Título: Profanação como a religião da saída da religião Autor: Marcos Henrique de Oliveira Nicolini ([email protected]) Títularidade: Doutorando em Ciências da Religião - UMESP – São Paulo – SP GT: 11 – Religion y Politica Coordenadores Prof.Dr. Luis Donatello ([email protected]). Resumo: Esta comunicação visa apresentar um caminho plausível para pesquisa sobre os assim chamados “sem religião” no Brasil, grupo heterogêneo que no censo 2000 do IBGE somava pouco mais de 7% da população nacional. Mormente aqueles que tendo se afastado da Religião Institucional, mantém em sua rede de crenças certa identidade memorial com crenças cristãs re-elaboradas. Para tanto tomamos como referência o filósofo italiano Giorgio Agamben, para o qual a Religião, segundo uma dada tradição Ocidental, ou seja, aquela que de alguma maneira passa por Roma assim como, mais tarde, pelo Cristianismo, não deveria ser pensada a partir do vocábulo latino “Religare”, cuja tradução denota ligação, re-ligação, mas apontaria para o termo “Religere”, grosso modo, separação. Uma vez que a separação relaciona-se à religião, toda religião se fundamenta em sacrifícios. Agamben procura descrever, assim, a condição imbricada entre o Estado e a Religião no Ocidente, mais ainda, entre dispositivos sociais do biopoder que produzem sujeitos e os desassujeitam a partir da violência do sacrifício, cujo sentido primeiro seria o de corte, separação. Os sacrifícios nos permitem, pensando com Agamben, discutir a violência que está na sacralização dos dispositivos do biopoder e nesta produção de sujeitos desassujeitados da relação entre dispositivos e corpos dóceis. Caberia, então, para o autor, o caminho da profanação dos dispositivos e não de sua negação e neste sentido os sem religião seriam aqueles que profanando os dispositivos da Religião re-elaboram suas crenças. Nossa comunicação visa, desta maneira, apresentar uma leitura de estratos do trabalho de Agamben e discutir suas implicações para a pesquisa dos sem religião no Brasil. Palavras-chave: Sem Religião, Biopoder, Dispositivos. O que é um dispositivo? A palavra “dispositivo”, utilizada por Agamben, provém, em primeira instância, dos trabalhos de Foucault da metade dos anos setenta, sendo resumido a três pontos: a. É um conjunto heterogêneo, lingüístico e não-lingüístico, que inclui virtualmente qualquer coisa no mesmo título: discursos, instituições, edifícios, medidas de polícia, proposições filosóficas, etc. O dispositivo em si mesmo é a rede que se estabelece entre esses elementos. b. O dispositivo tem sempre uma função estratégica e se inscreve numa relação de poder. c. Como tal, resulta do cruzamento de relações de poder e de relações de saber.1 Referenciando-se na arqueologia do saber de Foucault, Agamben menciona a palavra ainda mais original empregada por Hyppolite: “positivité”. Nestes trabalhos sobre a obra de Hegel, há o uso da “positivité” na relação opositiva entre a “religião natural” e a “religião positiva”. Mas o que interessa é a “positivité” inscrita na “religião positiva”, a qual compreende o conjunto de crenças, das regras e dos ritos que numa determinada sociedade e num determinado momento histórico são impostos aos indivíduos pelo exterior [...] ‘implica sentimentos que vêm impressos nas almas por meio de uma coerção e comportamentos que são o resultado de uma relação de comando e de obediência e que são cumpridos sem um interesse direto.’2 A positividade se opõe à liberdade humana, sendo imposta ao indivíduo por um poder que lhe é externo, mas interiorizada como crenças e sentimentos, ao qual o indivíduo não mais tem consciência de sua exterioridade. Enquanto em Hegel e Hyppolite há certa reconciliação entre naturalidade e positividade, Foucault trabalha o próprio conflito nas relações dos jogos de poder. Um dispositivo, que genealogicamente remonta à “positivité”, é um termo técnico que opera como se fosse um universal, sem sê-lo. Os dispositivos como estratégia de poder, operam em rede, entrelaçando-os, remetendo-os “a um conjunto de práticas e mecanismos (ao mesmo tempo lingüísticos e não-lingüísticos, jurídicos, técnicos e 1 AGAMBEM, Giorgio; O que é um dispositivo? (in) O que é o contemporâneo? e outros ensaios; Chapecó, SC: Argos, 2009, pg. 29. 