A VIAGEM DE CIRCUM-NAVEGAÇÃO
DO CURSO D. LOURENÇO DE ALMEIDA
Comunicação apresentada na Academia de
Marinha pelo Membro Efectivo contraalmirante EMQ José Luís Roque Martins,
em 14 de Dezembro de 2010
Aquele ano de 1960 tinha começado normalmente. Os cadetes do
Curso D. Lourenço de Almeida preparavam-se para concluir o 3º semestre
do seu curso, o que deveria acontecer até ao fim de Fevereiro. Todos nós
sabíamos que no programa de ensino da Escola Naval, o 4º semestre
correspondia a uma viagem de instrução. No entanto, apesar de nos
aproximarmo-nos rapidamente de Março confesso que não notei que
houvesse grande dramatismo com o caso, correndo às vezes notícias
desencontradas a que se não dava grande importância.
Até que numa tarde, quase no fim de Fevereiro, encontrando-nos a
jogar futebol no campo da Base Naval, vejo descer a correr pela rampa do
topo sul o meu primo, 1º ten. Martins Salvador, nosso professor na Escola
Naval, gritando “Luís, Luís-vocês vão dar a volta ao Mundo!” Não sei
nesta altura descrever exactamente o que aconteceu, mas o treino terminou
imediatamente, e entre um misto de espanto, admiração e uma certa
incredibilidade corremos para a Escola para tentar confirmar a notícia. Era
verdade, e uma onda de grande alegria perpassou por todos nós, excepto
para aqueles cadetes que ainda não tinham acabado os exames e que se
agarraram aos livros desesperadamente.
Efectivamente aproveitando as Comemorações do V Centenário da
Morte do Infante D. Henrique que ocorriam em 1960, era proporcionado
aos cadetes do curso D. Lourenço de Almeida uma viagem de circumnavegação.
As três semanas que faltavam para a largada foram consumidas na
preparação da viagem, nomeadamente na aquisição/execução de mais duas
fardas brancas.
O aviso de 1ª classe “Afonso de Albuquerque” a terminar fabricos no
Arsenal do Alfeite, para seguir para uma longa comissão de serviço na
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Índia, foi o navio designado para efectuar a 1ª parte da viagem e também
nele a vida não foi fácil: terminar as provas finais, embarcar uma guarnição
praticamente nova para uma comissão superior a 24 meses e abastecer o
navio de todo o material necessário, não esquecendo as cartas de
navegação, que neste caso eram bastantes...
Não vou relatar mais pormenores do que se passou neste período,
mas em 18 de Março com o navio fundeado frente ao Terreiro do Paço,
embarcaram o Ministro da Marinha, Almirante Quintanilha e Mendonça
Dias, o Comandante da Escola Naval, Almirante Sarmento Rodrigues e
muitos oficiais para se despedirem da guarnição do navio e dos 48 cadetes
do LA, acompanhados do Cten Eugénio Gameiro e dos tenentes Oliveira
Lemos e António Jonet, que constituíam a equipa de instrução.
Das palavras do Ministro retivemos o objectivo da viagemdivulgação da figura do Infante D. Henrique e dos Descobrimentos
Portugueses, aproveitando a viagem para praticar o treino de mar e o
conhecimento da vida de bordo e contactar terras longínquas, civilizações
diferentes e outros povos e levar um abraço fraternal a todos os portugueses
e seus descendentes que por todo o lado nos iriam procurar.
E assim nos fizemos ao mar tendo como primeiro porto, Ponta
Delgada, na Ilha de S. Miguel, numa estadia curta, onde visitámos os
pontos mais importantes da ilha e onde nos foi oferecido um almoço oficial
no Hotel das Furnas.
A partir daí atravessámos o Atlântico, a caminho das Caraíbas, e
nestes percursos maiores foi-se procedendo ao conhecimento do navio e
acompanhando a vida de bordo, como adjuntos dos elementos da guarnição
nos diversos postos. Esta viagem constituía, por assim dizer, a primeira
grande experiência de mar do nosso curso. Alojados em espaço apertado,
24 cadetes ocupavam a câmara dos Guarda-Marinhas, 12 em beliches e os
outros 12 a riscar, os restantes 24 estavam instalados em ½ coberta em
situação semelhante, 12 em beliche e os restantes a riscar.
