Revista VITAS – Visões Transdisciplinares sobre Ambiente e Sociedade – www.uff.br/revistavitas Nº 1, setembro de 2011 APROPRIAÇÃO E REGULAÇÃO DA ÁGUA DOCE NO BRASIL PRÉ-INDUSTRIAL Manuel Domingos Neto1 Maria Elizabeth Duarte Silvestre2 RESUMO Este artigo discute características da regulação aqui instituída com a chegada do colonizador estendendo-se até o final da Primeira República. Ao referir-se a um período em que a escassez não estava pautada – pelo menos não como hoje – este texto soa extemporâneo. Mas consideramos que a análise das transformações pelas quais passou a regulação pertinente à água doce é indispensável para a compreensão da atual política hídrica. Este trabalho é um primeiro produto de um esforço desenvolvido pelos autores para estabelecer as relações entre duas temáticas estratégicas: a defesa do ambiente e a defesa militar. Palavras-chave: Água, Regulação, Ambiente, Defesa Ambiental, Defesa militar, Brasil, estudos estratégicos ABSTRACT This article focuses on water regulation in Brazil from the colonial period to the end of its First Republic. Although at that time water shortage was not yet an issue, he study is important to a better understanding of the present water policies. This article is part of a larger study about the relationship between two strategical issues: environment defense and military defense . Keywords: Water, Water Regulation, Environment, Environment Defense, Limitary Defense, Brazil, Strategical studies Na década passada ganhou espaço na cena internacional o debate acerca das perspectivas de escassez da água doce.3 No Brasil, essa discussão passou a ser colocada, sobretudo, no bojo da implementação da lei que instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos e criou o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (Lei 9433/97). Conduzida em grande parte pelo Estado, a abordagem da problemática hídrica tende a ser normativa, até mesmo nos discursos acadêmicos, mais voltados para consolidar os princípios expressos na referida lei, veicular suas verdades e reforçar mitos do que)gua doce”. 1 Professor do Instituto de Estudos Estratégicos – UFF Professora do Departamento de Ciências Econômicas - UFPI 3 Água doce é aquela que possui teor de Sólidos Totais Dissolvidos (STD) inferior a 1.000 mg/L (REBOUÇAS, BRAGA e TUNDISI, 1999, p. V). 2 Revista VITAS – Visões Transdisciplinares sobre Ambiente e Sociedade – www.uff.br/revistavitas Nº 1, setembro de 2011 A reforma hídrica em curso é apresentada como alternativa racional de uso da água de sorte a garantir a todos – hoje e amanhã – acesso a esse elemento da natureza a um só tempo escasso, essencial e insubstituível e permitir o chamado desenvolvimento sustentável. O conteúdo conflitivo da apropriação, uso e controle da água, desaparece; reforça-se a ideia de que a escassez – ou sua possibilidade – pode ser evitada via legislação e gerenciamento adequados; sobretudo, reafirma-se a perspectiva de que não existe racionalidade fora das atuais regras estabelecidas pelo capital. Muitos são levados a crer que a preocupação com a conservação da água é coisa recente e que no Brasil não havia normas para a apropriação e o uso da água, donde a presente ameaça. Na melhor das hipóteses, lembra-se o Código de Águas de 1934, afirma-se seu caráter “avançado” para a época em que foi editado e sua incapacidade de responder às demandas do século XXI. Essencial à vida e à produção, insubstituível e quantitativamente limitada, a água doce é a um só tempo objeto de partilha e solidariedade, pivô de conflitos, meio de fazer guerras e de submeter inimigos. Por toda parte sua presença condicionou a ocupação de territórios, possibilitou o surgimento de sociedades sedentárias, o desenvolvimento da agricultura e o aparecimento de povoados e vilas. Em decorrência de seu caráter estratégico, a apropriação da água doce encontra-se estreitamente vinculada à produção e repartição da riqueza e é objeto de regulação – ainda que não necessariamente escrita – em toda e qualquer sociedade. No Brasil jamais foi diferente. As tensões provocadas pela apropriação da água provêm