Classificadores e Estrutura Argumental na Língua de
Sinais Brasileira
Brenda Veloso
Instituto de Estudos da Linguagem – Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp)/ Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp)
[email protected]
Abstract. This paper aims at analyzing the argumental structure of some
predicates, which have classifiers morphemes in the Brazilian Sign Language.
Based on syntactic tests, I intend to verify if there are any alternations in the
argumental structure of that predicates. These proceedings will help me to
better characterize the system of classifiers in that language.
Keywords. syntax, classifiers, argumental structure.
Resumo. Este artigo tem como objetivo principal investigar a estrutura
argumental de predicados que envolvem morfemas classificadores na Língua
de Sinais Brasileira. Com base em testes sintáticos, pretende-se averiguar se
existem alternâncias de estrutura argumental e, assim, caracterizar o sistema
de classificadores dessa língua.
Palavras-chave. sintaxe, classificadores, estrutura argumental.
1. Introdução
Os classificadores na Língua de Sinais Brasileira (daqui em diante LSB), embora
ainda não tenham sido objeto de um estudo sistemático, têm sido descritos como
morfemas (configurações de mãos) que se ligam a verbos para formar construções
classificadorasi. O objetivo principal desta pesquisa é analisar as construções
classificadoras e sua estrutura argumental, numa tentativa de sistematizar os tipos de
classificadores que fazem parte do sistema gramatical da LSB. Para se atingir essa meta,
serão utilizados testes sintáticos utilizados por Benedicto e Brentari (2003) para análise
da Língua Americana de Sinais (daqui em diante ASL), o que possibilitará, a médio
prazo, o desenvolvimento de uma análise mais adequada para os classificadores da LSB.
Brito (1989, 1995) e Felipe (1998) propõem que a LSB apresenta verbos
classificadores que podem ser usados para categorizar um argumento na posição de
sujeito ou objeto, com relação às suas propriedades inerentes, como forma e
animacidade, ou com relação à sua orientação ou posição no espaço. Como ainda não
existe uma análise sistemática da estrutura argumental de predicados que envolvem
classificadores na LSB, serão utilizados estudos recentes sobre a ASL como ponto de
partida.
2. Aparato Teórico
Para Benedicto e Brentari (2003), os classificadores na ASL, estruturalmente,
são morfemas que aparecem em formas morfologicamente complexas, formadas por um
classificador mais uma raiz verbal. O classificador é representado por uma configuração
de mão e a raiz verbal, por sua vez, é constituída pelo movimento (realizado pela mão)
que forma o sinal.
Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 521-526, 2005. [ 521 / 526 ]
Engberg-Pedersen (1993) sugerem, para a Língua de Sinais Dinamarquesa, uma
tipologia dos movimentos e das configurações de mãos envolvidos em construções com
classificadores, ampliada por Benedicto e Brentari para análise dos classificadores na
ASL, que será utilizada aqui. Confira as tabelas abaixo.
Tabela 1. Tipos de Movimento da Mão
1. Móvel/ ativo – o movimento da mão representa o movimento de um objeto para (ou
de) um ponto específico. Ex.: MOVE ‘mover-se’ go ‘ir’
2. Modo/ imitativo – dividido em dois tipos de movimento:
a. o movimento da mão descreve uma ação (estilizada) Ex.: SAW_WOOD ‘serrar madeira’
b. o movimento da mão representa um modo ou trajetória (estilizados) Ex.:
‘andar em círculos’
CIRCLE
3. Posição/ contato – produzido por um movimento curto da mão para baixo. Indica o
lugar específico onde um objeto está localizado. Ex.: BE_LOCATED ‘estar em, existir’
4. Extensão/ estativo-descritivo – o movimento da mão descreve os limites ou a
extensão de um objeto ou a sua localização no espaço. Ex.: FLAT_SURFACE ‘ser/ existir
um objeto de superfície plana’
Tabela 2. Tipos de Configuração de Mão
1. Ser/ objeto completo (OC) – a forma da mão se refere ao ser/ objeto como um todo: a.
classificadores semânticos (classes de objetos), como 3:vehicle, utilizado para veículos;
b. classificadores instrumentais descritivos (referem-se a um instrumento como um
todo), tais como 1:long_narrow_object, que pode ser usado para ‘escova de dentes’, por
exemplo; c. classificadores descritivos (se referem a objetos inteiros, definidos
principalmente por sua forma, como em B:2D_flat_object, utilizado, por exemplo, para
‘cama’ e ‘papel’.
