mas criei sete. Onze Deus criou. Eu já tinha os sete,
aí tive uma barriga geme, aí Mané Luiz disse: “esses não são meus, que eu não
sou homem pra fazer dois filhos, é um filho de teu genro.” Eu disse: Meu
genro não! “um filho é do teu genro e o outro é filho do compadre Raimundo”,
que compadre Raimundo é padrinho de quatro filho, padrinho de fogueira e ele
é meu primo. Eu digo: Deus tome conta, que esse falso eu não te perdôo não.
Aí, eu tava de resguardo, ele foi pra cidade, que eu descansei na quinta-feira,
na sexta-feira ele saiu pra cidade, à boca da noite, mais os outros, pegou o
galão de cesta, e quem fez o galão de cesta foi eu, quarenta e cinco cesta
levou ele pra cidade, vendeu as cestas, comprou um quilo de carne seca.
Quando ele chegou, mamãe já tinha arrumado coisa e feito comer pra mim. Aí
mamãe disse: “Compadre Mané parece que trouxe foi um quilo de carne seca,
será que dá pra tu passar a semana?” Eu digo: E eu sei! Aí mamãe disse: “Não
vá pensar nisso não minha filha, que eu te ajudo como venho ajudando”.
Quando foi de madrugada ele arrumou o saco, botou a carne velha no saco, já
vou e me deixou foi sem nada.
Lílian – Foi quando ele foi embora?
D. MARIA JOSÉ – Foi. Aí foi simbora pra Poço de Pedra. Passou quatorze
anos. E eu! Eu ia dizer: “vai pra casa de teu pai buscar comer.” Lá tinha batata,
macaxeira, feijão, nunca mandei nem um atrás de nada. Criei os meus filhos a
meu pulso.
Lílian – Sozinha?
D. MARIA JOSÉ – Sozinha.
Lílian – Batalhando! A senhora trabalhava com as cestas?
D. MARIA JOSÉ – Nas cestas.
Lílian – E com a roça?
MARIA JOSÉ – Eu fazia as cestas.
Lílian – A senhora tinha roça também?
D. MARIA JOSÉ – Não. Na época de casada não. Ele botou, ele botou um
roçado, quando ele voltou de Poço de Pedra, ele botou um roçado ali onde é
hoje de Almino.
Lílian – Hum!
D. MARIA JOSÉ – Ele morreu falando, aí chegou mandou chamar Zé Luiz. Zé Luiz
chegou. “O que era papai?” “Olhe! Eu vou fazer minha viagem, eu sei que sua mãe
não é de querer nem encomendar a farinha, desmanche a roça, faça a farinha e
bote dentro de casa. Não venda a roça, não.” O derradeiro serviço que ele fez
aqui pra casa foi esse roçado. Pergunta quantas vezes eu fui apanhar feijão no
roçado? Nenhuma.
Lílian – Só porque foi ele quem fez?
D. MARIA JOSÉ – É... Ninguém faça nada comigo não, que não agravou a mim
não, agravou um cão.
Lílian – Hum rum!
D. MARIA JOSÉ – Um dia ele não entendeu de me bater?
Lílian – Foi?
D. MARIA JOSÉ – Eu fui pra Macaíba com o galão de cesta... eu não já disse
isso pra você não?
Lílian – Não.
D. MARIA JOSÉ – Atravessei o rio com água por aqui com o galão de cesta
pra cima, a outra mão empurrando a água, e fui vender as cestas. Vendi as
cestas e ele vendeu as dele, fazia quinze dias que ele tinha vindo pra casa.
Lílian – Ele tinha voltado? Foi depois que ele passou os quatorze anos fora?
D. MARIA JOSÉ – Foi. Aí pediu pra vir pra casa, eu digo: não! Aonde você
passou os quatorze anos, passe o resto. Bem, porque eu mesmo não vou fazer
nada pro senhor. Acabou-se, eu não presto, foi atrás da moça branca, pois vá
deixar seu patuá, aonde você achou. Aí vivia assim, dentro de casa: quando eu
tava trabalhando no terreiro, que ele vinha pro terreiro, eu entrava pra
dentro botava a ripa no beiço da cama e ia trabalhar lá dentro. Agora no dia
que ele morreu, aí eu fui pra rua, ele passou tanto tempo fora, que quando ele
veio, eu já tava aposentada. Aí eu fui pra rua, recebi meu dinheiro, aí vim, Eu
comprei pra ele uma lata de leite e uma caixa de maisena, que ele não comia
nadinha. Passou dez dias sem fazer feze, dez dias. No dia que fez morreu.
Lílian – Coitado, né!
D. MARIA JOSÉ – Aí eu cheguei e perguntei: queis comer, queis uma papa
Mané Luiz, “faz.” Aí comadre Olímpia chegou, entrou, passou por ele, que ele
dormia na sala, eu botei a cama na sala que é melhor pra lutar com um doente,
Aí ele foi no quarto, eu fiz a papa e ele disse: “traz pouca”, não tinha uns
pirexzinho assim? Eu trouxe aquele pirex de papa e ele comeu. Aí ele disse:
“Maria”, eu disse oi... Ele nunca chamava meu nome não, só mim chamava Maria.
.... deixe eu ver aí o pinico. Aí eu trouxe, botei atrás da porta, perto da cama e
fechei a porta. Ele abaixou-se e fez o serviço. Foi três vezes pro pinico, na
derradeira vez já foi eu quem subi a roupa dele. Aí ele sentou-se no beiço da
cama, estirou assim uma perna no varão da cama e a outra ficou no chão. Aí ele
fez assim com as duas mãos. Eu digo: por que não te deitas? Não tira o
cachimbo do bolso? Aí comadre Olímpia já tinha....
((Benedita, filha com a qual D. Maria mora, chega preocupada com a saúde de
D. Maria, pela recente crise de pressão alta.))
Benedita – Passou?
D. MARIA JOSÉ – Hein! Passou.
Lílian – Tem certeza? Mostre a mão.
Diva – Olhe aí Lílian. Você que percebe, você que conhece ela, você acha que
passou mesmo?
Lílian – Passou. Não estava tremendo a mão aqui?
D. MARIA JOSÉ – Passou.
Lílian – Ainda está tremendo um pouquinho, olhe!
D. MARIA JOSÉ – Tá boa, ói!
Lílian – Não está tremendo um pouquinho a mão? Tem certeza? Está se sentindo
melhor? Como eu já falei, eu posso lhe levar pro médico.
Benedita – Eu digo a ela que não fique muito aqui, não. Às vezes, eu estou
entretida fazendo as coisas.
Lílian – É, sozinha, é perigoso.
D. MARIA JOSÉ – Ela não vai subir mais hoje não, porque eu não quero.
((voltando ao tópico da conversa)) Sim! Aí eu disse assim... Francisca foi
entrando e disse assim: “Mamãe, papai ainda vai fumar? Não acende o
cachimbo pra ele não.” Aí ele disse: “Acenda meu cachimbo.” Eu disse: mim
dais pra eu acender. Quando ele me deu o cachimbo, aí eu joguei o cachimbo
pro corredor. Porque ele num tava na sala, aí eu tirei o fósforo, tirei o fumo do
bolso dele. Aí ele agarrou assim o facão com as duas mãos e disse: “Vambora
Felipe” e arrastou. Felipe foi o homem que ele tinha matado, ele tinha duas
mortes nas costas.
D. MARIA JOSÉ – Aí eu disse: Tu tais chamando Felipe pra ir mais tu, ele não foi
só, porque tu não vai só? Aí ele disse: “Maria, eu to me indo.” Aí eu disse: Vai com
Deus. (SILÊNCIO) Chorasse? Não chorei nem um pingo.
Lílian – Não tinha porque chorar.
D. MARIA JOSÉ – É, e ali mesmo ele morreu. De noite, as meninas diziam:
“comadre Maria tem uma natureza ruim, o marido morrendo, ela com a vela na
mão dele e não botar nenhuma lágrima!” Eu digo: Marido de três: De Poço de
Pedra, de Maria Brincadeira e de Geralda, não era marido meu não. Ele chorou
por isso, mesmo morto, as lágrimas correndo assim? Aí comadre Eva: “comadre
Maria por quê você faz isso?” Eu digo: Quem fizer uma coisa a mim, saiba fazer,
saiba fazer... De noite, o povo procurava: “não vai cantar bendito de defunto pra
ele, não?” Não, ele não precisa de cantar bendito de defunto pra ele.
Lílian – Aí como era o funeral, Dona Maria? Como era depois que morria? Como
era o velório?
D. MARIA JOSÉ – Sei lá, home. Cantava, rezava o ofício e tudo mais. E elas
diziam: “Comadre Maria nem liga.” Eu digo: e se fosse eu que tivesse aí estirada,
ele não tava agarrado com outra aí?
Lílian – D. Maria, a senhora falou em cantar Bendito... Quando canta o bendito no
velório Dona Maria, assim, é pra quê?
D. MARIA JOSÉ – Porque é bonito, né?
Lílian – É bonito, né?
D. MARIA JOSÉ – Papai quando adoeceu/...
Lílian – a senhora cantou algum?
D. MARIA JOSÉ – Se eu mim lembro?
Lílian – Sim, um bendito de velório?
D. MARIA JOSÉ – Eu mim lembro. Quando mamãe Joana morreu, nós fumo pra
Barreiros, quando cheguemos/A muié era dessa grossura, quatro muié quase não
bota ela pra fora.
Diva – Ai meu Deus!
D. MARIA JOSÉ – Morreu com todo corpo, disse que foi a dentada de um
maribondo. Mordeu em riba da mão esquerda.
Diva – Ela era alérgica.
D. MARIA JOSÉ – Hein?
Lílian – Ela era alérgica. Continue....
D. MARIA JOSÉ – Aí eu fui deixar as coisas que mamãe mandou, aí quando
cheguei lá, eu digo: minha madrinha, Mãe Joana tá morrendo. Ela disse: “Já
chegou o urubu de asas.” Aí Tio Cisso: “Se ela disse que ela tá morrendo...” Tio
Cisso sentado em cima da mesa mais a muié, madrinha Alice fazendo o café e Tia
Noca sentada no pilão. Eu digo: Mãe Joana tá morrendo. Nesse instante eu
encostei, aí e mamãe: “não tava morrendo, tu já vem chegando agora e já vem
dizendo que ela ta morrendo.” Eu digo: Tio Cisso tem vela aí? Aí Tio Cisso me deu
a vela, eu acendi, virei ela, Tio Cisso me ajudou a virar ela, que ela era muito
grossa, gastou o bico da vela. Se eu não chego, tinha morrido sem vela e tinha
ficado encuída.
Lílian – Por que não pode morrer sem vela? A senhora fala muito que tem que
colocar a vela.
D. MARIA JOSÉ – Porque a pessoa anda no escuro e tando com a vela na mão
anda no claro.
Lílian – Ahhhhh! É como se vai fazer a passagem, né?
D. MARIA JOSÉ – É.
Lílian – Interessante!
D. MARIA JOSÉ – Aí ela sempre dizia, que quando ela morresse, era pra cantar
bendito até de manhã. Aí Madrinha disse: “aqui não tem quem cante bendito de
defunto, não.” Aí Tia Gonçala, veio de Regomoleiro pra Barreiro, lá pra casa de
Mãe Joana. Foi outro pra Uruaçu, buscar a família dela. Veio um pra São Gonçalo
buscar papai. Quando papai chegou foi: Papai, Chico Pena, Mamãe, Tia Cantu e Tia
Antonia. E assim, eu passei a noite fazendo quarto, de manhã peguei a cesta e o
ferro de cova, fui tirar unha de velho.
D. MARIA JOSÉ – Aí Papai disse: “Maria José, se não tiver quem queira cantar,
vamo cantar bendito nós dois?” Eu digo: vamo. Aí sentemo no meio de terreiro, aí
papai cantava, eu respondia. Aí, os de Regomoleiro chegaram e começaram a
cantar também. Ainda mim lembro da despedida que os de Regomuleiro ... porque
a despedida que papai canta é assim: ♫ Adeus irmão dos anjos, irmão dos anjos.
Oh! Meu Deus eu ou pro céu ♫. O que eles cantavam, ♫ Os anjos vão mim levando
♫... eu não sei mais como era... a despedida deles era assim: ♫ Lá vem a barra do
dia junto com a Virgem Maria,/ desceu dois anjos do céu levem tua companhia ♫.
E o de papai é: ♫ Adeus irmão dos anjos, irmão dos anjos adeus ♫. Eu não sei mais
nem cantar....
Lílian – Quer dizer que seu pai também cantava bendito?
D. MARIA JOSÉ – Era e ele pedia que quando ele morresse, cantasse bendito de
defunto até de manhã. Aí compadre Raimundo, veio pra mode cantar aí o povo/...
Lílian – Compadre Raimundo era irmão
D. MARIA JOSÉ – Raimundo Carvalho.
Lílian – Sim! Pensei que era irmão dele.
D. MARIA JOSÉ – Era sobrinho.
Lílian – Era sobrinho dele.
D. MARIA JOSÉ – Era dele e primo da gente.
Lílian – Sabia cantar também?
D. MARIA JOSÉ – Sabia. Compadre Raimundo veio pra tirar bendito, pra cantar
bendito mais a gente. Aí, quando chegou o povo acharam ruim, aí começaram a
cochichar. Aí, compadre Raimundo disse: “Comadre Maria eu vou embora, quando
for na hora do enterro eu tô aqui”.
Lílian – Por que o povo estava achando ruim?
D. MARIA JOSÉ – Porque iam cantar bendito de defunto.
Lílian – Porque as pessoas não gostam?
D. MARIA JOSÉ – Porque tinha morrido um pai de família e as pessoas iam
cantar bendito de defunto.
Lílian – O que é que tem Dona Maria? Eu não entendi por que as pessoas ficavam
cochichando.
D. MARIA JOSÉ – Porque cantando bendito de defunto, não tem quem chegue
perto. (SILÊNCIO) Tinha um pecador que dizia assim: ♫Vivia no mundo, no
pecado original/ matou o padre e padrinho e o pai por quem foi gerado e o crime
[?] e deu sossego [?] ♫...(SILÊNCIO) Quem reza pra Nossa Senhora todo dia, ela
não deixa a alma ficar vagando não, não deixa de jeito nenhum. Aí quando ele tava
morrendo... ♫ quando ele estava morrendo os anjos desceram e lhe pôs a mão
dizendo: não pense no que fizeste/ deixa cá que eu te defendo. /Ele deu uma
vertigem, o homem expirou/ o demônio, estava em pé,/ ativo se conservou/ o anjo
da guarda veio/ o demônio se amassou.” ♫ O demônio perguntou ao anjo: ♫ o
demônio perguntou ao anjo amigo:/ ”O amigo veio a negócio? /Que essa alma me
pertence,/ nela eu não quero sócio,/ eu trabalho é para mim /e o resultado é o
melhor” ♫. Aí São Miguel disse: ♫ “Cale-se três vezes maldito./ lhe disse o anjo
da guarda./ Ela não foi a juiz/ para está sendo julgada,/ ela só pode ser sua/
depois da sentença dada.” ♫ Aí a alma chegou nos pés de Nossa Senhora e se
ajoelhou. Aí, Nosso Senhor diz: ♫”Antes que eu te confesse,/ publica por tua
boca/ que beneficio fizesse” ♫. Aí ele disse: ♫ “Se ela faz injúria/ contasse
certo o passado,/ porque o meu próprio pai também foi assassinado/ Tenho o
crime por amigo/ e Deus por meu intrigado” ♫. Aí Nosso Senhor respondeu: ♫
“Vocês escrava do vício/ por ser tão obstinado/ a justa sentença te digo:/ tais
condenado.” A alma soltou um grito/ no receber da sentença,/ o demônio tragou
ela/ levando no ar suspensa,/ dizendo consigo mesmo:/ “que felicidade imensa!”/
A alma se vendo aflita,/ no terror das agonias,/ despencou-se do diabo,/ caiu nas
mãos de Maria,/ ainda com esperança /que a Virgem a socorria./ ”Maria! Oh,
Virgem Maria!/ Mãe do Divino Espírito Santo,/ cobre-me com vosso divino
manto,/ se vós não me socorreis,/ de vossos pés não me levanto.”/ “Oh, alma tu
fica aí/ que vou falar a Jesus,/ que te prometi/ e sei que ele me atende,/
sabendo que sou por ti” ♫. O diabo diz, ♫ O diabo quando viu a Virgem pura a
partir,/ disse ao outro companheiro:/ ” Lá vai a compadecida/ mulher com tudo se
importa/ e quer ganhar a questão vencida.“ ♫ Aí ela foi e reclamou a Nosso
Senhor: ♫ “Jesus, eu vim aqui,/ vim a ti com precisão,/ contar sobre uma infeliz/
e pedir dela compaixão/ se a alma tiver castigo/ por ela, hei de sofrer.”/ “Como
minha mãe me pede,/ sou um juiz fiel,/ para ver que jeito dá-se,/ mandei chamar
São Miguel.”/ ♫ São Miguel ficou rindo e disse: ♫São Miiguel chego sorrindo e
disse: “Pronto Senhor.”/ Disse Jesus a Miguel, “você vai defender um pecador,/
para ver se pode aterrar/ a razão do traidor.” ♫ Aí, São Miguel.... Aí o cão
quando São Miguel chegou, ele disse: ♫ “São Miguel, tu num sabe que essa alma/
só viveu foi só de pecar?/ São Miguel tu sabe o que essa alma praticou?/ Não faz
meia hora que tudo ali confessou.”/ “É verdade que essa alma só viveu foi de
pecar,/é porque também tinhas tu que só vivia de atentar.”/ Manoel deu a
sentença: “Maria pode salvar!”/ A alma entoou o bendito./ ”Louvado seja Maria,/
amparo dos desgraçados,/ seja nossa luz e guia” ♫ Aí pronto.
Lílian – Então o bendito esse é da compadecida, né?
D. MARIA JOSÉ – É de alma que foi salva/...
Lílian – É um bendito esse aí, Dona Maria? É um bendito?
D. MARIA JOSÉ – Ah! É um bendito e é verso.
Lílian – Han!
D. MARIA JOSÉ – Por isso que não posso me deitar sem rezar, mas só se eu não
puder nem levantar a mão pra me benzer.
Lílian – É mesmo?
D. MARIA JOSÉ – Desde menina que eu rezo tanto para Santo Antonio, como
para Nossa Senhora.
Diva – Ah! E a Senhora é devota de Santo Antonio!
D. MARIA JOSÉ – Desde menina que rezo pra ele, a senhora reza?
Lílian – Rezo.
D. MARIA JOSÉ – Como é sua reza?
Lílian – Um Pai-Nosso, quando vou dormir.
D. MARIA JOSÉ – Só um Pai-Nosso?
Lílian – e a Ave-Maria.
D. MARIA JOSÉ – Ôxente!
Lílian – Só quando eu me lembro.
D. MARIA JOSÉ – É um que diz assim: Santo Antonio alevantou-se seu pé direito
calçou, sua [?], seu caminho, caminhou [?] Meu glorioso Santo Antonio pela hora
do Vosso Nascimento, pela primeira missa que celebrasse, pela igreja que
zelasse, pela hóstia e o cálice que levantasse, é aí que a pessoa pede o que quer a
ele. Já ouviu como é?
Lílian – É bonito.
Diva – Eu gosto muito de Santa Rita.
D. MARIA JOSÉ – Santa Rita?
Diva – Santa Rita, Nossa Senhora dos Impossíveis, a senhora conhece?
D. MARIA JOSÉ – Santa Rita ... conheço.
Diva – Eu nasci no dia dela, por isso que eu gosto dela.
D. MARIA JOSÉ – Nasceu no dia de Santa Rita?
Diva – Eu ia me chamar Rita.
D. MARIA JOSÉ – Santa Rita foi muito sofredora, agora o sonho de Nossa
Senhora diz assim: teve Nossa Senhora no [?] de Belém, na sua cadeira de ouro
fina sentada, seu livro de ouro na mão, meio lido, meio rezado. Chegou seu Bento
Filho e perguntou que faz mãezinha dormis ou velais?” Nem durmo, nem velo, se
vós assim mim despertais, só assim sonhei um sonho naqueles montes, cravaram
tu numa cruz de madeira com sessenta e dois espinhos na Vossa Sagrada cabeça
e os Vossos Sagrados olhos inclinados para o chão [?] para Vossa Sagrada roupa,
pregos e mais pregos nos Vossos Sagrados pés e nas Vossas Sagradas mãos. Aí
ele diz: “Certo mãezinha que esse sonho não é sonho, esse sonho é uma pura e
santa verdade, quem esse sonho rezar um ano continuado nesse mundo será rei e
no outro será coroado. Já viu como é que se reza?
Lílian – Ah! Quer dizer que a senhora reza assim? Eu não conheço, com quem que
a senhora aprendeu essas rezas?
D. MARIA JOSÉ – Com quem que eu aprendi?
Lílian – Sim.
D. MARIA JOSÉ – Com meu pai, que ensinava toda noite a gente a rezar. Quem
me ensinava a rezar era papai.
Lílian – Minha mãe, me ensinou a rezar a Ave-maria, Pai-Nosso, Credo. Como seu
pai fazia, quando ia lhe ensinar a rezar?
D. MARIA JOSÉ – A gente brincava, brincava no terreiro, toda brincadeira a
gente inventava no terreiro quando ele dava um grito: “Maria José!” Senhor? “Tá
na hora!” A gente entrava pra dentro e ele ia ensinar a gente a rezar; eu e
comadre Maria Bune, comadre Raimunda. Comadre Raimunda interava ano no mês
de agosto. Sant’Anna é agosto, né? Ela vivia pedindo a Deus, que se Deus visse
que ela não tinha uma boa sorte, que se Deus visse que ela se casava e não tinha
sorte ou mesmo não tinha sorte de ficar, porque o primeiro namorado dela tinha
se casado era o marido de comadre Lourdes, quer dizer, ele era casado nesse
meio do mundo, quando pegou amizade com ela, aí descobriram que ele era
casado, aí disseram a ela, aí ela foi pediu a Deus que tirasse ela. Aí começou com
uma dor de cabeça, com uma dor de cabeça, com uma dor nas pernas, com uma
dor de cabeça. Se fosse agora ela não tinha morrido... (SILÊNCIO) e nada de
ficar boa. Mamãe deu um purgante de óleo de rincino, mamãe deu um purgante de
sena, mamãe deu outro purgante não sei de quê a ela e de resto, ela ia mais os
meninos pros cantos, aí caía no meio do caminho.
Lílian – Nossa!
D. MARIA JOSÉ – Papai tinha um roçado nessa lombada de Oiteiro.
Lílian – Ela morreu com quantos anos, Dona Maria?
D. MARIA JOSÉ – Morreu com dezenove anos. Aí, num vê minha pintura de
guiné? Pois mesmo assim eram os braços e as pernas dela, todo pintado assim.
Lílian – Nossa!
D. MARIA JOSÉ – Aí, papai disse: “Tá ruim essa doença de Raimunda.” Ela arriou
de uma vez na sexta-feira, na quinta-feira e morreu no sábado a boca da noite. Aí
disse: “Papai!” Papai disse: “Oi!” “Venha cá.” Papai chegou: “O que era Raimunda?”
... Antes disso, ela foi plantar um roçado mais ele. “Papai, o senhor mim dá uma mi
cova desse roçado?” Ele disse: “Pra que tu queis?” Ela disse: “Pra comprar meu
caixão!” Papai disse: “Tu vai morrer Raimunda?” Ela disse: “Se Deus quiser!” Papai
vendeu. Quando ela morreu, ele vendeu a mi cova de terra pra comprar o caixão.
Aí disse: “Quando eu morrer quero que chame muita gente, quero que vá muita
gente no enterro.” Papai disse: “Tá certo!” Veio gente desse meio de mundo de
Uruaçu, Jacarau, Santo Antonio, Barreiro, fartou uma pessoa pra cem no enterro
dela. Aí isso assim ela não comia. O negócio dela era peixe, também nem comia
couro de peixe, nem comia toucinho, nem comia fato, só era mesmo peixe pra ela
e carne sem um sinal de gordura.
Lílian – E adoeceu, né?
D. MARIA JOSÉ – Ela era mais alta do que eu e eu até essa época eu tava
buchuda de Sebastiana, quando ela morreu. Aí, ela disse: “comadre Maria tu vais
te casar quando?” Eu digo: Não tem dia. Aí, ela disse: “Quando tu for se casar, eu
vou pra teu casamento.” Eu digo: tu vai mesmo? Ela disse: “Vou, tu preste atenção
que tu me vê lá!” Foi, e só quem viu foi eu e Santina e Olinda, e comadre Maria
Bune não viu.
Lílian – E ela estava lá e a senhora viu, onde?
D. MARIA JOSÉ – Na igreja. Eu fui pra feira com o galão de cesta, eu e Mané.
Mané com um galão e eu com outro. Aí de lá. Aí compadre Alfredo irmão dele
disse: “Você tá pensando que vai morar todo tempo amigado? A mulher tem filho
todo ano e você sem querer se casar? Você vai casar.” Aí ele disse: “Eu só vou
vendo.” Ele falava assim. ((fala enrolando a língua e rindo)) Aí, compadre Alfredo
disse: “Eu só vou vendo, é uma cebola.” Aí mandou uma carta pra seu Joaquim, pai
dele, aí ele mandou outra. Disse que ia passar quinze dias pra vir aí e quando vier
não quero chegar na casa dele amigado. Aí quando cheguemo na feira com os galão
de cesta, compadre Alfredo chegou da igreja: “Eu já botei os banho lá na igreja,
já tá pago.” Aí, ele disse: “Eu com esta roupa, em manga de camisa?” Ele disse: “O
que é que tem? Quando você se apoderou dela você foi vestir roupa boa?” Ele era
mais velho, e só morreu na minha casa. Morreu nas minhas mãos. Eu fazia tudo
pra ele, que a mulher dele era bruta que só. Findou vindo morrer na casa de
Benidita.