de tempos imemoriais. Os homens sempre guerrearam por recursos naturais. Hoje, os maiores conflitos são provocados pelo controle das reservas de petróleo. A descoberta das reservas do pré-sal tem sido arguida como uma justificativa indiscutível para investimentos no sistema de defesa militar. Mas, a julgar pela frenética disputa pelo domínio de recursos naturais, os recursos hídricos tendem a se configurar como objeto de disputa cada vez mais relevante. Neste caso, antes de se pensar em defesa militar, caberia refletir sobre como foi construída a escassez de água e como o Estado buscou regular seu uso. As relações entre homens e natureza e, portanto, as formas de apropriação e uso da água devem ser tratadas como relações sociais e de poder e as normas que as regulam, fruto de pressões que os diversos grupos sociais exercem sobre o Estado, como resultado e condição da reprodução destas relações. Nossa abordagem segue na contramão da abundante literatura sobre recursos hídricos produzida recentemente. Revista VITAS – Visões Transdisciplinares sobre Ambiente e Sociedade – www.uff.br/revistavitas Nº 1, setembro de 2011 Salvo raras exceções, a água vem sendo tratada como tema atinente a biólogos, químicos, engenheiros, sanitaristas, geólogos e outros profissionais das ditas áreas técnicas. Ora, mais do que nunca a regulação do uso da água é assunto eminentemente político, como de resto tudo o que diz respeito aos recursos naturais. A compreensão aprofunda do problema hídrico demanda forçosamente uma abordagem multifacetária. A água é essencial à produção e, numa sociedade mercantil, é impossível se compreender a lógica subjacente às normas que regulam sua apropriação sem ter em conta os interesses econômicos em disputa. Já se tornou lugar comum afirmar que este é um país rico em água doce. Estimativas compiladas por P. H. Gleick et. al. (2009, p. 215-220) para o Pacific Institute indicam o Brasil como o país que possui o maior volume de água doce renovável do mundo. Aldo Rebouças (2001, p. 337) informa que as reservas subterrâneas são calculadas em 112 mil km³ com recarga aproximada de 3,4 mil km³/ano e que à ocasião, o uso de 25,0% da recarga disponibilizaria 5 mil m³/hab/ano, volume bem superior ao mínimo de 2 mil m³/hab/ano que segundo a Organização das Nações Unidas (ONU) são necessários para a manutenção da produção. O Brasil é um dos países mais ricos em água doce. Pero Vaz de Caminha captou o significado dessa riqueza. As águas eram “muitas, infindas”, relatava, antes de apontar para as condições quanto a atividade que por séculos caracterizaria a América Portuguesa, a agropecuária: “[a terra] em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo por bem das águas que tem”. Cem anos depois, Brandônio, personagem de “Diálogos das grandezas do Brasil”, dizia: “A umidade de que gozam todas as terras do Brasil a faz ser tão frutífera no produzir, que infinidade de estacas de diversos paus metidos na terra cobram raízes, e em breve tempo, chegam a dar frutos [...] (BRANDÃO, 1997, p. 3). Segundo Gilberto Freyre (2002) as “muitas águas” do Brasil serviram ao expansionismo e à mobilidade simbolizados pelos bandeirantes e à fixação e estabilidade representadas pela lavoura. No seu entender os grandes rios davam “[...] grandeza à terra [...], mas grandeza sem possibilidades econômicas para a técnica e o conhecimento da época”. Ao transbordar destruíam plantações e moradias, dizimavam rebanhos ou deterioravam o pasto. Por essa razão foram “colaboradores incertos [...] do homem agrícola na formação econômica e social do nosso país”. Contudo, foram eles os rios “do bandeirante e do missionário, que os subiam vencendo dificuldades de quedas Revista VITAS – Visões Transdisciplinares sobre Ambiente e Sociedade – www.uff.br/revistavitas Nº 1, setembro de 2011 de água e de curso irregular à procura de ouro, escravos e de almas para Nosso Senhor Jesus Cristo”. Em contrapartida, para o autor de “Casa grande & senzala”, do século XVI ao século XIX toda riqueza rural brasileira esteve vinculada a rios como o Mamanguape, o Una, o Paranamirim, o Ipojuca