Para além dos quartos que fazíamos tínhamos aulas de instrução,
educação física e participávamos na baldeação ao navio.
O primeiro porto estrangeiro que visitámos foi S. Juan de Porto Rico.
Burgo antigo em que se destacava a fortaleza de S. Felipe. Um contraste
enorme com a zona dos hotéis de grande luxo, onde os americanos
passavam férias e que eu tive oportunidade de visitar.
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A viagem de circum-navegação do curso D. Lourenço de Almeida
Tomámos aqui contacto com a primeira Base Naval americana, e
visitámos a fragata “Dewey” da última geração da US Navy. Sempre bem
recebidos pela população, estivemos numa recepção, onde pela primeira
vez observámos um conjunto musical com bidões. O que é certo é que os
sons agradavam a todos! Uma espécie de pandemónio. Foi ali que tomámos
contacto com o ritmo merengue.
Partimos depois para o Canal de Panamá, com curtas estadias, tanto
em Balboa-Panamá City à entrada, como em Colon à saída.
O Canal, obra gigantesca, impressiona sempre. Não só a dimensão
das 6 comportas, e também do lago artificial, como toda a maquinaria
adjacente para a movimentação dos navios. Enfim 51 milhas debaixo de um
calor sufocante, vencendo um desnível de 26 metros.
Quando chegámos ao Pacífico, o mar justificava o nome, começámos
a bordejar a Costa do México e da Califórnia, Acapulco só vimos no radar,
até que nos aproximámos de S. Diego, e logo à entrada fomos fotografados
por um fotógrafo, numa pequena embarcação, com uma máquina
fotográfica do tipo “à la minute”. A foto vendida depois a toda a guarnição
ficou para a história.
Da entrada em S. Diego até à atracação no centro da cidade, fomos
observando espantados a imensa Base Aeronaval, a maior do Pacífico e no
cais uma Banda da Marinha Americana dava-nos as boas vindas.
Começava aqui a outra faceta da viagem, o encontro com os
portugueses e seus descendentes. Em S. Diego, como depois em S.
Francisco e Honolulu, o contacto com estes portugueses excedeu tudo o
que se possa imaginar.
A colónia portuguesa nestas cidades decidiu efectuar as suas próprias
Comemorações Henriquinas e aproveitou a estadia do navio paras as
inaugurar.
Assim, em S. Diego, para além da homenagem a Cabrilho, o
português que descobriu a Califórnia ao serviço do Rei de Espanha,
participámos numa recepção com imenso nível no Valley Country Club
com oradores categorizados, oriundos das Universidades Locais,
dissertando sobre a obra do Infante D. Henrique e os Descobrimentos
Portugueses, mostrando um conhecimento apreciável da nossa história.
Em S. Diego, para além de uma demorada visita à Base Naval,
estivemos no Observatório Astronómico do Monte Pallomar, um dos
maiores do mundo e que nos deixou maravilhados e constituiu um dos
pontos altos sob o ponto de vista científico da viagem.
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Aproveitámos ainda a estada em S. Diego para dar um salto a
Tijuana, uma terra mexicana junto à fronteira, e que vive essencialmente
para os turistas americanos.
Depois foi a entrada na Baía de S. Francisco, a vista sobre a Golden
Gate Bridge, uma antevisão do que seria a Ponte sobre o Tejo, seis anos
depois, e um conjunto de cidades praticamente coladas, Treasure Island e a
célebre prisão de Alcatraz. Falava-se que estaria ali o Caryl Chessman, mas
este, já na altura condenado à morte, encontrava-se numa prisão de alta
segurança a norte de S. Francisco, por onde também passámos.
S. Francisco é uma cidade muito bonita, um tanto ou quanto
acidentada, e que deixa uma impressão muito agradável a quem a visita.
Percorremos a China Town, o Telegraph Hill, o Embarcadero e
empurrámos o célebre eléctrico no términus, para invertermos o sentido de
marcha.
