Da Dor ao Prazer no trabalho Regina Benevides de Barros Maria Elizabeth Barros de Barros Relatos de trabalhadores que nos chegam a partir das situações vividas nos Serviços de saúde apontam, insistentemente, para a relação dor-desprazer-trabalho. Tal relação, desde há muito sinalizada, merece ser posta em análise quando acompanhamos as mudanças no modo de produção no contemporâneo caracterizado pela precarização das relações de trabalho, pela contínua perda dos direitos de proteção ao trabalhador, pelas instáveis formas de contratação, pelo baixo investimento em processos de educação permanente, pelos fracos vínculos que os trabalhadores estabelecem nos e com os seus espaços/processos de trabalho. Este diagnóstico, já bastante conhecido, desemboca, grande parte das vezes, na busca de “tratamentos” /soluções que ora voltam-se para o trabalhador em sua situação individual de adoecimento, ora em reinvindicações, cada vez mais fragilmente organizadas orientadas para o conjunto de trabalhadores. Sem deixar de apontar para a importância das várias ações dirigidas à escuta e a encaminhamentos nestes âmbitos, chama-nos a atenção a sistemática (re) incidência seja das queixas, seja no modo como elas têm sido respondidas. Interferir nos processos de gestão do trabalho, trazer ao centro da cena não apenas o trabalhador (indivíduo) ou sua categoria (conjunto), mas as relações que estabelece com o processo produtivo, com os objetos de investimento em (e de) seu trabalho, parecem-nos ser um importante caminho a ser mais investigado. Vamos tomar como situação-caso para ser analisada a situação do trabalhador da saúde. Gestão, trabalho e produção de si Grande parte das vezes tratamos o tema da gestão atrelado aos mecanismos organizacionais. Esta é, sem dúvida, uma dentre outras escolhas possíveis quando nos vemos frente ao desafio de lidar com processos de trabalho e pessoas que os realizam. Sabemos, entretanto, que toda escolha é política porque estamos sempre em meio a interesses, necessidades, desejos, saberes e poderes que constituem modos de ver o mundo e modos de nele existir. No campo da saúde destaca-se, ainda, a inclusão de um outro vetor que modula o debate sobre a gestão posto que, especialmente desde o advento do SUS, pensar a saúde, os processos de trabalho em saúde, ou melhor, a gestão em saúde, impõe o diálogo com as políticas públicas. Eis, então, que estamos frente a um cenário bastante complexo, pois discutir a gestão em saúde terá que passar, necessariamente, pela problematização das escolhas que fazemos de como lidar com o que constitui, a nosso ver, como vetores-dobras inseparáveis do campo da saúde: sujeitos (desejos, necessidades, interesses), processos de trabalho (saberes), poder (modos de estabelecer as relações) e políticas públicas (coletivização dessas relações). Queremos propor, então, a tese de que a “gestão não é apenas organização do processo de trabalho, mas é o que se passa entre os vetores-dobras que o constituem”. Os vetores, entretanto, não estabelecem entre si relações deterministas ou determinadas, mas relações de intercessão, sustentadas num princípio de inseparabilidade e co-extensão de tal modo que tais vetores configuram-se bem mais como dobras de um plano de produção. (Trabalho e saúde na construção de outros modos de gestão). É com a leitura de Deleuze sobre Foucault (Deleuze,1991) que vemos ressaltar o tema das dobras, de tal maneira que as instâncias do dentro e do fora deixam de ser tomadas como faces ou lados opostos das formas: sujeito, instituições, mas como matérias móveis de um plano comum de produção. O esforço teórico-político do(s) autor(es) é o de superar as velhas dicotomias instaladas desde o projeto da modernidade. O saber, o poder e o si são três dimensões irredutíveis, mas em implicação constante. Os regimes discursivos e extra-discursivos constituem o estrato histórico, os saberes de uma época. Mas tais regimes se articulam de determinadas formas, estabelecendo relações de poder, modos de operar constitutivos e constituintes da realidade. O passo dado neste momento é o de forçar a pergunta para além do que se apresenta como realidade dada, inquirindo sobre os modos de produção desta mesma realidade. O poder se dessubstancializa e não é mais tomado como coisa em si, mas como exercício de uma ação sobre outra. Interessa, então, as implicações dos diferentes atores em cada situação, interessa o modo como o poder se exerce, que efeitos produz. A dimensão da subjetividade que se enuncia é aquela que deriva