JÚLIO DE QUEIROZ OS DANÇARINOS DA VIDA - CONTOS AMOR E MORTE A MOR E TE OS DANÇARINOS DA VIDA CONTOS JÚLIO DE QUEIROZ JÚLIO Pensad de Queiroz to, em Feve iniciais, rea Janeiro, RJ e em Filosofi Católica (RS Aperfei universidad como bolsis Humboldt ( Brasil. A par capital do P sidência da da recepção Presidência tamento Au Recreação d (1959/1967) de Treinam (CETRAMF ríodo em q Britânico, c servidores p Júlio de Queiroz CONSELHO EDITORIAL Com 25 obras publicadas entre con-Edson Luiz Borges tos, poemas e novelas, é reconhecido como Elsa Cristine Bevian um dos melhores contistas da atualidadeJoão Francisco Noll brasileira, além de ter participado em mais Jorge Gustavo Barbosa de Oliveira de uma dezena de antologias. Teve contos Roberto Heinzle encenados teatralmente e filmados para Marcia de Freitas Oliveira exibição em rede de televisão. Foi tema de Maria José Ribeiro cinco dissertações de mestrado e estudado por críticos literários como o Prof. Dr. LauEDITOR EXECUTIVO ro Junkes e a Profª Drª Salma Ferraz, ambos da Universidade Federal de S. Catarina e por Maicon Tenfen Antonio Hohlfedt de Porto Alegre RS. O esCAPA critor João Paulo Silveira de Souza termina um seu comentário sobre Júlio de Queiroz Thiago Seifert declarando “há nele uma religiosidade que transcende os rituais”. OS DANÇARINOS DA VIDA - CONTOS V iver é um trajeto que o amor e a morte percorrem muitas vezes, dançando entrelaçados. Nessas caminhadas renovadas, cada um dos dois vê de modo diferente a paisagem, que é a mesma. Depois de muitas idas e vindas, o amor e a morte compreendem por que são dois separados e, também, que apenas um pode se tornar eternidade. Então acontece o milagre: com a compreensão, amor e morte se transformam numa essência só. Seu nome é DA FURB plenitude. A MOR E TE OS DANÇARINOS DA VIDA CONTOS JÚLIO DE QUEIROZ AMOR E MORTE Griseldes Fredel Boos Radicado na capital de Santa Catarina, durante muitos anos fez-se colaborador efetivo dos principais jornais do Estado. Sua produção literária o conduziu à Academia Catarinense de Letras, onde ocupa a Cadeira número 10. É membro da Academia Sul Brasileira de Letras, do Instituto Histórico Geográfico de S. Catarina, da Academia Catarinense de Filosofia e participou do Conselho Catarinense do Livro (2009-2010), do Conselho Estadual de Cultura (2011-2012). É membro fundador do Sindicato Nacional de Tradutores. É palestrante sobre Tanatologia (Escola de Elizabeth Kübler-Ross)EDITORA e sobre espiritualidade para idosos e seus cuidadores. JÚLIO DE QUEIROZ UNIVERSIDADE REGIONAL DE BLUMENAU ministração Pública (Londres 1968). Convidado, radicou-se em Florianópolis, (SC) REITOR onde como assessor, elaborou textos oficiais João Natel Pollonio Machado para, a partir do Governador Colombo Machado Salles, (1971/1975) e Governadores e VICE-REITOR Secretários de Estado (1975/1992). DISTRIBUIÇÃO Edifurb EDITORA DA FURB Blumenau, 2013 JÚLIO DE QUE Pensador, tradut de Queiroz nasceu em to, em Fevereiro de iniciais, realizados n Janeiro, RJ e Porto A em Filosofia pela P Católica (RS, 1953). Aperfeiçoou seu universidades alemã como bolsista da Fu Humboldt (1954-195 Brasil. A partir de 195 capital do País onde sidência da NOVAC da recepção dos conv Presidência da Repú tamento Autônomo Recreação da Prefeitu (1959/1967). Prestou de Treinamento do (CETRAMFA) Rio ríodo em que, como Britânico, cursou so servidores públicos n © Júlio de Queiroz, 2013. Editora da FURB Rua Antônio da Veiga, 140 89012-900 Blumenau SC BRASIL Fone: (047) 3321-0329 3321-0330 3321-0592 Correio eletrônico: [email protected] Internet: www.furb.br/editora Distribuição: Editora da FURB “Talvez sejamos apenas a dança que o amor e a morte dançam.” Depósito legal na Biblioteca Nacional, conforme Lei nº 10994, Jalaluddin Rumi (místico islâsmico (1207/1273) de 14 de dezembro de 2004. “Impresso no Brasil / Printed in Brazil” Elaborada pela Biblioteca Central da FURB Queiroz, Júlio Q3a Amor e morte : os dançarinos : contos / Júlio Queiroz. Blumenau : Edifurb, 2013. 