Aqui, tivemos novamente uma excelente recepção oferecida pelas
Sociedades Fraternais Portuguesas da Califórnia, no magnífico Hotel
Sheraton Palace onde os discursos patrióticos e as homenagens ao Infante
D. Henrique foram temas marcantes.
Não posso esquecer a passagem pelo City Hall de Oakland, onde o
Mayor nos recebeu no Salão Nobre. Aqui, acabados de entrar, o Mayor,
Senhor Clifford Rishell, perguntou para espanto de todos onde estava o
Artur Sarmento? O nosso camarada apanhado de surpresa apresentou-se, ao
que o Mayor o mandou sentar na cadeira do Presidente, perante o ar
estupefacto do comandante do navio, Cmg Pedro Sequeira Zilhão. Mas o
Mayor explicou – É que tendo naufragado durante a 2ª Guerra Mundial no
Mar dos Açores, quem o salvou tinha sido o Comandante Sarmento
Rodrigues, pai do Artur, que era na altura o comandante do
contratorpedeiro “Lima”. Uma salva de palmas encerrou o acto, cedendo
então o Artur a cadeira ao Comte Zilhão.
Começou então a travessia do Pacífico a caminho do Arquipélago do
Haway. Estes períodos de mar mais longos eram aproveitados para
intensificar a instrução, destacando-se nesta matéria o ten. Oliveira Lemos
pelo profissionalismo que incutia nas aulas e nos aspectos culturais com
que as adornava. Nos dias que antecederam a chegada ao Haway, e apesar
de sermos novatos na matéria, o ataque a Pearl Harbour durante a 2ª Guerra
Mundial era assunto recorrente.
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A viagem de circum-navegação do curso D. Lourenço de Almeida
Assim a chegada ao Arquipélago do Haway era aguardada com
imensa curiosidade por todos. Estávamos a meio do Pacífico e aquilo que
conhecíamos dos livros e dos filmes ia ser agora confirmado.
O “Afonso de Albuquerque” atracou em Pearl Harbour, depois de
passar Honolulu. A paisagem, a cor e um urbanismo não agressivo eram
realmente fascinantes e as flores abundavam em todos os lados.
A Base Naval, de grande dimensão, foi por nós visitada e todos nós
perante o que restava do couraçado “Arizona” evocámos os 2000
marinheiros americanos mortos no ataque, naquele Domingo 7 de
Dezembro de 1941.
Na estadia em Honolulu não posso deixar de mencionar o
espectáculo que nos foi oferecido, num anfiteatro ao ar livre, na festa do 1º
de Maio, o May Day, com danças e canções havaianas, com as típicas
guitarras e em que as esculturais bailarinas envergavam aquelas típicas
saias franjadas, tão características. Os colares de flores oferecidos a todos
nós faziam parte já do nosso uniforme...
Outro ponto que não pode ser esquecido foi a ida a “Waikiki Beach”.
Uma praia maravilhosa, varrida por ondas não muito altas, e onde vimos e
ensaiámos pela primeira vez as hoje muito conhecidas pranchas de surf. É
claro que, principiantes, entrávamos por um bordo e saíamos logo pelo
outro...
É altura de voltar a falar dos nossos emigrantes, presença assídua e
maciça em S. Diego, S. Francisco e Honolulu como já dissemos. Para além
das recepções oficiais em que a sua presença era uma constante, o navio
estava sempre a ser “invadido” por um número de emigrantes elevadíssimo,
que nos procuravam, não só os cadetes, mas também todos os elementos da
guarnição do navio e connosco conversavam. Para além do gosto de
ouvirem falar a sua língua natal, tinham a enorme preocupação de mostrar
que se encontravam bem integrados na sociedade local, onde eram
respeitados e que possuíam bens, fruto do seu trabalho, o que constituía um
imenso orgulho como era natural e nesse sentido propunham que os
acompanhássemos para ver as suas casas e propriedades. Em Honolulu, a
certa altura fomos convidados a visitar o Hospital Principal da cidade, tudo
porque o Director era um luso descendente!
Depois do Haway nova grande tirada, a maior da viagem, para o
Japão, em que atravessávamos a linha de mudança de data, devidamente
comemorada com uma pequena festa.
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Os dias que antecederam a chegada ao Japão foram talvez aqueles
que mereceram uma maior reflexão. Estávamos perante uma nova
civilização, onde os costumes diferiam bastante dos nossos. Efectivamente,
o pouco espaço de tempo que tivemos em Lisboa para preparação da
viagem, aliada à nossa pouca idade, não nos permitiu fazer praticamente
nada, nem arranjar um dos livros de Wenceslau de Morais sobre a história
do Japão.