Lílian – Mas, a senhora tomou conta de muita gente, tinha tempo pra fazer suas
coisas, cuidar dos seus meninos e ainda cuidar...
D. MARIA JOSÉ – Cuidar dos outros.
Lílian – Cuidar dos velhos, cuidar das pessoas que iam adoecendo.
D. MARIA JOSÉ – É.
Diva – Assistiu muita gente morrer, então!
D. MARIA JOSÉ – Olhe de lá de baixo, de lá do aceiro da cerca/... quer dizer que
agora a cerca tá abaixo, mas ainda pego em dinheiro, agora não posso mais fazer,
mas ainda pego em dinheiro e ainda mando fazer pelo menos a frente, só numa
casa só tem cinco home, eu digo: tem vinte e um home dentro do Oiteiro, pru quê
vocês não se ajunta um dia, só vocês faz essa cerca. Tirem a madeira que eu
compro o arame. “A senhora tá achando que a gente tem o direito de fazer
cerca?” Foi o que me responderam... (SILÊNCIO) agora se eu fosse outra tinha
botado pra fora.
Diva – É com certeza, Só quer morar não quer cuidar, não quer tomar conta, né?
D. MARIA JOSÉ – É. Sim! Como é, o que era que eu tava dizendo?
Lílian – Estava falando de sua irmã. Estava falando que ela foi ao seu casamento.
D. MARIA JOSÉ – Sim! Aí papai, ela andando pro roçado mais papai, ela contente
e tudo. Aí disse: “Tá chegando o meu dia!” Aí papai disse: “Seu dia de quê,
Raimunda?” “Deu morrer.” Que ela falava assim. ((enrolando a língua)). Papai
disse: “Morre bicha veia que eu faço o enterro com todo gosto.” Ela dizia: “E é
pra fazer de todo gosto e não é pra chorar não.” Na quinta-feira, na sexta-feira
arriou. Aí ela disse na sexta-feira, no sábado papai foi pra cidade, aí ela disse:
“Papai o senhor traz/... ela não queria comer nadinha/... papai o senhor traz uma
tapioca da feira pra mim?” Papai disse: “Trago”. Aí papai disse: “Quer saber, eu
vou é entregar o galão de cesta e vou mimbora.” Deu oito horas do dia, papai
chegou da rua, quando ela ouviu a fala dele disse: “Trouxe minha tapioca?” Ele
disse: “Trouxe.” Só teve o gosto de comer uma que era pequenininha, comeu uma
e uma pontinha da outra. Disse: “Tô satisfeita papai e adeus.” Aí tomou a bença a
papai mais mamãe. Aí eu cheguei aí ela disse: “comadre Maria?” Eu disse: Oi! Que
ela era madrinha da minha primeira menina, “Eu vou simbora. E eu vou pra teu
casamento, pode prestar atenção que eu vou.” Eu digo: tá certo, vai! Eu quero ver.
Aí eu cheguei, eu disse papai? Será que comadre Raimunda vai morrer mesmo?
Papai disse: “eu tô achando que vai.” Aí comadre Olímpia chegou, aí ela disse: “Oi
Raimunda.” Ela disse: “Vá buscar o adoremos pra rezar o ofício, que eu não quero
sair sem ouvir rezar o ofício.” Aí mamãe começou a chorar, aí ela disse: “Mamãe
não chore não, que é melhor ela ir e a senhora ficar pra acabar de criar os
outros”, e foi aí comadre Olímpia correu pra casa foi vê o adoremos, aí chegou
ela, comadre Olímpia rezando o adoremos, quando chagava em se benzer, ela se
benzia também. Só arriou a mão na derradeira coluna, aí comadre Olímpia disse:
“Agora pode botar a vela na mão que ela agora tá morrendo.”
Lílian – O que é o adoremos, que a senhora disse, é uma reza?
D. MARIA JOSÉ – Você não sabe, não?
Lílian – Eu não conheço Dona Maria.
D. MARIA JOSÉ – É onde tem o ofício de Nossa Senhora, onde tem o padre
nosso, onde tem creio em Deus Pai, é um livrinho assim.
Lílian – Ah, tá!
Diva – É um livro de orações, aí tem pra todas as ocasiões, tem pra festa de
nascimento, tem pra morte...
Lílian – Ah! Tá certo!
D. MARIA JOSÉ – Aí comadre Olímpia rezando o ofício e ela rezando também.
D. MARIA JOSÉ – Aí, na derradeira coluna que comadre Olímpia disse: “Deus
salve relógio, que andando atrasado serviu de sinal para o verbo encarnado.” Ela
arriou. Foi se benzer a mão arriou aí comadre Olímpia botou a vela na mão dela.
Aí ela de lá, morrendo com a vela na mão e dizendo: “mamãe não chore não,
entregue a Deus e a Nossa Senhora que eu vou subir.” Aí morreu. Com oito dias
que ela tinha morrido, aí mamãe tava sentada na rede rezando e no canto da
parede do quarto tinha uma jarra grande assim, quando papai fazia farinha,
enchia ela de farinha com uma tampa, aí ela chegou e pôs-se acima da jarra, com
oito dias que ela tinha morrido, aquela réstia desse tamanho assim, bem alvinha,
aí fazia mesmo assim pra banda de mamãe ((acena com a mão)), a réstia
balançando, balançando, aí mamãe disse: “Maria José?” Eu fui chegando eu disse:
Senhora? “Venha ver que coisa bonita.” Mamãe sentada na rede rezando e ela
acima da jarra naquele manejo. Aí eu cheguei, fiquei espiando, aí ela ficou, ficou
balançando, balançando, animada! Aí papai chegou, papai disse: “Deus te abençoe,
Deus te faça mais clara do que tais.” Aí, comadre Maria Bune, a minha irmã,
chegou, quando foi chegando que mamãe disse: “olhe que coisa bonita Maria
Bune.” Aí ela disse: “Te disconjuro.” Aí a réstia tomou um açoite de cabeça acima,
aí mamãe disse: “Pra que tu fizeste isto!” Papai ainda deu uma munhecada nela.
Foi quando eu fui casar.
Lílian – É porque tem gente que tem medo.
D. MARIA JOSÉ – Ham!
Lílian – É porque tem gente que tem medo, Dona Maria.
D. MARIA JOSÉ – É mais não podia dizer assim, né?
Lílian – É, realmente.
D. MARIA JOSÉ – Aí quando fui casar, aí eu e comadre Santina vimo. Comadre
Santina disse: “Maria José?” Eu disse: Oi? “Olhe Raimunda, ela não disse que
vinha? Do jeito que ela estava lá balançando. Deus lhe abençoe!” (SILÊNCIO) Aí
entrou lá na janela do sino, desceu assim... porque a gente casou, no altar de
Santa Terezinha, em Macaíba. Aí ela entrou na janela do sino e veio, veio e ficou
acima da cabeça de Santa Terezinha, bem alvinha. Aí Santina disse: “Maria
José?” Eu disse: Oi? “Olhe Raimunda onde é que está.” Aí eu olhei e disse: É
mermo! E comadre Bune disse: “Cadê? Cadê?” Nem viu Olinda, nem viu comadre
Maria Bune, só quem viu foi Santina. Com bem dois meses pra três, Santina
morreu. Agora mamãe morreu de repente.
Lílian – O velório dela foi bonito, de sua irmã?
D. MARIA JOSÉ – Da finada Raimunda? Foi. Papai foi vendeu a mi cova de roça
pra fazer a arrumação dela aí ela foi toda/...
Lílian – Toda de branco.
D. MARIA JOSÉ – Toda de branco, papai comprou o ataúde, do meio do ataúde
pra cabeça era de vidro, ela tava no ataúde e a gente tava vendo ela. Foi tanta
gente!
Lílian – Cantaram?
D. MARIA JOSÉ – Hein?
Lílian – Teve bendito? Ela não pediu pra cantarem, não foi?
D. MARIA JOSÉ – Foi, mas ela... não cantaram não, ela morreu numa hora dessa
assim, mas não cantaram não. Mamãe não agüentava ouvir cantarem. E mamãe
vivia pedindo a Deus que se Deus visse que ela tinha que ficar viúva, que ela tinha
sinal de viúva, a ponta do cabelo era comprido e os dedos, é que tem esse dedo
encostado o grande maior que o outro.
((Nesse momento chega a neta de D. Maria com o filho para ser curado. Ela pede
a benção à avó e senta-se em silêncio perto de nós)).
Lílian – Chegou mais um neném
D. MARIA JOSÉ – Estranha mais que tudo. Deus te faça uma boa criatura, Deus
te dê a felicidade de ser criado pela tua mãe.
Lílian – Foi curado pela senhora?
D. MARIA JOSÉ – Foi três dias que se curasse, foi?
NETA DE D. MARIA JOSÉ – Não vó, a senhora não já terminou a cura?
D. MARIA JOSÉ – E eu já terminei?
NETA DE D. MARIA JOSÉ – Terminou.
D. MARIA JOSÉ – E agora vai se curar de quê?
NETA DE D. MARIA JOSÉ – Não passou nada, não.
D. MARIA JOSÉ – Passou não?
NETA DE D. MARIA JOSÉ – Ela não ficou boa, não.
D. MARIA JOSÉ – Não ficou, não?
NETA DE D. MARIA JOSÉ – É porque ela é medrosa demais.
Lílian – Tá se assustando? Tão linda!
D. MARIA JOSÉ – Hum.
Lílian – A senhora aprendeu a curar com quem?
D. MARIA JOSÉ – Eu ia com os meninos de mamãe pro mode curar e prestava
bem atenção como era. Aí uma vez que eu tava morando no Olho D’água, aí eu
perguntei: Dona Maria como é que a gente cura uiado? Aí ela disse como era. E
como é que a gente cura engasgo? Aí ela disse: “Você tá preguntando é pruque tu
já sabe!” Eu disse: É nada, mas eu já sabia. Uma vez quando eu tava/... Mané Luiz
inventou de ir pra perto de Mesquita, nas Barbuletas, aí tinha a casa de Mané
Gonçalo, era encostada a derradeira cancela do terreno, foram pescar, pegaram
cada um uma Curimatã, ele e Mané Luiz, aí botaram no fogo, aí Maria disse: “Tu
queis a tua.” Olhe o peixe consertado, cozinhado sem coco, cozinhado na água e
no sal, a panela cheia d’água, eu digo: Eu não quero teu peixe não, deixe que o meu
eu ajeito, aí fui ajeitar o meu. Aí, Mané Gonçalo disse: “Compadre Mané não sabe
comer nem peixe, a gente come peixe é assim.” Que ele jogou o pedaço de peixe
na boca que deu o goto a espinha ficou, aí disse: “Valha-me Deus, tô engasgado.”
Esse home chega as lágrimas corria e eu deixando ele sofrer. Aí, Mané Luiz
disse: “Maria cura compadre Mané!” Aí eu disse: Quem mandou ele ser imbicioso,
pra comer mais ligeiro do que os outros? Aí eu digo: Eu vou curar, quando eu
puxar nas tuas orelhas, tu dá o escarro, aí fui pra detrás dele, que a gente cura
por trás que é pra puxar aqui nas orelhas, o cabelo aqui, aí comecei a curar, aí, eu
chega tive pena do nojento, quando eu puxei nas orelhas dele que ele deu o
escarro, a espinha saltou no meio da casa chega vinha encarnada de sangue, ele
botou sangue pela boca que só. Quando ele escarrava, que cuspia chega vinha a
prastada de sangue, ele fazia assim o sangue ficava. Espinha de Curimatã é duas
pontas, né?
Diva – Ela é assim? ((mostra a mão em formato de v))
D. MARIA JOSÉ – Aí enganchou na guela dele, furou de um lado e do outro.
Lílian – Meu Deus! Então quer dizer assim que tem uma reza pra cada tipo de
coisa que a pessoa tem? É isso?
D. MARIA JOSÉ – Eu curo engasgo, eu curo vento caído, eu curo uiado.
Lílian – É uma reza diferente pra cada um?
D. MARIA JOSÉ – É. Eu tava até curando uma menina que caiu, bateu com a
cabeça do joelho, a meninazinha agora que está andando. Caiu bateu com a cabeça
do joelho na quina do tijolo, a mãe chegou aqui com ela pra eu curar o joelho da
bichinha, dessa grossura mesmo assim, aí eu curei.
Lílian - Como é que faz pra curar D. Maria?
D. MARIA JOS É - Por que tudo no mundo onde o olho de uma pessoa pode
alcançar pode ter uiado. Aí nós escolhe as planta e reza, mas tem que saber
rezar, escolher a reza certa pro problema da pessoa. Vocês conhecem Dácio?
Lílian – Sei quem é.
D. MARIA JOSÉ – Aí ele veio, o braço era dessa grussura assim, daqui pra cá.
Que diacho foi isso Dácio? “Foi um jeito que eu dei no braço”. Fosse dá nos
outros sem saber. Aí ele: “Se fosse dá nos outros sem saber ia ficar com o braço
doendo." Aí Candinha disse: “Foi não!” Eu não me lembro o que foi que ela disse
que ele foi fazer e arranjou pro braço. Mas, não tirou do canto não, era bom que
tivesse tirado do canto. “Esse diabo só deseja o que não presta aos outros.”
Porque um dia eu conversando mais Candinha e ele bem sério, espiando pra mim, aí
ele disse: “Candinha!” “O que é home?” “Não te fia nessa mulher não que ela é
criminosa.” Eu disse: Criminosa é sua mãe! “Criminosa é a senhora que a menina do
olho, uma é redonda e a outra é comprida”, eu digo é pro que tua mãe matou e
ficou a pinta no meu olho. Mas, não é não, né? Vocês tão vendo que é? ((risos)).
Lílian – Eu nunca vi não, já procurei foi muito pra ver se eu vejo.
D. MARIA JOSÉ – Pois eu já. Essa menina do olho aqui não é que nem essa.
Lílian – É, não estou vendo não, pode ser que seja, mas não estou vendo não. A
senhora tá melhor?
D. MARIA JOSÉ – De quê?
Lílian – De quê! Está sentindo ainda o cansaço?
D. MARIA JOSÉ – Não estou sentindo ela não, quando ela quer subir eu sinto, o
cansaço bate em mim dum lado e outro.
Lílian – A gente viu quando chegou que a senhora não estava bem.
D. MARIA JOSÉ – E quando eu tava aqui porque eu disse assim: será possível que
eu só nasci no mundo pra sofrer? Eu já sofri demais, (GRANDE SILÊNCIO) ...
uma menina de sete anos tirar daqui, acompanhar o rojão do andar de papai daqui
pra Baixa de Massaranduba ia e vinha quando chagava nos caminhos ele enrolava
meus pés com folha de cupuaçu e amarrava com embira de sapucaia pra mode eu
poder chegar em casa, na terra quente, tá vendo como era sofrimento. Eu casei,
saí de casa com dois vestidos: um de trabaiar e outro pra sair pros cantos.
Lílian – Me diga uma coisa, a senhora gostava de namorar?
D. MARIA JOSÉ – Namorar?
Lílian – Sim, a senhora teve quantos namorados antes de se casar?
D. MARIA JOSÉ – Eu sei lá home!
Diva – Eita! Perdeu a conta. ((risos))
D. MARIA JOSÉ – Porque quem já foi namorado meu e noivo, já morreu tudo.
Lílian – Então a senhora ia ficar viúva de qualquer jeito.
D. MARIA JOSÉ – Porque Chico Curinga foi o primeiro que morreu/
Lílian – Chico Curinga, ele fazia o quê?
D. MARIA JOSÉ – Ele era cabeceiro na feira.
Lílian – Cabeceiro na feira. A senhora conheceu ele onde, na feira?
D. MARIA JOSÉ – Foi a gente vendendo cesta.
Diva – Conta aí como era que namorava na sua época pra gente saber?
D. MARIA JOSÉ – Eu não digo não. ((risos))
Diva – Ô, Dona Maria! Só conta assim uns detalhes?!
D. MARIA JOSÉ – Um dia acabei com a amizade com ele na feira, porque ele
chegou eu tava comprando e comadre Bune tinha um piscado de olho com o
retalhador de carne. Aí fui comprar carne pra mamãe e ia mais ela, aí ele chegou
e ficou por trás de mim, aí quando eu fui saindo ele disse: “Maria José você não
tem vergonha não?” Aí eu disse: Como é a proposta? “Você não tem vergonha
não?” Mais sem vergonha do que eu, sois tu, porque se tu tivesse vergonha nunca
falava com moça nenhuma. Porque o homem que tem vergonha nunca andava
fedorento a tripa, fedorento a carne, fedorento a peixe, fedorento a tudo no
mundo, ia trabalhar em serviço pesado, não ia esperar a semana todinha que
houvesse feira pra ir ser cabeceiro dos outros. “Como é que você diz isso?” E tem
mais uma coisa lá no Oiteiro não pise mais. Ele disse: “Eu tenho que ir acabar esse
casamento com seu pai”. Eu digo: Vai casar com papai, lá tu encontra com ele. Ele
disse: “Mim respeite”. Respeitar quem? Pra pisar não vejo o quê, pra respeitar
não vejo a quem. Aí fui mimbora. Aí o home vizinho, a gente tava comprando
perfume, eu comprei uma lata de pó coração e um vidro de banha vaselina. “Não
precisa a senhora pagar não, que eu pago.” Não quero não, não quero nada seu que
eu não tô lhe pedindo nada, quando eu trabaio é pra não pedir nada a namorado
que eu tenho papai e mamãe.
Lílian – A senhora tinha quantos anos, Dona Maria?
D.MARIA JOSÉ – Hein?!
Lílian A – Quantos anos a senhora tinha quando namorou com ele?
D.MARIA JOSÉ – Eu tava com dezoito.
Lílian – E casou com quantos anos?
D.MARIA JOSÉ – Eu, com vinte.
Lílian – Bom, Chico Curinga foi o primeiro da lista, né?
D.MARIA JOSÉ – É, foi o primeiro e foi o primeiro que morreu. Aí deixei a
amizade dele, aí, eu digo: e não tem mais que ir no Oiteiro. Aí vendemo as cestas,
acabemo de vender, peguemo uma carona e viemo imbora. Quando foi de tarde,
mamãe disse: “Maria José?” Eu disse: Senhora? “Chico Curinga vem ali”. Eu digo:
mande ele pastar!
((Fim da fita))
3.2.8. Transcrição 6
Transcrição da entrevista realizada em 10 de maio de 2005, na Casa de
Benidita, Loteamento Alto de Canaã, São Gonçalo do Amarante.
Nesse dia, encontramos D. Maria José muito triste. O dia das mães
tinha acontecido no domingo anterior e ela estava muito saudosa em relação
à sua mãe. Contou que a prefeitura a havia convidado para uma
comemoração na qual ela seria homenageada em nome das mães, mas, por
não estar disposta, recusava-se a ir. Começou a contar da noite mal dormida
que tivera. Iniciamos a nossa conversa sem ligar o gravador, para
descontraí-la. Ela começou a falar de uma aparição sua na televisão.
Perguntei-lhe então se podia começar a gravar, ela consentiu e começou a
falar...
D.MARIA JOSÉ – Aí ele disse: “A senhora sabe cantar?” Eu disse: eu sei. Aí ele:
“Cante.” Aí eu cantei. ♫ Uma excelência do senhor São Benedito, ele chorava, ele
dizia, ele se lastimava, aí a estrela clareava. ♫ Aí eu disse: isso aí era com que
mamãe balançava os meninos ao meio dia. Pois quando saiu na televisão, saiu eu
dizendo isso!
Lílian – Foi?
D.MARIA JOSÉ – Foi.
Diva – Então, era esse canto que a sua mãe balançava os meninos?
D.MARIA JOSÉ – Era quando mamãe ia balançar os meninos pra dormir.
Lílian – Isso é uma, isso se chama “Incelência” não é Dona Maria?
D.MARIA JOSÉ – Isso é a “Incelência de São Benedito”.
Lílian – E não é uma canção que canta num velório, não?
D.MARIA JOSÉ – Não, canta também pra São Benedito.
Lílian – Porque a senhora falou, na vez passada que nós tivemos aqui, a senhora
falou que cantava bendito, não?
D.MARIA JOSÉ – Bendito de defunto.
Diva – E têm outros tipos de bendito que não seja de defunto?
D.MARIA JOSÉ – Tem muito.
Lílian – Ah! É? Diga um assim pra mim, que não fala de defunto? Eu só conheci de
defunto.
D.MARIA JOSÉ – Só não digo de defunto! (SILÊNCIO) Eu não gosto muito de
cantar bendito de defunto não, que eu mim lembro da minha mãe. (SILÊNCIO).
Lílian – Por que Dona Maria, a senhora lembra de sua mãe, ela gostava? Ou a
senhora cantou pra ela?
D.MARIA JOSÉ – No dia que a gente saiu com mamãe, papai fez farinha, aí
mamãe mandou a gente levar, aí a gente saímo daqui com um saco com três cuias
de farinha, uma cesta assim, assim com um bolão de massa da testeira da prensa
e quando acabar, forrou o bolão de massa e botou duas tapiocas feita debaixo do
forno, só corta ela de faca, com coco.
Lílian – Deve ser uma delícia!
D.MARIA JOSÉ – Acabou-se esses tempos, acabou-se esses tempos bom. Eu
pensei que vocês não vinha mais!
Lílian – Tava esperando a gente?
D. MARIA JOSÉ– É bom a gente falar da vida, né? (SILÊNCIO)
D.MARIA JOSÉ – Que era que tava dizendo? Sim... No dia em que mãe Joana
tava morrendo, eu digo: Mãe Joana tá morrendo. Aí saí correndo, ela era uma
mulher tão franzina, que quatro mulher quase não bota ela pra fora e nesse
tempo eu tinha força, agora não tenho mais não. Eu nunca dei uma cipoada numa
rês pra mode ela não se levantar, mais agora? Mais em eu dizer, não vá se fiar em
dá uma tapa n'eu não, viu?
Lílian – Não! Faço isso não! Eu tenho juízo! ((risos))
Diva – Ela gostava de bendito, sua mãe? Qual o que ela gostava mais?
D.MARIA JOSÉ – Então, mamãe morreu a gente não cantou não, porque mamãe
morreu diferente, à boca da noite ela rezou, aí pegou o rosário e foi botar no
pescoço, na capela, no pescoço de Santa Terezinha, tava com a mão quebrada, aí
quando ela fez assim, disse: “Aí meu Deus que dor!” agarrando na cabeça e quando
caiu já foi morrendo, só gastou o bico da vela. No dia das mães Ferreirinha veio
me buscar pra eu ir pro dia das mães. Eu digo: eu não vou não. Ele disse: “Por que
a senhora não vai?” Porque eu não vou, não posso ir. Aí ele disse: “Tá certo.” Avise
lá porque já faz quarenta e dois anos que mamãe morreu, mas parece que estou
vendo ela e ela não sai do meu pensamento, não posso ir. Porque se eu fosse, tinha
que cantar e eu digo assim: ♫Oh! Minha mãe, minha mãe. Oh! Minha mãe, minha
amada. Quem tem mãe, tem tudo e quem não tem mãe não tem nada. ♫ E aí eu não
fui não, fui nada.
Lílian – É por isso que a senhora ficou triste no dia das mães?
D.MARIA JOSÉ – O dia das mães não foi bom pra mim porque não tinha mamãe,
papai. O dia das mães só quem veio aqui me tomar a benção foi José, porque todo
o dia ele vem me tomar a benção, ele tá vindo, tá bem perto.
Lílian – Todo dia quando a gente está aqui, ele vem.
D.MARIA JOSÉ - Não sei quando é que vocês vêm pra eu fechar uma fita
dessas?
Lílian – Fechar o quê?
D.MARIA JOSÉ – Uma fita dessas?
Lílian – Sim! Quinta-feira.
D.MARIA JOSÉ – Segunda?
Lílian – Quinta.
D.MARIA JOSÉ – Quinta-feira agora?
Lílian – É. Hoje é terça, é depois de amanhã, eu vou ter que voltar, acabaram
minha férias, mas eu vou ficar vindo nas sextas-feiras conversar com a senhora.
D.MARIA JOSÉ – Hum.
Lílian – Eu vou voltar pra Pau dos Ferros.
D.MARIA JOSÉ – Vai voltar pra Pau dos Ferros?
Diva – Ela num deixou a gente!
D.MARIA JOSÉ – Foi! Rum.
Diva – Cadê o bendito de Santo Antonio, que a senhora disse que ia rezar pra
mim. Ia cantar pra eu ouvir?
D.MARIA JOSÉ – O bendito de Santo Antonio?
Diva – Sim.
D.MARIA JOSÉ – De São Pedro. Toda noite eu rezo pra São Pedro.
Lílian – De São Pedro?
D.MARIA JOSÉ – Rum.
Lílian – Qual a história de São Pedro? Ele era pescador, não era?
D.MARIA JOSÉ – São Pedro era, é o dono da chave do paraíso. O que é pescador
era Santo Enoque.
Lílian – Ah, era? Por que São Pedro é dono da chave do paraíso?