2. Handling (HD) – a configuração de mão se refere ao modo que objetos ou
instrumentos são segurados ou manipuladosii. Ex.: C:grabbable_object, usado para
‘livro’.
3. Extensão/ superfície (E/S) – a forma da mão se refere a propriedades físicas do
objeto, não ao objeto inteiro. Ex.: L-L:2d_square_object, que pode ser usado para
‘quadro’.
4. Membro do corpo (MC) – a configuração de mão se refere a um membro do corpoiii.
Ex.: 1-1:legs, usado para indicar pernas tanto de seres humanos quanto de animais.
Benedicto e Brentari (2003), ao analisar as propriedades morfossintáticas dos
classificadores na ASL, defendem a tese de que os morfemas classificadores é que são
responsáveis por desencadear as alternâncias nas estruturas argumentais dos verbos.
Para essas autoras, classificadores do tipo MC formam predicados inergativos;
classificadores do tipo OC formam predicados inacusativos; classificadores do tipo HD
formam predicados transitivos; e os predicados com classificadores exibem dois tipos
de alternância, de acordo com o classificador que é afixado ao verbo: alternância
inergativo-inacusativa e alternância transitivo-inacusativa.
Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 521-526, 2005. [ 522 / 526 ]
3. Análise Preliminar
Classificadores na LSB.
da
Estrutura
Argumental
de
Predicados
Como a LSB não apresenta classificadores do tipo MC, é de se esperar que não
haja construções classificadoras do tipo inergativas com classificadores, seguindo a tese
de Benedicto e Brentari de que os verbos selecionam um argumento, mas os
classificadores, sendo um núcleo funcional, é que determinam o status de interno ou
externo aos argumentos. Sentenças da LSB com classificadores do tipo membro/ parte
do corpo correspondentes às orações da ASL apresentadas em (1) são inaceitáveis (cf.,
por exemplo, (2)), enquanto as mesmas sentenças com classificadores ser/ objeto
completo são aceitáveis.
(1) ASL (Benedicto e Brentari 2003)
a. PEOPLE S-S+COME_UP_BESIDE_THE_OTHER
people head-head(MC)+come_up_beside
‘One person came to stand beside the other (facing forwards)’
b. PEOPLE 1-1+ COME_UP_BESIDE_THE_OTHER
people upright_being-u_b(OC)+come_up_beside
‘One person came to stand beside the other’
(2) LSB
a. *PESSOAS S-S+FICAR_AO_LADO
people head-head(MC)+come_up_beside
‘One person came to stand beside the other (facing forwards)’
b. PESSOAS 1-1+FICAR_AO_LADO
people
upright_being-u_b(OC)+come_up_beside
‘One person came to stand beside the other’
Segundo as autoras, o movimento do tipo Posição/ contato, presente no verbo
BE_LOCATED ‘estar em, existir’ é curto, para baixo, com uma configuração de mão que
representa o objeto (pode ser um classificador do tipo ser/ objeto completo ou do tipo
extensão/ superfície). Na LSB, existe um sinal que pode ser comparado a BE-LOCATED,
em que a mão também se movimenta num espaço curto, porém, nessa língua não pode
ser combinada com classificadores, gerando uma sentença inaceitável. Veja os
exemplos abaixoiv.
