A VIAGEM DE CIRCUM-NAVEGAÇÃO DO CURSO D. LOURENÇO DE ALMEIDA Comunicação apresentada na Academia de Marinha pelo Membro Efectivo contraalmirante EMQ José Luís Roque Martins, em 14 de Dezembro de 2010 Aquele ano de 1960 tinha começado normalmente. Os cadetes do Curso D. Lourenço de Almeida preparavam-se para concluir o 3º semestre do seu curso, o que deveria acontecer até ao fim de Fevereiro. Todos nós sabíamos que no programa de ensino da Escola Naval, o 4º semestre correspondia a uma viagem de instrução. No entanto, apesar de nos aproximarmo-nos rapidamente de Março confesso que não notei que houvesse grande dramatismo com o caso, correndo às vezes notícias desencontradas a que se não dava grande importância. Até que numa tarde, quase no fim de Fevereiro, encontrando-nos a jogar futebol no campo da Base Naval, vejo descer a correr pela rampa do topo sul o meu primo, 1º ten. Martins Salvador, nosso professor na Escola Naval, gritando “Luís, Luís-vocês vão dar a volta ao Mundo!” Não sei nesta altura descrever exactamente o que aconteceu, mas o treino terminou imediatamente, e entre um misto de espanto, admiração e uma certa incredibilidade corremos para a Escola para tentar confirmar a notícia. Era verdade, e uma onda de grande alegria perpassou por todos nós, excepto para aqueles cadetes que ainda não tinham acabado os exames e que se agarraram aos livros desesperadamente. Efectivamente aproveitando as Comemorações do V Centenário da Morte do Infante D. Henrique que ocorriam em 1960, era proporcionado aos cadetes do curso D. Lourenço de Almeida uma viagem de circumnavegação. As três semanas que faltavam para a largada foram consumidas na preparação da viagem, nomeadamente na aquisição/execução de mais duas fardas brancas. O aviso de 1ª classe “Afonso de Albuquerque” a terminar fabricos no Arsenal do Alfeite, para seguir para uma longa comissão de serviço na XXXVII-1 Índia, foi o navio designado para efectuar a 1ª parte da viagem e também nele a vida não foi fácil: terminar as provas finais, embarcar uma guarnição praticamente nova para uma comissão superior a 24 meses e abastecer o navio de todo o material necessário, não esquecendo as cartas de navegação, que neste caso eram bastantes... Não vou relatar mais pormenores do que se passou neste período, mas em 18 de Março com o navio fundeado frente ao Terreiro do Paço, embarcaram o Ministro da Marinha, Almirante Quintanilha e Mendonça Dias, o Comandante da Escola Naval, Almirante Sarmento Rodrigues e muitos oficiais para se despedirem da guarnição do navio e dos 48 cadetes do LA, acompanhados do Cten Eugénio Gameiro e dos tenentes Oliveira Lemos e António Jonet, que constituíam a equipa de instrução. Das palavras do Ministro retivemos o objectivo da viagemdivulgação da figura do Infante D. Henrique e dos Descobrimentos Portugueses, aproveitando a viagem para praticar o treino de mar e o conhecimento da vida de bordo e contactar terras longínquas, civilizações diferentes e outros povos e levar um abraço fraternal a todos os portugueses e seus descendentes que por todo o lado nos iriam procurar. E assim nos fizemos ao mar tendo como primeiro porto, Ponta Delgada, na Ilha de S. Miguel, numa estadia curta, onde visitámos os pontos mais importantes da ilha e onde nos foi oferecido um almoço oficial no Hotel das Furnas. A partir daí atravessámos o Atlântico, a caminho das Caraíbas, e nestes percursos maiores foi-se procedendo ao conhecimento do navio e acompanhando a vida de bordo, como adjuntos dos elementos da guarnição nos diversos postos. Esta viagem constituía, por assim dizer, a primeira grande experiência de mar do nosso curso. Alojados em espaço apertado, 24 cadetes ocupavam a câmara dos Guarda-Marinhas, 12 em beliches e os outros 12 a riscar, os restantes 24 estavam instalados em ½ coberta em situação semelhante, 12 em beliche e os restantes a riscar. Para além dos quartos que fazíamos tínhamos aulas de instrução, educação física e participávamos na baldeação ao navio. O primeiro porto estrangeiro que visitámos foi S. Juan de Porto Rico. Burgo antigo em que se destacava a fortaleza de S. Felipe. Um contraste enorme com a zona dos hotéis de grande luxo, onde os americanos passavam férias e que eu tive oportunidade de visitar. 