JÚLIO DE QUEIROZ
OS DANÇARINOS DA VIDA - CONTOS
AMOR E MORTE
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OS DANÇARINOS DA VIDA
CONTOS
JÚLIO DE QUEIROZ
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Júlio de Queiroz
CONSELHO EDITORIAL
Com 25 obras publicadas entre con-Edson Luiz Borges
tos, poemas e novelas, é reconhecido como
Elsa Cristine Bevian
um dos melhores contistas da atualidadeJoão Francisco Noll
brasileira, além de ter participado em mais
Jorge Gustavo Barbosa de Oliveira
de uma dezena de antologias. Teve contos
Roberto Heinzle
encenados teatralmente e filmados para
Marcia de Freitas Oliveira
exibição em rede de televisão. Foi tema de
Maria José Ribeiro
cinco dissertações de mestrado e estudado
por críticos literários como o Prof. Dr. LauEDITOR EXECUTIVO
ro Junkes e a Profª Drª Salma Ferraz, ambos
da Universidade Federal de S. Catarina e por Maicon Tenfen
Antonio Hohlfedt de Porto Alegre RS. O esCAPA
critor João Paulo Silveira de Souza termina
um seu comentário sobre Júlio de Queiroz Thiago Seifert
declarando “há nele uma religiosidade que
transcende os rituais”.
OS DANÇARINOS DA VIDA - CONTOS
V
iver é um trajeto que o amor e a morte
percorrem muitas vezes, dançando
entrelaçados. Nessas caminhadas
renovadas, cada um dos dois vê de modo diferente
a paisagem, que é a mesma. Depois de muitas idas
e vindas, o amor e a morte compreendem por
que são dois separados e, também, que apenas
um pode se tornar eternidade. Então acontece
o milagre: com a compreensão, amor e morte
se transformam numa essência só. Seu nome é
DA FURB
plenitude.
A
MOR
E
TE
OS DANÇARINOS DA VIDA
CONTOS
JÚLIO DE QUEIROZ
AMOR E MORTE
Griseldes Fredel Boos
Radicado na capital de Santa Catarina,
durante muitos anos fez-se colaborador efetivo dos principais jornais do Estado. Sua
produção literária o conduziu à Academia
Catarinense de Letras, onde ocupa a Cadeira número 10. É membro da Academia Sul
Brasileira de Letras, do Instituto Histórico
Geográfico de S. Catarina, da Academia Catarinense de Filosofia e participou do Conselho Catarinense do Livro (2009-2010), do
Conselho Estadual de Cultura (2011-2012).
É membro fundador do Sindicato Nacional
de Tradutores. É palestrante sobre Tanatologia (Escola de Elizabeth Kübler-Ross)EDITORA
e
sobre espiritualidade para idosos e seus cuidadores.
JÚLIO DE QUEIROZ
UNIVERSIDADE REGIONAL DE BLUMENAU
ministração Pública (Londres 1968). Convidado, radicou-se em Florianópolis, (SC)
REITOR
onde como assessor, elaborou textos oficiais
João
Natel
Pollonio Machado
para, a partir do Governador Colombo Machado Salles, (1971/1975) e Governadores e
VICE-REITOR
Secretários de Estado (1975/1992).
DISTRIBUIÇÃO
Edifurb
EDITORA DA FURB
Blumenau, 2013
JÚLIO DE QUE
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de Queiroz nasceu em
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Católica (RS, 1953).
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capital do País onde
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Presidência da Repú
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Recreação da Prefeitu
(1959/1967). Prestou
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servidores públicos n
© Júlio de Queiroz, 2013.
Editora da FURB
Rua Antônio da Veiga, 140
89012-900 Blumenau SC BRASIL
Fone: (047) 3321-0329
3321-0330
3321-0592
Correio eletrônico: [email protected]
Internet: www.furb.br/editora
Distribuição: Editora da FURB
“Talvez sejamos apenas a dança
que o amor e a morte dançam.”
Depósito legal na Biblioteca Nacional, conforme Lei nº 10994,
Jalaluddin Rumi (místico islâsmico (1207/1273)
de 14 de dezembro de 2004.