(3) ASL (Benedicto e Brentari 2003)
BICYCLE
3+BE_LOCATED
bicycle vehicle(OC)+be_located
‘A bicycle is standing (over there)’
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(4) LSB
a. *BICICLETA B+TER_EXISTÊNCIA_ALI
b. BICICLETA TER_EXISTÊNCIA_ALI
bicycle vehicle(OC)+be_located
bicycle be_located
‘A bicycle is standing (over there)’
‘A bicycle is standing over there’
Em seguida, serão realizados testes para verificar se os predicados da LSB com
classificadores OC estão ligados a argumentos internos e externos. Em seguida,
observaremos se a alternância transitivo-inacusativa é possível entre os predicados com
classificadores HD/ OC para, finalmente, podermos estabelecer alguns aspectos
morfossintáticos dos classificadores na LSB.
4. Testes Sintáticos para Argumentos Internos e Externos
Benedicto e Brentari (2003) utilizam dois tipos de testes cujo alvo são os
argumentos internos, um com o morfema distributivo (aqui representado pela glosa
[dist]) e outro com a negação NOTHING. Uma sentença com [dist] ou NOTHING deve ser
aceitável se for inacusativa, inaceitável se for inergativa e, no caso de um predicado
transitivo, esses elementos devem quantificar apenas o argumento interno (objeto
direto).
Da mesma forma que o seu correspondente na ASL, o morfema distributivo da
LSB é constituído por repetições múltiplas e reduzidas do movimento (raiz verbal) que
são produzidas numa trajetória em forma de arco à frente do sinalizador. O morfema
cria, então, um verbo com um único evento e com um objeto do tipo ‘cada x’, conforme
os exemplos abaixov. No diz respeito à negação NADA, o sinal foi escolhido por ser o
que mais se assemelha a NOTHING, que só aparece associado a argumentos internos,
embora possua outra leitura, de negação enfática do verbo (irrelevante aqui).
Os primeiros testes mostraram que em construções da LSB sem classificadores,
o morfema distributivo e a negação NADA combinados com predicados inacusativos
resultam numa sentença aceitável, com predicados inergativos produz uma sentença
inaceitável e com predicados transitivas quantifica o argumento interno. Tendo
estabelecido esse padrão, passo agora a analisar as sentenças com classificadores.
4.1 Classificadores Ser/ Objeto Completo
(5) a. PESSOAS 1-1+FICAR_LADO_A_LADO
people
upright_being-u_b+come_up_beside
‘One person came to stand beside the other’
b. PESSOAS 1-1+FICAR_LADO_A_LADO+[dist]
people
upright_being-u_b+come_up_beside
‘Each person came up beside the one before him/ her’
d. LIVRO B+CAIR
book 2D_flat_obj(OC)+fall
‘The (standing) book fell down on its side’
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f. LIVRO B+CAIR+[dist]
book 2D_flat_obj(OC)+fall+[dist]
‘Each of the books fell down (on its side)’
e. LIVRO B+CAIR
NADA
book 2D_flat_obj(OC)+fall neg-NOTHING
‘None of the books fell down (on its side)’
4.2 Classificadores Handling
(6) a. IX
LIVRO
C+MOVER
S/he book obj_grabHD+move_vertical-to-horizontal
‘S/he took the (standing) book and layed it down on its side’
b. [Ø] LIVRO C+MOVER+[dist]
pro book obj_grabHD+move_vert-hor+[dist]
‘S/he put down each book (on its side)’
# ‘Each of them put down the book (on its side)’
c. [Ø] LIVRO C+MOVER
NADA
pro book obj_grabHD+move_vert-hor neg-NOTHING
‘S/he didn’t put any book down (on its side)’
# ‘Nobody put the book down (on its side)’
Conforme pode ser visto nos exemplos acima, as sentenças que apresentam um
predicado com classificador ser/ objeto completo têm o seu argumento modificado pelo
quantificador distributivo, comprovando o seu status de argumento interno e conferindo
aos predicados a classificação como inacusativos. Para as sentenças que apresentam
classificadores do tipo handling, a interpretação com o argumento interno sendo
modificado é aceitável, mas não com a modificação do argumento externo.
5. Resultados alcançados e problemas encontrados
A análise realizada aqui baseou-se em testes sintáticos com a finalidade de
averiguar a existência ou não de alternâncias em predicados com classificadores na
LSB. Os resultados encontrados mostraram que: inexistem classificadores do tipo parte
do corpo na LSB; os classificadores do tipo ser/ objeto completo aparecem ligados a
predicados que contêm argumentos internos (inacusativos); e os classificadores do tipo
handling se referem ao argumento interno das construções classificadoras de que fazem
parte.