2 A viagem de circum-navegação do curso D. Lourenço de Almeida Tomámos aqui contacto com a primeira Base Naval americana, e visitámos a fragata “Dewey” da última geração da US Navy. Sempre bem recebidos pela população, estivemos numa recepção, onde pela primeira vez observámos um conjunto musical com bidões. O que é certo é que os sons agradavam a todos! Uma espécie de pandemónio. Foi ali que tomámos contacto com o ritmo merengue. Partimos depois para o Canal de Panamá, com curtas estadias, tanto em Balboa-Panamá City à entrada, como em Colon à saída. O Canal, obra gigantesca, impressiona sempre. Não só a dimensão das 6 comportas, e também do lago artificial, como toda a maquinaria adjacente para a movimentação dos navios. Enfim 51 milhas debaixo de um calor sufocante, vencendo um desnível de 26 metros. Quando chegámos ao Pacífico, o mar justificava o nome, começámos a bordejar a Costa do México e da Califórnia, Acapulco só vimos no radar, até que nos aproximámos de S. Diego, e logo à entrada fomos fotografados por um fotógrafo, numa pequena embarcação, com uma máquina fotográfica do tipo “à la minute”. A foto vendida depois a toda a guarnição ficou para a história. Da entrada em S. Diego até à atracação no centro da cidade, fomos observando espantados a imensa Base Aeronaval, a maior do Pacífico e no cais uma Banda da Marinha Americana dava-nos as boas vindas. Começava aqui a outra faceta da viagem, o encontro com os portugueses e seus descendentes. Em S. Diego, como depois em S. Francisco e Honolulu, o contacto com estes portugueses excedeu tudo o que se possa imaginar. A colónia portuguesa nestas cidades decidiu efectuar as suas próprias Comemorações Henriquinas e aproveitou a estadia do navio paras as inaugurar. Assim, em S. Diego, para além da homenagem a Cabrilho, o português que descobriu a Califórnia ao serviço do Rei de Espanha, participámos numa recepção com imenso nível no Valley Country Club com oradores categorizados, oriundos das Universidades Locais, dissertando sobre a obra do Infante D. Henrique e os Descobrimentos Portugueses, mostrando um conhecimento apreciável da nossa história. Em S. Diego, para além de uma demorada visita à Base Naval, estivemos no Observatório Astronómico do Monte Pallomar, um dos maiores do mundo e que nos deixou maravilhados e constituiu um dos pontos altos sob o ponto de vista científico da viagem. XXXVII-3 Aproveitámos ainda a estada em S. Diego para dar um salto a Tijuana, uma terra mexicana junto à fronteira, e que vive essencialmente para os turistas americanos. Depois foi a entrada na Baía de S. Francisco, a vista sobre a Golden Gate Bridge, uma antevisão do que seria a Ponte sobre o Tejo, seis anos depois, e um conjunto de cidades praticamente coladas, Treasure Island e a célebre prisão de Alcatraz. Falava-se que estaria ali o Caryl Chessman, mas este, já na altura condenado à morte, encontrava-se numa prisão de alta segurança a norte de S. Francisco, por onde também passámos. S. Francisco é uma cidade muito bonita, um tanto ou quanto acidentada, e que deixa uma impressão muito agradável a quem a visita. Percorremos a China Town, o Telegraph Hill, o Embarcadero e empurrámos o célebre eléctrico no términus, para invertermos o sentido de marcha. Aqui, tivemos novamente uma excelente recepção oferecida pelas Sociedades Fraternais Portuguesas da Califórnia, no magnífico Hotel Sheraton Palace onde os discursos patrióticos e as homenagens ao Infante D. Henrique foram temas marcantes. Não posso esquecer a passagem pelo City Hall de Oakland, onde