“...eu o faço por causa do EVANGELHO,
para dele me tornar participante” (1Cor. 9,23)
(“Dar exercícios, uma forma de fazê-los”)
Ignácio Iglesias
Manresa 279 (1999)
Segundo a visão de S. Paulo a evangelização é sempre uma experiência de dupla direção, de ida e volta.
Entregar o Evangelho é uma forma de recebê-lo, quando entregá-lo não se resume a uma operação
acadêmica, uma oferta cultural ou um serviço burocrático de única direção.
É óbvia a aplicação desta visão ao fato de “dar Exercícios”, como forma não só de dispor os outros a
que recebam o Evangelho, mas de entregá-lo em mãos: “narrar fielmente a história”, “dar o fundamento
verdadeiro da história” (EE. 2), e de reagir acompanhando a história nova, que esta entrega produz.
Já de entrada, nas Anotações, S. Inácio distingue o “dar Exercícios” em dois sentidos:
a) Um ressalta o movimento de dentro para fora daquele que “dá os Exercícios”: perguntar, interrogar, pedindo detalhe particular de cada coisa, narrar fielmente a história, isto é, expôr o fundamento verdadeiro da história, declarar e ampliar o sentido da história sobriamente, atenção à diligência ou lentidão para ajustar o ritmo dos exercícios e das semanas (EE. 4), o modo de tratar o
exercitante (EE. 7), prepará-lo e dispô-lo para a consolação futura, praticar as regras de discernimento de espíritos de 1a ou 2ª semana (EE. 8), advertir sobre o tempo de oração (EE. 12; 13), dar
alguns exercícios convenientes e conformes à necessidade, dar exercícios “leves” (EE. l7; 18)...
b) Outro, que está supondo o movimento inverso, ressalta a atenção ou reação a algo que vem de fora daquele que “dá Exercícios” e que deve ser recebido: sentir a presença ou ausência de moções
no exercitante (EE. 6), sentí-lo “abatido e tentado” (EE. 10), vê-lo “desolado e tentado” (EE. 7), vêlo de “pouco sujeito ou de pouca capacidade natural” (EE. 18), observar, olhar “a própria condição
do sujeito e quanto ajuda ou estorvo poderá encontrar” (EE. 14), considerar, conhecê-lo “de fraca
condição”, para “prevenir que não faça promessa nem voto algum” (EE. 14), resistir-se a qualquer
tipo de “decantamento” ou de“inclinação” que possa influir no exercitante (EE. 15), deixar conscientemente Deus agir “imediate” com sua criatura, não querer pedir nem saber os próprios pensamentos nem pecados (EE. 17), ser informado fielmente das várias agitações e pensamentos (EE.
17)... que entranham ou estão supondo naquele que “dá Exercícios” diversos processos de
observação e reação.
Este segundo movimento tem um componente “contemplativo”.
Consiste na captação de uma realidade nova da qual quem dá exercícios começa a ser testemunha e que
provoca também nele “moções”.
É contemplação da obra de Deus ( de seu mistério) ao vivo, como vai acontecendo e como vai sendo
captada por esse outro mistério vivo, que é cada pessoa humana
Vale também aqui a Anotação 6ª, se aquele que “dá Exercícios” aplica a si mesmo:
“Aquele que dá exercícios, quando sente que não lhe vem algumas moções... muito deve interrogar-se
acerca dos exercícios, se os dá bem e como...”
Pode-se concluir que o fato de “dar Exercícios”, como exercício de fé para quem os dá, participa do
movimento sistólico da fé.
É como uma respiração (inspirar-expirar).
Certamente “dar Exercícios” não é pregar, lançar a Palavra do Senhor ao mercado humano, como um
produto, senão entregar uma realidade viva, operativa... e quem a entrega sabe que há de voltar, mais
ainda, espera que volte, germinada em forma de reação, de luta, de transformação realizada, de vida, enfim.
As parábolas do Reino (semeador... semente) iluminam este “ministério” de “dar Exercícios” no que ele
tem de entrega, de sementeira de si mesmo, e no que ele tem de esperança de fruto, muitas vezes
inesperado.