D.MARIA JOSÉ – Porque ganhou o paraíso.
Lílian – Mas, por que ele ganhou a chave? A senhora sabe a história dele?
D.MARIA JOSÉ – Não era ele que andava mais Nosso Senhor? Quem sabe todo
sofrimento era São Pedro/...
Diva – Ô! Dona Maria?
D.MARIA JOSÉ – Senhora?
Diva – A senhora vai dizer o bendito de Santo Antonio? Me ensinar?
D.MARIA JOSÉ – O bendito de Santo Antonio?
PESQ. COLABORADORA – Sim.
D.MARIA JOSÉ – Tem dois bendito de Santo Antonio.
PESQ. COLABORADORA – E qual o que a senhora gosta mais?
D.MARIA JOSÉ – ♫ Antonio que tais na Itália, deixa para o sermão pra sempre,
avisa teu amor que vai morrer inocente ♫.../ (( D. Maria interrompe bruscamente
o canto e muda o assunto)) O carro não já passou lá embaixo? O povo tão tudo no
meio do caminho [?]. Fazendo faxina e eu tô só calada, tô só calada. Quando eu
disser uma coisa, vou conversar pouco, porque eu como filha de papai ... ... porque
uns são neto, outros bisnetos e querem mandar mais do que eu, aí não pode.
Lílian – Dona Maria porque que a senhora diz que suas irmãs têm ciúmes?
D.MARIA JOSÉ – Hein?!
PESQ. COLABORADORA – Por que a senhora diz que elas têm ciúmes?
D.MARIA JOSÉ – Porque elas têm.
Lílian – Como foi que começou essa coisa toda da senhora ficar famosa?
D.MARIA JOSÉ – Dona Maria, muito famosa! Nem dente na boca tenho, ((risos))
cabelo bom não tenho, nem um dente na boca tenho. Quem disse que eu sou
famosa?
Lílian – Ah! Tem um bocado de gente aqui dizendo.
Diva – E precisa disso tudo pra ser famosa?
D.MARIA JOSÉ – Eu era safada.
Lílian – Ah! Era? Por quê?
D.MARIA JOSÉ – Eu só temia a Deus e a mais ninguém.
Lílian – E a inveja das suas irmãs, é dessa sua força?
D.MARIA JOSÉ – Da minha força?
Diva – Sim, causa inveja em uma mulher, força.
D.MARIA JOSÉ – Às vezes eu digo: ah! Se eu ainda fosse o que eu era!
(SILÊNCIO). A velhice acaba com a pessoa, maltrato, pensamento, tudo isso
acaba com a pessoa, viu?
Lílian – Mas, a velhice traz coisas boas, né?
D. MARIA JOSÉ - Eu apanhava muito porque eu era safada, não vou dizer que eu
era boa!
Lílian – Tem que reconhecer, né?
D.MARIA JOSÉ – Oia! Duas coisas, duas coisa, que ele não soube: a vaca que eu
matei dentro do roçado e a surra que eu dei em Zé Jacaré. Sim! Zé Jacaré/...
Lílian – Zé Jacaré é aquele que foi pra Goianinha?
D.MARIA JOSÉ – Não, aquele que foi pra Goianinha, foi Chico. Zé Jacaré de
Santo Antonio.
Lílian – E de Chico, ele soube? Essa surra que a senhora deu em Chico?
D.MARIA JOSÉ – Nada, soube não. Se ele soubesse, ele tinha mim dado uma
surra.
Diva – Dona Maria! E como era que as moças namoravam na sua época?
D.MARIA JOSÉ – Namoravam? Mais agora deu, o diabo! ((risos)) Eu sei que,
mesmo papai dizia. Tem uma coisa, um dia ele ia dando em mim porque Zé
Banheiro chegou lá em casa, aí comadre Maria Augusta foi botou a cadeira pra
ele se sentar, aí ele se sentou. Ele embaixo da calçada e eu botei um tamburete
em cima da calçada e me sentei. Aí quando papai saiu pra fora, deu um murro na
minha cabeça, aí ele disse: “seu Atanásio, porque o senhor tá tão nervoso?” “Você
ainda vem me falar?” Papai era bem alto, agora ele era franzino. “Você ainda vem
me falar? Eu não lhe dei esse cabimento de fia minha se sentar mais namorado,
não. É pra vim conversar mais eu, não é pra ir conversar mais ela, não.” Aí ele
disse: “só tem uma coisa, porque eu não tô interessado no senhor, tô interessado
é nela.” Aí papai disse: “Você aí vem me falar?” Aí ele acunhou no meio do mundo.
Lílian – Seu pai deixou a senhora namorar com que idade?
D.MARIA JOSÉ – Já tava com vinte anos, já.
Lílian – Foi mesmo Dona Maria? Por que ele, ele não deixava nem a senhora ir ver
o fandango?
D.MARIA JOSÉ – Só ia no fandango se mamãe fosse mais a gente, ou mamãe ou
titia. Titia gostava muito de mim.
Lílian – Qual sua tia? É Petronila?
D.MARIA JOSÉ – É Petronila, Cantonila, Antonia e Atanásio Gaspar.
Lílian – Ah! só eram quatro na casa dele?
(SILÊNCIO)
D. MARIA JOSÉ - Agora por que, no tempo que foram me batizar minha mãe
mandou botar o nome de Maria José e minha madrinha botou o nome de mamãe, o
sobrenome de mamãe, ela botou meu nome, agora ninguém sabia que meu nome
era Militana, depois que eu comecei a andar no meio do mundo, com os
documentos. Pronto! Quando eu chego na cidade. “Oh! D. Militana, D. Militana”, eu
fico putinha de raiva.
Lílian – Quando foi que a senhora começou a andar no meio do mundo?
D.MARIA JOSÉ – Primeiro eu fui pra Mossoró com o professor Gurgel. ((Falando
com os bisnetos que brincavam perto de nós)) deixa meu cipó aqui porque esse
cipó tá aqui mode sua mãe não dá-lhe, porque ela ia dá-lhe com ele. O que é que eu
tava dizendo?
Lílian – Estava dizendo que foi pra Mossoró com o professor Gurgel.
D.MARIA JOSÉ – Sim, foi. Nesse dia eu tive tanta raiva!
Lílian – Por quê?
D.MARIA JOSÉ – Não, dormimos no meio da rua por causa de Seu Severino,
conhece?
Lílian – Não.
D.MARIA JOSÉ – Seu Severino era motorista bom. Quando chegou em Mossoró,
pra chegar em Mossoró, aí Seu Severino disse: “Quer Dona Militana, quer tomar
café ou só vai almoçar e tomar café depois que chegar de lá em Mossoró?” Aí ele
disse: “É que não tem onde comprar nada.” Aí Seu Severino disse: “Vamos ver se
tem ou se não tem.” Aí chegou: “Tem um, um hotelzinho na beira do caminho.” Aí
ele chegou, falou e mandou botar almoço pra gente. Aí o homem foi perguntou se
a gente queria almoçar, aí ele disse que botasse frango. Sim! Quando veio o
almoço, veio frango cozido, porque era dessa cor. ((aponta para a sua saia com
tom avermelhado))
Lílian – O frango?
D.MARIA JOSÉ – Hum.
Lílian – Era?
D.MARIA JOSÉ – Assado./... Vocês venham mais pra cá. Assim não vai dá pra
gravar.
Lílian – Não tá bom assim.
D.MARIA JOSÉ – Aí Seu Severino. Aí/... Êpa, êpa, não briguem não, não briguem
não, teu pai tá chamando ((falando com os bisnetos dela nesse momento))... Aí seu
Severino disse: “Eu disse que queria frango assado, mas era assado não era
afoguiado não. O home disse: “Tá assado.” Aí pôs a mão assim puxando o couro e
chega minou sangue. Aí ele disse: leve seu galeto, que eu não quero não.” Aí
trouxeram outro negócio. Aí de lá o professor disse: “Nós vamos dormir na casa
da minha irmã e eu vou dormir na casa de [?] ...” Aí saímos, aí já dentro de
Mossoró ele cassou um canto pra gente dormir, aí eu fiquei mais Lídia assim, aí
tinha um portãozinho as divisas, né? Aí ele, o homem, veio e travou a porta, nós
fiquemos desse lado e ele ficou do outro lado, aí tinha uma coisa de telefonar em
cima de uma banca, aí botou pro lado que ele estava, né? Ficou debaixo da
cabeceira dele e disse: “Olhe Dona Militana, qualquer coisa a senhora aperte
nesse botão”... que tinha um botão verde e um vermelho... “Olhe a senhora pode
apertar nesse botão que eu escuto”. Eu digo tá certo, aí fiquei. Você dormiu? Pois
mesmo assim fui eu, Lídia pegou no sono, chega ressonava e eu acordada. Quando
foi de manhã ele veio buscar a gente, aí disse: “Olhe, aqui é a delegacia, aqui é
não sei o quê.” A delegacia era desse lado e o negócio de trabalhar em carro, a
oficina de carro, assim. Aí ele disse: “Chegou, já é o dia a gente ainda vai hoje ou
deixa pra amanhã? Que ela não vai mais cantar não.” “Ela não vai mais cantar não,
eu tô achando muito pouco o que ela vem ganhando e outra coisa/...
Lílian – Quem disse, Seu Severino ou o Professor?
D.MARIA JOSÉ – Sim, Seu Severino: “Ela não vai mais cantar hoje não, só
amanhã.” Quando foi de manhã, aí tava tão perto que o carro saiu de nove hora, aí
cheguemo não sei aonde era mais de oito hora da noite. Aí ele disse: “Quer
dormir? A senhora dorme lá em casa mais a menina?” Eu disse: eu quero dormir
em casa. Aí ele tirou o carro no meio do mundo e veio me deixar em casa.
Lílian – Como foi que ele lhe descobriu? O Professor Gurgel, como foi que ele
descobriu a senhora?
D.MARIA JOSÉ – Porque papai, ele andava muito, de oito em oito em vinha visitar
papai.
Lílian – Ah! Era?!
D.MARIA JOSÉ – Era.
Lílian – Ele já conhecia seu pai.
D.MARIA JOSÉ – Era.
Lílian – Então seu pai ainda era vivo quando ele lhe conheceu.
D.MARIA JOSÉ – Tava. Ele vinha, ficava conversando um dia!
Lílian – Faz quanto tempo que seu pai morreu?
D.MARIA JOSÉ – Vinte e cinco. Vai fazer no dia dois de setembro, vinte e cinco
anos.
Lílian – Então faz tempo que ele conhece vocês, né?
D.MARIA JOSÉ – Quando me levaram pra rua, eu dizendo a/... Eu digo: eu não
vou dizer nada e quando eu cheguei, assim que eu cheguei pra entrar, tô na mente
que não vou dizer nada.
Lílian – Pra entrar onde?
D.MARIA JOSÉ – Pra entrar aí na Prefeitura. Aí não iam fazer meu aniversário?
Lílian – Ah! Sim.
D.MARIA JOSÉ – Eles fizeram mais eu não sabia de nada.
Lílian – E foi?
D.MARIA JOSÉ – Foi. Eu digo, eu disse se quando chegar lá, aí mandarem eu
falar, eu falo. Aí dizendo [?], Eu não disse nada.
Lílian – E eles pediram pra senhora dizer alguma coisa?
D.MARIA JOSÉ – Aí ele ((o prefeito)) chegou disse: “Se a senhora puder dizer
alguma coisa, diga.” Aí mandaram eu sentar lá em cima, eu sentei, ele sentou-se
de um lado e o diretor sentou-se do outro e quem pegou a cantarolar uns negócios
foi Ferreirinha.
Lílian – E quem é Ferreirinha?
D.MARIA JOSÉ – Ferreira trabalha na Prefeitura.
Lílian – Sabe cantar também esses versos que a senhora canta?
D.MARIA JOSÉ – Nada. Aí ele: “Cante Dona Militana.” Não dá não, dá não. Até
seu Gurgel foi.
Lílian – Foi?
D.MARIA JOSÉ – Foi. Eu digo: eu não vou cantar nada. Aí ele disse: “Ela já se
aperriou hoje só pro mode ela chegar aqui, ela já se aperriou, pro mode ela ir
cantar no meio de gente, possa ela ir se aperriar de novo.” Aí Ferreirinha disse:
“vai apresentar sem ela cantar, mesmo.”
Lílian – A senhora gostou do seu aniversário lá?
D.MARIA JOSÉ – Foi no dia dezenove de março.
Lílian – Foi agora, eu vi na televisão, que tinham vindo aqui, mas depois levaram a
senhora pra lá, foi?
D.MARIA JOSÉ – Foi.
Diva – É bom o povo daqui também dá valor a senhora.
Lílian – O professor Gurgel sabia que a senhora cantava, quando ele ia visitar seu
pai?
D.MARIA JOSÉ – Porque ele ia visitar papai de oito em oito dias, de quinze em
quinze dias. Quando se dava fé, ele chegava. Aí ele disse, aí um dia papai cantou
um verso pra ele, porque ele só ia atrás de verso e ele andou fazendo umas fita
lá.
Lílian – Hum!
D.MARIA JOSÉ – No dia que papai morreu ele veio aí [?] Aí ele disse: “E agora?”
Aí eu disse: agora fica por isso mesmo, mas aí ele disse: “Mas a senhora, sabe?”
Eu digo: eu sei, mais não estou querendo ser cantora. Aí ele inventou de me levar
pra lá, eu fui. Agora eu tô evitando, porque a pessoa sendo velha, sem dente...
((risos))
Lílian – A senhora gosta de cantar pra quem?
D.MARIA JOSÉ – Pra ninguém. Quando vocês chegaram tinha saído um daqui, um
da prefeitura. “A senhora pode cantar uns negócios?” Eu digo: eu não vou cantar
não. No dia dezenove quando eu fui, fui parar no hospital.
Lílian – Foi mesmo? Nesse mesmo dia que teve a festa lá?
D.MARIA JOSÉ – Foi.
Lílian – O que foi? A senhora ficou emocionada, foi?
D.MARIA JOSÉ – Quando eu cheguei, assim que eu cheguei, aí... Conhece Paula?
Lílian – Paula? Esse nome não me é estranho.
D.MARIA JOSÉ – Ela era quem estava interessada, aí ela fez tudo pra ir pro Rio
de Janeiro com ela, aí foi seu Sérgio e Castanha e a mulher dos dois, fumo pro
Rio de Janeiro, eu pensando que eu ia ganhando um horror de dinheiro. Quando
foi no fim chegou aqui ela disse: “O dinheiro vem amanhã ou a depois.” Veio me
deixar vinte real, com quinze dias ela veio deixar vinte real. Eu digo: eu passo
sem essa miséria, já ontem eu recebi dinheiro que fiz minha feira. Eu digo: Não
muié, não carece disso não. O que foi que a senhora mim disse pra mode me
seduzir? A senhora não brinque muito não que [?] “A senhora ainda tem raiva
daquele dia?” Eu digo: Não sai do pensamento não, mas eu não tenho raiva de nada
nem de ninguém, me faz mal.
D.MARIA JOSÉ – É, o pensamento guarda as coisas e fica guardado.
Lílian – É não passa assim não, né?
D.MARIA JOSÉ – É.
Lílian – É verdade.
D.MARIA JOSÉ – Quero ver. Aí ela disse assim: “Nós tamo dando outra viagem
no Rio de Janeiro.” Aí eu digo: Comigo? Ela disse: “Sim, nós duas.” Eu digo: Sim,
quero só que ela venha!
Lílian – E a senhora foi pro Rio de Janeiro, pra onde lá, foi cantar lá também?
D.MARIA JOSÉ – Foi chamado de Antonio Nobre.
Lílian – Mas, a senhora não foi com Candinha não? Foi essa vez que a senhora foi
com Candinha, não?
D.MARIA JOSÉ – Hein?! Foi que ele falou com Candinha, pra Candinha mandar me
buscar e eu fui. Aí Candinha foi até certa altura, aí chegou não sei por onde, ela
foi só descer dum avião e entrar no outro que o marido ia pra Brasília e mandou
chamar, telefonou pra ela e ela, o avião tava parado, e ela voltou.
Lílian – Mas, a senhora não foi sozinha, não?
D.MARIA JOSÉ – Aí eu ia: a menina de Marina eu e Lídia e Dácio ia com a gente.
Aí ela me recomendou a eles, aí nós fumo embora.
Lílian A – A senhora gostou de Antonio Nóbrega?
D.MARIA JOSÉ – Tinha uma dona lá fazendo pergunta, ela ia ganhar uns dois mil,
ela ganhando dois mil e pra lá e pra cá fazendo pergunta. Aí, “Tem um curral com
muito gado?” Mais repare que pergunta besta: “o que é que tem abaixo do gado?”
Aí, Antonio Nobre alevantou-se e disse: “É merda.” O povo meteram o pau a
mangar dela. Aí eu disse: deixa eu fazer uma pergunta a ela? Aí eu digo mim diga
uma coisa, a senhora pode me responder: setecentos bois correndo quantos
rastro pode ser? Ela disse: “É muito bonito ir pra um cercado, pegar na mão do
gado pra ver quantos rastro podem ser.” Eu digo: pois eu digo setecentos boi
correndo, a terra sendo de areia, são mil e seiscentos, rastro. Aí Antonio Nobre
levantou-se e disse: “Ganhou.” Aí eu disse: e me diga uma coisa onde é que o bicho
macho carrega força e talento? “Pronto tudo quanto é macho carrega força nos
braços.” Eu digo: mentira sua, aí ela disse: “Pois se sabe diga.” Digo agora: touro
tem no cupim; cavalo no espinhaço; onça, tigre tem no queixo, tatu peba tem nos
braços; tijuaçu tem no rabo e camaleão no cangaço, aí eu disse: E agora?
entendeu essa? Entenda essa? Ela disse: “agora me explique porque o camaleão
tem mais força do que todo homem? Porque mais força do que o tijuaçu?” Eu
digo: por que o camaleão é mais homem do que os homens? Ela disse: “É por quê?"
Eu digo: encalque na macaxeira dele que ele lhe mostra porque é. Na macaxeira
dele ele vira duas pintas ((risos)).
Lílian – Nossa senhora ((risos)).
((nesse momento nós todas rimos muito da história))
D.MARIA JOSÉ – Eu digo: vai pegar um camaleão e traz e aperta na macaxeira
dele pra tu vê se ele não é mais homem do que os homens. Aí no lugar de receber
só o meu, recebi o meu e o dela, ela saiu que saiu fumaçando no meio do povo.
Lílian – A senhora gostou de Antonio Nóbrega? Conversou com ele?
D.MARIA JOSÉ – Eu quero dizer que ele foi uma boa pessoa.
Lílian – Foi, né?
D.MARIA JOSÉ – Quando nós entremos no avião tem um negro com uma perna na
frente assim, desse jeito, que vai andando. Aí apertaram não sei por onde e ele
disse é proibido entrar no avião fumando e é proibido entrar armado. Aí Marina
disse: “A senhora vai armada mamãe?” Aí eu digo: repare aí na minha bolsa se tem
alguma arma, repare nas minhas coisas se vai arma! E eu com a faquinha!
Lílian – Sei.
D.MARIA JOSÉ – E aí andei a vida toda nos ares. Aí fumo. Vim de Rio de Janeiro
pra São Paulo, aí Marina disse: “a Senhora deixou sua faca mamãe?”, deixei tá na
bolsa. Quando a menina viu, perguntou: “pra que essa faquinha?” Eu disse: Será
que eu seja menino? Em terra estranha todo dia eu vejo o que se passa aqui em
São Paulo eu vejo na televisão, hein?! Andando de boca aberta só nós duas, com
um homem dentro do carro. Ela disse: “E o que é que a senhora faz?” Eu digo: se
houver precisão você vê.
Lílian – A senhora gostava Dona Maria de sair pelo mundo?
D.MARIA JOSÉ – Hum!
Lílian – A senhora gostava de fazer essas viagens? De cantar pelo meio do
mundo?
D.MARIA JOSÉ – Agora eu não vou mais não.
Lílian – Mas, a senhora gostava quando a senhora ia?
D.MARIA JOSÉ – Quando eu ia pra fora, eu gostava.
Lílian – Por quê? O que era que a senhora mais gostava?
D.MARIA JOSÉ – Eu gostava? De nada.
Lílian – Hum!
D.MARIA JOSÉ – Viajar é bom, mas às vezes passa um avião aqui, eu digo: Deus
me livre nunca, mais de altura. Eu andei fora da terra?
Lílian – A senhora teve medo de andar de avião?
D.MARIA JOSÉ – Eu tive. E Marina disse assim: “Mamãe?” Pôs-se assim perto e
disse: “Olhe ali aquele barraco de pedra e as ovelhas tudo comendo em volta.” Aí
eu disse: Mentira! Aí eu suspendi um vidrozinho, um espelhozinho, não tem um
espelhozinho?
Lílian – Tem.
D.MARIA JOSÉ – Aí eu suspendi, olhei, aí ela disse: “É mamãe!” Eu digo: é não
menina! Aquilo ali é uma nuvem de chuva com aquelas branquinhas/...
Lílian – De lado.
D.MARIA JOSÉ – De lado. É não. Quando o avião tirou pras banda de lá, eu digo:
taí, aí tem pedra, aí? Era até aqueles negocinhos, aqueles negocinho que vem? Taí
aí tem nada? “A senhora percebe as coisas mais do que eu!”
Lílian – Mais experiência, né? Mas a senhora ainda quer ir?
D.MARIA JOSÉ – Eu desejo mais não.
Diva – Não quer mais não andar no meio do mundo?
D.MARIA JOSÉ – Quero não.
Diva – Mas, gostava?
D.MARIA JOSÉ – Hum?
Lílian – A senhora gostava de se apresentar. Conhecer um monte de gente e a
senhora cantando os seus versos?
D.MARIA JOSÉ – Eu não achava ruim não. Um dia a gente fumo lá pra Pedro
Grilo, ((refere-se a um poeta de Natal)) conhece?
Lílian – De nome.
D.MARIA JOSÉ – Um que só anda com a bengala e um chapéu de palha desse
tamanho!
Lílian – Sei quem é.
D.MARIA JOSÉ – Esse desgraçado ainda está mim devendo, um ano já fez.
Lílian – E é?
D.MARIA JOSÉ – É, é coisa e como é? E Ana, Ana Carla, conhece?
Lílian – Conheço não.
D.MARIA JOSÉ – Disse assim: “A senhora vai ganhar dois mil e a senhora recebe
na hora. ” Eu disse: tu não vai me enganar, não? “Não, a senhora recebe na hora.”
Mandaram eu cantar verso, eu cantei. Agora era Hélia Maia. Cuma é home? Hélia
o quê?
Lílian – Não sei, quem é?
D.MARIA JOSÉ – Hélia Ramalho.
Lílian – Elba Ramalho, que foi lá no campus, no Auto de Natal? A gente tentou
entrar lá pra ver a senhora cantando, mas a senhora é muito importante, ninguém,
ninguém deixou.
D.MARIA JOSÉ – Não deixou o quê?
Lílian – Não deixaram a gente entrar pra ver a senhora não.
D.MARIA JOSÉ – Não deixaram entrar não?
Lílian e Diva – Não.
Lílian – A gente disse: mas, ela é minha amiga, a gente vai lá na casa dela
conversar com ela! Mas não deixaram de jeito nenhum.
D.MARIA JOSÉ – Hum, Hum!
D.MARIA JOSÉ – Aí, ela recebeu o dela na hora.
Lílian – Aquela lá? E a senhora não recebeu ainda não?
D.MARIA JOSÉ – Não.
Lílian – Foi mesmo, Dona Maria?
D.MARIA JOSÉ – Aí ela na hora, pagaram a ela. Aí Ana pagou a ela, aí disse:
“amanhã logo cedo vou deixar seu dinheiro.” Até hoje, mais ela, ela ainda vem
atrás de mim.
Lílian – E por que a senhora acha que pagaram a ela e não pagaram a senhora?
D. MARIA JOSÉ – Ela não é pobre, né!
((Chega a filha de D. Maria e pede que ela tome conta de um dos bisnetos. Nos
distraímos com as brincadeiras das crianças. Depois nos despedimos.))
3.2.9. Transcrição 7
Transcrição da entrevista realizada em 12 de maio de 2005, na Casa de
Benidita, Loteamento Alto de Canaã, São Gonçalo do Amarnate.
Nesse dia, encontramos D. Maria José muito bem disposta. Já estava
nos guardando e, como tínhamos nos atrasado, ela reclamou um pouco,
dizendo que já estava convencida de que não viríamos. Animadamente, pede
que eu ligue o gravador. Começa contando a história da mulher que tinha
ligado do Rio de Janeiro para ela. Diz:
D.MARIA JOSÉ – Grave aí. Ela perguntou a minha idade, Eu digo: a era em que eu
nasci, você faça a conta de idade, só pra ver se ela dizia, aí ela disse: “a quanto à
senhora nasceu?” Aí eu disse: na era de vinte e cinco, a dezenove de março, às
doze horas do dia, foi aí meu nascimento, a lua tava de minguante, a maré tava de
vazante, a lua cortou minha sina e a maré levou minha sorte e agora eu digo: sou a
mais sofredora do Rio Grande do Norte. Aí ela disse: “agora eu mim lasquei”. Eu
digo: e não já nascesse lascada? ((risos)) Aí ela danou a risada, no telefone.
Lílian – Quer dizer que a senhora, inventa verso também, né?
D.MARIA JOSÉ – Ah!