o Mayor nos recebeu no Salão Nobre. Aqui, acabados de entrar, o Mayor, Senhor Clifford Rishell, perguntou para espanto de todos onde estava o Artur Sarmento? O nosso camarada apanhado de surpresa apresentou-se, ao que o Mayor o mandou sentar na cadeira do Presidente, perante o ar estupefacto do comandante do navio, Cmg Pedro Sequeira Zilhão. Mas o Mayor explicou – É que tendo naufragado durante a 2ª Guerra Mundial no Mar dos Açores, quem o salvou tinha sido o Comandante Sarmento Rodrigues, pai do Artur, que era na altura o comandante do contratorpedeiro “Lima”. Uma salva de palmas encerrou o acto, cedendo então o Artur a cadeira ao Comte Zilhão. Começou então a travessia do Pacífico a caminho do Arquipélago do Haway. Estes períodos de mar mais longos eram aproveitados para intensificar a instrução, destacando-se nesta matéria o ten. Oliveira Lemos pelo profissionalismo que incutia nas aulas e nos aspectos culturais com que as adornava. Nos dias que antecederam a chegada ao Haway, e apesar de sermos novatos na matéria, o ataque a Pearl Harbour durante a 2ª Guerra Mundial era assunto recorrente. 4 A viagem de circum-navegação do curso D. Lourenço de Almeida Assim a chegada ao Arquipélago do Haway era aguardada com imensa curiosidade por todos. Estávamos a meio do Pacífico e aquilo que conhecíamos dos livros e dos filmes ia ser agora confirmado. O “Afonso de Albuquerque” atracou em Pearl Harbour, depois de passar Honolulu. A paisagem, a cor e um urbanismo não agressivo eram realmente fascinantes e as flores abundavam em todos os lados. A Base Naval, de grande dimensão, foi por nós visitada e todos nós perante o que restava do couraçado “Arizona” evocámos os 2000 marinheiros americanos mortos no ataque, naquele Domingo 7 de Dezembro de 1941. Na estadia em Honolulu não posso deixar de mencionar o espectáculo que nos foi oferecido, num anfiteatro ao ar livre, na festa do 1º de Maio, o May Day, com danças e canções havaianas, com as típicas guitarras e em que as esculturais bailarinas envergavam aquelas típicas saias franjadas, tão características. Os colares de flores oferecidos a todos nós faziam parte já do nosso uniforme... Outro ponto que não pode ser esquecido foi a ida a “Waikiki Beach”. Uma praia maravilhosa, varrida por ondas não muito altas, e onde vimos e ensaiámos pela primeira vez as hoje muito conhecidas pranchas de surf. É claro que, principiantes, entrávamos por um bordo e saíamos logo pelo outro... É altura de voltar a falar dos nossos emigrantes, presença assídua e maciça em S. Diego, S. Francisco e Honolulu como já dissemos. Para além das recepções oficiais em que a sua presença era uma constante, o navio estava sempre a ser “invadido” por um número de emigrantes elevadíssimo, que nos procuravam, não só os cadetes, mas também todos os elementos da guarnição do navio e connosco conversavam. Para além do gosto de ouvirem falar a sua língua natal, tinham a enorme preocupação de mostrar que se encontravam bem integrados na sociedade local, onde eram respeitados e que possuíam bens, fruto do seu trabalho, o que constituía um imenso orgulho como era natural e nesse sentido propunham que os acompanhássemos para ver as suas casas e propriedades. Em Honolulu, a certa altura fomos convidados a visitar o Hospital Principal da cidade, tudo porque o Director era um luso descendente! Depois do Haway nova grande tirada, a maior da viagem, para o Japão, em que atravessávamos a linha de mudança de data, devidamente comemorada com uma pequena festa. XXXVII-5 Os dias que antecederam a chegada ao Japão foram talvez aqueles que mereceram uma maior reflexão. Estávamos perante uma nova civilização, onde os costumes diferiam bastante dos nossos. Efectivamente, o pouco espaço de tempo que tivemos em Lisboa para preparação da viagem, aliada à nossa pouca idade, não nos permitiu fazer praticamente nada, nem arranjar um dos livros de Wenceslau