do poder e do saber, ainda que deles não dependa. Retomemos agora a tese proposta: “gestão não é apenas organização do processo de trabalho, mas é o que se passa entre os vetores-dobras que o constituem”. E quais são estes vetores no campo da saúde? Como eles se intercedem? Esta pergunta nos leva à necessidade de situar o trabalho como este regime de produção de saberes, onde o planejar, o decidir, o executar, o avaliar não se separam, o que quer dizer que a atividade e a gestão da atividade não constituem instâncias separadas. Mas tal regime de produção não se dá sem que ao mesmo tempo sujeitos se produzam. Sujeitos são desejos, necessidades, interesses em conjugação e conflito. Eles inventam mundos, se inventando. Aqui o mundo do trabalho é criação e uso de si, mas também é luta e resistência ao trabalhar e a si. Tais regimes de produção: de saberes e de si entram em relação, ao mesmo tempo em que são produzidos por eles. Este modo de estabelecer relações, forçando aproximações ou produzindo maiores distanciamentos, resultando em extração de mais valia e/ou abrindo-se a processos de criação é um exercício de poder. Podemos observar que estas três dimensões: saberes, sujeitos e poderes constituem-se de modo indissociável. Tomemos agora o desafio proposto neste texto: Da dor ao prazer no trabalho. Como pensar a dor e o prazer no trabalho em saúde? Quando tomamos os processos de trabalho, os sujeitos e o poder como dobras, apontamos para uma posição em que a gestão não pode ser concebida como fora desta intercessão. Mais ainda, estamos querendo colocá-la como aquilo que não pode ser substancializado, que não deve se confundir com um lugar, mas como um conector, gestão como elemento-passagem entre fluxos de trabalho/saberes; fluxos de subjetivação/sujeito; fluxos de relação/poder. Assim entendida, a gestão se mostra como inseparável de cada uma dessas dobras, sendo ela mesma uma das dobras deste plano. Barros e Galli (2004, p.134) propuseram também uma ´torção´ na escolha do locus de intervenção quando se trata de pensar os processos de trabalho tomando a gestão como sendo “exatamente o ponto de encontro sujeito (trabalhador) e objeto (trabalho), colocados em relação de intercessão e de interferência de um sobre o outro e não podendo ser pensados fora desta mesma relação” . Qual a importância de tal formulação? Para que nos interessa, a nós, trabalhadores e “gestores da saúde” (caberia ainda esta forma de dizer?!) este modo de apreensão da gestão? Certamente que não se trata de colocar mais uma definição sobre gestão nas prateleiras acadêmicas para alimentar o debate no campo da saúde. Só nos interessam os conceitos-ferramentas, aqueles que nos servem para inventar mundos. É preciso, então, dar um outro passo. É preciso dizer que estamos discutindo gestão em saúde e, neste caso, é preciso destacar que se trata de um `produto` com características muito especiais. Pensar a gestão em saúde é pensar modos de produção comprometidos com a vida. Neste sentido, vale lembrar que o que está em jogo não pode ser colocado no ampliado e diversificado mercado de bens de consumo capitalista. Vale lembrar que os parâmetros de avaliação de eficiência, eficácia, efetividade dos processos de gestão tem que levar em conta outros fatores, outros riscos. No caso da saúde, portanto, há um outro vetor-dobra da gestão que se abre. É a dobra das políticas de saúde. Não é possível propor/pensar a gestão em saúde, seja a gestão do sistema, seja a dos Serviços, seja a gestão da atividade, sem que se leve em conta o modo como estas políticas se constroem e o que de nelas se reafirma como “público”. Entendemos que a construção de políticas públicas deve estar conectada, comprometida com a coletivização da gestão, com a publicização das relações entre trabalho (saberes); sujeitos (necessidades, desejos e interesses) e poderes (modos de por em relação saberes e sujeitos). Queremos, no momento, destacar a Política Nacional de Humanização (PNH) como uma das políticas que tem insistentemente ressaltado a indissociabilidade entre a mudança/melhoria nos modos de atender os usuários e os modos de gestão dos processos de trabalho. Este princípio da PNH (2004, MS), o da indissociabilidade, aponta, a nosso ver, para a possibilidade de colocarmos a dor e o prazer no trabalho como questão experimentada por cada e em cada trabalhador, mas relacionada aos modos como ele vive seus vínculos com o processo do trabalho e com os outros trabalhadores. Da dor ao prazer O sentido habitual de prazer está