“Impresso no Brasil / Printed in Brazil”
Elaborada pela Biblioteca Central da FURB
Queiroz, Júlio
Q3a Amor e morte : os dançarinos : contos / Júlio Queiroz. Blumenau : Edifurb, 2013.
136 p.
ISBN 978-85-7114-202-2
1. Contos brasileiros. I. Título.
CDD 869.93
“devia constar que só há dois dizeres/
que infinitamente se repetem,/ como a essência da
linguagem:
o dizer do amor/e o dizer da morte.”
João Evangelista de Andrade Filho
“essência”
Mão dupla/poesias
Ribeirão Preto 2011
“Finalmente, os problemas
mais urgentes que a humanidade
precisa encarar estão todos relacionados
com os diferentes aspectos da capacidade de amar.”
A Cientificação do Amor
Michel Odent
Águas de Siloé
Tão Forte Quanto a
Morte
Plenitude
Águas de Siloé
Para a
Profª DrªZahidé Lupinacci Muzart,
o
Jornalista Valter Souza
e
o Engenheiro Adilson Maestri
“O cego foi, lavou-se e voltou vendo.”
João 9,7
1
A
graminha tenra, amassada pelo ploch, ploch
de seus sapatos, pareceu-lhe ter a maciez de um tapete
umedecido.
Mais uns passos ao léu. Parada meio sem jeito. Ao
longe e à frente a vista, à qual já ia se acostumando: o Estaleiro
Naval na pequenina Ilha das Cobras e, mais longe, a ainda
menor Ilha do Fiscal.
A distância era uma redoma de vidro; não deixava
que Marcelo ouvisse nada do que certamente aquelas pessoas
movimentando-se nos estaleiros da Marinha estariam
dizendo umas para as outras. Como se aquelas vidas fossem
intocadas.
– Vidas intocadas! – quase sorriu, repassando o
pensamento. – Parece frase do Luís – comentou sem palavras.
Luís, seu irmão, era o poeta da família. Sempre fora,
independente da idade que tivesse.
Lembrou-se do espanto de todos à mesa da sala de
jantar da casa de seu avô – nela sentavam-se bem umas vinte
pessoas, mas nessa ocasião eram só sete: os avós, donos
da casa, sua filha Justina, além de outra filha, Alda, a que
morava em outra casa com seu marido e três filhos. Ela e as
crianças agora ali.
Marcelo ficou revendo a cena perdida no baú do
passado.
b
- 13 -
2
Dona
Petiço levantou o corpo empaçocado e
baixinho – motivo do apelido familiar desde jovem – de uma
das cadeiras de palhinha que tronavam nas cabeceiras da
mesa. Nela, viu, sem olhar, suas filhas e netos sentados.
Começou a recolher e a empilhar os pratos desse
almoço.
Ainda no meio da tarefa cotidiana, advertiu o ar claro:
– Que poeta o quê, né, Lico? Meus netos vão ser
“doutor”. Não vão ser nada de poeta...
Empilhados os pratos, segurou-os com firmeza e
caminhou para a cozinha larga e clara, separada da saleta de
refeições por uma porta simples.
No caminho ainda resmungou para si mesma:
– Que poeta o quê!
Antes de sumir-se na cozinha, estava confirmando os
esforços de tantos anos em busca de segurança financeira e
de melhoria social para os seus. Antes, as dos filhos; agora, as
dos três netos.
O motivo desse resmungo contra os desmandos da
poesia tinha sido o gosto da couve à mineira.
Tia Justina, sua filha mais velha, solteirona e igrejeira,
havia estranhado o gosto da couve, servida numa travessa de
louça branca com folhas e espigas de trigo em sobre-relevo
em toda sua borda.
– Esta couve está com um gosto esquisito – Tia Justina
tinha comentado no tom de censura, presente em quase tudo
que dizia.
- 14 -
– Não estou achando, não – declarara Dona Petiço,
amenizando a queixa.
Vovó para seus netos e Dona Petiço para quase todo
mundo. Menos para Seu Júlio, seu marido, que simplesmente
a chamava de Petiço.