de Morais sobre a história do Japão. Assim, numa manhã chuvosa, chegámos à baía de Tóquio, onde um navio da Marinha de Guerra Japonesa executou as salvas da Ordenança, a que respondeu prontamente o “Afonso de Albuquerque”. Atracámos em Yokoama, cidade ligada a Tóquio, recebendo os cumprimentos das autoridades locais e da interessantíssima Miss Yokoama, trajando a rigor. Entre visitas oficiais e passeios, não posso esquecer a recepção oferecida pela Marinha Japonesa, num parque lindíssimo no Centro de Tóquio, em que fomos recebidos pelos almirantes acompanhados das esposas, estas envergando os seus riquíssimos e lindíssimos Kimonos. No recinto, um relvado de grandes dimensões, num canto, um pouco afastado, actuava a Banda da Marinha. Depois das apresentações e de um período de conversa, os presentes dirigiram-se em cortejo para um alpendre, no meio do relvado, onde nos esperava uma panóplia de iguarias que íamos provando. Porém, a maior parte dos produtos eram crus, designadamente os mariscos e os peixes e aqui só se safaram os cadetes originários do sul e das ilhas. Os outros ficaram a dieta! A recepção oficial no Ginza Tóquio Hotel, foi também um acontecimento marcante, assim como a visita à Escola Naval e o encontro com os cadetes japoneses, num jardim oriental, onde almoçámos. Uma das coisas que constatámos entre muitas, foi o grande número de pessoas nas ruas de Tóquio e entre estas, as crianças das escolas, todas uniformizadas, com boné e máquina fotográfica, lá seguiam em enormes filas acompanhadas pelos seus professores. Mas Tóquio, em 1960, tinha já muitos sinais de ocidentalização, que foram aparecendo após a Guerra, e que era patente na forma como era apresentada a publicidade e no vestir de algumas mulheres e também no comércio, onde produtos ocidentais eram mostrados com frequência. Visitámos templos religiosos, estivemos junto do grande Buda de KamaKura, uma escultura com 12 metros de altura e assistimos a um espectáculo no Kokusai Theatre de Tóquio onde cenas dramáticas de teatro japonês alternavam com números de “musicall” nitidamente ocidentais. 6 A viagem de circum-navegação do curso D. Lourenço de Almeida Saímos do Japão rumo a Hong-Kong pelo estreito da Formosa. A visita a este território, grande centro comercial e também cinematográfico, mostrou-nos um lugar cosmopolita com imensa população, com um centro da cidade onde predominavam os grandes bancos e grandes empresas. Daí a Macau foi um pequeno passeio entre ilhas. Em Macau foi pena termos de ficar no Porto Exterior a 4 milhas de terra. A ligação era feita por um rebocador que ia lançando fagulhas, que com o tempo chuvoso que apanhámos quase sempre, nos sujava as fardas permanentemente. Estivemos pouco tempo em Macau, mesmo assim deu para visitar os pontos mais importantes da cidade, desde o Farol da Guia até à Porta do Cerco, às ruínas da Igreja de S. Paulo e à gruta de Camões e às instalações da Marinha. Circulámos no Centro e tivemos uma recepção no Leal Senado e uma pequena festa no Clube Militar e ainda tivemos tempo de ir uma noite ao velho Casino Central, experimentar aquele ambiente de fumos e odores exóticos. Macau em 1960 tinha casas relativamente baixas e não havia nenhuma construção moderna, como as que vieram a ser construídas no último quartel do século XX. Ficámos um pouco surpreendidos com a reduzida percentagem da população que falava português. Tirando o pessoal dos correios, da polícia, e das funções oficiais, poucos mais falavam a nossa língua. Navegámos a seguir para Singapura, a Cidade Estado que dava os primeiros passos para a industrialização que viria a ter. Aqui, visitámos missões católicas dirigidas por missionários portugueses e houve uma excursão a Malaca, onde foi muito agradável contactar a colónia piscatória que se orgulha da sua ascendência portuguesa e se esforça por não perder, dentro do possível, o seu linguajar português. Estávamos