associado à descarga gerada por uma situação de aumento de tensão do sistema. O prazer vem como situação ideal a ser conquistada, estado de plenitude, quase sempre imaginarizado como tendo existido anteriormente. Dessa forma, atingir o prazer passa a ser vivido como posição estável do sujeito em relação às suas necessidades, desejos e interesses. Claro está que esta situação nunca é atingida deixando o sujeito na posição sempre faltosa em relação aos objetos de investimento também eles jamais realizados. As concepções de sujeito e de prazer formam aqui um par ligado pela situação de falta e de busca de realização nunca atingida. Mas de que concepção de ‘prazer’ falamos? Como tratar essa temática quando temos como preocupação colocar em análise a tríade dor-desprazer-trabalho? Quando levamos este debate para o campo das relações saúde-trabalho, encontramos em Dejours (1992) a afirmação de que o trabalho prazeroso é aquele que cabe ao trabalhador parte importante de sua construção. O sofrimento, a dor, segundo ele, está ligado aos sentimentos de “indignidade, de inutilidade e desqualificação” vividas pelos trabalhadores ao executarem uma tarefa aquém de sua capacidade inventiva. A importância de suas pesquisas está principalmente no fato de ter chamado a atenção para o sofrimento produzido na situação de trabalho. Para além do olhar sempre perscrutativo das empresas e fábricas para as motivações e satisfações no trabalho, Dejours nos alerta para os sentimentos expressos pelos trabalhadores de indignidade ao se sentirem “robotizados, como apêndices da máquina” (Ibid, p.49) e por estarem em “contato com uma tarefa desinteressante”. No caso da inutilidade, refere-se à falta de significação, à mecanização dos gestos, à falta de qualificação e do sentido/finalidade do trabalho realizado. Inutilidade, portanto, porque a atividade aparece como esvaziada de sentido humano, sentido de criação. Quanto à desqualificação, Dejours alerta para uma imagem que o trabalhador constrói sobre si mesmo e que se apresenta na situação de trabalho diretamente relacionada a uma desvalorização do que faz e o conseqüente não reconhecimento de seu trabalho pelo outro. Frente a este quadro, entretanto, o trabalhador não é mera vítima que sucumbe às sistemáticas tentativas de desqualificação/expropriação. O trabalho desempenha função importante na luta contra o adoecimento, na medida em que, sendo invenção, (re) existe, (re) criando o trabalhador e o próprio processo de trabalho. Invenção de si e de mundo, esta é a face do processo de trabalho que queremos na política de humanização afirmar, criando condições de emergência dos fazeres, dando visibilidade às práticas. Desfazer a relação dor-desprazer-trabalho passa a ser desafio a ser enfrentado com os trabalhadores. Yves Clot (2006), lendo Wallon, indica uma importante pista para este enfrentamento. Para ele, Taylor teria exigido pouco dos trabalhadores, na medida em que teria amputado o trabalhador de sua iniciativa, o que acaba por desembocar “num esforço mais dissociativo, mais fatigante e mais extenuante que se possa encontrar (...), o esforço não é só o que este homem faz para seguir a cadência, é igualmente aquele com que ele deve consentir para reprimir sua própria atividade” (Wallon, apud Clot ibid, p.14). A tentativa de silenciamento dos movimentos de criação condena o homem a uma imobilidade que produz a naturalização da relação dor-desprazer-trabalho. “A calibração dos gestos é uma amputação do movimento” (Clot, p14). A dor vem, então, do esforço deste trabalhador para colocar entre parênteses a riqueza da atividade industriosa. Schwartz (2003a), entrevistado por Marcelle Duc, afirma que o trabalho não é jamais pura execução. A gestão do trabalho implica “um ´uso de si´, o que significa dizer que é necessário recorrer às suas próprias capacidades, seus próprios recursos e suas próprias escolhas para (...) fazer alguma coisa (p185)” A isso ele chama de “vazio de normas”, uma vez que as diferentes determinações para o trabalho são insuficientes para ele ser realizado. Não se é determinado inteiramente pelas normas, pelas exigências de um meio exterior. “A vida é sempre tentar se criar parcialmente, talvez ainda que pouco, mas sempre, como centro em um meio e não como produzido por ele.” (p185). O trabalhador faz um uso de si, na medida em que o trabalho não é somente execução, o que em seu dizer seria “invivível”. O trabalhador faz escolhas, pois as consignas das prescrições são insuficientes. Novamente aqui o que insiste é