Assim, numa manhã chuvosa, chegámos à baía de Tóquio, onde um
navio da Marinha de Guerra Japonesa executou as salvas da Ordenança, a
que respondeu prontamente o “Afonso de Albuquerque”.
Atracámos em Yokoama, cidade ligada a Tóquio, recebendo os
cumprimentos das autoridades locais e da interessantíssima Miss Yokoama,
trajando a rigor.
Entre visitas oficiais e passeios, não posso esquecer a recepção
oferecida pela Marinha Japonesa, num parque lindíssimo no Centro de
Tóquio, em que fomos recebidos pelos almirantes acompanhados das
esposas, estas envergando os seus riquíssimos e lindíssimos Kimonos. No
recinto, um relvado de grandes dimensões, num canto, um pouco afastado,
actuava a Banda da Marinha. Depois das apresentações e de um período de
conversa, os presentes dirigiram-se em cortejo para um alpendre, no meio
do relvado, onde nos esperava uma panóplia de iguarias que íamos
provando. Porém, a maior parte dos produtos eram crus, designadamente os
mariscos e os peixes e aqui só se safaram os cadetes originários do sul e das
ilhas. Os outros ficaram a dieta!
A recepção oficial no Ginza Tóquio Hotel, foi também um
acontecimento marcante, assim como a visita à Escola Naval e o encontro
com os cadetes japoneses, num jardim oriental, onde almoçámos.
Uma das coisas que constatámos entre muitas, foi o grande número
de pessoas nas ruas de Tóquio e entre estas, as crianças das escolas, todas
uniformizadas, com boné e máquina fotográfica, lá seguiam em enormes
filas acompanhadas pelos seus professores.
Mas Tóquio, em 1960, tinha já muitos sinais de ocidentalização, que
foram aparecendo após a Guerra, e que era patente na forma como era
apresentada a publicidade e no vestir de algumas mulheres e também no
comércio, onde produtos ocidentais eram mostrados com frequência.
Visitámos templos religiosos, estivemos junto do grande Buda de
KamaKura, uma escultura com 12 metros de altura e assistimos a um
espectáculo no Kokusai Theatre de Tóquio onde cenas dramáticas de teatro
japonês alternavam com números de “musicall” nitidamente ocidentais.
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A viagem de circum-navegação do curso D. Lourenço de Almeida
Saímos do Japão rumo a Hong-Kong pelo estreito da Formosa. A
visita a este território, grande centro comercial e também cinematográfico,
mostrou-nos um lugar cosmopolita com imensa população, com um centro
da cidade onde predominavam os grandes bancos e grandes empresas.
Daí a Macau foi um pequeno passeio entre ilhas. Em Macau foi pena
termos de ficar no Porto Exterior a 4 milhas de terra. A ligação era feita por
um rebocador que ia lançando fagulhas, que com o tempo chuvoso que
apanhámos quase sempre, nos sujava as fardas permanentemente.
Estivemos pouco tempo em Macau, mesmo assim deu para visitar os
pontos mais importantes da cidade, desde o Farol da Guia até à Porta do
Cerco, às ruínas da Igreja de S. Paulo e à gruta de Camões e às instalações
da Marinha. Circulámos no Centro e tivemos uma recepção no Leal Senado
e uma pequena festa no Clube Militar e ainda tivemos tempo de ir uma
noite ao velho Casino Central, experimentar aquele ambiente de fumos e
odores exóticos. Macau em 1960 tinha casas relativamente baixas e não
havia nenhuma construção moderna, como as que vieram a ser construídas
no último quartel do século XX.
Ficámos um pouco surpreendidos com a reduzida percentagem da
população que falava português. Tirando o pessoal dos correios, da polícia,
e das funções oficiais, poucos mais falavam a nossa língua.
Navegámos a seguir para Singapura, a Cidade Estado que dava os
primeiros passos para a industrialização que viria a ter. Aqui, visitámos
missões católicas dirigidas por missionários portugueses e houve uma
excursão a Malaca, onde foi muito agradável contactar a colónia piscatória
que se orgulha da sua ascendência portuguesa e se esforça por não perder,
dentro do possível, o seu linguajar português.
Estávamos no ponto mais sul da nossa viagem e tivemos a sensação,
porventura errada, de que tínhamos dobrado a metade da viagem. Agora era
sempre a subir.
Também na organização de bordo os cadetes começaram a ter uma
participação mais activa, tanto nos quartos, como nos serviços.