e o Paraíba do Sul. Menores e mais regulares eles [...] docemente se prestaram a moer as canas, a alagar as várzeas, a enverdecer os canaviais, a transportar o açúcar, a madeira e mais tarde o café, a servir aos interesses e às necessidades de populações fixas, humanas e animais, instaladas às suas margens. [Foram estes] os rios do senhor de engenho, do fazendeiro, do escravo, do comércio de produtos da terra (FREYRE, 2002, p. 53). Tradicionalmente estratégicos no comércio e nas guerras os rios navegáveis foram fundamentais para a penetração, o conhecimento e a ocupação do “Novo Mundo”. Vale dizer: para a conquista do território, a exploração de suas riquezas e a afirmação do poder colonial. Seguindo-os em busca de ouro, prata, pedras preciosas ou homens para escravizar, os “paulistas” partiam de São Vicente rumo aos “sertões” (Norte e Sul) abrindo caminhos para povoamentos futuros. Por séculos os rios foram as principais vias de comunicação brasileira. Por eles viajava a madeira, cedo exportada para a Europa e deles dependia boa parte do comércio interno e externo aqui realizado. Na Amazônia, região na qual a navegação fluvial ainda é decisiva para o transporte de pessoas e mercadorias, conforme Berta Becker e Claudio Egler (2006) e Rodrigo Medeiros (2006), após a expulsão dos comerciantes estrangeiros (meados do século XVII) os rios foram cruciais para o controle do território e a expansão portuguesa além da linha demarcada em Tordesilhas. Na ausência de uma base econômica e populacional estável a Coroa estimulou o estabelecimento de missões religiosas nas margens dos rios e construiu fortes nas principais desembocaduras. A estratégia impediu o retorno dos estrangeiros – cujos navios foram proibidos de navegar nos rios amazônicos – e possibilitou incursões de reconhecimento e levantamento das riquezas regionais. Certo é que, independentemente de tamanho, trajeto e condições de navegabilidade os rios desempenharam relevante papel na formação territorial brasileira entendida, como observa Milton Santos (2008, p. 62), como o “conjunto formado pelos sistemas naturais existentes em dado país ou numa dada área e pelos acréscimos que os homens superimpuseram a esses sistemas naturais”. Portugal, desde o início da Revista VITAS – Visões Transdisciplinares sobre Ambiente e Sociedade – www.uff.br/revistavitas Nº 1, setembro de 2011 colonização, reforçou a tendência natural dos seres humanos de se estabelecerem próximos às fontes de água doce. O Regimento que instruiu Tomé de Souza na escolha do sítio em que seria fundada a cidade de Salvador (Bahia), parcialmente transcrito por Nireu Cavalcanti (2004), dizia que o mesmo deveria adequar-se à defesa, comportar um porto, ser sadio, possuir bons ares e abastança de água.4 Para este estudioso, tudo indica que tais recomendações eram comuns. Dependendo das circunstâncias preponderava um ou outro critério. Segurança e perspectivas de atividades altamente rendosas – como a exploração de pedras e metais preciosos – decisivos. No território que hoje constitui o Estado de Minas Gerais, no interior do Estado do Rio de Janeiro e Goiás inúmeras cidades têm sua origem direta ou indiretamente vinculada à extração do ouro e de pedras preciosas. Por outro lado, embora a primeira casa portuguesa na Baia de Guanabara tenha se localizado às margens de um rio, ao escolher o local em que a cidade do Rio de Janeiro foi erguida – o morro do Castelo – a defesa foi prioridade. Distante de qualquer fonte de água doce e difícil acesso à água subterrânea, a história da cidade, por aproximadamente 150 anos capital brasileira, desde sua origem é marcada por problemas no abastecimento de água potável. Na maior parte do território águas superficiais e chuvas regulares serviram à agricultura sem que fossem necessárias significativas obras hídricas. A existência de solos férteis e úmidos, rios e boa pluviosidade na Zona da Mata Nordestina e no Recôncavo Baiano foram decisivos no sucesso da produção açucareira colonial. A falta de água não obstaculizou o cultivo do cacau na Bahia, do mate no sul do país ou do café no vale do