136 p. ISBN 978-85-7114-202-2 1. Contos brasileiros. I. Título. CDD 869.93 “devia constar que só há dois dizeres/ que infinitamente se repetem,/ como a essência da linguagem: o dizer do amor/e o dizer da morte.” João Evangelista de Andrade Filho “essência” Mão dupla/poesias Ribeirão Preto 2011 “Finalmente, os problemas mais urgentes que a humanidade precisa encarar estão todos relacionados com os diferentes aspectos da capacidade de amar.” A Cientificação do Amor Michel Odent Águas de Siloé Tão Forte Quanto a Morte Plenitude Águas de Siloé Para a Profª DrªZahidé Lupinacci Muzart, o Jornalista Valter Souza e o Engenheiro Adilson Maestri “O cego foi, lavou-se e voltou vendo.” João 9,7 1 A graminha tenra, amassada pelo ploch, ploch de seus sapatos, pareceu-lhe ter a maciez de um tapete umedecido. Mais uns passos ao léu. Parada meio sem jeito. Ao longe e à frente a vista, à qual já ia se acostumando: o Estaleiro Naval na pequenina Ilha das Cobras e, mais longe, a ainda menor Ilha do Fiscal. A distância era uma redoma de vidro; não deixava que Marcelo ouvisse nada do que certamente aquelas pessoas movimentando-se nos estaleiros da Marinha estariam dizendo umas para as outras. Como se aquelas vidas fossem intocadas. – Vidas intocadas! – quase sorriu, repassando o pensamento. – Parece frase do Luís – comentou sem palavras. Luís, seu irmão, era o poeta da família. Sempre fora, independente da idade que tivesse. Lembrou-se do espanto de todos à mesa da sala de jantar da casa de seu avô – nela sentavam-se bem umas vinte pessoas, mas nessa ocasião eram só sete: os avós, donos da casa, sua filha Justina, além de outra filha, Alda, a que morava em outra casa com seu marido e três filhos. Ela e as crianças agora ali. Marcelo ficou revendo a cena perdida no baú do passado. b - 13 - 2 Dona Petiço levantou o corpo empaçocado e baixinho – motivo do apelido familiar desde jovem – de uma das cadeiras de palhinha que tronavam nas cabeceiras da mesa. Nela, viu, sem olhar, suas filhas e netos sentados. Começou a recolher e a empilhar os pratos desse almoço. Ainda no meio da tarefa cotidiana, advertiu o ar claro: – Que poeta o quê, né, Lico? Meus netos vão ser “doutor”. Não vão ser nada de poeta... Empilhados os pratos, segurou-os com firmeza e caminhou para a cozinha larga e clara, separada da saleta de refeições por uma porta simples. No caminho ainda resmungou para si mesma: – Que poeta o quê! Antes de sumir-se na cozinha, estava confirmando os esforços de tantos anos em busca de segurança financeira e de melhoria social para os seus. Antes, as dos filhos; agora, as dos três netos. O motivo desse resmungo contra os desmandos da poesia tinha sido o gosto da couve à mineira. Tia Justina, sua filha mais velha, solteirona e igrejeira, havia estranhado o gosto da couve, servida numa travessa de louça branca com folhas e espigas de trigo em sobre-relevo em toda sua borda. – Esta couve está com um gosto esquisito – Tia Justina tinha comentado no tom de censura, presente em quase tudo que dizia. - 14 - – Não estou achando, não – declarara Dona Petiço, amenizando a queixa. Vovó para seus netos e Dona Petiço para quase todo mundo. Menos para Seu Júlio, seu marido, que simplesmente a chamava de Petiço. Seu