Aproximava-nos de Goa e esse facto pesava, mesmo
inconscientemente, sobre nós. Na véspera da chegada a Mormugão, mais
precisamente em 15 de Junho, o 1º Ten Oliveira Lemos, nosso instrutor e
que já tinha feito uma comissão na Índia, fez uma conferência para os
cadetes e para toda a guarnição sobre Goa, destacando o seu significado
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histórico cultural, peça de grande qualidade, que nos fez reflectir imenso e
nos preparou para o que íamos ver nos dias seguintes.
Na chegada a Mormugão foi com surpresa que vimos mais de vinte
navios fundeados à espera de cais para carregar minério de ferro.
Fundeados também estavam os avisos “Bartolomeu Dias” e “João de
Lisboa”.
Como já era do conhecimento de todos, o Aviso “Afonso de
Albuquerque” ficava na Índia e nós passávamos para o Aviso “Bartolomeu
Dias” que regressava a Lisboa. O que não adivinhávamos era que o
“Afonso de Albuquerque” não voltaria a Lisboa, pois em Dezembro de
1961, dando heróico combate à Esquadra Indiana, acabou por se perder
encalhado perto de D. Paula.
Mas em 1960 a nossa estada em Goa foi aproveitada para visitar
Pangim, Velha Goa e ainda as cidades Mapuçá e Bardez. Destas, ressaltou
pela sua importância histórico cultural, Velha Goa. Aqui tivemos o
privilégio de ser guiados pelo Dr. Panduronga Sinai Pissurlencar, Director
dos Arquivos de Goa, que nos mostrou minuciosamente a Sé Catedral, o
Arco dos Vice-Reis, a Igreja do Bom Jesus com incidência no túmulo de S.
Francisco de Xavier, alguns templos Hindus e outras preciosidades daquela
histórica cidade.
Em Pangim, fomos ao Palácio do Cabo, ao Hotel Mandovi e
circulámos pelas ruas acompanhados pelo Comandante Abel de Oliveira,
Capitão dos Portos do Estado da Índia, que enquanto nos explicava
pormenorizadamente o que íamos vendo, cruzava-se com grupos de goeses
e com eles falava em concanim, o que nos deixou verdadeiramente
deslumbrados.
Não podemos esquecer ainda a visita ao Forte da Aguada, onde
estava uma unidade militar e um almoço oferecido pela Câmara de Mapuçá
que incluía só... 5 caris, cada qual o mais picante!
A transferência para o “Bartolomeu Dias” ocupou-nos, praticamente,
um dia inteiro, com as bagagens a ser transportadas por uma barcaça, não
esquecendo que éramos 48 cadetes com bagagens, mais sacos, macas e
envelopes com uniformes etc, etc.
Ficámos com pena do “Afonso de Albuquerque”, nomeadamente dos
seus oficiais, a que já estávamos habituados, mas a vida não pára e
rapidamente nos integrámos no “Bartolomeu Dias”, dois navios
praticamente iguais.
Ainda em Goa, fomos ao aeroporto e embarcámos no Skymaster dos
TAIP para irmos a Damão e Diu. No entanto o tempo não permitiu, já tinha
começado a Monção e naquele dia as condições atmosféricas eram más.
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A viagem de circum-navegação do curso D. Lourenço de Almeida
Em face disto o “Bartolomeu Dias” saiu para Norte, com a intenção
de visitarmos aqueles territórios por mar.
No trajecto, passámos em Chaul, local onde em 1508 morreu em
combate com os mamelucos, D. Lourenço de Almeida, o patrono do nosso
curso. Na ocasião, o cadete chefe do curso, leu um texto evocativo do
acontecimento, que marcou a nossa homenagem ao insigne filho de D.
Francisco de Almeida, que exercia o lugar de capitão-mor-do-mar.
O Índico, naquelas bandas não estava bom e assim passámos por
Damão e fundeámos durante 24 horas frente a Diu, sem hipótese de
desembarcar. As autoridades de Diu, numa atitude simpática iluminaram as
vetustas muralhas durante a noite, o que fez levar o nosso pensamento para
D. João de Castro e para todos os heróis que ali defenderam o nome de
Portugal.
Com forte calema, devido à Monção, cruzámos o Índico até Adem,
melhorando o mar só na proximidade deste porto.