no ponto mais sul da nossa viagem e tivemos a sensação, porventura errada, de que tínhamos dobrado a metade da viagem. Agora era sempre a subir. Também na organização de bordo os cadetes começaram a ter uma participação mais activa, tanto nos quartos, como nos serviços. Aproximava-nos de Goa e esse facto pesava, mesmo inconscientemente, sobre nós. Na véspera da chegada a Mormugão, mais precisamente em 15 de Junho, o 1º Ten Oliveira Lemos, nosso instrutor e que já tinha feito uma comissão na Índia, fez uma conferência para os cadetes e para toda a guarnição sobre Goa, destacando o seu significado XXXVII-7 histórico cultural, peça de grande qualidade, que nos fez reflectir imenso e nos preparou para o que íamos ver nos dias seguintes. Na chegada a Mormugão foi com surpresa que vimos mais de vinte navios fundeados à espera de cais para carregar minério de ferro. Fundeados também estavam os avisos “Bartolomeu Dias” e “João de Lisboa”. Como já era do conhecimento de todos, o Aviso “Afonso de Albuquerque” ficava na Índia e nós passávamos para o Aviso “Bartolomeu Dias” que regressava a Lisboa. O que não adivinhávamos era que o “Afonso de Albuquerque” não voltaria a Lisboa, pois em Dezembro de 1961, dando heróico combate à Esquadra Indiana, acabou por se perder encalhado perto de D. Paula. Mas em 1960 a nossa estada em Goa foi aproveitada para visitar Pangim, Velha Goa e ainda as cidades Mapuçá e Bardez. Destas, ressaltou pela sua importância histórico cultural, Velha Goa. Aqui tivemos o privilégio de ser guiados pelo Dr. Panduronga Sinai Pissurlencar, Director dos Arquivos de Goa, que nos mostrou minuciosamente a Sé Catedral, o Arco dos Vice-Reis, a Igreja do Bom Jesus com incidência no túmulo de S. Francisco de Xavier, alguns templos Hindus e outras preciosidades daquela histórica cidade. Em Pangim, fomos ao Palácio do Cabo, ao Hotel Mandovi e circulámos pelas ruas acompanhados pelo Comandante Abel de Oliveira, Capitão dos Portos do Estado da Índia, que enquanto nos explicava pormenorizadamente o que íamos vendo, cruzava-se com grupos de goeses e com eles falava em concanim, o que nos deixou verdadeiramente deslumbrados. Não podemos esquecer ainda a visita ao Forte da Aguada, onde estava uma unidade militar e um almoço oferecido pela Câmara de Mapuçá que incluía só... 5 caris, cada qual o mais picante! A transferência para o “Bartolomeu Dias” ocupou-nos, praticamente, um dia inteiro, com as bagagens a ser transportadas por uma barcaça, não esquecendo que éramos 48 cadetes com bagagens, mais sacos, macas e envelopes com uniformes etc, etc. Ficámos com pena do “Afonso de Albuquerque”, nomeadamente dos seus oficiais, a que já estávamos habituados, mas a vida não pára e rapidamente nos integrámos no “Bartolomeu Dias”, dois navios praticamente iguais. Ainda em Goa, fomos ao aeroporto e embarcámos no Skymaster dos TAIP para irmos a Damão e Diu. No entanto o tempo não permitiu, já tinha começado a Monção e naquele dia as condições atmosféricas eram más. 8 A viagem de circum-navegação do curso D. Lourenço de Almeida Em face disto o “Bartolomeu Dias” saiu para Norte, com a intenção de visitarmos aqueles territórios por mar. No trajecto, passámos em Chaul, local onde em 1508 morreu em combate com os mamelucos, D. Lourenço de Almeida, o patrono do nosso curso. Na ocasião, o cadete chefe do curso, leu um texto evocativo do acontecimento, que marcou a nossa homenagem ao insigne filho de D. Francisco de Almeida, que exercia o lugar de capitão-mor-do-mar. O Índico, naquelas bandas não estava bom e assim passámos por Damão e fundeámos durante 24 horas frente a Diu, sem hipótese de desembarcar. As autoridades de Diu, numa atitude simpática iluminaram as vetustas muralhas durante a noite, o que fez levar o nosso pensamento para D. João de Castro e para todos os heróis que ali defenderam o nome de Portugal. Com forte calema, devido à Monção, cruzámos