Rio Paraíba do Sul. Tampouco no chamado sertão nordestino – situado em parte no cristalino, com elevados índices de evapotranspiração e pluviosidade menor e mais irregular do que o restante do país – a falta de água impediu a multiplicação do gado vacum e cavalar. Como principal meio de transporte terrestre, força de tração, alimento e matéria auxiliar na indústria açucareira o gado criado à solta integrava-se à indústria açucareira, à mineração e ao comércio regional. Em parte significativa do semiárido a seca só se tornou sinônimo de calamidade social com a decadência da pecuária, o adensamento populacional e a expansão da agricultura de subsistência em fins do século XIX (DOMINGOS NETO, 2010; DOMINGOS NETO e BORGES, 4 Regimento e Foral: documentos do governo português que estabeleciam normas jurídicas e administrativas de estruturação do poder local e traçavam diretrizes para a escolha do local e onde uma cidade seria fundada (CAVALCANTI, 2004). Revista VITAS – Visões Transdisciplinares sobre Ambiente e Sociedade – www.uff.br/revistavitas Nº 1, setembro de 2011 1987). No Rio Grande do Sul, a visão de lavradores perdendo suas colheitas é fenômeno recente. Além de saciar a sede do homem e do gado, propiciar o cultivo de alimentos e constituir, por longo período, a principal via de transporte do Brasil, a água fornecia alimento e força motriz, servia a práticas religiosas, ao deleite da população e ao descanso e asseio dos viajantes. Areia e pedra necessárias às construções e argila para os mais variados fins eram retiradas dos rios, neles eram lavados utensílios e roupas, vertiam-se lixo e as águas servidas. As margens eram as preferidas para os cultivos de subsistência, porém, quando mantidas, facilitavam a caça de pequenos animais. Fazendas, vilas e cidades tendiam a surgir próximas às fontes de água como testemunham incontáveis ruas, bairros e cidades brasileiros cujos nomes remetem à água. Beira-Rio, Lava-Pés, Barro Branco, Águas Belas, Águas Claras, Paraíba do Sul, Três Rios, Piratininga, Piauí, Poti e Iguatemi são alguns exemplos. Como em grande parte do Planeta, no Brasil a apropriação da água associou-se à posse da terra e os direitos sobre o solo aos direitos sobre o subsolo e suas riquezas.5 Vale dizer: a posse da terra conferia direitos às águas superficiais e subterrâneas que nela se encontrassem. Contudo, por ser insubstituível e essencial à vida, possuir múltiplas utilizações (não raro conflitantes) e ser dotada de particularidades como o uso compartilhado, a água, desde a Antiguidade e nas mais diferentes civilizações sempre foi objeto de regulações especiais. A progressiva instituição da propriedade privada da terra levaria também à propriedade privada da água. Porém, dado o papel estratégico dos rios navegáveis, era costume na Europa que incluí-los no patrimônio Real e a Coroa portuguesa – tal como posteriormente o Estado nacional brasileiro – procurou manter controle sobre essas vias reservando para si a propriedade das mesmas. Conforme disposto no Livro II, título XV, § 7 das Ordenações Manuelinas6 e no Livro II, Título XXVI das Ordenações Filipinas em seu, § 8, assim como as estradas e as ruas públicas, os rios navegáveis e aqueles que 5 Os direitos que derivam da associação entre a posse da terra e da água hoje são conhecidos como direitos ribeirinhos. Em outra modalidade de direito, a doutrina da “apropriação prévia”, a água pertence ao primeiro usuário. Nascida nas áreas de mineração do oeste americano, onde a água precisava ser desviada de seu curso natural para acompanhar os veios do ouro, sua abrangência é geograficamente restrita. Atualmente, os defensores da transformação da água em uma mercadoria como qualquer outra a defendem como exemplo de racionalidade dos agentes frente à escassez de água doce. 6 As Ordenações do Reino consolidavam a ordem jurídica portuguesa e, complementadas Cartas Régias, Resoluções, Ordenações avulsas e Alvarás tinham vigência no Brasil. As Afonsinas tiveram vigência do descobrimento 1500 a 1514; as Manuelinas de 1514 a 1603 e as Filipinas, que remontam ao período da dominação