Júlio, grandalhão, quase dois metros de altura, óculos na ponta do nariz adunco, uma berrugona vermelha numa das bochechas e o cabelo branco, basto e forte, amarelado de cabelo velho, fazendo uma onda grande, que um não raro sacudir de cabeça tentava manter no lugar. Seu Júlio, conversador, espirituoso, gostava de caminhar pelas ruas de Alegre, uma cidadezinha interiorana do Espírito Santo, saudando a todos e deles recebendo retornos cordiais. Até mesmo os sorridentes cumprimentos de umas senhoras janeleiras de quem Dona Petiço, na calada, tivera passados ciúmes. – Mulher de janela, mulher da vida! – resmungava. – Deixe de bobagem, Petiço! Eu lá tenho idade para isso? Bom-dia não tira pedaço de ninguém... Se os domínios de Dona Petiço eram os cômodos da casa, a horta e o quintal, o de Seu Júlio era um puxado, lateral ao quarto da frente, no qual tinha sido instalada sua oficina, dividida em duas partes por um balcão de corpo inteiro em frente a duas portas largas abertas para a rua. Sobre ele, duas ou três selas de montaria declaravam a profissão do dono da casa aos passantes da Rua do Norte. Seu Júlio era seleiro. Seus netos haviam crescido acostumados a um vocabulário profissional que se espalhava pelos acontecimentos familiares: fino como sovela; tomar uma sova de curtir o couro; ter um jeito de tanino aguado; bonito como sela de mulher; enfeitado que nem estribo de passeio. - 15 - Nesse almoço, de pronto a mesa tinha se dividido em dois grupos: o do gosto esquisito e o do não-é-mais-nadaque-gosto-de-couve. Tia Justina teimava no gosto estranho, liderando a turma de rebeldes inconscientes. Tinha sido Luís, um dos netos, nos seus quase quatro anos de idade, quem pôs fim à discussão. Medindo as sílabas, como se fosse a constatação mais indiscutível do mundo, anunciou: – Esta couve tem gosto é de capim que nasce na lua! Diante do inesperado da definição, Tia Justina persignou-se e o resto da família calou-se, sem ter o que comentar. Seu Júlio olhou suas filhas e netos por cima dos óculos, seu modo habitual de olhar longe: – É isso aí! É couve colhida na lua. Quem acertou foi o Luís. Luís é o nosso poeta. E os poetas sempre acertam, “né” mesmo, Luís? Esse almoço com couve de gosto de capim nascido na lua tinha sido o batismo poético de Luís. Depois disso, Seu Júlio apresentava o neto sempre do mesmo modo: – Este é o Luís, meu neto, o filho da Alda. É poeta. b - 16 - 3 Na calma rotina reinante entre a oficina de seleiro e os cômodos do resto casa, numa só manhã entraram muitas novidades. Dona Petiço havia matado e assado uma galinha gorda. Fritou pedaços de carne de porco até então guardados no latão de gordura e fez uma porção maior que o comum de farofa, forte e amarelada, com azeitonas. Arrumou os salgados e algumas laranjas dentro de uma cestinha de mão. Seu Júlio tinha vindo do armazém do Seu Nagib com duas garrafas de água mineral, que foram acrescentadas ao farnel, juntamente com uma série de argolas de alumínio, que, quando esticadas se encaixavam umas nas noutras e viravam um copinho, um dos objetos caseiros mantidos longe das mãos das crianças. Um dos poucos tesouros de Dona Petiço, o copinho desmontável acompanharia o farnel na viagem desse dia. Por volta das três horas da tarde, despediram-se da mãe e avó. Foram avô, mãe e filhos para a estação de trens de ferro. A espera pelo trem noturno foi entremeada de recomendações, quase todas desnecessárias, mais recheios da tristeza da separação que outra coisa. Vindo desde São José do Rio dos Veados – nome que, ao ouvir, os meninos da família se entreolhavam calados, envergonhados do palavrão escorregado para