Entrega e esperança que não devem abandonar-lhe nunca, alimentando continuamente a máxima
gratuidade, já que essa semeadura não se faz para encher os próprios celeiros.
O MÉTODO
Pertence à essência do próprio método dos Exercícios o fato de que deve desenvolver-se numa dinâmica
dialogal, numa verdadeira interação “exercitador-exercitante” e “exercitante-exercitador, fundada no
diálogo “Deus-exercitante” e “Deus-exercitador”.
Seu momento forte é a entrevista (partilha), mas nela desembocam outros momentos e aspectos do processo, que requerem àquele que “dá Exercícios” que esteja vulnerável ao Evangelho que se vai vivendo.
Eis aqui alguns:
1- A entrevista (EE. 6.7.8.9.10.12.14.15.17)
“Dar” e “fazer Exercícios” não são dinamismos paralelos, mas destinados a encontrar-se; mais ainda, a
inter-relacionar-se, a enriquecer-se (completar-se, corrigir-se...) mutuamente, desde a mais profunda
liberdade de seus respectivos protagonistas.
Na entrevista, “aquele que dá Exercícios” recebe um acúmulo de informação, de história viva,
atualíssima, inteiramente nova.
Ele narra “o fundamento verdadeiro da história”- uma história inesgotável – cujo protagonista é Jesus, e
recebe em troca “o fundamento verdadeiro da história” nova, que, diante de seus olhos, aquele que faz
Exercícios vai realizando. História de Deus na história do ser humano, o exercitante.
Uma das mais graves deformações dos Exercícios é precisamente o afastar-se desta confrontação de
“histórias de salvação”, ou “desistorizá-los”, convertendo-os numa transmissão ou confrontação
ideológica, erudita, teórica, que não compromete vitalmente, nem àquele que os dá nem àquele que os
recebe, porque os tira do lugar vital próprio dos Exercícios, que é o compromisso pessoal de Deus com
um e com outro na história real dos dois e do mundo.
Neste intercâmbio de histórias irrepetíveis é fundamental que “aquele que dá os Exercícios” não diga:
“já esperava por isso”; “era de se prever”; “eu já temia isso”... , mas que ele mesmo torne-se
continuamente ensinado, surpreendido, deslocado... Seu ofício não é de profeta antecipador.
É fundamental que não “passe liso” pela história que está acontecendo, da qual é testemunha
privilegiada, arquivando-a como um caso clínico a mais, do qual sai enriquecido.
Porque, simplesmente, o “dar Exercícios” converte a história que está acontecendo em parte de sua
própria história pessoal, uma história que tem, por serviço, que “reinterpretá-la” a partir de sua própria
experiência do Evangelho. Esta reinterpretação converte-se assim numa nova forma de ir sendo tomado
pelo Evangelho, ao vivo e sempre novo.
Aquele que “dá Exercícios” se experimenta informado e movido, caminhando
ao mesmo tempo a história do exercitante e a sua própria história. Ambas como novas.
Tampouco aquele que “dá Exercícios” é um investigador da história passada. O número l7 dos
Exercícios proíbe expressamente que indague sobre ela. Quem “dá Exercícios” é uma testemunha da história presente. Ele a vive; mais ainda, a faz, ou contribui a que se faça.
2- O “pressuposto” (EE. 22)
Precisamente para que este dinamismo dialogal seja possível, é necessário partir, já desde o princípio, de
uma confiança mútua, que permita àquele que dá e àquele que faz os Exercícios chegarem a um acordo
sobre “proposições”, isto é, exposição subjetiva de realidades que se necessitam mutuamente.
“Aquele que dá os Exercícios” precisa, não menos que aquele que os faz, “ser ajudado”, com a
confiança deste: saber onde está, o que vai acontecendo e para onde vai se orientando o processo...
Àquele que “dá os Exercícios” lhe corresponde, como atitude básica, a prontidão em salvar a
“proposição do próximo” com a vontade de interrogar-se como a entende, em ajudar a corrigí-la e em
esgotar todos os recursos para salvá-la.
O fundamental deste intercâmbio, que se “pressupõe” indispensável, é o encontro de duas vontades
comprometidas em detectar os conteúdos de salvação que penetram os fatos, as situações pessoais, as
moções, as reações da própria natureza, a história, enfim, que um e outro se “narram”.