6. Referências Bibliográficas
BENEDICTO E. & BRENTARI D. Where did all the arguments go? Argumentchanging properties of classifiers in American Sign Language. Ms. West Lafayette:
Purdue University. 2003.
BRITO, L. Classificadores em LSCB. Anais do IV ENANPOLL. Recife, p. 640-654,
1989.
Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 521-526, 2005. [ 525 / 526 ]
_____. Por uma gramática da língua de sinais. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro/
UFRJ. 1995.
ENGBERG-PEDERSEN, E. Space in Danish Sign Language. Hamburg: SignumVerlag. 1993.
FELIPE, T. A relação sintático-semântica dos verbos e seus argumentos na LIBRAS.
Tese (Doutorado em Lingüística). UFRJ, Rio de Janeiro. 1998. 298f.
KLIMA, E. & BELLUGI, U. The signs of language. Cambridge and London, England
Harvard University Press. 1979.
i
De acordo com Klima e Bellugi (1979), as línguas de sinais, assim como línguas faladas, apresentam
morfemas, os quais são constituídos, por sua vez, de fonemas. A diferença entre as duas modalidades é
que, nas primeiras, os sinais são estruturados a partir de parâmetros visuais. Os principais parâmetros são:
configuração de mão (as diversas formas que as mãos tomam na realização dos sinais), ponto de
articulação (espaço em frente ao corpo ou uma região do próprio corpo, onde os sinais são articulados),
movimento (todos os movimentos que compõem o sinal, como o movimento dos dedos, do pulso, no
espaço etc.). Além desses parâmetros, há também os marcadores não-manuais (marcações gramaticais
expressas pela face ou pelo tronco) e parâmetros secundários (como orientação das mãos, disposição das
mãos, e região de contato da mão). Assumirei, neste trabalho, a idéia de que os classificadores nas línguas
de sinais são morfemas ou configurações de mãos, apesar de não estar claro qual o estatuto e as
propriedades reais de tais estruturas. Apenas uma futura descrição sistemática poderá levar a uma
definição satisfatória desses classificadores.
ii
Benedicto e Brentari (2003) ampliaram a classificação de Engberg-Pedersen incluindo qualquer parte do
corpo que pode manipular objetos.
iii
Aqui também Benedicto e Brentari estenderam o sistema de Engberg-Pedersen, para incluir não só os
membros, mas outras partes do corpo.
iv
Notação e glosas
Os sinais da LSB foram transcritos com a utilização de palavras em português que mais se
aproximavam do sentido do sinal, em caixa alta. Para sinais que precisaram de mais de uma palavra do
português para obtenção do significado, foi usado o travessão para unir as palavras (ex.:
ESCOVAR_DENTE). Os classificadores foram transcritos com o nome mais comum da configuração de mão
(geralmente letra ou número do alfabeto manual). Quando a configuração de mão de ambas as mãos for
relevante, será especificado através da duplicação da configuração, separada por hífen.
+
HD
E/S
OC
MC
head
upright_being
vehicle
2D_flat_object
obj_grab
sg
pl
1, 2, 3
[dist]
Neg-NOTHING
v
Separa dois morfemas co-articulados em um sinal
Classificador handling
Classificador extensão/ superfície
Classificador ser/ objeto completo
Classificador membro/ parte do corpo
Tipo de classificador para parte do corpo
Tipo de classificador que respresenta um ser completo
Tipo de classificador que representa um objeto completo
Tipo de clasificador que representa objeto completo, plano com 2 dimensões
Tipo de classificador handling, representa objeto que se pode segurar
Singular
Plural
Primeira, segunda, terceira pessoa
Morfema distributivo
Sinal negativo articulado com as duas mãos configuradas em B e movimento circular de
uma sobre a outra
O símbolo ‘#’ assinala que a interpretação semântica de uma sentença é inaceitável.
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