espanhola, de 1603 a 1917, quando entrou em vigor o Código Civil (OLIVEIRA, 2002). Revista VITAS – Visões Transdisciplinares sobre Ambiente e Sociedade – www.uff.br/revistavitas Nº 1, setembro de 2011 os formam, sendo caudais e permanentes ainda que de uso comum, seriam propriedade Real. O uso dessas águas estaria sujeito a uma “doação” ou “concessão de uso Real”. Ademais, diferentemente do que faz crer o discurso hegemônico o uso da água no Brasil – fosse ela propriedade de particulares, da Coroa ou do Estado – jamais esteve livre de regulações. Essencial, insubstituível e dotada de peculiaridades como o uso compartilhado, embora abundante e sujeita as mesmas leis de propriedade que outros minerais, desde o início da colonização a água foi objeto de normas especiais. O controle sobre rios particulares e a intenção de proteger a água impedindo o desmatamento das matas ciliares é clara na carta de sesmaria dada a Francisco de Pina (16/02/1611) pela Câmara do Rio Janeiro em parte transcrita por Nireu Cavalcanti (2004, p. 35). Sugerindo o que hoje receberia a denominação de legislação de proteção ambiental, a Carta alertava que ao longo do rio Carioca deveria ser mantido o “mato virgem, o qual não derrubará, nem se cortará de maneira que esteja sempre em pé”, estando o fidalgo proibido de ali cultivar “[...] bananais e legumes e as mais coisas que se plantam”. Mostrando que desde então se procurava preservar os diversos usos da água e que era costume que os trechos dos rios à montante fossem reservados para usos mais exigentes em qualidade a Carta determinava que “ao servir-se do dito Rio com sua água para assim beber e lavar a roupa fará na parte e lugar para isso”. Contudo, o cumprimento da lei exigia contínua e severa vigilância e no citado rio essa só se fez presente após a inauguração de um aqueduto que levava água às dezesseis bicas de um chafariz no Largo de Santo Antônio (atual Largo da Carioca), núcleo central da cidade 7, em 1723. Porém, apenas entre a nascente e o ponto inicial da obra. No restante, “abandonado pela fiscalização pública [...] instalou-se um verdadeiro colar de lavanderias públicas, bebedouros de animais e reservatórios de lixo e esgoto” (CAVALCANTI, 2004, p. 35). Em 1797, alegando necessidade de proteger as florestas e os rios do Brasil, uma Carta Régia datada de 13 de março tornou patrimônio Real às “matas e arvoredos existentes à borda da costa ou de rios que desembocassem imediatamente no mar e de qualquer via fluvial capaz de permitir a passagem de jangadas transportadoras de madeiras”. As terras já doadas que se enquadravam nestas condições retornaram à Coroa 7 Até então a água no Rio de Janeiro era, basicamente, trazida por “aguadeiros” do distante rio e vendida a altos preços. Em fins do Império apenas as repartições públicas, as igrejas e umas poucas residências recebiam água domiciliar. Apenas em 1876, tem início as obras para levar água aos domicílios na mais importante cidade do país. Revista VITAS – Visões Transdisciplinares sobre Ambiente e Sociedade – www.uff.br/revistavitas Nº 1, setembro de 2011 e os sesmeiros receberam novas concessões. Para facilitar a fiscalização e o cumprimento da lei – cujos infratores estavam sujeitos a severas penas – novos instrumentos administrativos foram instituídos, informa Evaristo Eduardo de Miranda (s/d, s/p). A medida procurava coibir o contrabando e resguardar uma fonte de riqueza para a Metrópole: a exportação de pau-brasil, mogno, cedro e outras madeiras nobres, utilizadas no mobiliário e na construção de embarcações. Mas seu alcance mais amplo. Já então se sabia que conservar as florestas significava também conservar os rios, ou seja, manter as vias pelas quais a madeira chegava aos portos. Impunha-se, pois, controlar o corte das árvores nas matas próximas às margens – tal como ocorria em Portugal8. Porém, com o desenvolvimento da indústria açucareira cresceu a necessidade de água nos engenhos e alguns proprietários solicitaram mudança na legislação. Assim, “em benefício da agricultura e da causa pública”, o Alvará de 04/03/1819 estendeu ao Brasil “e a todas