-2-
A “proposição do próximo” não é uma proposição ideológica propriamente tal, mas uma oferta de
história, lida a partir da própria luz humana crente. Naturalmente, história de salvação.
Na realidade, escutar o exercitante e reagir ao que foi escutado, é, para aquele que “dá Exercícios” um
verdadeiro “exercício espiritual”, pertence ao “todo modo...” (EE. 1) e se justifica pelo mesmo objetivo daquele
que os faz: “buscar e encontrar a Vontade divina”, para o exercitante e para si mesmo.
3- A petição
“... o que quero e desejo” não é necessariamente o que “aquele que dá Exercícios” propõe por
antecipação.
Antes, “aquele que dá Exercícios” deverá ajudar o exercitante a identificar esses desejos que o Espírito
de Deus vai acendendo nele, a diferenciá-los daqueles que o seu amor próprio fabrica e a expressá-los por
um lado, e tomando consciência, por outro, de que é assim que se vai deixando conduzir pelo Espírito.
As petições do texto são orientativas de um processo de Exercícios ideal e respondem a desejos
fundamentais do ser humano iluminado pela fé.
Faz bem ao exercitante expressá-los, a partir de onde se encontra, à sua maneira, uma maneira que
condiciona e às vezes desconcerta àquele que “dá Exercícios”, resultando também para ele uma espécie
de evangelização não programada.
Estar todos os dias recebendo histórias de salvação irrepetíveis, sempre novas, maduras e
gozozas umas, outras ainda por fazer, despontando ou abrindo-se caminho dramaticamente,
e ajudar a que o exercitante descubra nelas o projeto de Deus, que há de ser seu itinerário
pessoal, é receber quantidades grandiosas de Evangelho, que levam “àquele que dá Exercícios” a processá-lo pessoalmente em espaços, não breves e nem superficiais, de oração.
4- A Eleição
“Dar Exercícios” é ajudar o exercitante a entrar num processo de eleição “segundo Deus”, e que
absorve também àquele que os dá, num processo paralelo e permanente de eleição (eleições) de ajuda:
calar ou dizer, sublinhar ou inibir-se, prolongar a pergunta que se faz ao exercitante ou deixá-la cair...
Para isso é necessário que também “aquele que dá Exercícios” se situe em Princípio e Fundamento, em intenção simples e reta, em limpa ordenação de meios e fins (EE. 169), e que se
“autocentralize” numa indiferença respeitosa com Deus e com o exercitante. Se em nenhum
momento deve preceder a Deus, menos ainda neste momento de eleição (EE. 14; 15).
Aquele que “dá Exercícios” deve ser consciente de ter entre suas mãos um instrumento valiosíssimo,
mas cuja utilização é sumamente delicada; depende dele e está submetida, também nele, às sacudidas de
todos os espíritos. Por isso precisa ser, e experimentar-se, equilibrado em Deus, “como o fiel de uma
balança” (EE. 15; 179) e “falado e movido” a partir de fora de si mesmo.
A 2ª regra do 2º modo do 3º tempo de Eleição (EE. 185), ou seja, “o que eu lhe diria (a um homem que
nunca vi nem conheci) que fizesse e elegesse, e fazendo eu o mesmo”, tem muito a ver com este “falado
e movido” antes de, e para, atuar.
Esta tomada de consciência é uma forma de evangelização passiva, recebida.
5- “Contemplação para alcançar Amor” (EE. 230)
Entendida não como “exercício”, mas como desejo final, com o qual quem fez Exercícios voltará à vida,
deveria ser, desde o começo dos mesmos, o perfil espiritual ideal de quem “dá Exercícios”.
A mesma experiência de dá-los o realimenta continuamente.
É o desejo de um homem ou uma mulher permanentemente evangelizados. Precisamente porque Deus
lhes fala em tudo (“habita”; “trabalha”; “d’Ele emana tudo” – EE. 235-237).
Familiarizados com os sinais de Deus e habituados a encontrá-lo em tantas coisas, tudo vai se convertendo
para eles em Evangelho vivo.
