109 LÍNGUA MATERNA E LÍNGUA ESTRANGEIRA: RECONSIDERANDO AS FRONTEIRAS Carla Maria dos Santos Ferraz Orrú 1 SMART BEE Ensino de Idiomas Ltda. Este trabalho quer discutir os conceitos de Língua Materna e Língua Estrangeira, sob diferentes perspectivas, a saber, uma concepção de língua de cunho estruturalista e outra concepção de cunho discursivista. Para efeito de análise, propomos analisar excertos (considerando o processo de ensino e aprendizagem de línguas um evento discursivo) retirados de duas aulas de cinquenta minutos, gravadas e transcritas, à luz dos conceitos previamente discutidos. Ancorados nos pressupostos teóricos da Análise do Discurso de linha francesa e também em conceitos da área da Psicanálise, tomamos para essa pesquisa a concepção de sujeito cindido, heterogêneo, clivado, “sujeito polifônico, constituído por uma heterogeneidade de discursos”. (FERNANDES, 2007, p. 29) A concepção de língua adotada por esse trabalho se opõe à visão de língua como mero instrumento a ser utilizado para fins comunicativos. A língua é, neste trabalho, a fundadora do sujeito. Pela língua (primeira língua – materna) nos inscrevemos no mundo. Segundo Revuz (1998, p. 219), “... muito tempo antes de poder falar, a criança é falada intensamente pelo seu ambiente, e não há uma palavra que não seja, a um só tempo, designação de um conceito e discurso sobre o valor atribuído a esse conceito pelo ambiente.” Daí decorre que as palavras aprendidas na primeira língua não têm valor “objetivo”, estão impregnadas de subjetividade. A aprendizagem de uma segunda língua só é possível, porque já se teve antes acesso à linguagem através da língua materna. Segundo Revuz: “a 1 Pesquisa orientada pela Profa. Dra. Elzira Yoko Uyeno. 110 língua estrangeira é, por definição, uma segunda língua, aprendida depois e tendo como referência uma primeira língua, aquela da primeira infância”. (REVUZ, 1998, p. 215) Nossa pesquisa encara a aprendizagem de língua estrangeira como um evento discursivo. Segundo Tavares (2005, p. 52), “o processo de aprendizagem de língua estrangeira deve (grifo nosso) ser encarado como um evento discursivo, porque não está somente relacionado a fatores cognitivos ou metodológicos”. Os participantes do processo ensino aprendizagem de LE (alunos e professores) são sujeitos inseridos no contexto sócio-histórico e a “situação de aprendizagem de línguas” (TAVARES, 2005, p. 52) constitui uma prática social. De acordo com Eckert-Hoff (2008, p. 36), “grande parte da história da filosofia ocidental consiste numa noção de sujeito dotado de plenos poderes e capacidades”. Esse sujeito é o sujeito cartesiano, logocêntrico, controlador de seu dizer. Descartes situou esse sujeito individual no centro da mente, com capacidade de raciocínio, em que, ainda segundo a autora, a palavra de ordem era “Cogito, ergo sum” (Penso, logo existo), “princípio que entende o homem como um ser pensante, consciente, centro do conhecimento, dotado de uma identidade autônoma”. (ECKERT-HOFF, 2008, p. 36) A proposição “Penso, logo existo” se contrapõe à proposição lacaniana “penso onde não sou, sou onde não penso”. Lacan postula, com essa nova perspectiva, “a noção do sujeito múltiplo, cindido, cujas palavras (lhe) escapam”. (ECKERT-HOFF, 2008, p. 41) O confronto LM (língua materna) e LE (língua estrangeira) provoca deslocamentos identitários (BERTOLDO, 2003). Trabalhamos com crianças e ensinamos línguas estrangeiras (inglês e espanhol) a partir de dois anos de idade. A aprendizagem de um novo idioma em tão tenra idade constitui, a nosso ver, objeto rico de observação e estudo, se levamos em conta os deslocamentos que a aprendizagem de uma nova língua pode provocar. 111 De acordo com os pressupostos da Análise do Discurso de linha francesa (PÊCHEUX, 2008), o sujeito não é o centro do seu dizer, o controle total do que dizemos é uma ilusão necessária, mas somos marcados pela heterogeneidade. O encontro de duas línguas (materna e estrangeira) estabelece uma “relação de conflito” (CORACINI, 2003, p. 139). Segundo Revuz (1998, p. 215), “a didática da língua estrangeira não tem se interessado nesse confronto e não tem procurado analisá-lo nem trabalhá-lo.” Investigar como ocorre esse confronto pode contribuir para o entendimento dos sucessos e insucessos na aprendizagem de uma língua estrangeira. Os excertos analisados para esse trabalho foram retirados das