Seu Júlio, grandalhão, quase dois metros de altura,
óculos na ponta do nariz adunco, uma berrugona vermelha
numa das bochechas e o cabelo branco, basto e forte,
amarelado de cabelo velho, fazendo uma onda grande, que
um não raro sacudir de cabeça tentava manter no lugar.
Seu Júlio, conversador, espirituoso, gostava de
caminhar pelas ruas de Alegre, uma cidadezinha interiorana
do Espírito Santo, saudando a todos e deles recebendo
retornos cordiais. Até mesmo os sorridentes cumprimentos
de umas senhoras janeleiras de quem Dona Petiço, na calada,
tivera passados ciúmes.
– Mulher de janela, mulher da vida! – resmungava.
– Deixe de bobagem, Petiço! Eu lá tenho idade para
isso? Bom-dia não tira pedaço de ninguém...
Se os domínios de Dona Petiço eram os cômodos da
casa, a horta e o quintal, o de Seu Júlio era um puxado, lateral
ao quarto da frente, no qual tinha sido instalada sua oficina,
dividida em duas partes por um balcão de corpo inteiro em
frente a duas portas largas abertas para a rua. Sobre ele, duas
ou três selas de montaria declaravam a profissão do dono da
casa aos passantes da Rua do Norte.
Seu Júlio era seleiro.
Seus netos haviam crescido acostumados a
um vocabulário profissional que se espalhava pelos
acontecimentos familiares: fino como sovela; tomar uma
sova de curtir o couro; ter um jeito de tanino aguado; bonito
como sela de mulher; enfeitado que nem estribo de passeio.
- 15 -
Nesse almoço, de pronto a mesa tinha se dividido em
dois grupos: o do gosto esquisito e o do não-é-mais-nadaque-gosto-de-couve.
Tia Justina teimava no gosto estranho, liderando a
turma de rebeldes inconscientes.
Tinha sido Luís, um dos netos, nos seus quase quatro
anos de idade, quem pôs fim à discussão. Medindo as sílabas,
como se fosse a constatação mais indiscutível do mundo,
anunciou:
– Esta couve tem gosto é de capim que nasce na lua!
Diante do inesperado da definição, Tia Justina
persignou-se e o resto da família calou-se, sem ter o que
comentar.
Seu Júlio olhou suas filhas e netos por cima dos
óculos, seu modo habitual de olhar longe:
– É isso aí! É couve colhida na lua. Quem acertou foi o
Luís. Luís é o nosso poeta. E os poetas sempre acertam, “né”
mesmo, Luís?
Esse almoço com couve de gosto de capim nascido na
lua tinha sido o batismo poético de Luís. Depois disso, Seu
Júlio apresentava o neto sempre do mesmo modo:
– Este é o Luís, meu neto, o filho da Alda. É poeta.
b
- 16 -
3
Na calma rotina reinante entre a oficina de seleiro e
os cômodos do resto casa, numa só manhã entraram muitas
novidades.
Dona Petiço havia matado e assado uma galinha
gorda. Fritou pedaços de carne de porco até então guardados
no latão de gordura e fez uma porção maior que o comum
de farofa, forte e amarelada, com azeitonas. Arrumou os
salgados e algumas laranjas dentro de uma cestinha de mão.
Seu Júlio tinha vindo do armazém do Seu Nagib com
duas garrafas de água mineral, que foram acrescentadas ao
farnel, juntamente com uma série de argolas de alumínio, que,
quando esticadas se encaixavam umas nas noutras e viravam
um copinho, um dos objetos caseiros mantidos longe das
mãos das crianças. Um dos poucos tesouros de Dona Petiço, o
copinho desmontável acompanharia o farnel na viagem desse
dia.
Por volta das três horas da tarde, despediram-se da
mãe e avó. Foram avô, mãe e filhos para a estação de trens
de ferro. A espera pelo trem noturno foi entremeada de
recomendações, quase todas desnecessárias, mais recheios
da tristeza da separação que outra coisa.