o Índico até Adem, melhorando o mar só na proximidade deste porto. Naquele tempo, Adem era um protectorado inglês. Atracámos na Base inglesa. A cidade não era muito grande, com casas tipicamente árabes. No “briefing” que os oficiais ingleses nos fizeram à chegada, afirmaram que a situação era perigosa e só se responsabilizavam pelo que acontecia dentro da Base. Aconselharam, que se quiséssemos sair para o exterior, que devíamos fazê-lo em grupos de 4 e de táxi. Por todo o lado havia cartazes com o retrato de Nasser e propaganda da Coca-Cola. Para andar de camelo e fazer compras (souvenirs) era preciso ir às montanhas que ficavam por trás da cidade. Escusado será dizer que foi aí que fomos. Depois da fotografia oficial de camelo, a maior parte dos cadetes foi até aquelas “cantinas” no intuito de adquirir alguns “souvenirs” com o pouco dinheiro que ainda restava. Julgo que foi aí que comprámos um transístor para oferecer ao João Rocha, o nosso treinador de remo na Escola Naval. Eu, como não queria comprar nada e já tinha tirado a foto no camelo, fiquei cá fora. Aconteceu então um caso que vou contar. Aproximou-se de mim um beduíno, rapaz de vinte e tal anos, de pé descalço, falando uma língua mesclada, de que se entendia alguma coisa e começou por avançar com palavras tentando identificar a minha nacionalidade e então ia dizendo Marrocos, Itália, Grécia, Turquia, etc, etc, ao que eu ia dizendo não com a cabeça. Mas atendendo ao aviso dos ingleses, achei por bem avançar com a minha nacionalidade, antes que a conversa tomasse outro caminho e disse Portugal. Nesta altura o rapaz abriu muito os olhos e repetiu Portugal e depois-Portugal, Albuquerque e fazendo um gesto da mão sobre o pescoço, XXXVII-9 como uma espada, desatou a correr, não parando mais ... Estávamos em 1960, 450 anos depois do grande Governador da Índia ter andado por ali!... Depois, bom depois, foi navegar no Mar Vermelho a caminho de Suez à entrada do Canal e percorrer as suas oitenta milhas para atingirmos Port Said. Aqui já não vimos a estátua do seu construtor, Ferdinand de Lesseps, pois esta tinha sido destruída e lançada para o fundo do mar em Dezembro de 1956. Alguns cadetes foram em excursão ao Cairo, que incluiu uma passagem pelo Museu, uma ida a um grande Bazar no meio de ruelas estreitas e mal cheirosas e a deslocação às Pirâmides de Gizéh. A entrada no Mediterrâneo trouxe-nos à mente a ideia de que Portugal era já ali. O Mar calmo deu para reflectir sobre toda a viagem e a imensidade das coisas que vimos, as dificuldades ultrapassadas, a confirmação de situações que tínhamos ouvido falar mas que depois de observadas tinham outro peso e acima de tudo, sentir como os portugueses estão espalhados por todo o mundo e dos testemunhos que os nossos antepassados deixaram, perpetuando o nome de Portugal para sempre. Na nossa frente tínhamos agora a ilha de Malta. Fundeámos em La Valleta, junto à fortaleza de Sto Angelo, que visitámos, assim como os Palácios dos Grão-Mestres da Ordem de Malta. Até deu para ver uma ópera numa esplanada ao ar livre. Chegámos a Sagres a 19 de Julho, 120 dias depois de termos largado de Lisboa, tendo percorrido 25.000 milhas. A alegria do regresso, o encontro com os cadetes dos outros cursos da Escola Naval e a participação nas cerimónias de homenagem ao Infante D. Henrique, presididas pelo Ministro da Marinha com a presença do Comandante e Professores da Escola Naval e ainda a entrega a cada cadete de um exemplar dos Lusíadas, numa edição muito cuidada da Marinha, ficarão para sempre na nossa memória. Cinquenta anos passados, pode-se afirmar que a Volta ao Mundo, constituiu para os cadetes do Curso D. Lourenço de Almeida, uma enorme referência e o elemento aglutinador da união que tem caracterizado o nosso curso, sintetizado na fotografia do Aviso “Afonso de Albuquerque” à entrada de S. Diego com as assinaturas dos 48 cadetes do LA. 10