a capacidade inventiva do trabalhador resistindo à pura execução. O tripé dor-desprazer-trabalho se desequilibra deixando aparecer outras relações onde se supunha uma natureza inquestionável. Prazer não será mais entendido como ´descarga ou alívio de tensão´ onde caberiam ´tratamentos´ paliativos, mas que em nada alterariam as relações de produção daquilo que é nomeado pelo trabalhador como desprazer-dor. Não se trata mais de pensar o trabalho como sistema em busca de equilíbrio, quando então, se atenuaria ou mesmo eliminaria a dor. Trata-se a nosso ver de tomar o trabalho como atividade humana que, sobretudo, se faz num processo contínuo de renormatização, de invenção de novas regras, de novos problemas. Da dor ao prazer no trabalho vai se enunciando um plano em que a criação é experiência coletiva porque implica o encontro consigo e com o outro. Mas, devemos insistir um pouco mais no desafio a que nos propusemos: como desfazer a relação dor-desprazer-trabalho? Nessa direção, encontramos na obra dos autores que vimos trabalhando a proposição de que a análise do trabalho é sempre, de certa forma, clínica do trabalho. Em Dejours (1992), encontramos a opção metodológica fundada na psicodinâmica do trabalho, em Clot (2006) a direção tomada é a de uma psicologia do trabalho entendida como uma clínica da atividade e dos meios do trabalho e em Schwartz (2003a) a proposição é a de uma clínica das situações de trabalho, ou das atividades de trabalho a partir da abordagem ergológica. Na Política Nacional de Humanização também encontramos direções, diretrizes que indicam compromissos sanitários, diretrizes que implicam modos de fazer sintônicos com os princípios da universalidade do acesso, integralidade no cuidar e equidade na distribuição de ofertas e recursos. Queremos destacar duas destas diretrizes que nos ajudam a enfrentar o desafio de desfazer a equação dor-desprazer-trabalho: a co-gestão e a clínica ampliada. Em ambas diretrizes é o sentido de ampliação que comparece: da gestão e da clínica. A ampliação da gestão se dá, como vimos, pela posição de inseparabilidade entre os termos que a compõem: saberes, sujeitos, poderes. Aumentar o grau de democracia interna nas organizações, problematizar a relação entre a atividade da gestão e a gestão da atividade, instalar dispositivos que permitam circulação da palavra e tomadas de decisão mais participativas são alguns dos modos que acreditamos ser possível a ampliação da gestão. Mas também ampliação da clínica, seja pela instalação de modos de funcionar que convoquem diferentes saberes/poderes a entrar em relação na construção de objetos de investimentos mais coletivos, seja pela desestabilização da própria noção de clínica. Aqui acompanhamos a formulação de Passos & Benevides de Barros (2001) quando indicam as duas operações da clínica ao retomarem suas raízes etimológicas: clínica como capacidade de acolher, entrar em contato com a diferença, debruçar-se (sobre o leito) (klinikós) e clínica como operação de desvio (clinamem) , interferência no movimento para a produção de outros caminhos, criação de outros processos de trabalho. Para nós a clínica do trabalho (Athayde & Figueiredo, 2004) torna possível a interferência na equação dor-desprazer-trabalho em prol da criação de novos territórios existenciais, novos territórios de trabalho, novos modos de produzir saúde e sujeitos, novos regimes de produção de conhecimentos pertinentes ao caráter sempre enigmático e singular do trabalho. Aumentar o grau de autonomia dos trabalhadores nos processos de pensar-fazer seu trabalho, aumentar o grau de abertura aos processos de criação sustentando a indissociabilidade entre atenção e gestão, no caso do processo de trabalho em saúde, permite, a nosso ver, transitar da dor ao prazer no trabalho sem que com isso caiamos na banalização do sofrimento ou na idealização do prazer. Referências Bibliográficas Athayde M & Figueiredo,M (2004) Coletivos de trabalho e componentes subjetivos da confiabilidade em sistemas sociotécnicos complexos: coinsiderações a partir da situação de trabalho em mergulho profundo na bacia de Campos/RJ. Em: Athayde, M et al (org) Labirintos do Trabalho: interrogações e olhares sobre o trabalho vivo. Rio de Janeiro: DP&A Brasil, Ministério da Saúde (2004) Documento base da Política Nacional de Humanização Dejours,C (1992) A Loucura do Trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. São Paulo: Cortez-Oboré. Deleuze,G (1992) Os Intercessores. 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