dentro da conversa dos adultos, passando por Celina – o trem, resfolegando e esguichando vapor pelos lados de sua locomotiva brilhante, quebrou a espera e entrou na - 17 - estaçãozinha esquálida de Alegre, cidade natal de todos daquela família. Parado o comboio, Seu Júlio começou a levar as malas para dentro de um dos carros. Colocou-as na armação acima de um dos bancos. Virou o encosto de um dos bancos, fazendo com que este ficasse de frente para outro, criando um espaço comum para seus futuros quatro ocupantes. Sua segunda filha, Alda, e os netos foram abraçados. Entrados no vagão, aboletaram-se em duas janelas. A conversa entre a viajante e seu pai fingia falar de assuntos comuns, só que soando falso, deixando entrever a apreensão escondida. – Se, por acaso, alguma coisa não der certo, voltem... O agente da estação bateu um sininho pendurado de uma trave. – Para que é isso? – perguntou Marcelo, um dos netos. – É o sinal de partida do trem – informou Seu Júlio. – O pessoal da outra estação vai saber que o trem está saindo daqui. – E dá para escutar? – quis saber Diná, a irmã do meio. Risos. – Não, não dá. Mas o telegrafista já mandou o recado. Este é também o sinal para quem ainda não entrou no vagão se apressar. A locomotiva guinchou um apito estridente. Lentamente, muito lentamente, o comboio começou a se mover. Seu Júlio pôs uma nota de dez mil reis na mão de Luís, o neto mais velho dos três. Seus olhos se avermelharam atrás do aro grosso dos óculos. – Qualquer coisa, estamos aqui, Alda. A casa é de vocês... – Eu sei, papai. O comboio deslizando, cortando frases, separando a família. – Boa viagem, vão com Deus... – Se cuide, papai... – Cuide bem das crianças. Nosso poeta... Um silvo forte e inesperado. O comboio se apressa. A cidadezinha começa a correr para trás. Abanos de mãos. Começo de choros. – Mamãe, a gente vai comer a galinha agora? – Não. Isso é para hoje de noite. Agora, sentem-se direitinho. Marcelo, você trouxe o livro de leitura? Diná, que é de sua boneca? E Luís, você se sente junto de seu irmão. O trem ganha velocidade. A locomotiva parece querer recompensar-se pelo tempo perdido na estação. José Bento, o marido de Alda, tinha ido para o Rio de Janeiro, para um emprego como contador, três meses antes dessa viagem. No segundo mês de empregado, escrevera à sua mulher que havia alugado uma casa; que no mês seguinte lhe mandaria o dinheiro para a passagem dela e dos filhos, e marcado o dia em que teriam de embarcar no trem noturno para a viagem de quase vinte horas. Ele os estaria esperando na Estação Central da Leopoldina Railway, na parte antiga do Rio de Janeiro. A locomotiva tinha pressa. As crianças, curiosidade. Alda, esperança confundindo-se com apreensão. – Será o que Deus quiser... Mas vai dar certo. O resmungo monótono das rodas de ferro, só entrecortado por um ou outro apito, trouxe sono. Primeiro, para as três crianças. Depois, também para Alda. – Mamãe, quero fazer xixi... – Venha, vou levá-la ao banheiro. Só não beba água da pia. - 18 - - 19 - Mãe e filha voltam para os bancos de palhinha trançada. – Como é que é o banheiro? – Luís quis saber. – A privada é um buraco. A gente vê o chão lá embaixo. – E o xixi? – O xixi cai no chão. – Cocô também? – Não sei. Só fiz xixi. Quando escureceu no lá fora sempre correndo para trás, a cestinha do farnel foi aberta. Dela foram tirados pedaços de galinha e colheradas de farofa que foram postos em três pratinhos de papelão amarelado. Cada uma das crianças recebeu um deles. – Comam com modos. Devagar. Tem para todos. – Eu quero duas coxas. – Eu também. – Só tem duas coxas. Vou lhe dar um