Exercitado em “reflectir” sobre “tantos bens recebidos”, pelo fato de ser tantas vezes testemunha
direta de histórias de salvação irrepetíveis, aquele que “dá Exercícios” põe esse bem à disposição
daqueles que os fazem, numa inversão imediatamente rentável, experimentando que cada nova história que
lhe chega ultrapassa às anteriores.
-3-
No exercício de ajudar a “olhar como Deus habita nas criaturas..., nos homens dando o entender” (EE.
235), há de projetar sua própria pessoal evangelização passada, a de Deus “fazendo-me entender, fazendo
templo de mim...”, sacrário do mistério vivo de Deus sempre renovado nele mesmo, mas ao mesmo
tempo há de viver com os olhos abertos ao como Deus habita na história humana que vai desfilando
diante dele, sempre nova.
É viver permanentemente a consciência de ser instrumento e deixar-se livremente usar como tal.
“Dar Exercícios” é, finalmente, uma forma qualificada de cooperar com o Deus de quem “todos os bens
e dons descem” (EE. 273). Àquele que “dá Exercícios” lhe toca tirar os impedimentos deste
“descenso”, que em parte passa por ele.
Mais ainda, cabe-lhe fazer-se “encarnação” desses bens e dons, ou seja, converter-se em lugar idôneo
para que tais dons sejam vividos e se façam “visíveis” ante o exercitante.
6- “Os mistérios da vida de Cristo Nosso Senhor” (EE. 261)
Como Evangelho recebido antes ou oferecido (e para que possa ser oferecido), tanto “las palabras que
están inclusas en parêntesis”, que se copiam do Evangelho, como “las que están fuera”, que são sinais
pessoais de que esse Evangelho foi “recebido” e experimentado, são de interpretação variável, dinâmica.
E o serão sempre, na medida em que a pessoa vá deixando-se tomar pelo Evangelho.
A “breve e sumária declaração” (EE. 2) não significa uma transmissão superficial, senão profunda,
fruto de uma assimilação e interpretação pessoal, pela qual “aquele que dá Exercícios” foi afetado,
evangelizado, de uma determinada maneira.
Ao final, e pelo Evangelho que vai fazendo-se realidade no exercitante, é normal que se torne novamente
iluminado.
Ele não é um professor que transmite só dados puramente técnicos, objetivos, senão uma testemunha que
viu, ouviu e apalpou, e que se reflete nessas palavras “que están fuera”, e que são suas, e inclusive na
seleção dos “três pontos para meditar e contemplar nelas com maior facilidade” (EE. 261).
Também a seleção de uns ou outros mistérios, de alongar ou encurtar (EE. 17; 209; 226), não é uma
decisão caprichosa, senão o fruto de haver sido falado por Deus mediante o processo mesmo, que vai se
realizando.
Finalmente, ensinar a que o exercitante faça sua própria seleção, ponha “más o menos puntos, según que
mejor se hallar” (EE. 228).
Reconhecer-lhe essa “liberdade” e dispôr-lhe para ela, a partir do que Deus vai fazendo nele, supõe que
aquele que “dá Exercícios” também tem essa liberdade, ou vai adquirindo-a..
O PROCESSO
Aquele que “dá Exercícios” há de pôr em ação de modo constante, a partir de sua posição privilegiada de
observador de uma história de salvação concreta, toda sua capacidade de detectar e apalpar as “pegadas”
de Deus. Entra ele também – e, em certo sentido, ele primeiro -, num processo pessoal não escrito nem
programado.
Por isso seu caminho não é passeio de triunfador seguro, como quem tem tudo muito bem estudado e
experimentado e que conhece tudo, mas trata-se de um processo humilde, explorador, como quem muitas
vezes vai ter que dizer: “Não sei o que fiz. Isto me ultrapassa. Isto não o fiz eu...”
Sabe que nada do resultado pode ser contabilizado em seu nome.
Como o semeador da parábola (Mc. 4,27), não sabe quando nem como há de nascer a semente.
A rigor, nem deve importar-se, se isto supõe questão de êxito ou de fracasso pessoal.
De sua absoluta gratuidade, como “instrumento”, depende que ele seja de verdade e que não se converta
em “impedimento”. A fronteira entre instrumento e impedimento é traçada fundamentalmente pela
gratuidade.