Lílian – A senhora inventa verso também, né?
D.MARIA JOSÉ – É.
D.MARIA JOSÉ – Um dia, me levaram lá pra aquele teatro de Pedro Grilo.
Lílian – Hum!
D.MARIA JOSÉ – Não sabe?
Lílian – Sei.
D.MARIA JOSÉ – Aí chegou um cara com a barba bem aqui, aí eu tava cantando,
aí eu disse: ♫ valha-me Deus, senhor São Pedro, de homem barbudo eu tenho
medo. Valha-me Deus, meu senhor São Bento, que barba grande e é pioienta. ♫ Aí
o povo ficaram acanaiando ele e ele disse: “eu vou mimbora daqui.” A muié disse:
“peraí deixe ela cantar mais.” Aí ele saiu. Diabo de uma barba véia, um home novo
com uma barba, chega era bem por aqui, chega era feia, nem mesmo tratava.
Lílian – Esse a senhora criou na hora, na hora que olhou pra ele?
D.MARIA JOSÉ – Foi, foi!
Lílian – E quando a senhora estava trabalhando, a senhora criava também?
D.MARIA JOSÉ – Quando eu tava trabalhando?
Lílian – Sim, na roça?
D.MARIA JOSÉ – Criava, e quando eu tava moendo mandioca mais papai, não era
eu que tirava na frente?
Lílian – Mas, esses que a senhora tirava na frente, a senhora ia inventando na
hora?
D.MARIA JOSÉ – Era. Quando eu era gente que mim sentava lá no olho do
cajueiro, quando eu tinha raiva dos namorados, aí mamãe dizia: “lá vem Chico
Curinga.” Aí eu me trepava, lá no olho do cajueiro e metia o pau a cantar. O galho
do cajueiro ia lá e vinha cá e eu lá em cima atrepada. Maria dizia: “Maria?!” Eu
dizia: senhora? “Chico tá aqui.” ♫ Eu digo: tu vais ingrato, repousar bem longe.
Nunca te esquece, do amor que foi teu. Se perguntares, quem foi a tua amada?
Responde, ingrato, ela já morreu. ♫ Eu era safada.
Lílian – Mas essa, foi a senhora que criou também?
D.MARIA JOSÉ – Papai: “Maria José, quem é que ensina tanto, as coisas a tu?”
Eu digo: ninguém.
Lílian – Mas aquelas histórias, a senhora não inventou não, né?
D.MARIA JOSÉ – Papai era trabalhando e cantando, e eu colando na cabeça.
Lílian – A senhora me disse uma vez, que tinha uma tia que lia.
D.MARIA JOSÉ – Era tia Petronila, a mais velha irmã de papai, era só quem sabia
ler. Ela lia toda qualidade de folheto. Um dia, mandaram me chamar em Natal, só
pra mode eu cantar o verso de Antonino, óia? Perguntaram: A senhora sabe o
verso de Antonino? Eu digo: vocês sabem ler? Então pega um folheto, pra ler no
folheto. E eu que venha cantar verso pra vocês?
Lílian – Mas no folheto não tem o canto.
D.MARIA JOSÉ – Tem assim a pessoa queira.
Lílian – E é? Como assim?
D.MARIA JOSÉ – Porque é, tem que cantar no folheto, também. Onde é que os
cantor aprende? Num é nos folheto, não?!
Lílian – Mas, como vai saber o ritmo, a melodia?
D.MARIA JOSÉ – Eles botam.
Lílian – Como?
D.MARIA JOSÉ – Eles botam o ritmo.
Lílian – Então, é a senhora que bota nos seus?
D.MARIA JOSÉ – Óia, o que eu ia dizendo.
Lílian – Ia dizendo, o quê?
D.MARIA JOSÉ – Você não disse, que eu era quem botava ritmo nos meus?
Lílian – Eu estou perguntando, não estou afirmando, não.
D.MARIA JOSÉ – O verso mais comprido, que tem de aprender, é o de Marina e
eu canto ele todinho.
Lílian – É bonito. Por que é difícil de aprender?
D.MARIA JOSÉ – O verso de Marina? Porque Marina era. Ela foi muito safada,
era criminosa de não sei quantas mortes.
Lílian – Marina era criminosa? Por quê?
D.MARIA JOSÉ – Era, porque era. (SILÊNCIO)
Lílian – Qual a história do verso de Marina?
D.MARIA JOSÉ – Hum?!
Lílian – Conta a história, de quê?
D.MARIA JOSÉ – Vexada pro mode aprender, né?
Lílian – Eu só tô perguntando a história do verso de Marina. E por que eu não
posso aprender?
D.MARIA JOSÉ – Porque eu estou com dor de cabeça, aí não quero cantar, não.
Lílian – Não, mas não cante, eu quero só que a senhora conte a história, fala de
quê?
D.MARIA JOSÉ – Tem o verso de Marina, tem o verso, de como é meu Deus? Eu
sei lá mais! ... O verso cantando eu ainda me alembro. Que Marina era filha de um
barão ou era de um rei, agora o rei não queria que ela casasse com Alonso. Marina
era uma princesa muito rica e educada, porém amava Alonso, que não possuía
nada. Alonso foi enjeitado, criado por um ferreiro trapio, morto de fome, sabe
que se cria assim todo os dias não come. Aí findou ela... o rei... veio um primo
dela.... O rei arrumou um rapaz pra casar com ela, que era do gosto dele, aí ela foi
disse a ele, que matava ele, matava o rapaz. Aí ele, levou o casamento a frente.
Na hora do casamento, cruzou o noivo à mão. Marina cravou um punhal, em cima
do coração e ele caiu sem ação. Aí partiu o irmão dele pra vingar nela seu irmão,
ela cravou-lhe o punhal e ele caiu sem ação. Ela disse: “o que vier.” Aí ela disse
pro pai dela: “cumpri minha jura, ou não? Até o senhor, se cruzar, sofre a mesma,
a mesma punição.” Aí ele foi, entregou. Quem levou ela pra cadeia foi o padre.
Chegou lá, botaram ela na cadeia. E Alonso? Ele disse que ia mandar matar
Alonso. Ela botou Alonso pro meio do mundo, pra não sei onde/... quando eu me
lembrar o nome do lugar, eu digo/.... Aí, antes dela entrar na prisão, ela mandou
uma carta./... Sim era pra Japão./... Ela escreveu uma carta e mandou. Aí, quando
ele recebeu a carta, diz: “agora que eu me vingo do barão!” Aí pegou o barco, de
lá pra cá. Aí quando chegou na rua, não queria que o barão soubesse que ele tinha
vindo, aí andava na rua, cassando, ver se sabia notícia dela. Aí ele encontrou um
velho que lhe pediu dinheiro, faz três meses que trabalho e não recebo dinheiro,
aí Alonso olhou e viu que ele era carcereiro. Aí disse: “o senhor é carcereiro?” Ele
disse: “sou, sou carcereiro.” “E essa chave é de abrir o quarto onde tá presa a
menina do barão!” “Faz três dias que o ferro pesado corta, eu penso que amanhã
ela amanhece morta.” Aí ele ofereceu vinte mil conto de réis pra mode ele abrir a
porta, Aí ele foi e abriu a porta. Aí Alonso quando viu Marina no chão, quis
desmaiar de ver Marina no chão. A pessoa sem comer e num sofrimento desse! Aí
ele levava leite e rapidamente esquentou, deu um pouquinho a Marina e Marina
melhorou. Aí ele vem saindo com Marina, ele e o velho, vem saindo e cinco oficial
o cercou. Aí foram em cima dele. Aí Alonso matou dois e Marina matou dois e
ficou um e fugiu. Aí contou ao barão que eles tinham fugido. Aí o velho levou eles
dois e conservou dentro de uma cova, um buraco, não sabe?
Lílian – Sei.
D.MARIA JOSÉ – Aí eles carregaram o navio todo, só a fim de encontrar, mas o
velho amigo de Alonso, dentro de uma cova, conservava. Quando foi meia noite
ele foi no navio e disse ao capitão do navio que queria partir cedo. Aí ele disse
que demorasse que o barco tava vazio, ele disse que queria partir que o tempo
tava [?]. Aí o capitão do navio disse, que o barco tava vazio. Aí o véio escondeu
eles dois e depois que ele lotou o navio disse que ele podia partir e contasse com
ele. “Amigo pode sair do meu barco, se fizeram de mim [?]”. Às doze horas da
noite, do dia, eles saíram. Quem vai sair escondido sai de dia. Eles saíram, aí o
barão botou o navio dele atrás. Doze horas do dia os barcos se confrontaram, aí o
capitão morreu logo, dos tiros que levaram, que trocaram. O capitão disse: “pode
embarcar no barco comigo até [?], pode sair no barco que fizeram de mim [?]”,
foi quem primeiro morreu. Ele e Marina seguiram no meio do mundo, de mar
adentro, aí o navio afundou e caiu numa tauba, numa tal duma tauba, aí dizia,
Marina ouviu uma voz que disse: “adianta, chegará uma onda que salvará tua vida.”
Ela disse: “e que voz é que tais falando?” Ela disse: “Marina, eu sou tua mãe, que
ando te acompanhando, há quinze anos que morri e ando por ti velando.” Aí foi
botar ela na beira, aí eles ficaram. Aí vinha um velho, que vinha pescando, aí viu
eles e deu uns gritos, pensando se era alma do outro mundo ou se era salteador.
Aí, Alonso disse: “nem somo alma do outro mundo, nem somo saltiador, somo dois
naufragados, lutamos a noite inteira, estamos ainda gelados.” Marina estava no
chão, aí o véio foi em casa e trouxe um vestido da muié. Aí dizia. Alonso vestiu
Marina, que tinha esmorecido, e Alonso embruiô-se com a capa que velho tinha
trazido. Aí Alonso disse, perguntou ao véio se ele não conhecia quem trouxesse
um barco novo. Aí ele disse: “conheço Manassés”, aí ele disse: “também conheço,
é meu amigo, é meu freguês e amigo, só tem que eu nunca o vi.” Aí ele veio deixar
o barco, aí ele pegou o barco e lascou no meio do mundo, não teve pai que
empatasse dele se casar com ela. Eu tô com dor de cabeça que só!
Lílian – E terminaram casando os dois?
D.MARIA JOSÉ – Foi terminaram casando.
Lílian – É bonita a história, Dona Maria.
D.MARIA JOSÉ – É toda de sofrimento.
Lílian – É. Marina é uma mulher muito forte, né?
D.MARIA JOSÉ – É. Muito forte. Eu gosto dela. Aí mamãe... Comadre Elba teve
um menino e ia mandar botar o menino na areia do rio. Aí eu cheguei e disse:
mamãe?/... Que a casa dela era mesmo aqui, perto da minha casa, como aquela de
lá.
Lílian – Hum, hum!
D.MARIA JOSÉ – Aí tia Cantu: “minha filha não faça isso, não.” Que ela era neta
da minha tia. “Faça isso não.” Mais tarde... “mais eu não vou criar”, o bichinho tão
alvinho! ... aí mamãe chegou e disse: “Elba, tu vai botar o menino no mato?” “Se
não botarem ele no mato ou na areia do rio, eu mato ele.” Mamãe disse: “não
mata, não! Me dá.” Aí ela disse: “pode levar.” Aí mamãe levou pra casa. Mamãe
tinha Marina, aí botou o nome do menino de Alonso.
Lílian – Ai! Que bonito!
D.MARIA JOSÉ – Quando o menino tava com oito meses, morreu dessa grossura.
Mamãe chorou, quando o menino morreu!
Lílian – Quer dizer que o nome de Marina... Você tinha uma irmã que chamava
Marina?
D.MARIA JOSÉ – Minha irmã? É minha filha!
Lílian – Não, mas não foi sua mãe que tinha Marina?
D.MARIA JOSÉ – Mas, mamãe não tinha Marina, que era neta dela?
Lílian – Ah! Sua filha, entendi!
D.MARIA JOSÉ – Aí, ela vivia mais com Marina, do que mesmo eu.
Lílian – E a senhora botou o nome de sua filha de Marina, por causa dessa
história?
D.MARIA JOSÉ – Foi.
Lílian – Foi?! Que bonito!
D.MARIA JOSÉ – Ela é mais clara do que Benidita, puxou a Mané Luiz
Lílian – Eu já vi Marina, lá na outra casa.
D.MARIA JOSÉ – Marina e Maria. Zé Luiz, puxaram uma cor de Mané Luiz e os
outros puxaram a mim.
Lílian – Sei. Então, a senhora gosta de Marina dessa história?
D.MARIA JOSÉ – Eu quero bem a ela. Acho uma mulher safada que nem eu!
Minha Marina... Quando o pai foi simbora, eu fiquei com eles sete, aí ela foi
trabalhar nas cozinhas.
D.MARIA JOSÉ – Ás vezes eu mim sento aqui...(SILÊNCIO)...agente da mocidade
pra velhice muda muito.
Lílian – A senhora mudou, Dona Maria?
D.MARIA JOSÉ – Mudei.
Lílian – Mudou em quê?
D.MARIA JOSÉ – Eu hoje não derrubo nem um pinto, mais.
Lílian – Que é que a senhora sonhava em ser? Todo mundo quando é pequeno tem
vontade de ser alguma coisa? A senhora fez tudo que queria na vida?
D.MARIA JOSÉ – Eu não.
Lílian – O que é que a senhora queria fazer que não fez?
D.MARIA JOSÉ – (SILÊNCIO) Que não fiz?
Lílian – Sim.
D.MARIA JOSÉ – Porque no tempo que eu era gente, porque hoje em dia eu não
sou gente. Porque diz assim: lá vêm duas moças, ou três moças, e uma velha! Aí eu
não sou gente, sou velha! Mas, não é não?
Lílian – Não é não. Nesse seu raciocínio, menina também não é gente, é moça.
D.MARIA JOSÉ – Então, tudo muda, mas no tempo que eu era gente/... Eu saí de
casa, aí eu digo: Mané se é de tá pagando aluguel de casa, é melhor a gente fazer
uma casa. “Eu sei lá, qual é a madeira de fazer uma casa!” Eu mandei Raimundo, eu
mandei Raimundo Gato tirar os esteios e as linhas. Ele tirou os esteios e as linhas
e eu botei a casa no mato, tirei enchame, tirei os caibros, tirei as varas, aí paguei
a Raimundo pra infincar, papai foi marcou e ele mais papai botaram os esteios e
as linhas e o mais eu tomei conta. Cavei um barreiro de barro, cavando o barro e
paliando pra fora, uma ruma do barro, amassei de duas vezes, que não dava pra
amassar de uma vez só. Eu fiz essa casa, eles levantaram, eu enchamiei, fiz
amarrações, envarei todinha, amassei o barro e tapei a casa. As paredes das
biqueiras e as paredes da frente, eu tapei até onde eu alcançava. Aí Raimundo ia
passando: “a senhora vai cair daí, é com essa vasilha de barro.” Aí tapou a frente,
de um canto a outro. A casa foi eu quem fiz.
Lílian – E Mané, não lhe ajudou?
D.MARIA JOSÉ – Mamãe dizia: “porque compadre Mané não vai tapar as
paredes?” “Eu nunca tapei parede, eu não sei tapar parede.” Ele dizia.
Lílian – Era mole ele?
D.MARIA JOSÉ – Era preguiça. Só não era mole pra fazer filho! ((risos))
Lílian – Isso aí ele fez dezoito, né?
Diva – A senhora ficou quanto tempo casada com ele, Dona Maria?
D.MARIA JOSÉ – Eu sofri muito! (SILÊNCIO). Passei quantos tempos?
Lílian – Sim.
D.MARIA JOSÉ – Passei vinte e nove anos.
Lílian – Contando com os quatorze que ele passou fora?
D.MARIA JOSÉ – Não. Os quatorze anos que ele saiu de casa, eu fiquei com
esses sete filhos. Quando chegou, José tava com quatorze anos, quando ele foi
embora e Raimundo com seis anos. Quando ele chegou, Raimundo já estava noivo e
José já tava na casa dele. José com quatorze anos, pegou a trabalhar numa
vacaria, lá na milharada, era tão grande, quando dava tantas horas da tarde, eu ia
pra encontrar ele, ia ver ele, vinha deitado na carreira de lá pra cá e quando mim
avistava parava a carreira. Não sofri, não?
Lílian – Demais.
D.MARIA JOSÉ – Me casei e saí da casa de papai com dois vestidos. Era porque
eu não trabaiava? Trabaiva e não via um tostão, porque eu trabaiava e chegava e
entregava o dinheiro. Fui pra maré, na quinta-feira maior de um ano e terminei no
sábado de páscoa do outro ano, ia pra maré todo dia, todo dia, todo dia...
(SILÊNCIO).
Diva – A senhora ia pra maré aqui nos Barreiros?
D.MARIA JOSÉ – Todo dia, todo dia, eu ia. Se levasse o que comer era bom.
Passava o dia na maré, tirando unha de velho.
D.MARIA JOSÉ – Sofri, não? Hoje as minha perna não vale nada.
Lílian – Por que andou demais?
D.MARIA JOSÉ – Aí minha madrinha disse: “num é possível que tu vais largar o
couro dos pés de andar pra Maré.” Aí comprou um vestido pra mim, de fustão
branco com [?] encarnado. Aí papai disse: é pra fazer o vestido, que a roupa da
gente tem que ser por aqui, que nem velho. Aí eu mandei fazer o vestido godê.
Lílian – Nossa!
D.MARIA JOSÉ – Aí ele disse; “quem te mandou fazer essa qualidade de roupa?
Pois, tu vai mandar ajeitar o vestido.” Já tinha sido cortado, ia dar jeito de quê?
Aí eu tinha ido pra missa, mas quando subi o patamar da igreja, o vento pegou o
vestido e sacudiu na minha cabeça, por Deus que nesse tempo as muiés não
andavam só com o vestido em cima do corpo, tinha a meia saia. Aí ele disse: “Oia,
mais nunca mais, tu veste esse vestido pra sair mais eu. Vou cortar o vestido no
seu couro. Mamãe diz: “Não corte porque tu não dais a ela um fiapo. O dinheiro
que ela ganha, ela te entrega e ela já dê graças a Deus a madrinha dá um vestido,
que tu não dais de vestir a ninguém.” Aí ele disse: “Tá certo. Domine ela como
quiser.” Era um vestido godê, a costureira era até prima da gente, era Gonçala de
Teó. Vocês conheceram Teó?
Diva – Eu sou daqui, ela não é daqui? Mas, não lembro dele não.
D.MARIA JOSÉ – Tu não disseste que era de Santo Antonio?
Diva – Sou.
D.MARIA JOSÉ – E então?
Diva – Mas eu não me lembro, mamãe que deve conhecer, papai...
D.MARIA JOSÉ – Aí Gonçala: “eu vou fazer o vestido bem feitinho, era bem
feitinho mesmo, mas aí papai não deixou terminar o vestido.”
Lílian – Não deixou terminar? Mas, a senhora não usou mais não?
D.MARIA JOSÉ – Quem?
Lílian – A senhora.
D.MARIA JOSÉ – Eu vestia ele, mais botei em casa. Usava pra tirar cipó.
Lílian – Ôh! Um vestido tão bonito!
Lílian – E a missa?! A senhora no domingo, o que é que fazia no domingo? Porque
todo dia trabalhava!
D.MARIA JOSÉ – Todo domingo eu ia pra missa, eu passava a semana tirando
unha de veio ou pegando siri e no domingo ia pra missa. Chegava da missa, acabava
de almoçar, ia pescar na levada. Tá vendo, minha vida, como é que foi?
Lílian – Quer dizer, que nem no domingo a senhora saía pra se divertir, pra
dançar?
D.MARIA JOSÉ – Pra dançar?!
Lílian – Sim. Não dançavam um pastoril, essas coisas, não ensaiavam, não?
D.MARIA JOSÉ – Não, a gente era muito besta! Pra papai dá na gente da rua até
em casa?!
Lílian – E era? Mas, a senhora tinha vontade de dançar?
D.MARIA JOSÉ – Um dia ele deu em comadre Maria, em comadre Maria Bune.
Lílian – Por que ele deu?
D.MARIA JOSÉ – Por quê? Foi Benidita. A gente fumo pra rua, agora Benidita é
mais nova do que a gente, aí eu já tava casada, aí papai disse: “repare, todo
mundo vai pra uma festa, aí minha filha fica nem casa porque num tem com que
ir”. Experimentei o vestido de Bune, não deu em mim, os de Raimunda, o de Eva,
nem um deu em mim. Porque hoje eu num tô na metade do corpo que eu era. Aí
papai disse: “Tá ruim.” Aí tirou uma saia de mamãe e uma blusa, aí eu fui pra rua.
Quando chegou lá, aí comadre Benidita meteu-se no baile, dançando. Aí compadre
Gaspar, chegou, espiou, aí veio em casa, aí chegou em casa e papai disse: “cadê as
meninas tão lá?” “Comadre Maria tá lá sentada no patamar da igreja, esperando
por Benedita. E Benedita?”... Compadre Gaspar disse: “Tá lá no baile, dançando.”
Papai disse: “agora é por aqui.” Aí foi, comadre Bune foi, compadre Gaspar foi e
avisou a papai e correu na frente. Chegou lá disse: “cuidado.” Aí chegou, foi tirar
ela, pegou no braço dela: “solte o cavalheiro que meu pai vem aí”. O cavalheiro
arrastou e ficou dançando. Sem se importar. Aí eu cheguei e disse: o senhor faz
favor de soltar; aí ele disse: “eu vou soltar porque a senhora pediu, não foi que
nem Gaspar.” Aí soltou. Aí a gente viemo, viemo e quando cheguemo mesmo em
frente o mercado, aí papai já vinha, de lá pra cá. Pegou comadre Benidita
Lílian – coitada!
D.MARIA JOSÉ – Ele deu-lhe tabefe, aí ela fez carreira na frente, quando
chegou naquela mangueira, aquela primeira mangueira, de lá pra cá que tem assim
no Oiteiro, ela foi se virar pra conversar, pra falar, não sei com quem, papai vinha
a pé junto, plantou-lhe a munheca, ela comeu areia. Nunca mais casou e não foi
mais nunca pra rua, pra mode ir dançar.
Lílian – Ela ficou solteira?
D.MARIA JOSÉ – Não ela, ela não era solteira, Ela era moça, ela e comadre
Severina, aí nesse dia, ela não quis mais saber de dança, não. Aí casou agora, tem,
parece que é, sete filha moça em casa. Parece que é sete, é de seis a sete e três
fio home.
D.MARIA JOSÉ – Quando eu era menina gostava de brincar de boneca.
Lílian – Fazia as casinhas.
D.MARIA JOSÉ – Tinha os pés de mato aposto na frente da mangueira assim, a
gente fazia sala, fazia corredor, fazia cozinha, brincava de cozinhado, brincava
de boneca, mas pra sair das casas dos outros, papai chamasse uma, não tivesse,
quando chegasse o pau comia.
Lílian – Podia não?!
D.MARIA JOSÉ – Não.
Lílian – Então, a senhora não dançava: lapinha, pastoril, nada disso.
D.MARIA JOSÉ – A gente brincava em casa.
D.MARIA JOSÉ – A gente brincava em casa, inventava, brincava em casa e
brincava, era grito de cego nos terreiros.
D.MARIA JOSÉ – Papai dizia: “vocês tão doida?” Mamãe dizia assim: “se elas sair
apanha, se tão brincando no terreiro, tu quer empatar?”
Lílian – Qual dessas danças, a senhora gostava mais?
D.MARIA JOSÉ – Às vezes eu gostava de brincar mais de boi de reis.
Lílian – Boi de reis, era? Quem que fazia o boi?
D.MARIA JOSÉ – As meninas se vestiam num saco de estopa e ia brincar.
(SILÊNCIO) Era bom! Mas depois eu cresci. Depois que eu cresci, deixei de
cozinhar, de trabalhar na casa de farinha e no roçado, depois que eu casei, mas
enquanto tava em casa? Papai dizia assim: “eu não tenho fio home, meu fio home é
você Maria José, vambora pro roçado!” O que era que eu, podia fazer? Aí a gente
trabalhava alugado, eu era quem mais trabalhava lá em casa. Comadre Bune,
trabaiava, um tostão ela não dava em casa, era só pra luxar. Quando ela casou, foi
preciso comadre Eva, sentar em cima da mala, pra trancar a mala dela. Só duas
redes e cinco lençóis, ela levou. Eu saí de casa levei dois vestido e uma rede
remendada, porque papai era sozinho, pra dá de comer a onze boca, com a dele,
eu tinha que ajudar o velho.
Lílian – Mas, sempre tem alguém que ajuda!
D.MARIA JOSÉ – É eu ajudava a ele, eu ia pra feira, quando não tava trabaiando
alugado, ia fazer cesta e ia pra feira levando as cestas, vendia as cestas. Quando
eu vinha, aí mamãe gostava muito de botar um pedacinho de toucinho no feijão,
ela gostava! Gostava de coração de gado, rins, era o que eu comprava pra ela.
Assar um pedaço de tripa pra comer, era a coisa mais difícil, ela não comia nem a
pau, nem assado, nem cozinhado. Aí, quando eu vinha, vendia minhas cestas, aí
chegava na banca e comprava. Ou um quilo ou quilo e meio, conforme o dinheiro
que eu fizesse. Toucinho e comprava bolo pra ela, carne seca. Carne seca ou
coração. Mamãe dizia: “Deus te proteja, eu não quero nunca que você reclame da
sorte que tem.” Eu tenho reclamado muito, mais ainda tô por aqui, contando a
história, até quando Deus quiser. Agora, eu já mandei botar um jogo pra mim e o
jogo falou que eu ia morrer, com trinta anos. Já tô com oitenta.