Vindo desde São José do Rio dos Veados – nome
que, ao ouvir, os meninos da família se entreolhavam
calados, envergonhados do palavrão escorregado para
dentro da conversa dos adultos, passando por Celina – o
trem, resfolegando e esguichando vapor pelos lados de
sua locomotiva brilhante, quebrou a espera e entrou na
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estaçãozinha esquálida de Alegre, cidade natal de todos
daquela família.
Parado o comboio, Seu Júlio começou a levar as malas
para dentro de um dos carros. Colocou-as na armação acima
de um dos bancos. Virou o encosto de um dos bancos, fazendo
com que este ficasse de frente para outro, criando um espaço
comum para seus futuros quatro ocupantes.
Sua segunda filha, Alda, e os netos foram abraçados.
Entrados no vagão, aboletaram-se em duas janelas. A conversa
entre a viajante e seu pai fingia falar de assuntos comuns, só
que soando falso, deixando entrever a apreensão escondida.
– Se, por acaso, alguma coisa não der certo, voltem...
O agente da estação bateu um sininho pendurado de
uma trave.
– Para que é isso? – perguntou Marcelo, um dos netos.
– É o sinal de partida do trem – informou Seu Júlio.
– O pessoal da outra estação vai saber que o trem está saindo
daqui.
– E dá para escutar? – quis saber Diná, a irmã do meio.
Risos.
– Não, não dá. Mas o telegrafista já mandou o recado.
Este é também o sinal para quem ainda não entrou no vagão
se apressar.
A locomotiva guinchou um apito estridente.
Lentamente, muito lentamente, o comboio começou a se
mover.
Seu Júlio pôs uma nota de dez mil reis na mão de Luís,
o neto mais velho dos três. Seus olhos se avermelharam atrás
do aro grosso dos óculos.
– Qualquer coisa, estamos aqui, Alda. A casa é de
vocês...
– Eu sei, papai.
O comboio deslizando, cortando frases, separando a
família.
– Boa viagem, vão com Deus...
– Se cuide, papai...
– Cuide bem das crianças. Nosso poeta...
Um silvo forte e inesperado.
O comboio se apressa. A cidadezinha começa a correr
para trás. Abanos de mãos. Começo de choros.
– Mamãe, a gente vai comer a galinha agora?
– Não. Isso é para hoje de noite. Agora, sentem-se
direitinho. Marcelo, você trouxe o livro de leitura? Diná, que
é de sua boneca? E Luís, você se sente junto de seu irmão.
O trem ganha velocidade. A locomotiva parece querer
recompensar-se pelo tempo perdido na estação.
José Bento, o marido de Alda, tinha ido para o Rio de
Janeiro, para um emprego como contador, três meses antes
dessa viagem. No segundo mês de empregado, escrevera à
sua mulher que havia alugado uma casa; que no mês seguinte
lhe mandaria o dinheiro para a passagem dela e dos filhos, e
marcado o dia em que teriam de embarcar no trem noturno
para a viagem de quase vinte horas.
Ele os estaria esperando na Estação Central da
Leopoldina Railway, na parte antiga do Rio de Janeiro.
A locomotiva tinha pressa. As crianças, curiosidade.
Alda, esperança confundindo-se com apreensão.
– Será o que Deus quiser... Mas vai dar certo.
O resmungo monótono das rodas de ferro, só
entrecortado por um ou outro apito, trouxe sono. Primeiro,
para as três crianças. Depois, também para Alda.
– Mamãe, quero fazer xixi...
– Venha, vou levá-la ao banheiro. Só não beba água da
pia.
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Mãe e filha voltam para os bancos de palhinha
trançada.
– Como é que é o banheiro? – Luís quis saber.
– A privada é um buraco. A gente vê o chão lá embaixo.
– E o xixi?
– O xixi cai no chão.
– Cocô também?
– Não sei. Só fiz xixi.
Quando escureceu no lá fora sempre correndo para
trás, a cestinha do farnel foi aberta. Dela foram tirados
pedaços de galinha e colheradas de farofa que foram postos
em três pratinhos de papelão amarelado. Cada uma das
crianças recebeu um deles.
– Comam com modos. Devagar. Tem para todos.
– Eu quero duas coxas.