as Províncias do Reino de Portugal e Domínios Ultramarinos” alguns parágrafos do Alvará de 27/11/1804 que regulava a construção e o uso de águas no Alentejo. A partir daí, independentemente de pertencerem ou não ao patrimônio Real, [...] uma povoação [...] ou [...] proprietário em particular [necessitando construir] canal ou levada [para] tirar água de algum Rio, Ribeira, Paul ou Nascente [e] regar [suas] terras ou para as esgotar sendo inundadas [...] poderia faze-lo, [devendo, para isso,] requerer licença a um Ministro da Vara Branca do Termo ou Comarca ao qual caberia demarcar o lugar por onde passaria a dita construção (Alvará de 27/11/1804, § 11). As dificuldades em fazer cumprir a lei no vasto e distante território eram enormes. Para Cid Tomanik Pompeu (1972) o Alvará apenas reconheceu a situação de fato existente e permitiu a utilização livre dessas correntes, tornando letra-morta o disposto nas “Ordenações”. Formalmente, entretanto, a utilização dessas águas seguia requerendo autorização e estava sujeita a condicionalidades. O Alvará de 1804 regulava a apropriação e o uso da natureza – água, terras e florestas – na clara perspectiva de promover a produção e a riqueza, ou seja, aquilo que 8 Ao longo do rio Tejo (10 léguas em cada uma das margens) proibia-se “descascar” e cortar certas árvores para fazer carvão ou cinzas mesmo por seus proprietários (OF, T.V, T. LXXV). Em terras comuns do Alentejo a exploração de matas silvestres cujas árvores serviam para madeira e lenha deveria obedecer a certo ordenamento e era expressamente proibido cortar ou destruir as árvores novas e brotos (Alvará de 27 de novembro de 1804, OF. L. IV). Revista VITAS – Visões Transdisciplinares sobre Ambiente e Sociedade – www.uff.br/revistavitas Nº 1, setembro de 2011 hoje comumente se denominaria desenvolvimento. Era preciso conservar os “interesses dos lavradores [para que] se promovesse também a melhor cultura”, dizia. Tal como os atuais institucionalistas, afirmava que não poderia haver dúvidas a respeito dos direitos de cada um – proprietários e lavradores. Aliás, esclarecer dúvidas e evitar interpretações divergentes de leis anteriores era seu propósito. Porém, ao contrário dos discursos que presidem as intervenções nas formas de apropriação da água doce como parte da estratégia de combate à escassez – existente ou potencial – o citado Alvará não deixava claro que regulava relações sociais e de poder o que implica dizer, relações conflituosas. Assim, embora em nome da “cultura” fosse necessário resguardar os interesses dos lavradores, a afirmação destes direitos não poderia prejudicar “a classe dos proprietários, que deveria tirar vantagem do melhoramento de seus prédios [...]”, diz em sua justificativa inicial. As relações de vizinhança eram tratadas minuciosamente. Conforme seu parágrafo 11, os donos dos terrenos pelos quais passasse uma corrente de água não poderiam impedir a construção de canais ou obras necessárias ao esgotamento de áreas inundadas embora devessem ser ressarcidos dos prejuízos que viessem a sofrer em decorrência das mesmas. Caso tais obras afetassem “Quintas nobres e muradas e [...] quintaes dos Prédios urbanos nas Cidades ou nas Villas”, podendo causar-lhes prejuízos, a licença para a construção deveria ser concedida por “expressa” Resolução de sua Majestade e, ainda assim, se não houvesse prejuízo a outra já “construída, seja para a rega de terras ou para alguns engenhos”, mas, apenas “quando possa haver commoda divisão da água de forma que não fique inútil a cultura já feita, ou o Engenho já construído” (Alvará de 1804, § 12). Procurando conciliar o direito de propriedade com o direito de acesso à água, seu parágrafo 13 estabelecia que os donos das propriedades que no futuro fossem muradas ou valadas não se obrigavam a dar caminho ou passagem por suas terras. Todavia, estavam obrigados a deixar passar a água e a consertar o aqueduto. Caso uma mudança do aqueduto não prejudicasse a passagem da água, poderiam esses proprietários requere-la, à condição de arcar com os custos das obras. Previa, também, acesso aos aquedutos