pedaço de peito, que também tem muita carne. As rodas rodando. O ranger de freios contrastando com o ruído contínuo do rodar seco. De repente, escuridão completa. – Que é que é isso, mamãe? – É um túnel. Daqui a pouco passa. O trem fugindo do conhecido. O tempo escorrendo. Lâmpadas fraquinhas passaram a tremeluzir no teto do vagão. – Já está chegando no Rio de Janeiro, mamãe? – Não. Só amanhã às onze horas da manhã. Cabecear de sono de Alda. Sono solto dos dois filhos amontoados no banco em frente à mãe. De uma das sacolas foram tirados cobertores pequenos que cobriram os dois meninos. Diná, ao lado de Alda, cabeceou e começou a tombar para o colo da mãe, que a aninhou, estirando suas pernas e as apoiando no banco à sua frente entre os dois meninos. A senhora fitou carinhosamente os filhos adormecidos. – Se Deus quiser vai dar certo... O ruído do comboio avançando na escuridão cantava segurança. Os quatro, semi-sentados semi-estirados, dormiram com os resmungos e movimentos de corpos saudosos do sono horizontal. Surgiu a madrugada e, logo depois, o começo da manhã. Os meninos estremunharam. A filha, já completamente enrodilhada no colo da mãe, também acordou. – Mamãe, quando é que gente vai tomar café? – Paciência. Daqui à umas horas o trem vai chegar a Cachoeiro. Lá a gente vai ao restaurante da estação. O trem pára em Cachoeiro para isso. – Vou querer café com leite e biscoito, explicitou a menina. – Espere chegar lá – acalmou a mãe. Mais algumas horas de inércia forçada, o trem ralentou a marcha. Entrou nos trilhos de um desvio férreo, sombreado por casinhas modestas. Avançou para a estação. Resfolegou, apitou e, por fim, bufando, parou de vez. Contra toda expectativa e o tudo sabido pelos viajantes, soldados armados entraram nos vagões e tomaram posição de vigilância acintosa. Em seguida, um oficial apareceu na porta de vidro rendado do vagão: – Recolham todos os pertences. Malas e pacotes. O trem não vai seguir viagem. Está requisitado pelo Exército – determinou. Atônitos, todos os passageiros quiseram saber do que se tratava. - 20 - - 21 - – Não posso dar explicações. A ordem é descer, esvaziar os vagões e trancar tudo. A locomotiva já está desligada dos vagões. Uns, resmungando; outros, mais docilmente, todos os passageiros amontoaram-se na estação ampla bastante para o movimento normal dos passageiros que finalizassem a viagem e para os outros, que a começassem. Mas não para aquela quantidade inusitada de pessoas. Com dificuldade, Alda abaixou as malas do bagageiro sobre os bancos. Um soldado aproximou-se dela. – A senhora está com essas crianças? – São meus filhos. Estamos indo para o Rio de Janeiro. – Vou ajudar a senhora a colocar as malas na estação. Lá, a senhora se informa sobre a situação. – Mas o que é que está acontecendo? – Sou soldado. Também não sei. Só sei que o trem não sai daqui enquanto não chegar uma ordem do Rio de Janeiro. Bagagem empilhada num canto da estação, as crianças reiteradamente recomendadas para não saírem de perto das malas, Alda encaminhou-se para o guichê de passagem. Ali, um amontoado de pessoas tivera o mesmo intento. – O que é que está acontecendo? – perguntou ela a um senhor de aspecto acolhedor, parte do amontoado. – Houve uma revolução no Rio de Janeiro. O Exército ocupou todas as estações. Nenhum trem sai ou entra na capital. – Mas eu tenho que chegar lá hoje. Meu marido está esperando por mim e nossos filhos na Leopoldina Railway. – Acho que não vai poder ir, não. A senhora passa um telegrama para ele e fica num hotel até as coisas se aclararem. A programação proposta estalou o relâmpago da impossibilidade