Lílian – Um jogo? Como é esse jogo?
D.MARIA JOSÉ – Jogo do búzio.
Lílian – Ah! Sim!
Diva – Quem colocou?
D.MARIA JOSÉ – O cabra pega o búzio e chama por todos os santos, aí joga
àquele que fica de boca pra cima, chamar o nome da pessoa jogar pra cima, tá
dizendo tudo quanto ela vai passar.
Lílian – Ah, sei!
Diva – Mas, é aqui em São Gonçalo, que tem esse jogador?
D.MARIA JOSÉ – Quem fazia isso, Deus levou. Deus levou, não mataram. Era um
primo meu, ele era catimbozeiro.
Diva – Qual?
D.MARIA JOSÉ – Raimundo Tavares.
Diva – Raimundo Tavares era seu primo?
D.MARIA JOSÉ – Era.
Diva – Conhecia.
D.MARIA JOSÉ – Filho de uma irmã. Era prima e comadre quatro vezes.
Diva – Ele tinha um terreiro lá perto da casa de mamãe.
D.MARIA JOSÉ – É.
Diva – Eu sei que ele morreu
D.MARIA JOSÉ – Mataram ele.
Diva – Há pouco tempo?
D.MARIA JOSÉ – Sem precisão nenhuma.
Diva – Foi.
Lílian – Foi nesse terreiro que a senhora trabalhou?
D.MARIA JOSÉ – Hum?
Lílian – Foi nesse terreiro que a senhora trabalhou?
D.MARIA JOSÉ – Eu não trabalhei não, eu assistia.
Lílian – Não tinha um que a senhora trabalhava, que a senhora disse?
D.MARIA JOSÉ – Quem tomava conta dos médium era eu, eu era secretária do
terreiro.
Diva – Do terreiro de Raimundo?
D.MARIA JOSÉ – Hum.
Lílian – A senhora era casada, nessa época?
D.MARIA JOSÉ – Era. Ele mesmo, que pediu a Mané Luiz, porque ia três moça: ia
Nazaré/... como é o nome da fia de comadre?/... ((faz grande esforço para
lembrar)) Ia três moças e os pais não consentia, ia na companhia de comadre
Dora. Comadre Dora era meia... aí papai foi, pediu a Mané pra mode deixar eu ir e
eu ia. Aí Mané, um dia foi pra lá. Foi Mané Luiz, compadre João. Foi no dia que a
médium de compadre Raimundo tava manifestada, aí tirou a chibata do vaqueiro
pra dar em compadre João, aí eu digo: levantou o braço, baixe! Pode dar agora,
não conte com ninguém, pode dar. Aí compadre Raimundo, levantou a cabeça, que
tava fazendo um trabalho [?], levantou a cabeça. “Pra que isso?” Por que que ele
tá fazendo palhaçada. Aí ele disse: “Tais doida?” Ela disse: “nada.” Aí eu disse:
bote a chibata no canto. Aí botou. Eu digo: agora saia, saia de dentro da ... ... pra
fora. Aí ela disse: “Tá vendo seu Raimundo!” Compadre Raimundo disse: “Ela
manda em mim, se eu tiver errado ela bota na rédea.” Ela não podia pegar uma
chibata pra mode dá num sobrinho meu? Agora, ela pensava que ele não era nada
da gente. Era sobrinho de compadre Raimundo, sobrinho meu [?].
Diva – Aí a senhora, ia do Oiteiro pra Santo Antonio?
D.MARIA JOSÉ – Hein!
Diva – Aí a senhora, ia do Oiteiro pra Santo Antonio, lá pras reuniões, lá?
D.MARIA JOSÉ – Em Macaíba, quando ele morava em Macaíba.
Lílian – A senhora tirava, do Oiteiro pra Macaíba?
D.MARIA JOSÉ – Era.
D.MARIA JOSÉ – Ía no domingo e na segunda-feira, agora na segunda-feira, a
gente dormia e voltava na terça-feira, depois dos trabalhos.
Lílian – E o que era que a senhora fazia? Tomava conta dos médiuns, como?
D.MARIA JOSÉ – Hein!
Lílian – Como era que a senhora tomava conta?
D.MARIA JOSÉ – Ali o médium, não era pra brigar, não era pra falar, não era pra
cochichar, nem era pra falar mal um do outro.
Lílian – Ah! A senhora ficava olhando!
Lílian – E a senhora, eu posso fazer uma pergunta? E a senhora, ia pra missa e ia
pro terreiro?
D.MARIA JOSÉ – Ia pra missa e ia pro terreiro?
Lílian – Sim.
D.MARIA JOSÉ – E o que é que tem?
Lílian – Não tem nada não, né?
D.MARIA JOSÉ – Não, porque compadre Raimundo todo domingo ia pra missa!
Lílian – Ah, era?
D.MARIA JOSÉ – Só ia pro terreiro depois que ia pra missa, lá em Macaíba.
Diva – Não. Porque eu vejo o pessoal lá em Santo Antonio, não vai à missa, não.
D.MARIA JOSÉ – Porque são crente. Eu acho que tô com sono!
Lílian - Tem dormido bem?
D.MARIA JOSÉ – Eu me deito, assim vejo os galo cantar, duas vezes, três vezes,
aí pego aquela madorna, aí quando penso que tô dormindo, me acordo. Na
amanhecença do dia, o galo tá amiudando, às vezes eu abro a porta, venho aqui
espiar, às vezes a barra vem subindo. Essas chuvas dessa noite, eu vi tudinho.
Lílian – Foi? Então, isso é a causa dessa sua dor de cabeça? Às vezes é a pressão.
Quando a senhora vai dormir, fica pensando...
D.MARIA JOSÉ – Às vezes Benedita diz: “mamãe, vá dormir, pro mode ver se
passa essa dor de cabeça.” Eu me deito ali, quando o sono quer chegar eu meto os
pés, me levanto e venho aqui pra fora, que é pra dormir de noite.
Diva – Aí nem dorme de tarde, nem de noite.
D.MARIA JOSÉ – Nem de noite.
(SILÊNCIO)
D.MARIA JOSÉ – Como é que eu acendo meu cachimbo, esse negócio aí gravando
tudo que eu tô dizendo?
Lílian – A senhora quer que eu desligue?
D. MARIA JOSÉ - Não. Quando a gente tá conversando, tá se lembrando dos
passados.
Lílian – Se a senhora quiser eu desligo, mas a gente só tá conversando...
D.MARIA JOSÉ – Só tá conversando?
Lílian – É.
D.MARIA JOSÉ – A pessoa sem dente, aí bota um diabo de um pau na boca.
Lílian – Não tem nem como segurar o fumo? ((risos))
D.MARIA JOSÉ – Não pode nem segurar o cachimbo na gengiva, que a gengiva
dói.
Lílian – Não ia botar os dentes? Cadê os dentes que ia botar?
D.MARIA JOSÉ – Tem essa parte aqui, mas tá folgada, seu Rivaldo não apareceu
mais, que eu ia dizer a ele que fizesse a outra parte, que eu pagava.
Diva – Eita! Se botar os dentes, ainda vai arranjar um namorado! ((risos))
((Começamos a brincar com D. Maria. O ambiente torna-se bem descontraído))
D.MARIA JOSÉ – Tá pensando que eu ainda sou pilão?
Diva – Não quer ser mais, não?
D.MARIA JOSÉ – Não. Negócio de pilão ficou pra vocês duas.
Diva – Uma coisa tão boa!
D.MARIA JOSÉ – Hein?
Diva – Uma coisa tão boa!
D.MARIA JOSÉ – Vou ver se eu ainda acendo o cachimbo. Não. Vocês acham bom,
eu não, pra mim não!
Lílian – Deixe de conversa, que você teve dezoito meninos.
D.MARIA JOSÉ – Hein? Mas, isso era no tempo que eu era besta.
Diva – Nunca teve vontade de se casar de novo, não? Quando Mané Luiz foi
embora?
D.MARIA JOSÉ – Deus me livre.
Lílian – Mas, apareceu alguém?
D.MARIA JOSÉ – Um dia eu cheguei lá no sogro de compadre Raimundo, aí
quando dou fé, o primo dele passou, quando voltou com a garrafa de cana:
“pegue!” Eu digo: porque não pega a garrafa de cana e dá pra sua mãe? Aí ele
disse: “não, a senhora não bebe, não?” Eu digo: não, ainda se eu bebesse, não ia
pedir cachaça ao senhor, não. Me respeite, tenha vergonha! Compadre Raimundo
tava lá no pé do alto, fez carreira, chegou, disse: “o que é isso?” Ele era primo de
compadre Raimundo. “O que é isso compadre?” “Não, eu comprei a garrafa de
cana pra ela, porque eu quero perguntar a ela, se ela quer casar comigo.” Eu digo:
porque o senhor não pega sua mãe e casa com ela? No inferno tem uma côa
solteira, porque o senhor não casa com ela? Aí ele chegou pra compadre
Raimundo: “e você não vai dizer nada”, “ela chegou, tava aí no pau sentada, não lhe
chamou a atenção. Quando ela chega nos cantos, ela não fala com ninguém e sai,
não se despede de ninguém. Tu tão velho! tu não dá conta dos teus filhos, vai dá
conta dos outros.” “É mais ela é viúva, eu sou viúvo também.” Eu digo: pois, no
inferno tem uma côa que é viúva, vá atrás dela! O que é que o senhor tá
entendendo? Compadre Raimundo: “pra dentro comadre Maria!” Mais, nunca ele
pisou no terreiro de compadre Raimundo. Compadre Raimundo disse: “eu mostro
se ele não pisa mais aqui.”
Diva – Tá vendo como teve um pretendente? Alguém querendo casar com a
senhora?
D.MARIA JOSÉ – Outra vez, eu fui, mim chamaram pra cantar lá na gravadora lá
em Natal. Aí, mandaram me buscar, aí eu fui, cantei o verso de Marina, o verso de
Antonino, cantei o verso de [?] cantei o [?]. Cantei os versos, aí depois foi as
cantoras de coco, aí Nilo disse: “cante uma despedidinha”, digo: eu vou cantar, aí
cantei o coco da lagatixa.
D.MARIA JOSÉ – Aí meti o pau a cantar, no meio do povo. Aí eu, quando saí só vi
o home espiando pra mim, aí vem ele: “Boa tarde! Eu também sou viúvo.” Eu disse:
Eu não tô lhe perguntando, a sua vida? Agora, quando eu perguntar uma coisa, o
senhor diga quem é o senhor, que eu não tô lhe perguntando, nem quero saber da
vida de ninguém. Aí ele veio, chegou: “o que é isso? A senhora não tem vergonha,
disso não?” Aí encostou Dácio e seu Rivaldo: “o que é que o senhor quer?” “Eu sou
de Macaíba.” Mas eu não tô lhe perguntando, o senhor pode ser até do inferno, da
casa do diabo.
Diva – Mulher! Desse jeito você espanta/....
Lílian – Os pretendentes.
Diva – É porque ela não quis casar de novo.
D.MARIA JOSÉ – De gente você só vê os óios dos cachorros
Diva – Porque que a senhora nunca mais quis saber de casar?
D.MARIA JOSÉ – Eu não já disse que não hei de servir de pilão, mais nunca, pra
ninguém!
Diva – Mas, só isso?
D.MARIA JOSÉ – Só.
Lílian – Não tem outras coisas não, no casamento não, além disso?
D.MARIA JOSÉ – Não, não obrigado. Vocês acham bom, pisada de pilão?
Lílian – A senhora não gostava, não?
D.MARIA JOSÉ – Quem?
Lílian – A senhora?
D.MARIA JOSÉ – O que é que tá, olhando tanto? ((risos))
Diva – Eu? Olhando a senhora acender o cachimbo.
D.MARIA JOSÉ – Vocês buliram comigo, porque quer. Se eu tivesse aqui, com a
cara desse tamanho! Aí, dizia: aquela muié é tão ignorante, a gente chega, ela não
liga nem a pessoa!
Lílian – Mas, eu não digo isso da senhora, a gente não diz isso, senão a gente não
voltava, mais nunca, aqui.
D.MARIA JOSÉ – Não voltava?
Lílian – Era, se não gostasse de vir, se a senhora fosse ignorante, a gente não
voltava.
D.MARIA JOSÉ – Se eu não te chamasse?
Lílian – Não, mas se a senhora fosse ignorante, não ia me chamar, não é verdade?
D.MARIA JOSÉ – Saía daqui com raiva de mim, aí/...Eu gosto de conversar.
Quando tô aqui sozinha, eu me pego é com meus santos.
Lílian – Quais os santos que a senhora gosta mais, Dona Maria?
D.MARIA JOSÉ – Eu gosto de todos os santos.... .... Pere aí, é Santo Antonio.
Lílian – É Santo Antonio, santo forte ele, né?
D.MARIA JOSÉ – Têm dois santo forte.
Lílian – Qual é o outro?
D.MARIA JOSÉ – Dois não. O primeiro é Deus, sem a força de Deus eles não
fazem nada.
Lílian – É.
D.MARIA JOSÉ – Santo Antonio e São Marcos.
Lílian – São Marcos? Ah é, sabia não! Não conhecia esse santo, não!
D.MARIA JOSÉ – Quer ver a minha banca, lá no meu quarto? Vá espiar?!
Lílian – São marcos, tem lá, na sua mesa? Eu vou olhar.
D.MARIA JOSÉ – Tá, pode olhar.
Diva – Nunca ouvi falar nesse santo!
D.MARIA JOSÉ – São Marcos?
Diva – Sim.
D.MARIA JOSÉ – Ele tem [?], o cabelo bem branquinho, a barba por aqui, branca,
vais ver!
Diva – Vou daqui a pouco. Deixa a Benidita chegar, que eu peço pra ela ir lá.
D.MARIA JOSÉ – Cadê ela?
Diva – Benedita foi lá dentro, quando ela chegar, eu vou.
Lílian – Qual a história de São Marcos?
((houve uma interrupção por causa de alguém que chegou. Quando voltamos a
conversar, D. Maria fala sobre seu modo de fumar))
D.MARIA JOSÉ – Só fumo com os beiços pra dentro, não é? Se eu não segurar o
cachimbo, os beiços tá pra fora, se segurar os beiços tá pra dentro.
Lílian – Então, precisa botar os dentes. Cadê os dentes que ia botar
D.MARIA JOSÉ – Tem só essa parte, mas bota ela tá folgada, quando eu vou
falar ela cai. Se tivesse os dentes de baixo, segurava os de cima.
Lílian – Segurava, é isso aí!
Diva – E além do mais, eu acho que a senhora fez muito cedo, assim que tirou os
dentes, não foi?
D.MARIA JOSÉ – Demorou um pouco, trinta dias.
Diva – Faz tempo que Candinha não aparece por aqui?
D.MARIA JOSÉ – Faz mais de ano, que ela apareceu aqui, eu ainda tava/...
Diva – Lá no Oiteiro.
D.MARIA JOSÉ – Lá no Oiteiro.
Diva – Já faz muitos dias, que a senhora tá aqui?
D.MARIA JOSÉ – Faz ano.
((fim da fita))
IV
UM MUNDO NA CABEÇA: MEMÓRIA, POESIA E COTIDIANO
A lembrança da vida da gente se guarda em trechos
diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com os
outros acho que nem se mistura. Contar seguido,
alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa importância.
De cada vivimento que eu real tive, de alegria forte ou
pesar, cada vez daquela hoje vejo que eu era como se fosse
diferente pessoa. Sucedido desgovernado. Assim eu acho,
assim é que eu conto.
Grande sertão: veredas
João Guimarães Rosa
4.1. A voz-memória: narrativa e identidade
Lidar com as lembranças − matéria de que é composta a memória
− é entrar em contato com o movimento que põe em cena o passado,
atravessado pelas múltiplas vivências do presente, montando e desmontando
sentidos e significados, para compor um tecido narrativo, resultado de um
viver, que garante ao indivíduo uma identidade.
Entre os tantos estímulos que chegam do mundo, os indivíduos
escolhem, consciente ou inconscientemente, aqueles que irão guardar na
memória e aqueles que serão esquecidos. Selecionar o que deve ser lembrado
e esquecer o que deve ficar em zona de sombras e silêncio constitui-se num
processo que é responsável por tecer uma trama de imagens que se
interligam, dando-lhes uma forma. Examinando-se esse jogo entre lembrar e
esquecer, pode-se questionar o que o determina e perguntar o que estaria
regendo as escolhas entre o que deve e o que não deve ser guardado na
memória.
No intuito de buscar uma resposta para a questão, proponho,
neste capítulo, um passeio pela memória de D. Maria José, ao construir a
narrativa de sua vida. O processo de interlocução que nos uniu neste
trabalho foi o responsável pela evocação das lembranças da colaboradora,
expondo-se aqui as representações que esse sujeito constrói de si e do
mundo que o circunda. Na narrativa de sua trajetória, interessa o que foi por
ela lembrado, o que ela escolheu para perpetuar-se na sua história. Decifrar
os motivos que levavam D. Maria José a selecionar esse ou aquele
acontecimento para contar, nos deu a possibilidade de refletir sobre os
trabalhos da fala, da memória e da consciência na construção do enredo de
sua vida.
Caldas (1999) compara o trabalho da memória à criação de um
texto ficcional. Para o autor, a memória se expressa como um texto e o
trabalho interno realizado para se chegar até esse texto é o mesmo trabalho
da criação literária. Assim, a memória não aparece pronta; ela é tecida,
especificamente no caso da história oral, pelo convívio e a troca de vivências
entre o pesquisador e o colaborador, durante o processo de entrevistas e da
construção dos textos da história de vida.
Para melhor perceber como se processa esse trabalho da memória,
proponho um percurso breve por parte dos estudos que dão conta do tema e
convido Ecléa Bosi para nos conduzir. No primeiro capítulo de seu trabalho
sobre as lembranças de velhos paulistas (BOSI, E., 2001), a autora traça
uma linha progressiva de estudos da memória, que, de uma forma geral,
orienta o leitor para a contextualização dessa faculdade humana. Ela
destaca o trabalho de Bergson (1999), no qual a memória aparece como um
fenômeno individual, algo relativamente íntimo, subjetivo. Para completar
seu pensamento, esse autor diferencia dois tipos de memória: a “memória
hábito”, que é regida por mecanismos motores e que se adquire pelo esforço
da atenção e repetição de gestos ou palavras atuando na esfera prática; e a
“imagem-lembrança”, que tem um caráter não-utilitário e é fruto da
evocação das imagens definidas que marcam um momento único da vida.
Esta última pode-se aproximar da matéria do sonho e da poesia.
Ecléa Bosi (2001, p. 53-54) sintetiza o ponto-chave do pensamento
do autor dessa forma:
A lembrança é a sobrevivência do passado. O passado,
conservando-se no espírito de cada ser humano, aflora à
consciência na forma de imagens-lembrança. A sua forma
pura seria a imagem presente nos sonhos e nos devaneios.
Assim pensava Bergson, que [...] se esforçou por dar à
memória um estatuto espiritual diverso da percepção. [...] No
estudo de Bergson defrontam-se, portanto, a subjetividade
pura (o espírito) e a pura exterioridade (a matéria). À primeira
filia-se a memória; à segunda, a percepção.
A síntese apresentada pela autora deixa claro que, da teoria
formulada por Bergson, está ausente o tratamento da memória como
fenômeno social. É nessa lacuna que se inscrevem as reflexões de
Halbwachs (2004). A questão central de sua obra consiste na afirmação de
que a memória individual existe sempre a partir de uma memória coletiva,
posto que todas as lembranças são constituídas no interior de um grupo.
Várias idéias, reflexões, sentimentos e paixões cuja origem o indivíduo
atribui a si mesmo são, na verdade, inspirados por essa coletividade. A
disposição do autor acerca da memória individual refere-se à existência de
uma “intuição sensível”. Afirma ele:
Haveria então, na base de toda lembrança, o chamado a um
estado de consciência puramente individual que – para
distingui-lo das percepções onde entram elementos do
pensamento social – admitiremos que se chame intuição
sensível (HALBWACHS, 2004, p. 55).
Dessa forma, para Halbwachs, a memória individual, construída a
partir das referências e lembranças próprias do grupo, refere-se a um “ponto
de vista sobre a memória coletiva”. Este olhar sempre deve ser analisado
considerando-se o lugar ocupado pelo sujeito no interior do grupo e as
relações mantidas com outros meios. (HALBWACHS, 2004, p. 76-78).
Pode-se afirmar, então, que a memória individual não está isolada.
O suporte em que ela se apóia está relacionado com a memória coletiva. Esta
é, antes de tudo, o espaço imaginário onde “circulam” os elementos de
identificação cultural ligados à tradição e às origens da narradora.
Percebem-se, na fala de D. Maria José, estes aspectos. As práticas da
cultura popular − a vida em família, a religiosidade, os costumes que
marcam sua existência num determinado tempo e espaço − transparecem de
forma muito acentuada nos relatos. Sua herança cultural, perpetuada de
geração a geração, se revela, entre outras práticas,
nos benzimentos:
Lílian – A senhora aprendeu a curar com quem?
D. MARIA JOSÉ – Eu ia com os meninos de mamãe pro mode curar e prestava
bem atenção como era. Aí uma vez que eu tava morando no Olho D’água, aí eu
perguntei: Dona Maria como é que a gente cura uiado? Aí ela disse como era. E
como é que a gente cura engasgo? Aí ela disse: “Você tá preguntando é pruque tu
já sabe!” Eu disse: É nada, mas eu já sabia.
(Transcrição 5 - 05/05/2005)
......................................................................................................................
nos cantos:
Lílian – Dona Maria a senhora me disse uma vez que sua tia lia folheto com a
senhora aí na mangueira, não era? [...] Como era isso?
D. MARIA JOSÉ – Ela lia e papai aprendia a cantar.
Lílian – Ah! Quer dizer que ela lia? Seu pai também aprendeu com ela?
D. MARIA JOSÉ – Todo sábado e todo domingo ela ia pra debaixo da mangueira,
porque ela era sozinha. O marido dela morreu, ela ficou só, teve uma filha que
morreu com sete anos, morreu a sogra, morreu marido, morreu tudo e ela ficou
sozinha. Aí, ela se via lá sozinha, fechava a porta e ia lá pra casa.
(Transcrição 1 - 03/04/2003)
......................................................................................................................
e nas rezas:
Lílian – Ah! Quer dizer que a senhora reza assim? Eu não conheço, com quem que
a senhora aprendeu essas rezas?
D. MARIA JOSÉ – [...] Quem me ensinava a rezar era papai. [...] A gente
brincava, brincava no terreiro, toda brincadeira a gente inventava no terreiro
quando ele dava um grito: “Maria José!” Senhor? “Tá na hora!” A gente entrava
pra dentro e ele ia ensinar a gente a rezar.
(Transcrição 5 - 05/05/2005)
A herança recebida da comunidade, do pai e da tia, transmitida ou
mesmo adquirida por meio do dom (no caso do benzimento) revela-se aos
poucos, no decorrer de nossas conversas, através de um constante lembrar
que é permeado pelo seu grupo de convívio. Ecléa Bosi (2001, p. 54) assinala
que, dando relevo “às instituições formadoras do sujeito, Halbwachs acaba
relativizando o princípio, tão caro a Bergson, pelo qual o espírito conserva
em si o passado na sua inteireza e autonomia”, pois, como afirma Halbwachs
(2004), esse ato não tem apenas o caráter de reviver o passado, mas também
de refazer, reconstruir, repensar com idéias de hoje as experiências do
ontem. Uma vez que, com o passar do tempo, o indivíduo não é mais o
mesmo, sua percepção se altera e, com ela, altera-se seu juízo de realidade e
de valor. Portanto, o autor aponta que, a partir das experiências em grupo,
as lembranças podem ser reconstruídas ou simuladas e que o indivíduo
pode criar representações do passado a partir daquilo que imagina ter
acontecido ou do que internalizou como representação de si mesmo e do
mundo.
Essa representação do sujeito pode ser percebida nos relatos orais
que colhi. É notório, na narrativa de D. Maria José, o seu interesse em
deixar a marca de sua importância. Ao falar de sua atuação na comunidade,
do seu papel na cultura da cidade e da influência que exerceu no grupo que
a rodeava, constrói para si uma maneira de ver e representar sua existência.
Dentro do objetivo que tem esta pesquisa, não é importante para o trabalho
saber se esses relatos contêm a legitimidade dos fatos, se há uma
reinterpretação dos acontecimentos, ou se a eles foram agregados valores de
acordo com o interesse da narradora. O que importa é o modo pelo qual eles
são expostos e o que marca sua significância para a vida desse indivíduo. A
observação desses aspectos levou-me a crer que relatar sua experiência foi a
forma que D. Maria José encontrou de demarcar seu papel de acordo com a
função que ela exerce nos vários grupos que a circundam. Herdeira de suas
tradições, essa mulher demonstrou consciência de seu significado no campo
cultural e, por isso, concretiza na sua narrativa o desejo de ser reconhecida
pelo seu grupo. No entanto o confronto entre suas identidades − ela pertence
ao espaço público (a cantadora de romances) e o privado (D. Maria José em
sua vida comunitária) − gerou conflitos na permanência da identidade
comunitária. É possível ver isso no relato de D. Maria José sobre a relação
com o seu grupo comunitário após sua descoberta como “romanceira”:
D. MARIA JOSÉ – [...] o culpado disso foi o professor Gurgel. [refere-se à sua
descoberta como romanceira]
Lílian – Por quê?