por produtores que não os houvessem custeado devendo, para isso, pagar “sua cota parte da despeza [...] aos que os fizeram construir [...]” A ocorrência de conflitos era prevista, ficando estabelecido que sendo “[...] necessario haver divisão judicial da água, nesta se seguirá o arbítrio de Louvados inteligentes”. Revista VITAS – Visões Transdisciplinares sobre Ambiente e Sociedade – www.uff.br/revistavitas Nº 1, setembro de 2011 O advento do Império não trouxe mudanças no que concerne ao domínio das águas. A Constituição de 25 de março de 1824 (artigo 179, XVIII) determinou a elaboração de um Código Civil e validou o disposto nas Ordenações Filipinas até que o referido Código fosse promulgado, informa Adriane Stoll de Oliveira (2002), continuando em vigor o disposto em 1804 até 1917. O domínio/propriedade legal da terra não implicava necessariamente sua posse efetiva. A capacidade de exercer controle sobre o território e, por extensão, sobre seus recursos contava mais do que títulos legais. A licenciosidade no uso das águas pertencentes ao patrimônio Real e a vitória dos posseiros piauienses em prolongada luta contra os sesmeiros baianos (século XVIII) demonstram que as determinações legais pouco significam frente à incapacidade de garantir os direitos e obrigações que delas emanam. O mesmo se conclui da leitura do belo livro de Denise Santana (2007) sobre as águas na cidade de São Paulo. A rica hidrografia da cidade não evitou as frequentes queixas contra a falta de água no decorrer do século XVIII. A razão da “escassez” e de contínuos conflitos era o desvio da água - que deveria servir à coletividade - para proveito de poucos. O mesmo se pode dizer a respeito do lançamento de dejetos e águas servidas em certos pontos dos rios, inutilizando-os para usos mais exigentes em potabilidade. Na ausência de vigilância constante, inclusive noturna, as leis não se cumpriam. É razoável supor que nas cidades em que a captação e canalização de nascentes e riachos por particulares era mais fácil se reproduzissem os mesmos conflitos aí registrados Sem minimizar o poder econômico e o prestígio social dos contendores, diferentemente do que ocorria nas áreas mais distantes dos poderes estabelecidos, rurais ou não, ali era comum recorrer-se à justiça para fazer valer os direitos de vizinhança estabelecidos em Lei. O século XIX foi marcado por grandes transformações na vida brasileira: a vinda da Corte portuguesa para o Brasil, o boom cafeeiro no vale do Paraíba do Sul e, em seguida, no Oeste paulista, refletiu-se sobre o espaço urbano direta ou indiretamente vinculado à produção e à comercialização do café. Nas últimas décadas do século o fim da escravidão, a instituição da República e as grandes levas de imigrantes que chegaram ao país reforçaram o aumento da população urbana favorecendo a dinamização do comércio, o nascimento de indústrias leves e de peças e implementos dirigidos para o setor exportados nas cidades vinculadas à produção e exportação do café; vários bancos surgiram. Entre o último terço do século XIX e 1930 o poder público investiu – ou Revista VITAS – Visões Transdisciplinares sobre Ambiente e Sociedade – www.uff.br/revistavitas Nº 1, setembro de 2011 financiou inversões privadas – em portos, linhas de navegação, ferrovias, transporte urbano, aterros, loteamentos e arruamentos. O espaço das modificando profundamente como indicam, dentre outros, Wilson Suzigan (1986) e Maurício Abreu (2001). A água ganhou novos usos, a demanda aumentou. O crescimento das cidades exigia ampliação e melhorias nos recentes e precários serviços de abastecimento de água potável, energia e saneamento. Datava de 1876 as primeiras obras visando levar água aos domicílios na capital do Império. Até então apenas as repartições públicas, Igrejas e umas poucas residências recebiam água domiciliar. Em resposta, multiplicaram-se as pequenas hidrelétricas construídas em rios particulares cuja energia – principal uso industrial das águas – era consumida pelos próprios produtores ou comercializada. Seu destino: iluminação pública, tecelagens, serrarias, indústrias de