primeiras duas aulas gravadas de um total de 24 aulas destinadas à análise num projeto maior, a saber, nossa dissertação de mestrado, provisoriamente intitulada “Subjetividade e Identidade do Aprendiz de Segunda Língua”. O estudo buscará entender, mais especificamente, o processo de aprendizagem de inglês por crianças (não-alfabetizadas) de seis anos de idade em uma escola de idiomas, da cidade de São José dos Campos, SP. Nossos sujeitos de pesquisa são alunos do terceiro estágio da pré-escola e frequentam a escola desde o primeiro estágio. As aulas de inglês ocorrem duas vezes por semana e têm a duração de cinqüenta e cinco minutos. Normalmente, as aulas são organizadas em quatro momentos principais: Primeiro momento: jogos e dinâmicas, segundo momento: revisão de vocabulário já ensinado e apresentação de vocabulário novo, terceiro momento: prática do novo vocabulário com pequenas conversações e atividades no livro e quarto momento: “contação” de histórias. Entendemos que para aprender significativamente um novo idioma, o aprendiz deve correr riscos, risco de se estranhar, de estranhar a própria língua, de estranhar a língua do outro, de estranhar as outras vozes que ouvirá, de estranhar as outras palavras, palavras outras que também virão a constituílo como sujeito, impregnando sua subjetividade. Segundo Coracini (2007a, p. 24), “... é no exato momento em que o sujeito se insere no discurso, que busca palavras (que são sempre suas e do outro) para se definir, que ele se singulariza”. 112 Baseados numa conceituação de perspectiva discursiva do que seja língua materna e língua estrangeira, verificamos que sempre seremos influenciados por nossa primeira língua (aqui entendida como língua materna) e que a aprendizagem de uma segunda ou terceira línguas (aqui entendidas como língua estrangeira) só será possível nesse permanente contato-confronto (BERTOLDO, 2003), conflito (CORACINI, 2003) entre as duas línguas. Apoiados no conceito de sujeito da Análise do Discurso (sujeito clivado, heterogêneo, cindido), constituído por uma multiplicidade de vozes, entendemos a LE como portadora de novas vozes, novos conflitos, provocadora de deslocamentos identitários nesse sujeito. Mediante a análise dos excertos selecionados para esse trabalho, verificamos que o discurso da professora reflete uma ilusão de completude, de controle sobre o dizer. Acreditamos que na formação discursiva professor, o controle já é um elemento pressuposto. Afinal, dar e cobrar tarefas, avaliar, dar notas, preencher relatórios são atividades inerentes à profissão de qualquer professor e são atividades sociais que refletem um poder que é legitimado pela sociedade, até mesmo esperado do professor. Referências BERTOLDO, E. S. O contato-confronto com uma língua estrangeira – A subjetividade do sujeito bilíngüe. In: CORACINI, M. J. (Org.). Identidade & discurso: (des)construindo subjetividades. Campinas: Editora da UNICAMP; Chapecó: Argos, 2003. CORACINI, M. J. R. F. Língua estrangeira e Língua materna: uma questão de sujeito e identidade. In: ______. (Org.). Identidade & discurso: (des)construindo subjetividades. Campinas: Editora da UNICAMP; Chapecó: Argos, 2003, p. 139-159. ______. Sujeito, identidade e arquivo – entre a impossibilidade e a necessidade de dizer (-se). In: ______. A Celebração do Outro: Arquivo, Memória e Identidade: línguas (materna e estrangeira), plurilinguismo e tradução. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2007a, p. 15-26. 113 ECKERT-HOFF, B. M. Escritura de Si e Identidade: o sujeito-professor em formação. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2008. FERNANDES, C. A. Análise do Discurso: reflexões introdutórias. 2. ed. São Carlos: Claraluz, 2007. PÊCHEUX, M. O Discurso: Estrutura ou Acontecimento. Trad. Eni Puccinelli Orlandi. 5. ed. Campinas: Pontes, 2008. REVUZ, C. A língua estrangeira entre o desejo de um outro lugar e o risco do exílio. In: SIGNORINI, I. (Org.). Língua(gem) e Identidade: elementos de uma discussão no campo aplicado. Campinas: Mercado das Letras; São Paulo: Fapesp, 1998, p. 213-230. TAVARES, C. N. V. A (de) terminação da Estrutura na Oralidade em Língua Estrangeira: Um Estudo das Dissonâncias nas Histórias de Aprendizagem de uma Língua Estrangeira. In: FIGUEIREDO, C. A.; JESUS, O. F. de (Orgs.). Linguística Aplicada: aspectos da leitura e do ensino de línguas. Uberlândia: EDUFU, 2005.