-4É conhecida a preocupação de S. Inácio por manter-se dentro desta fronteira.
Escrevendo a Francisco de Borja (fins de l545, Epp. 1, 339-345) afirma:
“... eu comigo me persuado de que, antes e depois, sou todo impedimento, e disto sinto maior contentamento e gozo espiritual, no Senhor nosso, para não poder atribuir a mim coisa alguma que pareça boa.
Sinto uma coisa, se os mais entendidos não sentem coisa melhor, que há poucos nesta vida e talvez nenhum
que em tudo possa determinar ou julgar quanto impede de sua parte e quanto desajuda para aquilo que o
Senhor nosso quer realizar em sua alma.
Bem me persuado de que, quanto mais uma pessoa for versada e experimentada em humildade e caridade,
quanto mais sentir e conhecer até os pensamentos mais miúdos e outras coisas delicadas que o impedem e
desajudam, embora pareçam de pouca e quase nenhuma importância por sua pequenez, tanto mais conhecerá seus impedimentos e faltas; pois não é dom desta vida presente, como o profeta pede ser livrado das
culpas que não conhece, e S. Paulo confessa não conhecê-las e acrescenta nem por isso ser justificado”.
A “indiferença” daquele que faz Exercícios é atitude fundamental e é, evidentemente, dom de Deus, que
o exercitante deve pedir e à qual deve se “dispor”; também aquele que “dá Exercícios” só poderá ajudar
a partir de sua própria “indiferença”. Não é fácil ser (ou fazer-se) conscientemente instrumento neutral,
que se deixa usar e que não precede, nem antecipa, desde sua pequena experiência pessoal, o itinerário de
Deus, único e irrepetível, para cada pessoa.
“Dar Exercícios” não é receitar. Aquele que “dá Exercícios” tem em seu processo mais perguntas que respostas. Tantas ou mais perguntas que o exercitante no seu processo.
Ambos são processos em paralelo, pois os dois são conduzidos pela mesma pergunta fundamental, a Vontade de Deus: o exercitante para eleger, e aquele que “dá Exercícios”, para
ajudar a eleger, o que também requer eleição (ou eleições).
Para aquele que “dá Exercícios”, dá-los, é um exercício permanente de purificação de toda “afeição
desordenada”; isso supõe, por um lado, testemunhar sua “afeição” ordenada à pessoa que se exercita e
sua “afeição” apaixonada a Deus que confia a ele tal exercitante.
Por outro lado, vigiar e não permitir que nenhuma destas duas “afeições” se curve sobre si mesmo e
termine nele, sob a força de uma auto-afeição incontrolada, convertendo-se em benefício próprio o que
lhe foi dado para servir a Deus e “ajudar” a outros.
A genial síntese paulina sobre evangelização: “Não nos anunciamos a nós mesmos, mas a Jesus Cristo,
o Senhor, declarando-nos servidores vossos, por amor a Jesus” (2Cor. 4,5), deveria presidir cada intervenção daquele que “dá Exercícios”, suas palavras e seus silêncios, sua escuta e suas perguntas. A
missão sua é pura e limpidamente “desaparecer” como servidor gratuito, e por isso feliz e satisfeito,
depois do anúncio de Quem por ele foi “alcançado” e a Quem se esforça apaixonadamente por
“alcançar” .
O processo mesmo, como processo de salvação e de vida que é, contém, também para aquele que “dá
Exercícios”, uma permanente virtude desmascaradora de suas próprias contradições
pessoais. Ele deve, em pura e elementar honradez, sentir-se “refletido” no espelho do
Evangelho, que está oferecendo àquele que se exercita e, não deixar que se resvale o que o
exercitante lhe devolve “sentido e saboreado”.
Constantemente estão projetados sobre sua vida e iluminando suas contradições dois poderosíssimos
focos: o Evangelho que ele diz ao exercitante e o que lhe diz o exercitante depois de ter orado.
E com muita frequência experimentará a sacudida entre o que espera de seu “trabalho” de dar exercícios
e o que, de fato, lhe vem, contradizendo-o muitas vezes; entre a insignificante luz de sua “breve e sumária
declaração” (EE.2) e a luz cegadora do “sem duvidar nem poder duvidar” (EE. 175), o grande sinal de
Deus, que não tão raramente se produz no exercitante.