beneficiamento de produtos agrícolas e mineradoras. A indústria exigia a desvinculação entre a propriedade do subsolo e do solo. As quedas d’água e as minas precisavam estar disponíveis para permitir o pleno desenvolvimento da produção de energia, da mineração e da metalurgia. Assim ocorrera na Europa, alertara Claude Henri Gorceix (2000, s/p) em 1875, a propósito das minas. O cientista convidado para montar a primeira Escola de Minas no Brasil argumentou junto ao Imperador que a realização de “trabalhos grandiosos” e a sustentação das guerras, há muito se sabia, exigiam que o subsolo fosse declarado “propriedade pública”. As minas deveriam estar sujeitas a uma legislação particular e caberia ao Estado explorá-las “ou entregá-las à indústria privada, sob condições determinadas pela natureza e situação da jazida”. Porém, o Brasil era um país eminentemente agrário O poder dos donos de terra prevaleceu. A primeira Constituição republicana manteve associadas ao solo a propriedade das minas e das águas. Afinal o trabalho escravo mal acabara de ser abolido e fazia apenas meio século que a própria terra se tornara objeto de compra e venda. 9 Contudo, a possibilidade de futuras limitações dos direitos sobre a água em favor do desenvolvimento da produção mineral foi prevista. Dizia a Constituição de 1891: O direito de propriedade mantém-se em toda a sua plenitude salva a desapropriação por necessidade ou utilidade pública mediante prévia indenização. As minas pertencem aos proprietários do solo salvas as 9 Lei 601 de 1850, conhecida como Lei de Terras. Revista VITAS – Visões Transdisciplinares sobre Ambiente e Sociedade – www.uff.br/revistavitas Nº 1, setembro de 2011 limitações que forem estabelecidas por lei a bem da exploração deste ramo de indústria (C.F. 1891, art. 72, § 17). As transformações na sociedade brasileira sinalizavam para a necessidade de novas definições legais acerca do domínio e uso da água doce. A tentativa de efetuar essas mudanças e elaborar uma legislação específica para as águas proposta pelo professor Alfredo Valadão em 1907, fracassou. Até 1934 as águas permaneceriam regidas pelos direitos de propriedade e vizinhança consubstanciados, a partir de 1917, no Código Civil 10 cujo artigo 526 preceituava: A propriedade do solo abrange a do que lhe está superior e inferior em toda a altura e em toda a profundidade, úteis ao seu exercício, não podendo, todavia, o proprietário opor-se a trabalhos que sejam empreendidos a uma altura ou profundidade tais, que não tenha ele interesse algum em impedi-los (Redação dada pelo Decreto do Poder Legislativo nº 3.725, de 15/01/1919). Finalmente, em 1934, no bojo das ações modernizadoras encetadas pela chamada Revolução de Trinta, com o Decreto 24.643 o Brasil ganhou uma legislação de águas específica: o Código de Águas. Na condução dos trabalhos que levaram a adoção deste dispositivo legal estava um militar, Juarez Távora, um oficial de mentalidade moderna, ou seja, plenamente envolvido nos esforços pela industrialização do país. O Brasil dava passos cruciais rumo a superação da economia agroexportadora e o Código de Águas foi um instrumento essencial desse processo. Em 1997, a Lei n. 9.433 altera princípios fundantes do Código de 1934. A alteração correspondia a uma nova fase do desenvolvimento capitalista no país. O Brasil urbano e industrializado precisaria disciplinar a apropriação e a regulação da água doce conforme novos interesses hegemônicos. Referencias Bibliográficas ABREU, Maurício. Evolução urbana do Rio de Janeiro. 4. ed. Rio de Janeiro: IPP, 2006. BRANDÃO, Ambrósio Fernandes. Diálogos das grandezas do Brasil. Disponível em: <http://www.diaadiaeducacao.pr.gov.br/diaadia/diadia/arquivos/File/conteudo/literatura/obras_completas_ literatura_brasileira_e_portuguesa/AMBROSIO_BRANDAO/DIALOGOS/DIALOGOS.PDF>Acesso: 10/07/2011. BRASIL. Constituições do Brasil. Organização, revisão e índices por Fernando Mendes de Almeida, 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1958. 701 p. CAMINHA, Pero Vaz. Carta a el Rei D. Manuel. 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