D. MARIA JOSÉ – Eu tava em casa, as meninas estavam embaixo da mangueira,
que ele era amigo de papai, aí ele chegou procurou por papai, aí as meninas
disseram que papai tinha morrido, aí ele mandou elas cantarem o quê? O bendito
de Santo Antonio, aí elas disseram: “não, eu não sei não.” Aí ele disse: “e quem
sabe o verso de Antonino?” “Só se souber comadre Maria, que era quem andava
mais papai, no roçado, nesse meio de mundo.” Aí me chamaram. Mas, se eu
soubesse que elas iam ficar ranhenta comigo por causa disso, eu não tinha ido.
(Transcrição 1 - 03/04/2003)
Percebi, através dos relatos de D. Maria José, que ela valoriza a
escrita, porque tem consciência da diferença das oportunidades oferecidas
para as comunidades letradas e para as não letradas:
D. MARIA JOSÉ – [?] Aí veio um homem muito grosso e perguntou: a senhora
sabe ler? Eu disse: num sei não. O meu livro era a terra, a enxada era...
((reeelaborando)) o meu caderno era a terra, o cabo da enxada era o lápis e o
ferro de cova era a pena. Aí ele perguntou: a senhora não saber ler não? sei não
senhor, num tive esse tempo. Acordava logo cedo e só ia dormir depois da meianoite, só trabalhando. Talvez eu fosse outra. Saí de casa com 20 anos. E diz aí o
que quando eu me casei com 20 anos, o que foi que levei de casa? Meu vestido,
uma rede emendada e um pedaço de pano remendado que me cobria com ele.
Trabalhava direto lá. A mão era aquela carreira de calo... Se soubesse ler... já
disse muito isso na vida!!25
Apesar de pertencer ao universo da oralidade, D. Maria José tem
consciência de que eternizar a memória através da escrita é, sob certo
aspecto, perpetuá-la. Por me considerar alguém do “mundo letrado”, posso
crer que a colaboradora enxergou no trabalho que estávamos juntas
construindo uma possibilidade de permanência no tempo. Ser conhecida,
não por algo que ela possuía − sua memória, tratada como objeto, como já
foi exposto neste estudo − mas sim por quem ela era abria-lhe o espaço para
deixar sua marca. Posso crer que apresentar sua história lhe possibilitava
uma outra maneira, mais legítima, de não ser anônima. Por meio da
narrativa, D. Maria José construiu uma estratégia que possibilitava revelar
aquilo que ela representa na sua cultura, fora do ambiente desta.
Suas lembranças, que entre seus parentes acabam silenciadas26,
encontraram
em
mim
uma
escuta
que
lhes
proporcionou
serem
compreendidas, pois receberam um valor diferente daquele que tinham no
seu ambiente familiar. Mas, para D. Maria José, não bastava recordar. Ela
queria estar segura de que o ouvinte conseguiria perceber o valor daquilo
que estava sendo narrado. É assim que posso interpretar a sua preocupação
com o gravador. Em vários momentos da narrativa, ela diz: “Grave aí”, como
uma forma de certificar-se de que o narrado estava sendo registrado. Esses
momentos são principalmente aqueles que trazem implícita a imagem que
25 Esse fragmento não faz parte das transcrições apresentadas neste trabalho. Ele foi recolhido em meio aos
vestígios do material perdido e não foi possível indicar sua data. Como compreendia uma parte muito pequena
do diálogo, e que mal deixava entrever o contexto da conversação, optei por excluí-lo do corpus. No entanto,
aqui o apresento para enfatizar o pensamento de D. Maria José em relação ao mundo escrito.
26 Muitas vezes ouvi os filhos de D. Maria José, principalmente a filha Benidita dizerem em tom irritado:
“Mamãe fica aí lembrando essas coisas!”. Claro que esse tom se justifica pela preocupação que eles têm com o
bem-estar da mãe. Entretanto, esse comportamento, por parte dos parentes, não deixa de ser uma maneira de
tolher o fluxo das memórias de D. Maria José.
ela acredita que os outros têm dela e que ela tem de si mesma: a de alguém
que enfrenta as situações de adversidade com bravura e coragem. Pude
perceber que o ato de narrar atribuiu um novo significado ao viver de D.
Maria José, agora marcado pela rememoração de seu passado. Nosso diálogo
abriu um espaço no qual ela se permitia movimentar as experiências, boas
ou más, instituindo nelas a sua marca.
Pollack (1992), ao caracterizar a relação entre memória e
identidade, define que a memória é um fenômeno construído (consciente ou
inconsciente), como resultado do trabalho de organização (individual ou
social). Sendo um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto
individual como coletiva, é também um fator extremamente importante do
sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo
em sua reconstrução de si. O autor também define a identidade como a
imagem que a pessoa adquire ao longo da vida referente a ela própria, a
imagem que ela constrói e apresenta aos outros e a si própria, para acreditar
na sua própria representação e também para ser percebida pelos outros da
maneira como quer. Segundo o autor, “a construção da identidade é um
fenômeno que se produz em referência aos critérios de aceitabilidade, de
admissibilidade, credibilidade e que se faz por meio da negociação direta
com outros” (POLLACK, 1992, p. 205).
Nos relatos, a imagem de mulher forte e corajosa que D. Maria
José tem de si e com a qual quer ser reconhecida está presente nas
lembranças da infância no Oiteiro; na lida diária do trabalho; na luta pela
sobrevivência; no papel que ela ocupa na comunidade, principalmente na
responsabilidade
assumida
moribundos;
religiosidade
na
para
prestar
popular,
as
que
homenagens
se
apresenta
finais
de
aos
forma
contundente em sua vida; e na revelação de outra prática cultural popular
não divulgada sobre sua pessoa: a atividade de benzedeira. Na sua narrativa,
essas imagens são intercaladas com a visão que D. Maria José tem sobre a
divulgação do seu nome como D. Militana, a romanceira do Oiteiro; sobre as
viagens que fez por causa disso, os shows que realizou e sobre a maneira
como foi tratada por esse outro universo.
Para D. Maria José, o trabalho, os cantos e a vida de sofrimento e
de desafios mantêm viva uma identidade construída a partir de valores de
comportamento e convívio. As rezas, os adágios, os ditados, os cantos, as
narrativas de santos e os costumes revelados por sua memória descortinam
as nuances do universo popular para aquele que ouve/lê a fala da
colaboradora nos relatos orais colhidos. O real reconhecimento de sua
pessoa por culturas diferentes da sua passa por conhecer esses aspectos de
sua identidade. Percebo que D. Maria José tem consciência disso. O sucesso
que obteve foi responsável por uma nova fonte de renda e nesse outro espaço
ela forjou uma nova identidade, a da romanceira. No entanto, o exercício de
relembrar e contar sua vida fez com que essa senhora, entre lugares e
temporalidades variadas, recuperasse as marcas que a fazem sentir-se parte
do seu grupo original.
Dessa forma, perceber o resultado final dos relatos orais indica que
essas experiências, na voz de quem narra, são amálgamas, ou seja, as falas
advindas do universo memorial apropriam-se das histórias, retirando os
espaços vazios entre elas e transformando-as em narrativa. Assim, deve-se
dar importância não apenas ao conteúdo conjectural de uma narração, mas
sim ao seu engenho, ao trabalho em si de tessitura, que posso, por que não,
aproximar da tessitura literária, como faz Ayala (2003c, p. 1521):
nos relatos, histórias de vida de cantadores e de outros
artistas populares, há vários exemplos de encaixe de histórias
e poemas ou de ritmos poéticos, incorporados à fala.
Situações vividas, quando narradas, ganham estruturação e
recursos próprios da literatura oral popular. As histórias de
vida de muitos desses homens e mulheres comuns,
dependendo de sua habilidade, ao contar suas experiências,
vão tecendo lembranças de festas, alegrias, tristezas,
dificuldades para sobreviver, compondo para o ouvinte uma
narrativa tão atraente como a leitura de um texto escrito.
Estas narrativas envolvem o ouvinte e o surpreendem,
encantando-o e aprisionando-o na trama mágica que se tece
na relação.
Tentarei a seguir revelar os fios que entremeiam a construção dessa
narrativa.
4.2. A narrativa do cotidiano
Ao começar a análise das entrevistas realizadas com D. Maria José,
uma pergunta me intrigava: o que os depoimentos revelavam? Práticas
culturais inseridas no cotidiano dessa senhora ou, o contrário, esse
cotidiano nítido através da memória, inserido nas explicações para o seu
fazer poético? Ao ler os relatos, ficou claro para mim que a vida de D. Maria
José, mais do que confundir-se com o seu universo poético, o transcende.
Cada palavra sua evoca um passado cheio de pessoas e de práticas que
acabam envoltas no repertório de seus cantos. O ato de cantar está presente:
nos rituais de seus mortos; nas brincadeiras de infância; nos dias árduos de
trabalho; nas lembranças da vida difícil, das diabruras de menina; e nas
intermináveis histórias que aparecem e reaparecem nas nossas conversas,
construídas pelo trabalho de sua memória. Assim, tenho o propósito de,
através da análise do engenhoso trabalho de construção da narrativa,
perceber como o cotidiano de D. Maria José se relaciona com os seus cantos.
Como já foi dito, quando comecei as conversas com a colaboradora,
eu tinha perspectivas da pesquisa de campo que foram se modificando ao
longo do trabalho. Posso dizer que essas perspectivas incluíam a forma como
as histórias iriam ser contadas. É necessário confessar que minha primeira
idéia era de que a narrativa obedeceria a uma ordenação cronológica dos
fatos. No entanto essa percepção logo se desfez. As histórias jorravam de
todos os lados, dando a impressão de que nada do que a colaboradora trazia
à tona chegaria a fazer sentido. Entretanto percebi que aquilo que eu julgava
ser uma falta de critério para recordar era, na verdade, o laborioso
mecanismo de operação da memória. Ao compreender isso, fiz a opção de
não interromper o fluxo dessas narrativas e pude constatar que, quanto
mais minha voz sumia, mais se operava o trabalho da memória, que
construía uma coerência própria. Uma conclusão se tornou evidente: era
necessário tempo para que D. Maria José pudesse revolver o seu estoque de
lembranças com tranqüilidade, dando forma a esse conteúdo. Nessa mistura
entre fascínio e nostalgia, a narradora construiu a sua narrativa.
Até aqui apresentei a idéia de que o sujeito é um elo entre o
cotidiano e as práticas socioculturais próprias de seu grupo. Posso observar
essa relação nos relatos de D. Maria José. Para ela, são boas as lembranças
do passado e é na atividade de narrá-las que ela o revive com tanta
intensidade que chega a parecer estar elaborando novamente a própria
existência. Nessa reelaboração, vida, prosa e verso se confundem quando ela
conta as histórias. Em cada relato de sua vida, posso perceber seus cantos
entremeados de personagens e ações vinculados às práticas cotidianas: as
lembranças da infância trazem de volta as cantigas do tempo de menina;
relembrar seus namoros faz D. Maria José recordar-se de pedaços de
músicas esquecidas; e as histórias de santos fornecem “lições” que orientam
o seu comportamento. Além disso, o trabalho e a vida dura de D. Maria José,
por muitos momentos, confundem-se com os cantos que lhe aliviavam o
ofício. E parece ser o trabalho o elemento em torno do qual a vida dessa
mulher se desenvolve. Ligada a ele, porém, há uma figura fundamental na
existência da narradora: o seu pai.
As lembranças de seu pai aparecem como a maior fonte da relação
que se construiu entre o cotidiano, sua vida e o universo poético. Seu
Atanásio Salustino do Nascimento foi um grande mestre de diversas práticas
culturais populares de sua comunidade. Figura respeitada no município,
comandava o grupo de fandango da cidade de São Gonçalo, que contava com
31 participantes, e costumava apresentar-se nos meses de julho e dezembro,
quando as apresentações duravam até a festa de Reis, em janeiro.
(FUNDAÇÃO JOSÉ AUGUSTO, 1982). Seu Atanásio era um homem rígido,
que ensaiava o grupo com muita disciplina e maestria, como afirma o
Senhor Pedro Rodrigues, morador de Santo Antônio (localidade do município
de São Gonçalo do Amarante) que participou como marujo da barca de São
Gonçalo:
[...] ele era um homem bom, muito comprometido com o
grupo, mas era tão severo que os rapazolas como eu
chamavam ele de Seu “Satanásio” ((risos)).27
27
Seu Pedro Rodrigues é o pai de Diva Sueli, minha acompanhante na pesquisa de campo. Em um dos dias em
que estávamos eu e ela na casa de Seu Pedro, ele nos relatou a sua participação no grupo de seu Atanásio. Como
eu estava sem o equipamento de gravação, o depoimento foi registrado na caderneta de campo da pesquisa.
O comportamento rígido com que Seu Atanásio comandava o grupo
era o mesmo com o qual conduzia sua família. São muitos os relatos nos
quais D. Maria José salienta o temperamento austero do pai. “Ele num
deixava a gente brincar, papai era osso!”, diz ela. É possível ilustrar esse
comportamento com o relato no qual Seu Atanásio reclama do vestido da
filha:
D.MARIA JOSÉ – Aí minha madrinha disse: “num é possível que tu vais largar o
couro dos pés de andar pra Maré.” Aí comprou um vestido pra mim, de fustão
branco com [?] encarnado. Aí papai disse: é pra fazer o vestido, que a roupa da
gente tem que ser por aqui, que nem velho. Aí eu mandei fazer o vestido godê.
Lílian – Nossa!
D.MARIA JOSÉ – Aí ele disse; “quem te mandou fazer essa qualidade de roupa?
Pois, tu vai mandar ajeitar o vestido.” Já tinha sido cortado, ia dar jeito de quê?
Aí eu tinha ido pra missa, mas quando subi o patamar da igreja, o vento pegou o
vestido e sacudiu na minha cabeça, por Deus que nesse tempo as muiés não
andavam só com o vestido em cima do corpo, tinha a meia saia. Aí ele disse: “Oia,
mais nunca mais, tu veste esse vestido pra sair mais eu. Vou cortar o vestido no
seu couro. Mamãe diz: “Não corte porque tu não dais a ela um fiapo. O dinheiro
que ela ganha, ela te entrega e ela já dê graças a Deus a madrinha dá um vestido,
que tu não dais de vestir a ninguém.” Aí ele disse: “Tá certo. Domine ela como
quiser.” [...]
(Transcrição 7 – 12/05/2005)
No entanto, durante toda a narrativa, o pai aparece como a figura
mais importante da vida da narradora, aquela que ajudou a construir a
personalidade de fortaleza e bravura que D. Maria José julga ter. Por ser a
filha primogênita, ela foi declarada a herdeira de Seu Atanásio, substituindo
o filho homem, que só veio a nascer como o último dos filhos. De D. Maria
José, então, era esperado um comportamento masculino. E é para quem
ocupa o lugar do “filho” mais velho que Seu Atanásio deixa a herança
cultural constituída ao longo de sua vida. Foi o pai de D. Maria José quem
lhe ensinou a fazer cesta, trabalhar, rezar e cantar, romances, benditos,
cocos, aboios e toda sorte de gêneros da literatura oral que compõem o
repertório da cantadora.
A D. Maria José, também coube a responsabilidade de cuidar da
família, sendo aquela que junto ao pai, provê o sustento da casa. São muitos
os momentos em que ela demonstra o carinho, o respeito e a admiração pela
figura paterna. Esse sentimento é recíproco, pois a narradora salienta,
também, a admiração que o pai tinha por ela. Nos trechos a seguir, pode-se
perceber tudo isso:
Lílian – Por que a senhora acha que ele só trabalhava cantando?
D. MARIA JOSÉ – Porque era divertido. Papai era homem divertido. Papai
ensaiava boi, papai ensaiava congo, papai ensaiava fandango, papai ensaiava
quadrilha, mais era quadrilha, não era essas porquera de hoje.
(Transcrição 3 - 15/07/2003)
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D. MARIA JOSÉ – Papai cantava, pedia a mim os folhetos, papai gravava, cantava
nos roçados e eu aprendia.
Diva – No roçado ele também cantava?
D. MARIA JOSÉ – Papai só trabalhava cantando.
D. MARIA JOSÉ – [meu pai] Fazia farinha.
Lílian – Fazia farinha? Ele tinha casa de farinha?
D. MARIA JOSÉ – Não. Arrendava a casa de farinha, era sete cuia de farinha
pra pagar.
D. MARIA JOSÉ – Um dia, ele alugou seis carga de mandioca, ele disse: “eu faço,
seis carga de mandioca eu faço, mais Maria José.” Aí, Ciço dizia: “compadre
Atanásio quer acabar com Maria José, porque uma menina tão boa. Porque vai
arrancar mandioca, leva ela pra ajuntar mandioca, é arrancando e ela ajuntando,
quando é de tarde, leva pra casa de farinha.” Ele dizia: “quem não tem cachorro,
caça com gato. Eu não tenho fio home pra me ajudar, quem pode me ajudar é ela.”
Aí no dia que ia colher a mandioca, o moedor mandou dizer que tinha adoecido,
comeu feijão preto com coco e deu uma dor no estômago dele e ele tava se vendo.
Aí papai disse: “agora sim, eu não posso arrumar outro moedor.” Mandou atrás de
Miguel Mulato, só que Miguel Mulato tinha ido pros mato. Ele ficou, aí eu disse:
vambora moer papai. “Tu tais doida Maria José, tu não tais vendo que tu não mói,
que tu não pode moer mandioca?” Eu digo: vamo moer a mandioca?
[...]
D. MARIA JOSÉ – Ele disse: “apois vamo teimosa.” Ele botou o rodete na roda,
eu digo: Abóie papai, papai abóie, papai. Ele disse: “puxe na frente”, aí eu cantei:
♫ O veio da roda é meu e a mandioca é de seu dono, cevadeira de minha alma,
deixa-me dormir um sono ♫. Aí ele começava: “essa menina não é gente, não.” Aí
começou a aboiar. Aí eu disse: ♫ marcha, marcha meu cavalo, nessa marcha
miudinha, que é pra ver se chegamos cedo, na casa da mulatinha ♫. Papai disse:
“quem te ensinou este aboio, Maria José?” Aí eu disse: não mandasse eu aboiar?
Um aboio mais outro aboio e assim foi as seis carga de mandioca. Quando foi de
madrugada, ele mim chamou: “Maria José, vambora pra casa de farinha”,
(Transcrição 4 - 03/05/2005)
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D. MARIA JOSÉ – Um dia eu tava cavando buraco para fincar as estacas [...] Seu
Assis tinha um novilho raciado. [...] Eu enterrei dos pés, com um ferro de cova
desse comprimento do cabo, eu enterrei dos pés, dei uma cipoada nesse bicho, o
pau bateu ele caiu, mijou-se foi todo. Tia Cantu: Mataste o boi de compadre
Assis! Papai chegou da feira e o boi no chão. Aí ela disse: “Atanásio?” Ele disse:
“Oi?” “Olhe aqui, Maria José matou o boi de compadre Assis.” Aí Papai disse: “é o
que é que hei de fazer? Se ela matou, tá morto. Porque ele tem gado e pode
comprar outro touro, e ela eu não tenho outra filha dessa não. Essa aí é meus pé
e minhas mãos.” Eu era pra tudo no mundo.
Lílian – Então a senhora era companheira de seu pai?
D. MARIA JOSÉ – Era eu a companheira dele, era eu. Se levantava de duas horas
das madrugada. “Maria José!” Inhô? “Vambora”, e eu ia.
Lílian – E a senhora gostava da companhia dele?
D. MARIA JOSÉ – Gostava. Ai! Queria bem a meu pai. Eu queria dizer para você
que ele morreu só na minha companhia.
Lílian – E a senhora conversava muito com ele, além de cantar juntos?
D. MARIA JOSÉ – Ele não conversava, ele não conversava porque ele só
trabalhava cantando. Ele cantando e eu botando tudo nos ouvidos.
[...]
D. MARIA JOSÉ – Aí ele: “Abóia, Maria José!” ... Eu digo: Eu não sei! Ele
disse: O que foi que tu aprendeu? Eu disse: nada, (SILÊNCIO) eu não estou na
metade do corpo que eu era. Cansei de papai/... chegava com a carga de
mandioca, tirava o capuz de cima, aí ele pegava um caçuá. “Maria José segura o
caçuá”, Quando ele tirava o dele, que era por cima do outro, eu tirava o outro.
Quando ele despejava o dele, eu despejava o meu. Agora, foi-se embora tudo!
(Transcrição 5 - 05/05/2005)
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D. MARIA JOSÉ – Aí Papai disse: “Maria José, se não tiver quem queira cantar,
vamo cantar bendito nós dois?” Eu digo: vamo. Aí sentemo no meio de terreiro, aí
papai cantava, eu respondia. Aí, os de Regomoleiro chegaram e começaram a
cantar também. Ainda mim lembro da despedida que os de Regomoleiro ... porque
a despedida que papai canta é assim: ♫ Adeus irmão dos anjos, irmão dos anjos.
Oh! Meu Deus eu vou pro céu ♫. O que eles cantavam, ♫ Os anjos vão mim levando
♫... eu não sei mais como era... a despedida deles era assim: ♫ Lá vem a barra do
dia junto com a Virgem Maria,/ desceu dois anjos do céu levem tua companhia ♫.
E o de papai é: ♫ Adeus irmão dos anjos, irmão dos anjos adeus ♫. Eu não sei mais
nem cantar....
Lílian – Quer dizer que seu pai também cantava bendito?
D. MARIA JOSÉ – Era e ele pedia que quando ele morresse, cantasse bendito de
defunto até de manhã.
(Transcrição 5 - 05/05/2005)
Como se pode observar, a relação que D. Maria José tinha com
seu pai era entremeada pelos cantos. Eles não conversavam, mas “ele
cantava e ela botava tudo no ouvido”. Essa passagem lembra Benjamin
(1993a, p. 205), quando afirma que:
Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais
profundamente se grava nele o que é ouvido. Quando o ritmo
do trabalho se apodera dele, ele escuta as histórias de tal
maneira que adquire espontaneamente o dom de narrá-las.
Assim se teceu a rede em que está guardado o dom narrativo.
Assim era a comunicação entre pai e filha. Entre eles, cantar era a
maneira de dialogar um com o outro. Ao perceber que a filha escuta e
guarda aquilo que ouve dele, o pai se enche de orgulho e segurança por
certificar-se de que sua herança está entregue. Nas populações do meio
rural, a ajuda para realizar os afazeres da roça é uma das atividades em que
reinam o sentimento de amizade e apreço pelos outros membros da
comunidade. Para tornar o trabalho mais atrativo, a música é indispensável.
Ayala (1989, p. 262) afirma que “o trabalho demorado de plantar, fiar [...]
possibilitou o aprendizado de vários cantos”.
Durante o trabalho de D. Maria José e de seu pai, o aboio aparece
como um canto de trabalho, e não no contexto da lida com o gado, no qual
ele é comumente utilizado. Segundo Cascudo (2001, p. 5), o aboio é um
canto entoado pelos vaqueiros para orientar os companheiros enquanto
conduzem o gado. É um canto sem palavras, e pelos que já ouvi, parece-me
um canto muito triste, próximo a um lamento. Como descrito por D. Maria
José, aparece de forma diferente. É um canto dialogado, em que alguém
“tira” o verso e outro responde. O aboio da casa de farinha deu-me a
impressão de ser um canto mais alegre, talvez para dar ritmo ao ofício, como
todo canto de trabalho. Ele se aproxima da definição que fazem Araújo e
Aricó Júnior (2006, p. 1) do aboio de roça, quando ele o distingue do aboio
de gado:
Os aboios de roça são diferentes dos aboios de gado.
O aboio de roça é um dueto e o de gado é homófono. O aboio
de roça é uma forma de canto de trabalho, tem letra e é em
dueto. O outro aboio é solo, é canto de uma só sílaba. Noutras
regiões o aboio para orientar o gado na caatinga, na estrada,
não tem letras, aqui, há porém, o canto de uma quadra e a
seguir o canto de uma sílaba, longo. Já o aboio de roça dá-nos
a impressão de um desafio por meio de versos entremeados de
prolongados oi, ai, olá, cuja finalidade é excitar para maior
produção de trabalho.
Outros momentos no quais os cantos aparecem de maneira
marcante e com profunda carga de emoção são quando D. Maria José fala da
relação que sua cultura tem com a morte, revelada pela maneira, quase
missionária como ela se encarrega de cuidar dos moribundos e de
encomendar os mortos. Esses relatos foram sempre cheios de emoção,
principalmente ao falar de seus parentes mais próximos, excetuando o seu
marido. A emoção se revela na entonação da voz e nas expressões que se
instalam no rosto de D. Maria José. Tem razão Benjamin (1993a, p. 210)
quando afirma que “a memória é a mais épica de todas as faculdades”, pois
a palavra narrada dava a D. Maria José quase o poder de ressuscitar os seus
mortos. Pelo que pude observar, a morte, para a cultura popular tem um
significado de reconstrução do elo do indivíduo com o mundo, com sua
origem. A aproximação entre narrativa e experiência de vida, como forma de
perpetuação, pode ser encontrada em Benjamin (1983a). Para ele, a idéia de
eternidade tem a sua mais rica fonte na experiência da morte.