Naquele tempo, Adem era um protectorado inglês. Atracámos na
Base inglesa. A cidade não era muito grande, com casas tipicamente árabes.
No “briefing” que os oficiais ingleses nos fizeram à chegada,
afirmaram que a situação era perigosa e só se responsabilizavam pelo que
acontecia dentro da Base. Aconselharam, que se quiséssemos sair para o
exterior, que devíamos fazê-lo em grupos de 4 e de táxi. Por todo o lado
havia cartazes com o retrato de Nasser e propaganda da Coca-Cola.
Para andar de camelo e fazer compras (souvenirs) era preciso ir às
montanhas que ficavam por trás da cidade. Escusado será dizer que foi aí
que fomos. Depois da fotografia oficial de camelo, a maior parte dos
cadetes foi até aquelas “cantinas” no intuito de adquirir alguns “souvenirs”
com o pouco dinheiro que ainda restava. Julgo que foi aí que comprámos
um transístor para oferecer ao João Rocha, o nosso treinador de remo na
Escola Naval.
Eu, como não queria comprar nada e já tinha tirado a foto no camelo,
fiquei cá fora. Aconteceu então um caso que vou contar. Aproximou-se de
mim um beduíno, rapaz de vinte e tal anos, de pé descalço, falando uma
língua mesclada, de que se entendia alguma coisa e começou por avançar
com palavras tentando identificar a minha nacionalidade e então ia dizendo
Marrocos, Itália, Grécia, Turquia, etc, etc, ao que eu ia dizendo não com a
cabeça. Mas atendendo ao aviso dos ingleses, achei por bem avançar com a
minha nacionalidade, antes que a conversa tomasse outro caminho e disse
Portugal. Nesta altura o rapaz abriu muito os olhos e repetiu Portugal e
depois-Portugal, Albuquerque e fazendo um gesto da mão sobre o pescoço,
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como uma espada, desatou a correr, não parando mais ... Estávamos em
1960, 450 anos depois do grande Governador da Índia ter andado por ali!...
Depois, bom depois, foi navegar no Mar Vermelho a caminho de
Suez à entrada do Canal e percorrer as suas oitenta milhas para atingirmos
Port Said. Aqui já não vimos a estátua do seu construtor, Ferdinand de
Lesseps, pois esta tinha sido destruída e lançada para o fundo do mar em
Dezembro de 1956.
Alguns cadetes foram em excursão ao Cairo, que incluiu uma
passagem pelo Museu, uma ida a um grande Bazar no meio de ruelas
estreitas e mal cheirosas e a deslocação às Pirâmides de Gizéh.
A entrada no Mediterrâneo trouxe-nos à mente a ideia de que
Portugal era já ali. O Mar calmo deu para reflectir sobre toda a viagem e a
imensidade das coisas que vimos, as dificuldades ultrapassadas, a
confirmação de situações que tínhamos ouvido falar mas que depois de
observadas tinham outro peso e acima de tudo, sentir como os portugueses
estão espalhados por todo o mundo e dos testemunhos que os nossos
antepassados deixaram, perpetuando o nome de Portugal para sempre.
Na nossa frente tínhamos agora a ilha de Malta. Fundeámos em La
Valleta, junto à fortaleza de Sto Angelo, que visitámos, assim como os
Palácios dos Grão-Mestres da Ordem de Malta. Até deu para ver uma ópera
numa esplanada ao ar livre.
Chegámos a Sagres a 19 de Julho, 120 dias depois de termos largado
de Lisboa, tendo percorrido 25.000 milhas.
A alegria do regresso, o encontro com os cadetes dos outros cursos
da Escola Naval e a participação nas cerimónias de homenagem ao Infante
D. Henrique, presididas pelo Ministro da Marinha com a presença do
Comandante e Professores da Escola Naval e ainda a entrega a cada cadete
de um exemplar dos Lusíadas, numa edição muito cuidada da Marinha,
ficarão para sempre na nossa memória.
Cinquenta anos passados, pode-se afirmar que a Volta ao Mundo,
constituiu para os cadetes do Curso D. Lourenço de Almeida, uma enorme
referência e o elemento aglutinador da união que tem caracterizado o nosso
curso, sintetizado na fotografia do Aviso “Afonso de Albuquerque” à
entrada de S. Diego com as assinaturas dos 48 cadetes do LA.
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