– Eu também.
– Só tem duas coxas. Vou lhe dar um pedaço de peito,
que também tem muita carne.
As rodas rodando. O ranger de freios contrastando
com o ruído contínuo do rodar seco.
De repente, escuridão completa.
– Que é que é isso, mamãe?
– É um túnel. Daqui a pouco passa.
O trem fugindo do conhecido. O tempo escorrendo.
Lâmpadas fraquinhas passaram a tremeluzir no teto do
vagão.
– Já está chegando no Rio de Janeiro, mamãe?
– Não. Só amanhã às onze horas da manhã.
Cabecear de sono de Alda. Sono solto dos dois filhos
amontoados no banco em frente à mãe. De uma das sacolas
foram tirados cobertores pequenos que cobriram os dois
meninos. Diná, ao lado de Alda, cabeceou e começou a tombar
para o colo da mãe, que a aninhou, estirando suas pernas e as
apoiando no banco à sua frente entre os dois meninos.
A senhora fitou carinhosamente os filhos adormecidos.
– Se Deus quiser vai dar certo...
O ruído do comboio avançando na escuridão cantava
segurança. Os quatro, semi-sentados semi-estirados,
dormiram com os resmungos e movimentos de corpos
saudosos do sono horizontal.
Surgiu a madrugada e, logo depois, o começo da
manhã.
Os meninos estremunharam. A filha, já completamente
enrodilhada no colo da mãe, também acordou.
– Mamãe, quando é que gente vai tomar café?
– Paciência. Daqui à umas horas o trem vai chegar a
Cachoeiro. Lá a gente vai ao restaurante da estação. O trem
pára em Cachoeiro para isso.
– Vou querer café com leite e biscoito, explicitou a
menina.
– Espere chegar lá – acalmou a mãe.
Mais algumas horas de inércia forçada, o trem ralentou
a marcha. Entrou nos trilhos de um desvio férreo, sombreado
por casinhas modestas. Avançou para a estação. Resfolegou,
apitou e, por fim, bufando, parou de vez.
Contra toda expectativa e o tudo sabido pelos
viajantes, soldados armados entraram nos vagões e tomaram
posição de vigilância acintosa.
Em seguida, um oficial apareceu na porta de vidro
rendado do vagão:
– Recolham todos os pertences. Malas e pacotes. O
trem não vai seguir viagem. Está requisitado pelo Exército –
determinou.
Atônitos, todos os passageiros quiseram saber do que
se tratava.
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– Não posso dar explicações. A ordem é descer, esvaziar
os vagões e trancar tudo. A locomotiva já está desligada dos
vagões.
Uns, resmungando; outros, mais docilmente, todos
os passageiros amontoaram-se na estação ampla bastante
para o movimento normal dos passageiros que finalizassem
a viagem e para os outros, que a começassem. Mas não para
aquela quantidade inusitada de pessoas.
Com dificuldade, Alda abaixou as malas do bagageiro
sobre os bancos.
Um soldado aproximou-se dela.
– A senhora está com essas crianças?
– São meus filhos. Estamos indo para o Rio de Janeiro.
– Vou ajudar a senhora a colocar as malas na estação.
Lá, a senhora se informa sobre a situação.
– Mas o que é que está acontecendo?
– Sou soldado. Também não sei. Só sei que o trem não
sai daqui enquanto não chegar uma ordem do Rio de Janeiro.
Bagagem empilhada num canto da estação, as crianças
reiteradamente recomendadas para não saírem de perto das
malas, Alda encaminhou-se para o guichê de passagem.
Ali, um amontoado de pessoas tivera o mesmo intento.
– O que é que está acontecendo? – perguntou ela a um
senhor de aspecto acolhedor, parte do amontoado.
– Houve uma revolução no Rio de Janeiro. O Exército
ocupou todas as estações. Nenhum trem sai ou entra na
capital.
– Mas eu tenho que chegar lá hoje. Meu marido está
esperando por mim e nossos filhos na Leopoldina Railway.
– Acho que não vai poder ir, não. A senhora passa um
telegrama para ele e fica num hotel até as coisas se aclararem.