2 Idem, pg 30-31. militares) que tem como objetivo fazer frente a uma urgência e obter um efeito mais ou menos imediato.”3 As questões da naturalidade e da positividade referenciam-se na religião, ainda que não possam ser reduzidas a ela. Em meio a este trabalho Agamben pontua a questão teológica da economia, buscando ali os dispositivos apropriados pelo poder. A palavra economia tem sua origem na palavra grega Oikonomia cujo sentido é o da administração da casa, ou do oikos. A Oikonomia teria ocupado espaço na teologia cristã quando precisou a questão da Trindade, sabendo que enquanto substância Deus é Uno, mas enquanto governo dos homens o Pai confia ao Filho “a ‘economia’ a administração e o governo da história dos homens.”4 A Oikonomia torna-se o dispositivo que trabalha e relaciona a Trindade com o governo divino do mundo, sabendo que entre a Cidade de Deus e a Cidade haveria certo espelhamento. Insistirá que “Deus reina, mas não governa”, e tal governo sendo exercido pela Igreja: Oiknomia. Retornemos aos dispositivos. “Os dispositivos devem sempre implicar um processo de subjetivação, isto é, devem produzir o seu sujeito.”5 Não estamos mais diante de um sujeito descartiano autonomo, uma “res cogitans”, um coisa que ao pensar existe e existe por pensar, fundando a razão. Assim, não há um sujeito essencial, natural, ou seja, “o sujeito” forte não existe. Por outro lado a subjetivação aqui se afasta do psicologismo, pois, segundo seu viés de análise filosófica, é produto dos dispositivos. Lembramos que a subjetividade, que em Descartes não significava a posição de um indivíduo diante do mundo, uma interpretação particular e privada do indivíduo sobre o mundo, mas aquele núcleo mais central da “res cogitans”, o “sub-jectum”, o que está subjacente à coisa (pensante). Aquele sujeito de Descartes podia, por meio do Método e das Regras para a Orientação do Espírito, conhecer a verdade encontrando as idéias claras e distintas, portanto, verdades universais. Esta subjetivação, portanto, não nos fala de um ponto de vista de um indivíduo, mas uma idéia clara e distinta sobre o homem que se percebe como “res cogitans” e quando dá conta de que “cogito ergo sum”, penso logo existo. A subjetividade é este núcleo do penso-existo, existo-penso autônomo e universal. Para Agamben, a subjetivação seria produto dos dispositivos que funcionam em rede, segundo uma microfísica do poder (lembrando Foucault). Cabe 3 Idem. pg. 35. Idem, pg. 36. 5 Idem, pg. 38. 4 ressaltar que o trabalho de Foucault toma referência o conceito de “sociedade disciplinar”, a partir dos exemplos dos hospícios, penitenciárias, escolas, monastérios, disciplinas, judiciário, etc. Mas, ele mesmo já antevê um ultrapassamento desta sociedade por outra que se avizinhava. Agamben parece trabalhar mais próximo do conceito deleuzeano de “sociedade de controle”. Grosso modo, a “sociedade de controle” apresenta-se como aquela em que os dispositivos operam não em espaços fechados, mas podem ser qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar, e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes [...] cuja conexão com o poder é num certo sentido evidente, mas também a caneta, a escritura, a literatura, a filosofia, a agricultura, o cigarro, a navegação, os computadores, os telefones celulares [...] a própria linguagem [...]6 Diferentemente de Foucault que entende os dispositivos inseridos nos “institutos” disciplinares próprios, agindo sobre indivíduos dóceis e formando sujeitos, em Agamben os dispositivos produzem sujeitos não apenas nos manicômios, prisões, etc., mas nas relações entre duas classes: os dos seres viventes e dos dispositivos e o resultado de tais relações são os sujeitos. O sujeito é resultado e não um fundamento, um suporte e é conseqüência da interação de dispositivos e de corpos. Encontramos tantos sujeitos quanto forem as relações entre um ser vivente e um dispositivo. Um mesmo ser vivente pode ser o lugar de múltiplos sujeitos, quando