A “autoridade moral” daquele que “dá Exercícios” está quase constantemente submetida à prova.
Só a humildade de quem se sabe muito mais discípulo que mestre e aceita agradecido a evangelização
corretora de suas incoerências descobertas, lhe devolverá a credibilidade, que sabe necessitar.
Por isso, ao exercício de “dar Exercícios” pertence também a “quinta adição” (EE. 77):
“depois de acabado o exercício, por um espaço de um quarto de hora... olharei como me saí...;
e se mal, buscarei a causa de onde procede e, depois de a descobrir, me arrependerei, para
me emendar no futuro; e se bem, darei graças a Deus nosso Senhor”.
-5-
Igualmente é muito valioso também incorporar ao processo de “dar Exercícios” a dinâmica das
repetições, e dos resumos, que não são observâncias, nem ritos, mas dinamismos inerentes ao processo
mesmo, pedagogia com a qual “aquele que se exercita” (e “dar Exercícios” é “exercitar-se” )
completa, recolhendo-a e aprofundando-a, a pedagogia das moções de Deus “notando e fazendo
pausa” sobre elas.
Regras de discernimento de espíritos
Um dos instrumentos principais nas mãos daquele que “dá os Exercícios”, cujo uso deve ser familiar em
seu serviço, é a bateria de regras para discernir “as várias moções”.
Assim lhe é recomendado já desde o princípio (EE. 8; 9; 10).
Quais, em que momento e de que maneira hão de ser utilizadas, é uma arte espiritual no qual
tem muito mais a ver a observação e a experiência pessoal, que a metodologia superanalizada
pelos especialistas.
Para uma aplicação constante de ditas regras a situações nunca iguais, mas sempre novas,
mesmo na história de salvação de uma mesma pessoa, serve, mais que a pura técnica psicológica ou espiritual de laboratório, o que o exercitador tenha-as aprendido e experimentado em sua
própria carne.
Ao propô-las a outros, poderá, aquele que “dá Exercícios” conhecer vários “espíritos” (EE. 8) também
em si mesmo e proceder em consequência. Mais ainda, pertence à sua “ética profissional” alargar sua
própria suspeita sobre si mesmo e assegurar-se de não estar sendo enganado pelo “inimigo”, senão
precedido e acompanhado pelo bom espírito (EE. 314-315).
Vale então aplicar sobre si mesmo o princípio objetivador inaciano da 2 ª regra do 2º modo do 3º tempo
“para fazer boa e sã eleição” (EE. 185), isto é, “considerar o que eu lhe diria (a um homem que nunca
vi nem ouvi) que fizesse e elegesse para maior glória de Deus nosso Senhor... e, procedendo do mesmo
modo no meu caso, tomarei para mim a regra que fixei para o outro”.
Cabe também interpretar o certeiro princípio inaciano de “se hão de aplicar os tais exercícios” (EE. 18),
que é função daquele que os dá, como “se hão de auto-aplicar os tais exercícios” pela mesma pessoa que
os “pratica”, ajudando os outros.
Porque também ele pode mover-se em momentos de mediocridade ou de fervor espiritual, pacificado ou
agitado de vários espíritos, clarividente ou confuso, rotineiro ou “de bien em mejor subiendo” (EE. 315).
Portanto, não só lhe será legítima, mas em muitas ocasiões necessária, a auto-aplicação das “Regras para
de alguma maneira sentir e conhecer as várias moções que se causam na alma” (EE. 313), tanto “as
mais próprias para a primeira semana”, como as que “conduzem mais para a 2a semana”.
Porque, também naqueles que “dão Exercícios”, acontecem deslizes internos que deveriam ser
considerados como de 1ª Semana. Por exemplo, o fácil deslize para cômodos automatismos, ou à mecânica
aplicação de técnicas, ou à semeadura maquinal, programada, ou a solução a golpe de receita, ou a esquecer-se de que também eles tem suas debilidades e de que “o inimigo da natureza humana..., por onde
nos encontrar mais fracos e mais necessitados para nossa salvação eterna, por ali nos bate e
procura tomar-nos” (EE. 327).