de concretizá-la. Alda não tinha senão pouquíssimo dinheiro, além de não ter qualquer endereço do marido no Rio de Janeiro. Voltou lentamente para perto dos filhos e das malas. Sentou-se em uma delas. O inesperado de sua situação avassalou-a. Lançou mão do único recurso disponível: chorar. Como até mesmo o maior desespero acaba por findar, Alda, passado o acesso de choro, recompôs-se e, mulher prática que era, começou a imaginar uma saída para sua situação aflitiva. Nisto, um senhor aproximou dela e das crianças. – Vi a senhora chorando. Não fique aflita, dona, tudo tem alguma solução. Para onde a senhora estava indo? – Eu e meus filhos vamos para o Rio. Meu marido vai esperar por nós na estação. Não tenho jeito de me comunicar com ele. – A senhora fique aqui. Eu já volto. O senhor desapareceu. Nada mais fácil para a mãe e os meninos que obedecer à recomendação do estranho. Não tinham nenhum modo de não o fazer. Passada uma meia hora, o desconhecido voltou acompanhado de um mocinho. – Falei com minha mulher. A senhora fica lá em casa com seus filhos. Este é meu rapaz. Ele vai ajudar a pôr as malas no carro. Fique tranqüila. O chefe da estação me disse que dentro de dois, três dias, a coisa vai estar normalizada; os trens vão começar a correr em seguida. Aliviada e, diante da sinceridade do desconhecido, aceitou a solução cabível. Entrados no carro, antigo, amplo e confortável, poucos minutos depois chegaram à frente de uma casa de aparência acolhedora. - 22 - - 23 - No portão, uma outra Dona Petiço, recebeu os desconhecidos sorridente e hospitaleiramente. Foram alojados num quarto e a vida começou a correr nos trilhos conhecidos de banho nas crianças, almoço, lanche e jantar. Um quarto para os quatro. Nele, uma cama de casal e um colchão no chão. Ao anoitecer, as notícias, até então descosidas e disparatadas, fizeram-se um relato racional, ainda que instigante. A Primeira República havia sido declarada morta, depois da derrota da Aliança Liberal e do assassinato de João Pessoa, desculpa emocional e esfarrapada para a eclosão do movimento militar. O Presidente da República, Washington Luís, havia sido deposto por uma junta militar. Esta havia transferido o poder para Getúlio Vargas, que, encarnando o Tenentismo e vindo do Rio Grande do Sul, tinha chegado ao Rio de Janeiro à frente de uma malta de militares e civis. Era o dia 24 de outubro de 1930. Três dias depois, os trens de ferro voltaram a correr normalmente. O casal anfitrião ainda insistiu para que Alda e seus filhos ficassem mais uns dias, até que tudo se normalizasse. Em vão. No terceiro dia da Revolução de Trinta, Alda e filhos embarcavam na estação da Estrada de Ferro de Cachoeiro do Itapemirim e, doze horas depois, o comboio que os transportava, bufando e apitando, deu entrada na Estação da Via Férrea Leopoldina Railway. Ainda antes que o comboio entrasse completamente na estação, ansiosamente debruçada na janela do vagão, Alda vislumbrou seu marido. Este, que tinha ido à estação no horário da chegada costumeira do trem noturno em cada um dos três dias anteriores, ao vê-la, apressou-se em direção ao vagão em que sua família estava. Alda, nos últimos movimentos do comboio, saltou e agarrou-se ao marido, num reconfortante choro de alívio. As crianças saltaram. Juntaram-se aos pais. Também choravam. Se lhes perguntassem por que não o saberiam dizer. Choravam porque os pais choravam. As malas foram retiradas do bagageiro. Cada criança recebeu um embrulho para carregar. Alda sobraçou uma mala e José Bento, duas delas. Estavam no Rio de Janeiro, e, juntos, forçariam as portas do futuro. - 24 - - 25 - b