aquele se relaciona com diversos dispositivos. O que se problematiza com esta questão é a própria identidade e a identificação de um sujeito. Disseminação da subjetividade e a perda da identidade herdada, aquela que não mais faz sentido proclamar. O sujeito que fala reproduz as relações entre seu corpo e os dispositivos. Tradições e memórias são dispositivos que interagem com um ser vivente e formam sujeitos. Os dispositivos, ou um nome ampliado para as técnicas, não são acidentais na existência humana, mas estão relacionados com a hominização do humano. O ser humano do humano seria a relação de um ser vivente e de um dispositivo. Não haveria como descartá-los, destruí-los, nem mesmo propor seu uso correto. Pensando que a subjetivação resulta da relação entre um ser vivente e um dispositivo, Agamben fecha o 6 Idem, pg. 40-41. círculo e nos diz que “na raiz de todo dispositivo está [...] um desejo demasiadamente humano de felicidade, e a captura e a subjetivação deste desejo, numa esfera separada, constituem a potência específica do dispositivo.”7 É o desejo quem ocupa um lugar, ainda que não essencial, pelo menos central na produção da humanização do humano. O próprio desejo não seria o fundo metafísico que traria à existência um dispositivo, mas está inscrito nesta relação entre dispositivo e ser vivente que resulta em um sujeito desejante. Deseja-se um dispositivo, pois há um dispositivo que se relacionou ao ser vivente e que resultou num sujeito desejante. Não há algo na realidade que se possa dar o nome de desejo, mas ele mesmo é um dispositivo, um produto engendrado em meio a outros dispositivos. Talvez possamos ler o desejo como um dispositivo que é capturado e imbrica-se na rede de dispositivos e entrelaça-se com os seres viventes. A estratégia não é nem de negação e nem de destruição, mas um corpo-a-corpo que visa profanar o aquilo que foi separado, tornado sagrado, sacralizado e o liberar restituindo-o ao profano, ao uso comum. Agamben não utiliza a palavra secularização uma vez que esta traz a referência à modernidade, enquanto a profanação contemporiza o movimento que toma a perspectiva da genealogia proposta, a qual remete à antiguidade e à patrística cristã. O epicentro da ação sobre os dispositivos está no duplo movimento de consagração - subtrair homens, animais e coisas do uso comum e separa-lo para o uso sagrado - e no de profanação – restituir ao uso dos homens. Nosso trabalho visa, então, centrar neste procedimento de segregação próprio da religião e presente na religião cristã, na forma de relações entre dispositivos e seres viventes, formando sujeitos. Sobretudo, no que nos fala Agamben: Pode-se definir religião, nessa perspectiva, como aquilo que subtrai coisas, lugares, animais ou pessoas do uso comum e as transfere a uma esfera separada. Não só não há religião sem separação, mas toda separação contém ou conserva em si um núcleo genuinamente religioso. O dispositivo que realiza e regula a separação é o sacrifício: por meio de uma série de rituais minuciosos, diversos segundo a variedade de culturas [...] o sacrifício sanciona em cada caso a passagem de alguma coisa do profano para o sagrado, da esfera humana à divina.8 Tal proposição de Agamben nos interessa à medida que o dispositivo da Oikonomia cristã, isto é, o governo divino do mundo, produzido nos primeiros séculos de nossa era, 7 8 Idem, pg. 44. Idem, pg. 45. está relacionado, pela via da genealogia teológica, à questão do sacrifício e à questão da segregação, portanto da violência. Os dispositivos sacrificiais do cristianismo implicam numa determinada subjetivação, numa maneira de ordenar a governabilidade, podendo ser o cristianismo pensado como uma rede para o exercício do poder. Tais dispositivos de subjetivação e de governabilidade atuam sobre “corpos dóceis, mas livres” que pela identificação e liberdade aceitam seu próprio assujeitamento. Lembramo-nos que a “positivité” se opõe a liberdade humana, sendo imposta ao indivíduo por um poder que lhe é externo, mas que é interiorizada como crenças e sentimentos, ao qual o indivíduo não mais tem consciência