Estes tipos de deslizes e outros semelhantes, que brotam, como sem sentir, do egoísmo humano, do qual é
portador também aquele que “dá Exercícios”, tem uma finalidade “auto-protetora”: situam-no
instintivamente ao abrigo de Deus, refugiando-se na segurança humana de seu modo de dá-los – que é
como sua riqueza (EE. 142) – longe de toda exposição à intempérie do Espírito, às suas surpresas e à sua
novidade.
Protegido de todo modo de confronto com Ele, aquele que “dá Exercícios” pode também mover-se na zona tíbia, e por
isso estéril, do não perguntar-se a si mesmo, do não deixar-se perguntar por Deus e do esquivar-se, com mil sutilezas,
das perguntas das pessoas. Este negar-se a que seu próprio modo de dar exercícios seja confrontado, tem algo do
querer ser secreto e não descoberto” (EE. 326).
Segundo as regras inacianas, não deveríamos estranhar de que também àqueles que “dão Exercícios” o
“inimigo” lhes ajude a imaginar e aumentar êxitos “para mais os conservar e aumentar” no
conformismo de dá-los (EE. 314).
-6-
Além disso o “inimigo” o inquietará “com falsas razões para que não se passe adiante”, esquecendo-se
de que está diante de um mistério, de um âmbito sagrado desconhecido, inteiramente novo.
Aqui a preocupação fundamental não é como descarregar um pacote de idéias que ele traz preparado, mas
considerar quê está realizando neste exercitante concreto Aquele que o enviou para que lhe ajude, e que ele
ainda não sabe em que vai consistir.
No primeiro caso, não precisa ser ensinado por ninguém. No segundo, lhe é imprescindível começar por
ser evangelizado ali mesmo, sobre o terreno novo, que pisa e que é sagrado (Ex. 3,5).
Aquele que “dá Exercícios” é com frequência tentado de mil protagonismos sutis, de preceder ao
Espírito e de não seguir-lhe sobre a base das experiências que se vão produzindo no exercitante ou de
encastelar-se na segurança de seus próprios conhecimentos, os quais foram sendo acumulados em sua
experiência de dá-los.
Sente-se mais seguro como mestre que como discípulo.
Sua “experiência” mesma de “dar Exercícios” acaba convertendo-se em uma espécie de título de propriedade da verdade, uma espécie de magistério definitivo, que o fecha ao evangelicamente autentico, à sabedoria de deixar-se possuir pela verdade, o “só sei que não sei nada”,
o “só sei perguntar”, que lhe mantém aberto à insondabilidade de Deus em cada uma de suas
obras e de seus caminhos.
Seu serviço é unicamente interpretar a Deus, de nenhum modo suprí-lo, nem, muito menos,
substituí-lo. O sinal mais evidente desse grosso “engano” é o não-escutar, o somente falar, o
“falar-se”.
Ao contrário – e a raiz é a mesma -, também pode ser tentado de inibir-se em demasia, de não
comprometer-se, com a desculpa de não interferir na obra do Espírito, ou de não pressionar a liberdade
daquele que tem diante de si e, em consequência, não atrever-se a apresentar o contraste que ajudaria o
exercitante, por medo de que fique desfigurada sua própria imagem.
Talvez os “enganos” mais sutís provém da vertente do narcisismo humano, do afã, aparentemente legítimo, de
verificar a eficácia de seu trabalho de “dar Exercícios”, medida em sinais de conversão ou de reconhecimento.
Dificilmente quem se move nesta onda se atreverá a olhar-se no espelho que ele mesmo apresenta ao
exercitante para que descubra seus enganos. Mas fazer este “exercício” seria parte importante da
evangelização que Deus lhe está oferecendo no “ministério” mesmo de “dar Exercícios”.
Consolação-desolação
Aquele que “dá Exercícios” necessita, tanto ou mais que aquele que os faz, verificar seu mundo pessoal
de consolações e desolações. O estado habitual daquele que “dá Exercícios” deve ser a consolação
serena, a que provém de sentir-se “inflamado no amor a seu Criador e Senhor”, que o leva a amar todas
as coisas “no Criador delas” (EE. 316).