A programação proposta estalou o relâmpago da
impossibilidade de concretizá-la. Alda não tinha senão
pouquíssimo dinheiro, além de não ter qualquer endereço do
marido no Rio de Janeiro.
Voltou lentamente para perto dos filhos e das malas.
Sentou-se em uma delas. O inesperado de sua situação
avassalou-a. Lançou mão do único recurso disponível: chorar.
Como até mesmo o maior desespero acaba por findar,
Alda, passado o acesso de choro, recompôs-se e, mulher
prática que era, começou a imaginar uma saída para sua
situação aflitiva.
Nisto, um senhor aproximou dela e das crianças.
– Vi a senhora chorando. Não fique aflita, dona, tudo
tem alguma solução. Para onde a senhora estava indo?
– Eu e meus filhos vamos para o Rio. Meu marido vai
esperar por nós na estação. Não tenho jeito de me comunicar
com ele.
– A senhora fique aqui. Eu já volto.
O senhor desapareceu.
Nada mais fácil para a mãe e os meninos que obedecer
à recomendação do estranho. Não tinham nenhum modo de
não o fazer.
Passada uma meia hora, o desconhecido voltou
acompanhado de um mocinho.
– Falei com minha mulher. A senhora fica lá em casa
com seus filhos. Este é meu rapaz. Ele vai ajudar a pôr as
malas no carro. Fique tranqüila. O chefe da estação me disse
que dentro de dois, três dias, a coisa vai estar normalizada; os
trens vão começar a correr em seguida.
Aliviada e, diante da sinceridade do desconhecido,
aceitou a solução cabível.
Entrados no carro, antigo, amplo e confortável, poucos
minutos depois chegaram à frente de uma casa de aparência
acolhedora.
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No portão, uma outra Dona Petiço, recebeu os
desconhecidos sorridente e hospitaleiramente.
Foram alojados num quarto e a vida começou a correr
nos trilhos conhecidos de banho nas crianças, almoço, lanche
e jantar. Um quarto para os quatro. Nele, uma cama de casal
e um colchão no chão.
Ao anoitecer, as notícias, até então descosidas e
disparatadas, fizeram-se um relato racional, ainda que
instigante.
A Primeira República havia sido declarada morta,
depois da derrota da Aliança Liberal e do assassinato de João
Pessoa, desculpa emocional e esfarrapada para a eclosão do
movimento militar.
O Presidente da República, Washington Luís, havia
sido deposto por uma junta militar. Esta havia transferido o
poder para Getúlio Vargas, que, encarnando o Tenentismo e
vindo do Rio Grande do Sul, tinha chegado ao Rio de Janeiro
à frente de uma malta de militares e civis.
Era o dia 24 de outubro de 1930.
Três dias depois, os trens de ferro voltaram a correr
normalmente.
O casal anfitrião ainda insistiu para que Alda e seus
filhos ficassem mais uns dias, até que tudo se normalizasse.
Em vão.
No terceiro dia da Revolução de Trinta, Alda e filhos
embarcavam na estação da Estrada de Ferro de Cachoeiro
do Itapemirim e, doze horas depois, o comboio que os
transportava, bufando e apitando, deu entrada na Estação da
Via Férrea Leopoldina Railway.
Ainda antes que o comboio entrasse completamente
na estação, ansiosamente debruçada na janela do vagão,
Alda vislumbrou seu marido. Este, que tinha ido à estação
no horário da chegada costumeira do trem noturno em
cada um dos três dias anteriores, ao vê-la, apressou-se em
direção ao vagão em que sua família estava. Alda, nos últimos
movimentos do comboio, saltou e agarrou-se ao marido, num
reconfortante choro de alívio.
As crianças saltaram. Juntaram-se aos pais. Também
choravam. Se lhes perguntassem por que não o saberiam
dizer. Choravam porque os pais choravam.
As malas foram retiradas do bagageiro. Cada criança
recebeu um embrulho para carregar. Alda sobraçou uma mala
e José Bento, duas delas.
Estavam no Rio de Janeiro, e, juntos, forçariam as
portas do futuro.
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