de sua exterioridade. Certa heteronomia autonomizada, pois que tanto a autonomia quanto o sujeito são naturalizações de um desejo. O que se coloca ao falar em relações entre dispositivos e seres viventes na formação de sujeitos e o processo de dessubjetivação é o modo como devemos interpretar a liberdade. Assim, não haveria como escaparmos às perguntas: a liberdade não seria o nome de mais um dispositivo? Se o sujeito é resultado da relação entre um ser vivente e dispositivos, e isto ocorre num processo de assujeitamento e dessubjetivação, então a liberdade, a livre deliberação da decisão autônoma não seria apenas um nome de um desejo que opera na mesma rede de docilização dos corpos? Haveria esta tal de liberdade uma vez que o ser vivente humano somente conhece sua homininização na relação com um dispositivo? Os dispositivos são máquinas de produção de sujeitos e de governo, isto é, de segregação entre os “livres” para se assujeitrem e se identificarem docilmente com o modelo de homem que o poder requer, nos dois sentidos das linhas de força do poder. Então a libertação seria liberdade para se assujeitar, erguer fronteiras entre o civilizado e o bárbaro, fender o nós e o eles. A produção de sujeitos livres se dá nos corpos dóceis assujeitados, que não mais tendo consciência dos próprios dispositivos que os transpassam, são desassujeitados, tornando-se dóceis: autonomização da heteronomia. Os dispositivos perspectivados pela genealogia teológica da Oikonomia - portanto do governo divino do mundo, agora secularizados ainda que mantidos em sua matriz religiosa, isto é, de segregação pelo sacrifício, sabendo que se sacrifica o próprio sujeito ao se assujeitar, funcionalmente operado nos ritos e pelos sacerdotes, dignamente separados para tal -, tanto produzem sujeitos, quanto operam processos de dessubjetivação. Os incontáveis dispositivos relacionados com um ser vivente podem produzir incontáveis sujeitos que não dão conte de seus assujeitamentos, portanto, dessujeitos. A dessubjetivação do ser vivente que se relaciona com dispositivos, é concomitante com a produção de sujeitos, pois já não há indentidade, mas dispositivos de identificação. Não haveria, assim, um núcleo firme e único, um “sub-jectum” sobre o qual se fundamenta o pensar-existir, mas incontáveis relações de corpo e dispositivos. No entanto, não estaríamos diante de um não-sujeito ou da inverdade do sujeito, mas de sua espectralidade. O indivíduo não se identifica nem pelo sujeito, nem pelo ser, nem pela tradição herdada ou memória, mas pelos dispositivos com os quais se relaciona: a foto, o DNA, as digitais, a íris, os números do RG, CPF, do celular, etc. A memória está submetida aos dispositivos, assim como a identidade. Lembramo-nos de George Orwell: quem tem o presente escreve o passado. Profanar Se secularizar é posto como a imagem espelhada, ou seja, invertida do sagrado, ainda, a transferência para o uso secular daquilo que era destinado ao uso sacro, mas de uma determinada maneira, então o que seria profanar? Em seu texto “Elogio da profanação”9, Agamben apontará os sentidos distintivos destas operações. Os juristas de Roma sabiam o que significava profanar, tanto quanto sacralizar. Sacro é tudo o que está destinado ao uso dos deuses, ou pertenciam aos deuses. Uma vez que eram sagradas não podiam servir de fiança, ou negociações, etc. Em sentido contrário, o sacrilégio era a violação deste uso, ou deste posto para fora do uso comum. A consagração era esta passagem do uso comum para o sacro, para o sagrado. Profanar é devolver ao uso comum o que era sagrado, o que foi consagrado. A religião é o que subtrai do uso comum para o uso sagrado definindo a separação entre o sagrado e o profano. Toda separação traz em si um núcleo religioso e o dispositivo da sacralização, ou da separação é o sacrifício. O próprio ato sacrificial traz em si a representação desta separação, deste corte, desta fissura, desta fenda. A palavra ‘religião’ não provém de ‘religare’, ligar, mas de ‘religio’, que é o cuidado em manter a separação. A religião não se oporia a incredulidade ou a indiferença, mas à negligência. Desta maneira, “profanar significa abrir a possibilidade de uma forma especial de 9 AGAMBEN, Giorgio; Elogio da Profanação (in) Profanações; São Paulo: Boitempo, 2007, pg. 65. negligência, que ignora a separação, faz dela um uso particular.” 