Os sinais desta consolação básica não são difíceis de detectar.
Não precisam ser “chamativos”, e até poderia ser motivo de suspeita se assim forem.
A 3ª regra (EE. 316) nos diz: “aumento de esperança, fé e caridade, e toda alegria interna, que
chama e atrai para as coisas celestiais e à própria salvação de
sua alma, aquietando-a e pacificando-a em seu Criador e Senhor”.
Não é que aquele que “dá Exercícios” tenha que estar imunizado contra toda desolação.
De fato, não está. Mas quando ela vem, lhe valerão as mesmas chaves dos Exercícios, que ele ensina:
prontamente, o “interno mudar-se contra a tal desolação” (EE. 319), mediante formas de cooperação
humana com Deus, que signifiquem que, enquanto esperamos a volta de Seus sinais, queremos seguir
pondo os nossos, como “insistir mais na oração... e em alargarmos em algum modo conveniente de
fazer penitência” (EE.319).
Em todo caso, não deverá tapear a visão cristã da tal desolação, revisando possíveis causas (EE. 322).
Ao fazê-lo, a desolação se converterá para ele num novo “kairós” pelo qual torna-se evangelizado.
Finalmente, como “com causa pode consolar a alma tanto o bom anjo como o mal” (EE. 331), deverá
observar atentamente “o discurso dos pensamentos”, isto é, aonde lhe vai levando a tal consolação, se,
por exemplo, a confiar mais na própria experiência que vai acumulando, ou à salvação cristã de sentir-se
cada vez mais “relativizado” como instrumento, mas ao mesmo tempo, cada vez mais dócil.
-7-
“Regras para o sentido verdadeiro que na Igreja militante devemos ter...” (EE. 352)
Consideradas, não só como normas gerais para o compromisso de vida de todo cristão, senão como
critérios que orientam e formam atitudes que tem que ver com o processo mesmo dos Exercícios, valem
para ajudar o exercitante a viver sua experiência como experiência de Igreja, mas também ajudam aquele
que “dá Exercícios” a viver seu “ministério” de dá-los como ministério da Igreja.
Porque todas elas o situam em referência necessária à Igreja como mediação do Evangelho.
São um convite a associar-se mais profundamente à fé da Igreja e a fazer-se ajudar por suas expressões.
Final
Diante de tudo o que foi exposto anteriormente, aquele que “dá Exercícios” torna-se permanentemente
remetido de modo muito direto à oração preparatória (EE. 46).
O fato de que “todas as minhas intenções, ações e operações sejam puramente ordenadas” supõe que
voluntariamente se está deixando “ordenar” desde o mais profundo de seu eu, até o mais exterior das
opera- ções, que em último têrmo procedem desse eu, convencido de que não atua por si mesmo,
autonomamente.
Sabe-se “mediação”, passagem, de dupla direção: não só fala “em nome de Deus” ao exercitante, mas
“em nome do exercitante” a Deus; e não só em sua oração por ele, mas associando-se e somando-se à
sua escuta.
Aquele que “faz Exercícios” e seu processo de salvação se convertem em Evangelho vivo, fonte inesgotável de evangelização sempre nova para aquele que os dá.
Se cada ressonância do humano em seu coração é vivida por ele como um novo impulso, a sua vontade de
“ajudar” Àquele que salva e àquele que é salvo, lhe devolverão uma e outra vez ao “o que devo fazer
por Cristo” (EE. 53), sinal evidente de que vai sendo evangelizado ao mesmo tempo que evangeliza.
“Dar Exercícios” é, em definitiva, um ato de fé e, como tal, lhe é essencial o batido sistólico da fé:
receber-dar.
Deste batido, ou respiração, depende em grande parte sua renovação em dá-los, com a qual colabora, de forma personalizada, a que seja conhecido por aquele que se exercita e “quer e deseja”
nascer de novo (Jo. 3,3), o Deus que, de formas inesgotáveis, faz “novas todas as coisas”.
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FONTE:
CEI-JESUÍTAS - Centro de Espiritualidade Inaciana
Rua Bambina, 115 - Botafogo – RJ – 22251-050
[email protected] / www.ceijesuitas.org.br
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Dar Exercícios uma forma de fazê-los