Porém o autor ressalta que o gradual processo de afastamento da
idéia de morte da vida em sociedade é mais um elemento que reforça o
declínio da narrativa. Benjamin (1993a) comenta que, no decorrer dos
últimos séculos, a morte vem perdendo, na consciência coletiva, sua
onipresença. Gradativamente, a partir do século XIX, a sociedade burguesa
operou uma modificação das atitudes perante a morte, esvaziando o
significado das práticas e costumes que envolviam o ato de morrer. Antes
disso, ela era tida como um episódio público. Em seu próprio quarto, o
moribundo era cercado dos parentes e vizinhos, enquanto os ritos da morte
se realizavam com simplicidade e sem exageros sentimentais. Ali era o
espaço para ele dar suas recomendações finais, um momento em que o ciclo
de vida se fechava, deixando, da história daquele sujeito, o exemplo para os
que ficavam. A mão que se erguia em última benção para os vivos o fazia
revestida da autoridade de quem tinha uma história completa para contar,
com começo, meio e fim.
A atualidade, que segregou os moribundos, reduziu o espaço da
morte entre nós. Não se morre mais em casa, e sim nos hospitais,
instituições encarregadas de cuidar não do indivíduo, mas de sua doença.
Desse modo, o moribundo é lançado fora do convívio social. É posto em um
estado latente. Numa sociedade que só reconhece o repouso como inércia ou
desperdício, a morte é considerada o “outro lugar”, aquele que revela o
fracasso e o limite do poder científico e que escapa às práticas familiares.
(CERTEAU, 2003).
Pelo relato de D. Maria José, pode-se perceber que o universo da
cultura popular mantém com a morte uma relação de proximidade. O ato de
morrer é arraigado ao cotidiano, por isso a participação dos membros da
comunidade no processo é um ato, quase obrigatório, de compaixão. A hora
da morte é esperada por todos e os esforços são para aplacar a ânsia de
quem está prestes a deixar a vida para a viagem do desconhecido. Segundo a
crença religiosa cristã, o céu é um lugar inacessível, onde só podem entrar
os santos e os purificados. Por isso, na religiosidade popular é importante o
cuidado dos parentes nos momentos finais. No momento do desenlace, há as
pessoas que são responsáveis por encaminhar os moribundos à sua “última
viagem”. Nos relatos de D. Maria José, ela se retrata como aquela que
sempre intui a chegada da morte e, por isso, providencia os ritos
necessários, como “botar a vela” nas mãos daquele que está prestes a
morrer. Esse ato significa iluminar o caminho para que o moribundo possa
fazer a passagem, não se perdendo entre as trevas.
Após a morte, há o ritual de preparação do corpo. Cascudo (2002,
p. 21) afirma que, segundo os costumes,
nem todos têm o direito de tocar no cadáver. Somente aqueles
que sabem vestir defuntos, pessoas de boa vida,
especializadas, com a seriedade e compostura de uma
exposição de ofício religioso. [...] Trabalham depois de rezar e
vão vestindo peça por peça de roupa falando com o morto,
chamando-o pelo nome.
D. Maria José é uma das pessoas que tem esse papel na
comunidade. Há, nas entrevistas, o relato de muitas pessoas que foram
“ajudadas” na hora da morte por ela, como a mãe, o pai, a tia Petronila, a
avó Joana. As mortes da mãe e do pai aparecem juntas, em um dos relatos.
Nessa narrativa, essa função de D. Maria José fica evidente. Há nela alguns
pontos que eu gostaria de comentar.
D.MARIA JOSÉ – Aí quando ela [mãe] foi botando o rosário, fastou de costa e
disse: “ai, meu Deus, que dor eu tô na cabeça”, e caiu sentada, no que ela foi
caindo, disse: “ai que dor”, que foi caindo, comadre Benidita, minha irmã foi
chegando, pegou ela pela cintura, mas não agüentou o peso dela, que ela era dessa
grossura, aí caiu sentada com ela. Não deu tempo de botar em canto nenhum. Aí
papai chegou e disse: “É isso mesmo... tá se acabando, minha Maria”. Aí botou a
vela na mão dela, só gastou o bico da vela, ia morrendo sem vela. Papai passou,
passou, quando foi um ano.... ((para um pouco e tenta lembrar)) dois anos, com
dois anos que ela morreu, ele morreu. Ele Caiu doente, aí eu ia pra lá, fazia as
coisas pra ele, era ele só mais comadre Severina. [...] Quando foi no dia que ele
morreu, aí eu tava sentada na cama dele, mesmo assim, eu botei a cadeira, mesmo
assim encostada na cama e ele deitado, só de ciroula, [...], aí eu digo: o senhor
fique aí que eu vou trabaiar, mas volto. Comadre Severina dizia: “eu vou dormir
um pedaço da noite”, e dormia a noite todinha. E eu passava a noite acordada. Aí
ele disse: “isso é que é um calor minha filha!” Eu digo: o senhor quer tomar um
banho? “Quem mim dera eu tomar um banho!” Tinha Gaspar, que era filho, que
tinha deixado a mulher e tava dormindo lá e tinha o neto de Raimundo, Sérgio, e
tinha o cunhado de papai e tinha Neto. Aí eu perguntei: o senhor quer tomar
banho? “Quem mim dera eu tomar um banho!” Aí eu peguei uma bacia, desse
tamanho, botei no meio da casa, na sala, amornei a água, quebrei bem a frieza da
água, tirei ele, sentei numa banca e tirei a roupa dele sozinha, porque comadre
Severina tinha ido pros mato. Aí tirei a roupa dele, dei banho nele, ensaboei a
cabeça dele, aí ele ficou tão limpinho! Aí quando dei banho nele, enxuguei ele, e
isso com as portas tudo fechada, aí enxuguei ele, vesti a roupa, botei ele na rede,
ele ficou chorando. Eu digo: porque o senhor tá chorando, papai? “Porque tu
sendo minha fia, eu com genro, com neto e tu sendo minha fia, tu é quem mim dá
banho?” Aí eu disse: e eu não tinha marido. Não sei o que é que um home possui,
não? Aí, deixei ele na rede, depois tirei ele da rede e botei na cama, que era uma
caminha de sorteiro, porque ele passava um tempo na rede e ia pra cama, ver se
estirava a coluna. (SILÊNCIO). Aí botei ele na cama e dasatei a rede e fui pra
dentro, fazer um café. Quando eu tirei aqui, a chaleira do fogo, que olhei, ele
tava assim, aí eu fiz carreira, deixei a vela e a caixa de fósforo no bolso, e
cheguei onde ele tava: o que é papai? Ele disse: “tô indo embora minha fia, tome
conta do terreno, não deixe gente de fora fazer casa, aí é pros fios e netos.” Eu
digo: tudo bem, não tenha cuidado, não. Aí eu disse: Gaspar, ajeita aqui papai, que
papai tá morrendo, ele disse: “vai buscar minhas chinelas no derradeiro quarto.”
Que era dois quartos grandes, a sala e cozinha. Eu digo: tinha muita graça eu
deixar papai nas últimas pra ir buscar teu chinelo, porque não trouxesse pra
debaixo de tua rede? Fiquei sentada, aí botei a vela na mão dele. Eu disse:
chegue, ajeite aqui papai! Ele disse: “ajeite.” Peguei aqui as pernas dele, torci os
quartos pra ele ficar assim e ele estirou as pernas, peguei por aqui, trouxe ele,
carreguei, aí ele disse: “cuidado pra não ir brigar com ninguém, pro mode não ir
apanhar.” Eu digo: não tenha medo, não. “E outra coisa, cuidado que você é meia
doida.” Eu digo: eu sei, mais no meio das doidices mim lembro do senhor. Ele até
achou graça. Aí ali mesmo ele morreu. Ele morreu, eu disse: cumadre Severina, a
hora é essa, aí ela no lugar de vir pra onde eu tava, fez carreira.
Lílian – Severina, sua irmã?
D.MARIA JOSÉ – [...] Aí peguei vesti a camisa dele puxei a camisa, subi a cueca,
que tava lá embaixo, botei a vela na mão dele, ali mesmo, me deu conselho, me deu
conselho e ali mesmo morreu, não fez careta, não fez nada. Eu vim chorar com
três dias.
Lílian – Foi mesmo, Dona Maria!
D.MARIA JOSÉ – Com três dias, foi que eu sentada imaginando: é isso mesmo,
papai tanto que lutou pra criar a gente e morreu sozinho na minha companhia, mas
não tem nada não, aí comecei a imaginar, o que ele fazia, o que ele dizia e chorei.
Mesmo assim foi mamãe.
D.MARIA JOSÉ – No enterro de papai, faltou uma pessoa pra fazer 100 pessoas.
(Transcrição 4 – 03/05/2006)
Esse relato foi contado com uma profunda carga de emoção, que se
revelou na entonação da voz e no silêncio que se instaurou no meio da
narrativa muito longa e quase sem pausa. Entre a morte da mãe e a do pai,
percebe-se que a função de cuidar do morto é transmitida pelo pai a D.
Maria José. A mãe é “encomendada” por ele, pois é Seu Atanásio quem “bota
a vela” responsável pela iluminação do caminho de sua esposa. Herdeira da
tradição, a D. Maria José coube a tarefa de prestar os ritos ao pai. E mesmo
em outros momentos, como o relato da morte de sua tia Petronila, na
ausência de Seu Atanásio (que pressentiu a morte da irmã), D. Maria José
foi a responsável por “cuidar” da moribunda, exercendo o papel de
substituta do pai.
Para a morte do pai ela se prepara. Pressentindo os momentos
finais, coloca a caixa de fósforos e a vela no bolso e oferece o banho, no qual
lava cuidadosamente todo o corpo do pai, deixando-o pronto para a morte
próxima. D. Maria José deixa claro que ela é a escolhida para a tarefa por
ser a mais preparada. Salienta a recusa de seus irmãos para assumir tal
tarefa e destaca a falta de preparação deles para isso.
A morte do pai de D. Maria José é denominada, na cultura
popular, como destaca Cascudo (2001, p. 397), de “morte bonita”, ou seja,
aquela precedida de “uma agonia calma, sem o penoso padecer, com
estoicismo, despedindo-se, dando ordens e conselhos”. Em seus momentos
finais, o pai de D. Maria José transmite sua “herança”: ele morre dando
conselhos, finalizando sua história, perpetuando o seu saber. Essa
passagem lembra-me o que diz Benjamin (1993a, p.207-208.):
é no momento da morte que o saber e a sabedoria do homem
e sobretudo sua existência vivida − e é dessa substância que
são feitas as histórias − assumem, pela primeira vez uma
forma transmissível. [...] A morte é a sanção de tudo que o
narrador pode contar. É da morte que ele deriva sua
autoridade.
Assim, na hora da morte do pai, a “autoridade” foi legitimamente
passada. A função de D. Maria José de cuidar dos moribundos não está
somente no cuidado com o corpo do morto. O momento da passagem
também compreende o velório, chamado de “fazer quarto”. Nesse rito, as
pessoas rezam e cantam benditos e excelências para facilitar a entrada no
céu do espírito que deixou o corpo presente. Como não são todas as pessoas
que sabem entoar os cantos, aquelas que os guardam na memória
responsabilizam-se por encaminhar a alma do morto. Esse é um ato tão
importante para o morto, que, ao falar dele, após um momento de silêncio,
D. Maria José relembra o julgamento das almas, intercedido por São Miguel.
Como no funeral do pai:
Lílian – Quer dizer que seu pai também cantava bendito?
D. MARIA JOSÉ – Era e ele pedia que quando ele morresse, cantasse bendito de
defunto até de manhã. Aí compadre Raimundo, veio pra mode cantar aí o povo/...
[...]
D. MARIA JOSÉ – [...] Compadre Raimundo veio pra tirar bendito, pra cantar
bendito mais a gente. Aí, quando chegou o povo acharam ruim, aí começaram a
cochichar. Aí, compadre Raimundo disse: “Comadre Maria eu vou embora, quando
for na hora do enterro eu tô aqui”.
Lílian – Por que o povo estava achando ruim?
D. MARIA JOSÉ – Porque iam cantar bendito de defunto.
Lílian – Porque as pessoas não gostam?
D. MARIA JOSÉ – Porque tinha morrido um pai de família e as pessoas iam
cantar bendito de defunto.
Lílian – O que é que tem Dona Maria? Eu não entendi por que as pessoas ficavam
cochichando.
D. MARIA JOSÉ – Porque cantando bendito de defunto, não tem quem chegue
perto. (SILÊNCIO) Tinha um pecador que dizia assim: ♫Vivia no mundo, no
pecado original/ matou o padre e padrinho e o pai por quem foi gerado e o crime
[?] e deu sossego [?] ♫...(SILÊNCIO) Quem reza pra Nossa Senhora todo dia, ela
não deixa a alma ficar vagando não, não deixa de jeito nenhum. Aí quando ele tava
morrendo... ♫ quando ele estava morrendo os anjos desceram e lhe pôs a mão[...]
(Transcrição 5 - 05/05/2005)
O ato de solidariedade de cuidar das pessoas nos momentos finais
é algo que se pode aproximar da maneira como Mauss (apud LANNA, 2000)
define a dádiva. O autor afirma que a constituição da vida social é formulada
por trocas concebidas e praticadas nos diferentes tempos e lugares,
mostrando como dar e retribuir são obrigações organizadas de modo
particular. Nas culturas populares, pude observar que essas trocas se
constituem baseadas na reciprocidade. Sendo assim, é possível tecer
relações entre a atitude de prestar, de forma beneficente, seu esforço para
encaminhar os mortos e a instituição de um dom, que é uma dádiva divina.
Dessa forma, como a função de curar com os benzimentos, cuidar dos
mortos também seria assumir um compromisso de exercer essa prática em
prol dos seus e daqueles que dela necessitassem.
É assim que percebo a forma como D. Maria José cuidou de seu
marido, como aponta o fragmento da entrevista a seguir:
Lílian – Ele tinha voltado? Foi depois que ele passou os quatorze anos fora?
D. MARIA JOSÉ – Foi. Aí pediu pra vir pra casa, eu digo: não! Aonde você
passou os quatorze anos, passe o resto. Bem, porque eu mesmo não vou fazer
nada pro senhor. Acabou-se, eu não presto, foi atrás da moça branca, pois vá
deixar seu patuá, aonde você achou. Aí vivia assim, dentro de casa: quando eu
tava trabalhando no terreiro, que ele vinha pro terreiro, eu entrava pra
dentro botava a ripa no beiço da cama e ia trabalhar lá dentro. Agora no dia
que ele morreu, aí eu fui pra rua, ele passou tanto tempo fora, que quando ele
veio, eu já tava aposentada. Aí eu fui pra rua, recebi meu dinheiro, aí vim, Eu
comprei pra ele uma lata de leite e uma caixa de maisena, que ele não comia
nadinha. Passou dez dias sem fazer feze, dez dias. No dia que fez morreu.
Lílian – Coitado, né!
D. MARIA JOSÉ – Aí eu cheguei e perguntei: queis comer, queis uma papa
Mané Luiz, “faz.” Aí comadre Olímpia chegou, entrou, passou por ele, que ele
dormia na sala, eu botei a cama na sala que é melhor pra lutar com um doente,
Aí ele foi no quarto, eu fiz a papa e ele disse: “traz pouca”, não tinha uns
pirexzinho assim? Eu trouxe aquele pirex de papa e ele comeu. Aí ele disse:
“Maria”, eu disse oi... Ele nunca chamava meu nome não, só mim chamava Maria.
.... deixe eu ver aí o pinico. Aí eu trouxe, botei atrás da porta, perto da cama e
fechei a porta. Ele abaixou-se e fez o serviço. Foi três vezes pro pinico, na
derradeira vez já foi eu quem subi a roupa dele. Aí ele sentou-se no beiço da
cama, estirou assim uma perna no varão da cama e a outra ficou no chão. Aí ele
fez assim com as duas mãos. Eu digo: por que não te deitas? Não tira o
cachimbo do bolso? Aí comadre Olímpia já tinha.... [...] Sim! Aí eu disse assim...
Francisca foi entrando e disse assim: “Mamãe, papai ainda vai fumar? Não
acende o cachimbo pra ele não.” Aí ele disse: “Acenda meu cachimbo.” Eu
disse: mim dais pra eu acender. Quando ele me deu o cachimbo, aí eu joguei o
cachimbo pro corredor. Porque ele num tava na sala, aí eu tirei o fósforo, tirei
o fumo do bolso dele. Aí ele agarrou assim o facão com as duas mãos e disse:
“Vambora Felipe” e arrastou. Felipe foi o homem que ele tinha matado, ele
tinha duas mortes nas costas.
D. MARIA JOSÉ – Aí eu disse: Tu tais chamando Felipe pra ir mais tu, ele não foi
só, porque tu não vai só? Aí ele disse: “Maria, eu to me indo.” Aí eu disse: Vai com
Deus. (SILÊNCIO) Chorasse? Não chorei nem um pingo. [...] e ali mesmo ele
morreu. De noite, as meninas diziam: “comadre Maria tem uma natureza ruim, o
marido morrendo, ela com a vela na mão dele e não botar nenhuma lágrima!” Eu
digo: Marido de três: De Poço de Pedra, de Maria Brincadeira e de Geralda, não
era marido meu não. Ele chorou por isso, mesmo morto, as lágrimas correndo
assim? Aí comadre Eva: “comadre Maria por quê você faz isso?” Eu digo: Quem
fizer uma coisa a mim, saiba fazer, saiba fazer... De noite, o povo procurava: “não
vai cantar bendito de defunto pra ele, não?” Não, ele não precisa de cantar
bendito de defunto pra ele.
(Transcrição 5 – 05/05/2006)
Mesmo com toda a vida de sofrimento que passou com o marido,
D. Maria José aceitou-o na sua casa, quando ele voltou, após catorze anos
depois que a tinha abandonado. Acredito que ela o fez porque tem dentro de
si a consciência de que não pode negar auxílio aos moribundos. No entanto,
D. Maria José nega-lhe a ele o benefício de cantar benditos, no velório.
Cantar os benditos é um ato piedoso, um ato que ela só oferece àqueles a
quem tem consideração e respeito, sentimentos que perdeu pelo marido, por
causa das mágoas que ele lhe deixara. Assim, ela oferta ao marido seu
cuidado, mas não o seu canto.
Acredito que isso se justifica porque essa atividade tem um grande
significado na sua vida. No seu espaço privado, D. Maria José não canta
quando está triste e só canta para aqueles de quem gosta e em quem confia.
Cantar foi o legado de seu pai, era a forma de linguagem que os unia. Por
isso o canto permeia sua vida. Os fatos do cotidiano são acompanhados por
uma trilha sonora composta entre a imaginação e a memória. Cantar é a sua
maneira de brincar, de retrucar, de ser irônica, de estar no mundo. É, para
D. Maria José, a atividade mediadora entre sua identidade original e sua
identidade construída. Ao mesmo tempo que significa perpetuar suas raízes,
é o movimento que permite modelar a sua forma de ser. Cantar, enfim, é o
produto do desejo e do prazer de estar em contato com as lembranças.
4.3. “Minha vida é um romance”: o universo poético de D. Maria José
Do ponto de vista das experiências individuais, já foi discutido
neste trabalho que, ao lembrar as histórias que compuseram sua vida, cada
pessoa recorda não apenas o que fez, mas também o que queria fazer, o que
acreditava estar fazendo e o que agora pensa que fez. Ao dar a esse material
mnemônico uma forma oral transmissível, o indivíduo o faz a partir da
tessitura de uma narrativa em que revela suas experiências. Benjamin
(1993a, p. 221) reflete sobre se a relação entre a matéria da narração − a
vida humana − e aquele que narra não poderia ser vista como uma relação
artesanal. Ele questiona: “não seria sua tarefa [a do narrador]28 trabalhar a
matéria-prima da experiência − a sua e a dos outros − transformando-a num
produto sólido, útil e único?”.
A questão apresentada me faz pensar que, quando um indivíduo
narra sua história, o material sobre o qual ele trabalha, artesanalmente, é a
sua própria vida. É a ela que ele busca dar cor e forma, urdindo, em sua
síntese, um sentido que transcenda a própria existência. A vida de D. Maria
José é permeada por um universo poético representado pelos cantos e
histórias herdados da tradição oral que a constitui. Nos relatos, esse
repertório se insere, de forma peculiar, na sua fala e intercala-se na
construção de sua história de vida.
Ao debruçar o olhar sobre esse universo poético que constitui a
vida da colaboradora deste trabalho, é possível pensar que ele proporciona
um reordenamento do mundo a partir de elementos ligados à estrutura do
texto literário. Caldas (1999) aproxima a forma de existência da memória da
criação de um texto ficcional, na medida em que o ordenamento desses
textos interiores é feito a partir de estratégias narrativas que integram à
vivência palavras, temas, imagens, sonhos e desejos, interpenetrando-os
numa única realidade.
Tendo por base essa estrutura poética, posso acreditar que as
histórias dos romances lidos e guardados na memória por D. Maria José
deram suporte para ele construir a narrativa de sua vida com o tom épico
característico dessas histórias. Assim, se a narrativa da vida de D. Maria
28
Grifo meu.
José é um “romance”, ela, como protagonista, internalizou um personagem
e, como diz Ciampa (1983) o homem só se presentifica como tal.
Se para contar sua história o narrador começa por identificar-se
dizendo quem é e de onde veio, pode-se pensar que o início da história de D.
Maria José é este:
D. MARIA JOSÉ – Eu nasci em barreiro, porque a sogra de mamãe, que era a
minha avó, era quando eu nasci no dia 19 de março, dia de São José, por isso que
eu digo ((recitando)): a maré tava de vazante e a lua tava de minguante. A lua
cortou minha sina e a maré levou minha sorte e eu sou a mais sofredora do Rio
Grande do Norte29. Aí disseram: [...]“e porque a senhora diz que foi a mais
sofredora?” Eu disse: porque quando eu nasci, não havia roupa pra vestir, não
havia pano pra me enxugar, não havia, não havia comer pra comer, eu me criei com
papa de farinha bruta, mamãe pisava a farinha, peneirava numa meia e fazia
comer pra mim, não fui criada com leite, nem com carne, nunca comi... Nunca
comprou um dedal de leite pra mim. Sempre fui sem sorte, quando inventei de me
casar, saí de casa com dois vestidos e uma rede emendada e um lençol emendado,
tá vendo? Agora, hoje em dia eu tenho com que dormir, tenho a roupa pra sair,
tenho pra vestir em casa. Posso até emprestar uma roupa a um que não tiver/...
(Transcrição 4 – 03/05/2006)
.......................................................................................................................................................
D. MARIA JOSÉ – Eu digo assim: na era de vinte e cinco a dezenove de março
às doze horas do dia, foi aí meu nascimento, a lua tava de minguante, a maré
tava de vazante, aí ela disse, o que foi que teve a lua? Eu digo a lua cortou
minha sina e a maré levou minha sorte. Eu digo, está falando a maior sofredora
do Rio Grande do Norte.30 [...] de gente só tenho os olhos de cachorro.
(Transcrição 4 – 03/05/2006)
Para contar a sua história, a narradora tem como introdução um
verso criado por ela que a aproxima dos personagens dos folhetos. Na
literatura, normalmente os heróis têm começos difíceis ou estranhos. O
nascimento de D. Maria José é descrito a partir de uma conjunção de forças
da natureza que conspiram contra sua sorte. Ela apresenta o infortúnio de
sua vida como uma sina. Desde o momento em que nasceu, a narradora se
sente usurpada. A maré vazante e a lua minguante são representações
29
30
Grifo meu.
Grifo meu.
simbólicas ligadas ao enfraquecimento necessário antes da virtuosa
mudança. Xidieh (1993) observou que, nas histórias populares, no
nascimento do herói ou de uma pessoa predestinada a grandes coisas, a
natureza e as situações rotineiras da existência são violentadas por
acontecimentos fora do comum. No caso de D. Maria José, o que aconteceu
fora do comum na natureza foi a conjunção do “enfraquecimento” do mar e
da lua que anunciava uma vida de privações, na qual nada seria dado a esse
sujeito e muito lhe seria tirado. As provações da heroína começam na hora
do seu nascimento e exigirão dela a força e a bravura do herói para vencêlas. Em outras partes do relato, D. Maria José assume o formato do romance
para anunciar sua história.
D. MARIA JOSÉ – Se eu for contar minha vida. (SILÊNCIO) Minha vida é um
romance, dizer eu sei que é duro, ((reelabora)) faz vergonha eu lhe dizer que no
dia em eu nasci, não achei o que comer, e assim vou levando a vida do jeito que eu
puder.
Lílian – É Dona Maria, que bonito, agora essa foi a senhora que criou? cante ele
de novo, tão bonito!
D. MARIA JOSÉ – ((Dona Maria reelabora)) Se eu contar a minha vida /faz
vergonha eu lhe dizer,/ no dia que eu nasci/ não achei o que comer,/... eu não digo
mais não, você quer aprender.
Lílian – Estou admirando, achando bonito. E por que eu não posso aprender?