10 Ao se negligenciar o sagrado, profana-se. Assim, secularização é uma forma de remoção que mantém intactas as forças que se restringe a deslocar de um lugar ao outro. Assim, a secularização política de conceitos teológicos (a transcendência de Deus como paradigma do poder soberano) limita-se a transmutar a monarquia celeste em monarquia terrena, deixando, porém, intacto o seu poder.11 Na secularização os conceitos de soberania, de tempo, de escatologia, etc., são tomados da teologia pela política e postos para funcionar nos mesmos moldes anterior, sem a (aparente) transcendência. Por outro lado a profanação implica, por sua vez, uma neutralização daquilo que profana. Depois de profanado, o que estava indisponível e separado perde a sua aura e acaba restituído ao uso. Ambas as operações são políticas, mas a primeira tem a ver com o exercício do poder, o que é assegurado remetendo-o a um modelo sagrado; a segunda desativa os dispositivos do poder e devolve ao uso comum ao uso comum os espaços que havia confiscado.12 No latim a palavra profanare traz certa ambigüidade, pois, por um lado significa tornar profano e por outro significa sacrificar. Agamben, utiliza-se do termo ‘homo sacer’, que designava no direito romano aquele homem que não podia ser sacrificável aos deuses, mas sua morte por alguém não imputava a pena de assassinato ao seu algoz. Este homem nem pertencia à ordem sagrada e nem à ordem profana, ou legal. Está tanto excluído dos negócios cotidianos, quanto do culto. Por outro lado, diz o autor, “sagrado e profano representam, pois, na máquina do sacrifício, um sistema de dois pólos, no qual um significante flutuante transita de um âmbito para o outro sem deixar de se referir ao mesmo objeto.”13 A profanação não leva em conta estas duas instâncias separadas da vida, mas as faz confundir de maneira ambígua e o homo sacer é este inquietante signo do insacrificável e do matável. Para Agamben, o cristianismo tomando o Deus que é sacrificado radicaliza esta máquina de indecibilidade entre o sagrado e o profano, em que o homem se diviniza e Deus se humaniza. 10 Idem, pg. 66. Idem, pg. 68. 12 Idem, ibidem. 13 Idem,, pg. 69. 11 Lembra-nos Walter Benjamin para quem o capitalismo14 seria essencialmente religião, desenvolvida “parasitariamente a partir do cristianismo.” Tal religião é caracterizada por três elementos: é uma religião cultural; o culto é permanente; e o culto capitalista esta voltado para a própria culpa. Uma vez voltada para a culpa e não para a esperança ou para a redenção, tal religião se encaminha tão somente para a destruição e não a transformação do mundo.15 Em tal sentido a religião capitalista opera de maneira mais radical e pura a separação, sem nada mais separar.16 Nesta, sobretudo, o ato profanatório deve ser ainda mais sutil. Tanto quanto não podemos imaginar a abolição ingênua dos dispositivos, igualmente não podemos nos arrogar à profanação sem separação permanentemente. Desde este ponto, então, não seria a profanação um projeto ingênuo de abolição ou cancelamento das separações, mas, conceder às coisas sagradas novos e inusitados usos. Da mesma maneira que um gato brinca com um novelo de lã como se fosse um gato, ou uma criança joga com um objeto sagrado sem se dar conta daquilo com que brinca, a profanação joga com os objetos sagrados sem levar em conta a sacralidade. Um outro exemplo que Agamben toma que tanto está disponível à profanação quanto ao poder, é o dispositivo chamado linguagem. O poder sempre atuou no controle sobre a linguagem, assegurando seu uso correto, eficaz, controlando a comunicação social visando garantir a difusão de suas idéias e a obediência voluntária: desubjetivação. Contudo, a linguagem teria escapado de sua finalidade comunicativa e se prepara para um novo uso. Haveria sempre este jogo em que o objeto puro, desprovido de sacralidade ou de legalidade comum, tanto profana seu uso, quanto é perseguido pelo poder a fim de reintroduzí-lo à esfera do sagrado-profano. Citamos o exemplo do uso puro que Paulo confere à palavra pistis, fé, e que após dois séculos a Igreja já havia neutralizado a experiência possível por meio desta palavra pura e concebido um função especial na Oikonomia. Terminamos nossa leitura deste pequeno texto de Agamben, citando duas passagens: “Todo dispositivo de poder sempre é duplo: por um lado, isso resulta de um comportamento individual de subjetivação”, isto é, de produção de sujeitos pela via da relação de um ser vivente com os dispositivos, “e, por outro, da sua captura numa esfera separada”17, ou seja, de dessubjetivação que é a conferência de um uso útil de um sujeito 14 Diferentemente de Max Weber que toma o capitalismo como a ética Calvinista secularizada. Idem, pg. 70. 16 Idem, pg. 71. 17 Idem, pg. 79. 15 dócil na produção de novos dispositivos. Inquieta-nos o homo sacer, o qual não serve ao culto, ao sacrifício, assim, de uma maneira radical profana o sagrado por seu abandono do rito e do mito; mas também não está sujeito às leis comuns, encontrando-se à margem da cidade, inquietando-a com sua marginalidade, sendo posto à morte sem que isto redunde numa criminalidade de seus assassinos. É o próprio jogo em que o improfanável, a vida humana, é profanada. O poder captura o homo sacer, a vida pura, e a submete aos dispositivos de assujeitamento e encontra-lhe uma destinação. Segue-se a esta citação a segunda: “[...] qualquer improfanável – baseia-se no aprisionamento e na distração de uma intenção autenticamente profanatória. Por isso é importante toda vez arrancar dos dispositivos – de todo dispositivo – a possibilidade de uso que os mesmos capturaram. A profanação do improfanável é a tarefa política da geração que vem.”18 A ação política é a profanação desta vida nua e pura que foi capturada por um dispositivo do poder, conferindo-lhe um jogo novo e usos que escapem ao alcance soberano do sagrado-profano, ainda que temporariamente. Conclusão Deste ponto segue uma crítica àqueles que querem encontrar na religião a possibilidade contemporânea de identificação do indivíduo. Por certa perspectiva, podemos pensar que a religião da Oikonomia parte do mito de uma era de ouro imemorial da humanidade, ou, do mito edênico para onde, quando da parousia messiânica, alguns poucos - separados para tal, quer pelo arbítrio, quer pela predestinação, ou quer pelo pertencimento sacramental - estarão destinados a retornar ao paraíso. O tempo linear se fecharia nele mesmo como num círculo de raio indefinível. A memória do Éden e a tradição ritualística mantida pelo sacerdócio, não mais provêm identidade em uma “sociedade de controle”, pois os corpos “dóceis e livres” relacionados aos dispositivos, encontram-se inertes em processos de subjetivação sem a produção de um sujeito que grita, antes, dessubjetivados. Estes indivíduos dessubjetivados são passivos como espectadores de um espetáculo trágico, que aguardam o momento catártico da satisfação de desejos que o poder lhe oferece como recompensa aos sacrifícios. Certa experiência religiosa contemporânea tem mostrado uma capacidade impar de adaptação a tal processo, traduzindo a relação desejosa do ser vivente com este equipamento, dispositivo de dessubjetivação, que tanto produz corpos dóceis e frágeis 18 Idem, ibidem. que respondem mecanicamente e causalmente aos apelos do desejo capturados pelos dispositivos religiosos, quanto demonstram total desindentificação, desapego com os mesmos dispositivos, os quais devem servir apenas aos desejos miméticos da sociedade contemporânea: o sacrifício extremo. A religião que inaugura a Oikonomia como governo no mundo, pensando de maneira abstrata a soberania e o poder divinos, parece não se dar conta e não produzir uma crítica eficaz a esta ordem, pois que, em larga medida está inserida, integrada e mantém o desejo de ver a instauração de um Reino de Deus no mundo, aos moldes de uma Ordem Sagrada, ou seja, uma Hierarquia Celeste, um poder divino cuja dynamis é práxis eclesiástica.