D. MARIA JOSÉ – Quando eu nasci assim mamãe dizia chorando que não achou
nem um paninho pra amarrar o imbigo, nunca comi uma colher de leite. Minha vida
sempre foi muito sofrida. (SILÊNCIO)
(Transcrição 3 – 15/07/2006)
Para continuar o romance de sua vida, D. Maria José precisa
apresentar a força e a bravura da personagem. Para compor a personagem,
ela sempre fala da faca que a acompanha e que está presente em muitas das
suas histórias. A imagem da mulher que usa uma arma para se defender −
dentro e, principalmente, fora de sua comunidade − delineia, no imaginário
do ouvinte, a personagem que ela quer apresentar. A heroína não fala de
algo divino ou santificado, mas sim da integração do humano em todos os
aspectos e com todos os seus limites. Em sua história, D. Maria José, com
suas falhas e imperfeições, permanece profunda e visivelmente humana;
diante das dificuldades não se põe como vítima, mas como lutadora. Para
ela, a coragem e a bravura são importantes qualidades. Lembro-me de uma
passagem na qual ela fala de um canto que não gravou no CD Cantares. Eu
lhe pergunto o porquê. Ela desconversa e depois me responde:
Lílian – Esse é especial, né?
D. MARIA JOSÉ – É, foi o coco da fome. Ele diz assim: ♫ no ano de oitenta e um
eu vou lhe contar o pior/ brigava a mãe com os filhos/ e os netos com os avós/
pro mode um mandacaru e batata de um potó [?] velha vamos embora, senão nós
morre de fome. ♫ Aí eu não cantei não! (SILÊNCIO)
Lílian – Ele era muito triste, não era?
D. MARIA JOSÉ – Hein?
Lílian – Ele era muito triste?
D. MARIA JOSÉ – Ele era valente, aí ele pegou um pano, foi na casa de não sei de
quem e aí ela botou quatro litros de farinha, quatro rapaduras e quatro pares de
bolachinhas. Aí o marido dela era safado, pegue cachaça pra ele num levar o que
ela deu. Aí diz assim: ♫ Seu Joca eu vou embora, “não Roberto, espera aí, para
melhorar da bola, beba um quarteirão de Ani.” ♫ A pessoa beber um quarteirão
de cachaça, hein!? Aí ele disse que quando tomou a aguardente, não sentou mais o
pé no chão, aí quando bebeu a aguardente deu logo pra valentão, aí pegue cassete
em gente.
Lílian – É cachaça tem isso, né?
D. MARIA JOSÉ – Aí pegue cassete em gente, ficou por detrás da porta, quem
entrava ele derrubava. Aí ele disse que viu quando o inimigo dele, corre Janjão
que é Roberto! Aí quando o diabo do Janjão foi passando, ele meteu-lhe o reio e
ele caiu do lado de fora. Aí mandaram eu cantar, mas eu não cantei não.
(Transcrição 1 – 03/04/2006)
D. Maria José considera esse coco especial, talvez pela temática
muito próxima de sua vida. No entanto, quando lhe pergunto se considera a
história triste, ela retruca-me dizendo que o personagem é valente, ou seja,
tal qual ela, ele é aquele que se comporta diante do obstáculo − a fome −,
enfrentando a situação. Não posso afirmar o motivo pelo qual ela escolheu
não cantar, mas é notória a identificação e o apreço que D. Maria José tem
por esse canto.
No caldo derivado da memória, os relatos da colaboradora da
pesquisa refazem a trajetória de muitas histórias como essa que remontam
uma vida extremamente sacrificada enfrentada com muita coragem. Neles,
pôde-se entrever, em meio à narrativa, aquilo que é ressaltado pela
entrevistada. D. Maria José salienta, nitidamente, a sua enorme capacidade
de reação às adversidades, materializada em sua coragem diante da vida. É
possível perceber essa coragem na repetição constante de algumas histórias
nas entrevistas como, por exemplo, a história da vaca que foi morta por ela,
quando criança; a história de como lutou, quase de igual para igual, com
Chico, o homem que atacou sua irmã, Maria Bune, e que ela feriu
mortalmente; a história da maneira como sozinha construiu a sua casa e
criou seus filhos; a briga dos tios em Santo Antônio, durante duas horas, na
qual “o sangue fazia chinelo nos pés”, comprovando a descendência de gente
brava e a história da morte das várias pessoas de quem cuidou nos instantes
finais de suas vidas. Ao compararem os dois conjuntos de relatos desta
pesquisa percebe-se queessas histórias são narradas quase com as mesmas
palavras, depois de cerca de dois anos.
Essa repetição das histórias é um recurso que diz muito do
significado delas no contexto geral da vida de D. Maria José. Segundo
Pollack (1989, p. 8), quando se trabalha com histórias de vida e o
entrevistado volta diversas vezes a um número restrito de acontecimentos
(seja por iniciativa própria, seja provocado pelo entrevistador), ali está um
núcleo resistente que se revela como fio condutor dessa história de vida.
Essa característica sugere que toda história de vida deve ser considerada
como “instrumento de reconstrução da identidade”. Assim, a história de vida
ordena acontecimentos que balizaram uma existência, e através desse
trabalho de reconstrução de si mesmo é que o indivíduo tende a definir seu
lugar social e suas relações com os outros.
Para definir o perfil da heroína “D. Maria José”, a narradora
precisa da voz dos outros personagens que estiveram presentes em sua vida.
Os personagens estão envolvidos uns nos outros, não apenas porque
deságuam numa narrativa comum, mas porque eles precisam uns dos fios
dos outros para poder haver um desfecho, e, assim, um sentido. Ao narrar
as histórias dos outros, entremeando-as às suas, D. Maria José aproxima-se
da narrativa das histórias de As mil e uma noites, na qual a história da vida
de cada personagem desdobra-se na vida de outros com quem eles
contracenam, entretecendo não uma estória única, mas uma trama de
histórias desdobradas.
Entre os muitos romances que estão guardados na memória de D.
Maria José e povoam o seu mundo imaginário, pude perceber que ela tem
uma preferência especial pelo “verso de Marina”, como ela chama, ou O
Romance de Alonso e Marina ou A força do Amor, como é conhecido.
O folheto A força do amor (Alonso e Marina) (MEDEIROS, 2002) foi
publicado entre 1910 e 1912, por Leandro Gomes de Barros. Conta a
história da heroína Marina, que, filha de um barão e órfã de mãe, vê sua
vida sentimental perturbada pela proibição da união matrimonial com um
rapaz pobre, a quem, sem conhecimento do pai, dá condições de estudo. Ela
é uma moça determinada, capaz de sugerir ao amado as atitudes a tomar.
Alonso é digno e a ela reverente. Um certo dia, incentivado por Marina, o
rapaz toma coragem e a pede em casamento. O pai da moça sente-se
ofendido e determina a prisão do rapaz, que é solto por Marina por meio de
suborno do carcereiro. A moça manda o namorado ao Japão, para que
enriqueça com o trabalho, imaginando que seu pai pudesse, no futuro, ser
seduzido pelo dinheiro. Logo depois, surgem para ela duas propostas de
casamento, recebidas com entusiasmo pelo barão e com repulsa por parte de
Marina. A primeira parte de um rapaz rico, logo descoberto como assassino e
ladrão, o que a livra do compromisso sem maiores problemas. Porém, a
seguir, um primo a pede em casamento, ao que Marina demonstra seu
repúdio, jurando-o de morte. Não dando o primo atenção às palavras de
Marina, é morto por ela no altar. Desejando vingar o noivo, o irmão dele
investe contra a Marina, e também é morto. Ela é presa, mas consegue
comunicar-se com Alonso, que já está rico. Este vem buscá-la, verificando
sinais de declínio financeiro do pai repressor (o carcereiro não recebia
salário, tendo trabalhado durante seis meses). A fuga do casal para o Japão
é descrita como uma verdadeira batalha naval – , na verdade duas! – das
quais o barão retorna completamente empobrecido. No final, ele é perdoado,
porém Alonso é morto por um primo (o irmão que restara do noivo
assassinado) de Marina.
Na penúltima estrofe do romance, é mencionada a morte do
personagem Alonso, o herói, mesmo após serem apaziguados os conflitos
inerentes à estrutura do romance popular – o casal supera as dificuldades e
vence a figura repressora. Não existe menção à reação de Marina, a heroína.
Nesse romance, o fio condutor da narrativa é a impossibilidade de realização
amorosa, a fuga do rapaz, a adversidade pela qual a moça passa e o crime
cometido, a perseguição superada, a felicidade alcançada, a vingança pelo
duplo assassinato e a nova vingança.
Dentro do corpus apresentado, esse romance é narrado por D.
Maria José em dois momentos: na entrevista do dia 15 de julho de 2003 e,
depois, no relato do dia 12 de maio de 2005. No entanto, entre o material da
pesquisa perdido, havia várias alusões a esse texto. D. Maria José sempre se
referiu ao romance com uma admiração especial pela protagonista da
história. Ela deixa transparecer na sua fala que se identifica com a
personagem Marina. Tal qual a protagonista, D. Maria José, em sua história,
também é a heroína que combate o mundo masculino com força e bravura.
D. Maria José é uma mulher que, após ser abandonada pelo marido, cria
seus filhos com a força de seu trabalho. Enquanto filha, esposa e cidadã,
dentro de suas possibilidades, jamais se submete às imposições que o
mundo masculino lhe impõe. O romance de Marina e Alonso apresenta essa
transgressão aos modelos de família patriarcal. É o pai quem detém o poder,
podendo decidir até mesmo a vida ou a morte da filha. No imaginário da
narradora, Maria José e Marina são personagens que representam a mulher
brava e corajosa, que, em meio à sociedade patriarcal, tem voz e identidade.
É interessante notar o alinhavo que leva uma história à outra. No
relato a seguir, para chegar à história do romance, D. Maria José começa
falando da faca que levou escondida para a cidade de São Paulo, com o
intuito de se proteger. Eu comento sobre a dificuldade da vida para as
mulheres e meu comentário faz D. Maria José relembrar a história de Maria
Doida, mulher que cortou os genitais de um homem que tentou atacá-la,
matando-o em seguida. A história é contada ela justificando e aprovando o
ato da moça. Essa história traz a narradora para o mundo imaginário do
romance A força do Amor. D. Maria José conta a história do romance e eu
pergunto:
D. MARIA JOSÉ – Mulher forte era Marina. Marina, o pai dela foi prendeu,
mandou butar Alonso na cadeia por que ele pediu a mão dela e disse pra não levar
comida pra ele. Aí chamou ela, “você deu confiança a um bandido que agora mim
envergonhou?” [...]
Lílian – Marina era parecida com a senhora, num era? [...]
D. MARIA JOSÉ – Era nada. Eu não tinha essa coragem de matar ninguém
queimado não.
Lílian – Uma lutadora. Todas essas suas histórias. Já prestou atenção, que são de
mulheres fortes?[...]
D. MARIA JOSÉ – Porque a gente não deve ser morta dentro da saia, não. Muito
embora que às vezes se cague de medo. ((risos)) O que se faz já tá feito, não tem
mais jeito. (SILÊNCIO) [...]
D. MARIA JOSÉ – Marina é que nem eu, ninguém me engana com um olho, não!
Sou besta não!
(Transcrição 3 – 15/07/2003)
A outra menção que é feita a esse mesmo texto inicia com uma
conversa sobre como D. Maria José aprendeu os romances e como − seja
através da criação do ritmo ou dos versos − ela interfere na composição
desses textos. Em um certo momento, ela afirma que o verso mais difícil de
aprender é o de Marina. Quando questionada sobre o porquê, a narradora
começa a falar da bravura da heroína. Após uma breve recusa, D. Maria
José conta a história e depois, apresenta a sua opinião sobre a história e a
relação dela com sua vida:
Lílian – É bonita a história, Dona Maria.
D.MARIA JOSÉ – É toda de sofrimento.
Lílian – É. Marina é uma mulher muito forte, né?
D.MARIA JOSÉ – É. Muito forte. Eu gosto dela. Aí mamãe... Comadre Elba teve
um menino e ia mandar botar o menino na areia do rio. Aí eu cheguei e disse:
mamãe?/... Que a casa dela era mesmo aqui, perto da minha casa, como aquela de
lá. [...]
Lílian – Hum, hum!
D.MARIA JOSÉ – Aí tia Cantu: “minha filha não faça isso, não.” Que ela era neta
da minha tia. “Faça isso não.” Mais tarde... “mais eu não vou criar”, o bichinho tão
alvinho! ... aí mamãe chegou e disse: “Elba, tu vai botar o menino no mato?” “Se
não botarem ele no mato ou na areia do rio, eu mato ele.” Mamãe disse: “não
mata, não! Me dá.” Aí ela disse: “pode levar.” Aí mamãe levou pra casa. Mamãe
tinha Marina, aí botou o nome do menino de Alonso.
Lílian – Ai! Que bonito!
D.MARIA JOSÉ – Quando o menino tava com oito meses, morreu dessa grossura.
Mamãe chorou, quando o menino morreu!
Lílian – Quer dizer que o nome de Marina... Você tinha uma irmã que chamava
Marina?
D.MARIA JOSÉ – Minha irmã? É minha filha!
Lílian – Não, mas não foi sua mãe que tinha Marina?
D.MARIA JOSÉ – Mas, mamãe não tinha Marina, que era neta dela?
Lílian – Ah! Sua filha, entendi!
D.MARIA JOSÉ – Aí, ela vivia mais com Marina, do que mesmo eu.
Lílian – E a senhora botou o nome de sua filha de Marina, por causa dessa
história?
D.MARIA JOSÉ – Foi.
(Transcrição 7 – 12/05/2005)
Para mim, essa passagem sintetiza talvez o que pretendi mostrar
ao longo deste trabalho. Os cantos guardados na memória dessa mulher não
estão lá cristalizados. Mais do que textos recordados, o universo poético que
os compõe habita a existência de D. Maria José. Candido (2002), quando se
refere aos estudos das manifestações literárias orais, ressalta que, para
entendê-las, é preciso não perder de vista a sua integridade estética,
distinguindo, como na literatura escrita, a função total, a função social e a
função ideológica. A função total deriva da elaboração de um sistema
simbólico responsável por transmitir uma certa visão de mundo. A função
social abrange o papel que a obra desempenha no estabelecimento de
“relações sociais, na satisfação de necessidades espirituais e materiais, na
manutenção ou mudança de uma certa ordem na sociedade” (CANDIDO,
2002, p. 46). Entre outros dons que tem, D. Maria José canta histórias. Elas
são tiradas do espaço em ebulição de sua memória e vêm contagiadas pela
substância de sua vida. E a vida de D. Maria José, como qualquer outra,
está repleta de bons e maus momentos, de fatos trágicos, cômicos e
dramáticos, da sua história e da de seus antepassados. Quando canta seus
versos, ela fala em seu nome e em nome de todos os seus: sua tradição, seu
povo, sua realidade. E é essa mesma realidade experimentada que permite a
ela encontrar sentido para a sua poesia.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Narrei ao senhor. No que narrei, o senhor talvez até ache
mais do que eu, a minha verdade. Fim que foi.
Grande sertão: veredas
João Guimarães Rosa
Neste trabalho foi comentado que para os estudos que integram a
linha do folclore, a cultura popular é tudo aquilo que se refere à tradição, o
depósito da criatividade camponesa, da profundidade que se perderia com
as mudanças exteriores da modernidade. No cerne das concepções do
folclore, expõe-se a contradição “tradição x transformação”, muito presente
nos diversos embates travados sobre esse tema. Estudos como os de García
Canclini (2003) apontam, entretanto, novas respostas para esse confronto,
afirmando que é preciso pensar em tradição e transformação como
processos complementares entre si, e não como excludentes, pois o termo
tradição não implica, necessariamente, uma recusa à mudança, da mesma
forma que a modernização não exige a extinção das tradições.
Assim, muito mais do que “guardar” objetos culturais, como
cantos e festas, à maneira folclorista, pensar na preservação das tradições
populares é compreender a cultura popular como um conjunto de
significados que estão em um permanente processo de modificação, sendo
indissociável da vida dos sujeitos que nela estão inseridos. Por essa ótica,
passa a ser impossível estudar essas relações sem lançar um olhar atento
para os contrastes e as ligações que mantêm essa cultura viva e presente.
Para isso, é preciso considerar-se a voz dos indivíduos que participam da
produção de seus bens culturais.
Foi a partir desses princípios que pude realizar nesta tese a
trajetória de Militana a Maria José. Percebi que as duas maneiras de
conceber o popular lançam olhares diferentes sobre o mesmo sujeito. D.
Militana, a “romanceira do Oiteiro”, é reconhecida pela capacidade
armazenadora de sua memória, aparecendo como legítima representante da
cultura popular, uma cultura que precisa ser resguardada, porque é sempre
apresentada como em vias de extinção, por ser algo ligado a um passado
distante. Ao tentar conhecer D. Militana, ela é uma imagem, e que de sua
voz só se pode ouvir o maravilhoso repertório de cantos que traz consigo.
Esses mesmos cantos, ouvi-os da voz de D. Maria José. No
entanto conhecer a sua história de vida permitiu-me compreender que, para
D. Maria José, o cotidiano, a vida e o canto são elementos interligados
numa mesma dimensão. Sua incapacidade de viver sem cantar vai além
daquilo que foi dito com palavras; refere-se à necessidade fundamental,
coletiva e pessoal, de manter viva uma identidade construída a partir de
suas lembranças. Assim, nos relatos apresentados por este trabalho, suas
palavras confundem-se com seus versos, e pude captar nelas uma maneira
própria de “dizer” o mundo. Os textos orais por D. Maria José produzidos
tornam imprecisas as fronteiras entre o que se pode considerar textos orais
“literários” e os “não-literários”. Procurei mostrar como literatura, história
de vida e memória se entrelaçam em discursos que marcam uma identidade
cultural.
Benjamin (1993a), em seu conhecido texto O narrador, afirma que
é da experiência vivida ou recontada por outros que o narrador retira
elementos para a sua própria narrativa. Compartilhar do universo de
experiências de D. Maria José deu-me condições para escrever este
trabalho, pois foi nessa experiência mútua e, de certa forma, inusitada para
ambas as partes que pude apreender o seu cotidiano. A inversão de papéis,
6666666em alguns momentos da pesquisa − entre observador e observado
−, possibilitou um pouco dessa apreensão. O encontro, na pesquisa de
campo, de dois universos culturais distintos me fez descobrir que a
convivência pode transcender os limites de uma pesquisa científica. É na
confiança que se estabelece entre esses dois sujeitos que os sentidos mais
profundos daquilo que é dito deixam-se aflorar através das narrativas, das
conversas intimistas, ultrapassando os limites da observação, exigindo
interação mútua − além de uma certa cumplicidade entre os que “contam” e
os que “ouvem” −, possibilitando um grau de sensibilidade que permite
“ouvir” a voz que fala e a que cala. A construção dessa interação me
mostrou quanto as “nossas” sociedades cultas e acadêmicas deixam de
ganhar quando perdem a capacidade de ouvir à medida que se distanciam
das classes populares, somente atribuindo-lhes algum valor quando para
atingir seus próprios interesses.
Encontramos, nas entrevistas, vários níveis de discurso: o
discurso da personagem “Maria José”, o discurso da “cantadora D.
Militana”, o discurso da “realidade da vida”. Todos eles são permeados pela
“voz em canto” e espelham a diversidade da cultura popular: contraditórios,
condescendentes, questionadores, persuasivos, tragicômicos, são todos eles
vozes que contestam, que resistem, que sobrevivem e que edificam, dia-adia, a sua própria realidade. Dessa forma, longe do contexto que o gerou, o
verso que D. Maria José canta só pode ser entendido parcialmente, pois foi
arrancada de si a essência que o fez existir e o faz resistir.
Preocupei-me, na construção desse texto, em captar da voz de D.
Maria José, o que ela tinha a dizer, considerando o contexto que a revelava,
as intenções que a motivavam e os discursos que a abafaram. Ouvir D.
Maria José permitiu-me comprovar que o caminho necessário para se
chegar aos produtores das práticas populares, no sentido de compreender o
significado de suas realizações, passa pelo universo imaginário e real de
cada indivíduo, em particular, e da sua comunidade, num aspecto mais
coletivo.
Não tenho certeza se foi possível, mas tive o propósito de não fazer
deste texto somente mais um discurso sobre os que integram o universo da
cultura popular, como D. Maria José. Tive a pretensão de fazê-lo um meio,
um canal no qual essas vozes pudessem ecoar.
Voltando a Walter Benjamim, fico com a impressão de que, se não
faltam narradores populares, visto que o povo sempre terá o que contar o
que falta é quem se disponha a ouvi-los. Falta, talvez, encontrar ouvintes
capazes de aprender com essas estórias as quais, de maravilhosas e
trágicas, constroem toda a épica das vidas que, sendo deles, não deixam de
serem também nossas.
Portanto, a responsabilidade que assumi na construção desta
pesquisa foi a de apresentar D. Maria José. Fazer ecoar a sua “voz em
canto” é dar som a essas vozes que são negadas, marginalizadas, relegadas
a segundo plano por todos os que insistem em ver a sua cultura destituída
da razão de ser e acontecer numa sociedade não construída para as
populações marginalizadas, embora delas dependa para se manter.
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FOTOS*
Vi uma lesma pregada na existência mais do que na pedra.
Fotografei a existência dela.
Vi ainda um azul-perdão no olho de um mendigo.
Fotografei o perdão.
Olhei uma paisagem velha a desabar sobre uma casa.
Fotografei o sobre...
O fotógrafo
Manuel de Barros
*
As fotos que são apresentadas aqui registram os dois momentos desta pesquisa. As fotos de números 01 a 08,
foram tiradas no dia 03/04/2003 e, excetuando a foto 04, são todas de minha autoria. O registro fotográfico que
compreende as fotos de números 09 a 15 é todo minha autoria. Este aconteceu em 19 de março de 2006, dia do
aniversário de 81 anos de D. Maria José.
Foto 1
Casa de D. Maria José no Sítio Oiteiro, São Gonçalo do Amarante/RN,
onde ela morou até 2004.
Foto 2
Mangueiral do Sítio Oiteiro, em São Gonçalo do Amarante/RN.
Foto 3
D. Maria José no batente
de sua casa, no Sítio
Oiteiro. Este foi o local
das entrevistas realizadas
no período entre 2003 e
2004.
Foto 4
Lílian e D. Maria José, numa das muitas tardes de conversas...
Foto 5
Imagens de santos e fotos na parede da casa de D. Maria José
Foto 6
Banca de santos de D. Maria José, onde ela cultua seus santos de devoção. Em
vários momentos os santos viram tema das conversas.
Foto 7
D. Maria José Fumando seu cachimbo ao lado da sua banca de santos.
Foto 8
A rede, o cachimbo, seus
santos. O universo de D.
Maria José
Foto 9
D. Maria José em frente à casa de sua
filha Benidita, casa em que vive
desde o final do ano de 2004,
localizada no loteamento Alto de
Canaã, em São Gonçalo do
Amarante. Neste local aconteceram as
entrevistas da segunda fase de nossa
pesquisa, em maio de 2005.
Foto 10
D. Maria José rodeada pelas filhas,
Benidita (de pé) e Francisca (na cadeira
de balanço) e por netos e bisnetos.
Entre eles, expõe com orgulho a
medalha da Ordem do Mérito Cultural,
comenda que recebeu do presidente
Lula.
Foto 11
D. Maria José ao lado do filho
Zé Luiz, por quem expressa
grande afeição.
Foto 12
D. Maria José preparando
um ramo para benzimento.
Foto 13
Foto14
D. Maria posa para foto com a medalha da Ordem
do Mérito Cultural nas mãos.
D. Maria José expõe com orgulho a
inseparável faquinha. Para ela, o
instrumento serve como defesa.
Foto 15
Diva Sueli e D. Maria José,
num dos muitos momentos de
descontração que construíram
essa relação de amizade.
ANEXOS
ANEXO A - A memória de 700 anos de D. Militana. Matéria de O Estado de
São Paulo. 19 jul. 2002
ANEXO B – Dona Militana: do estrelato ao abandono. Matéria do Jornal
de Hoje. 20 maio 2004.
ANEXO C - Maria José: esse fenômeno. Matéria da Tribuna do Norte. 13,
jan. 1999
ANEXO D - Romanceiro Potiguar. GALANTE, Natal, ano 1, n. 6, nov. 1999.
ANEXO E - Já fui gente. Hoje Sou um Bregueço. Matéria da Tribuna do
Norte. 11 dez 2005.
ANEXO F - Auto temperado com poesia, luzes e frevo. Matéria da Tribuna
do Norte. 24 dez. 2003.
ANEXO G -. Produtor cultural esclarece questão de direitos autorais de D.
Militana. Matéria da Tribuna do Norte. 24 dez. 2005.
ANEXO H - Vozes de um sertão medieval. Matéria do jornal do Brasil. 07
ago. 2002.
ANEXO I - ARTISTAS vivem na miséria. Matéria da Tribuna do Norte. 05
fev. 2004.
ANEXO J - MARIA JOSÉ: manifestação cultural rara no RN. Matéria da
Tribuna do Norte. 29 out. 2000.
ANEXO L - FUNCARTE pagou cachê de D. Militana. Matéria do Jornal de
Hoje, 22 e 23 maio 2004.
ANEXO M - D. MILITANA. Matéria do Jornal de Hoje. 25 maio 2004.
ANEXO N - D. MILITANA recebe de Lula a Ordem do Mérito Cultural
2005. Matéria do Jornal de Hoje. 9 nov. 2005.
ANEXO O - Por que esta ingratidão? Matéria da Tribuna do Norte. 05 mar.
2004.
ANEXO P - Um TRIBUTO à rainha do romance. Matéria do Diário de Natal.
10 nov. 2005.
ANEXO Q- Entrevista – Dona Militana. Matéria do Jornal Diário de Natal.
23 nov. 2005.
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A VOZ EM CANTO: DE MILITANA A MARIA JOSÉ, UMA