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A MALDADE HUMANA NA SOCIEDADE ATUAL:
UMA ANÁLISE JURÍDICA-SOCIOLÓGICA DO CASO FABIANO
LOPES DA SILVA: O “PAULISTA”, DE FILHO BOM E CARINHOSO A
PREDADOR DAS PENITENCIÁRIAS
Jailson Vieira1
Walmir Fernandes Pereira2
1 INTRODUÇÃO
Este ensaio tem como objetivo identificar algumas consequências da maldade humana
na sociedade atual e demonstrar que dentre as suas várias faces, a violência é uma das mais
evidentes no atual contexto social.3 Preocupa-se com a velocidade com que os efeitos dessa
manifestação da maldade afeta os lares brasileiros, seja através das notícias veiculadas na
mídia, seja na sua prática corriqueira. A partir de criteriosa leitura de parte da obra de Emile
Durkheim (1983), acerca da Divisão do Trabalho Social e a Solidariedade Social, pretende-se
identificar até que ponto o Direito contribui para a reintegração social, considerando a
violência como um dos principais mecanismos de desintegração.
Analisar os pensamentos do ilustre sociólogo, torna-se nesse contexto pressuposto
fundamental para a compreensão dos aspectos relacionados a violência como reflexo da
maldade humana. É preciso, inicialmente, delinear o assunto, esclarecer os conceitos,
dinamizar as teorias e sua aplicabilidade no cotidiano da sociedade brasileira.
A fim de ilustrar a pesquisa, propõe-se um estudo de caso a partir do texto “O caso
Fabiano Lopes da Silva, o “Paulista”. De filho bom e carinhoso a predador das
penitenciárias”, da jornalista Elaine Amaro Leite Simões (2004). A autora, instigada pelos
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Graduando em Direito pela FAMINAS-BH.
Graduando em Direito pela FAMINAS-BH.
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depoimentos de um criminoso contumaz vê-se tão envolvida com a história a ponto de tornarse parte dela. O texto, baseado nas entrevistas realizadas por Simões (2004), possibilita uma
visão de como a violência, representada pelas práticas criminosas do ator principal, pode ser
reflexo dessa maldade humana.
A partir do caso proposto, ainda que de maneira menos aprofundada, aborda-se
também o aspecto da credibilidade de instituições como a família e o Estado Moderno. À luz
do Direito, analisa-se até que ponto uma sociedade consegue manter-se realmente coesa em
meio a tantas rupturas provocadas pela violência.
Para melhor entendimento, há de se ressaltar que Durkheim (1983) viveu numa época
em que muitos valores tradicionais haviam se perdido em detrimento do descrédito da religião
e da ascensão dos novos valores propostos pelo positivismo e pelas classes sociais
emergentes. O autor trata sobretudo desta crise de valores na qual a sociedade estava se
embrenhando; e ao compreender que a maldade humana está intimamente relacionada a
estes fatores, não se pode deixar de observar que o resgate da solidariedade social proposto
em sua obra está diretamente ligado à especialização das tarefas. É nesta seara que, então,
desponta o direito, como adiante se verá.
Assim, propõe-se apenas uma discussão inicial acerca destes aspectos mais complexos
da maldade humana, sem, entretanto, querer esgotar o assunto. Não procuramos tanto dar
respostas técnicas ao eixo temático proposto, mesmo porque consideramos isso uma tarefa
para o final do curso de Direito, mas sim compreender a dinâmica da pesquisa científica e sua
curiosa capacidade de sempre gerar mais questionamentos.
2 A FUNÇÃO DA DIVISÃO DO TRABALHO
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Esta pesquisa foi orientada pelos professores José Carlos Batista, Maria Aparecida Mendes Costa e Dorival
Guimarães Pereira Júnior.
3
Ao abordar o tema “A Função da Divisão do Trabalho”, teoria proposta pelo sociólogo
Emile Durkheim (1983), deve-se considerar que a palavra “função” desperta uma ideia de
correspondência sem prejulgar nada sobre a questão de saber como esta correspondência se
estabeleceu. Desta maneira, Durkheim (1983, p.23), propõe que o que nos importa é saber se
ela existe e em que consiste, se não foi pressentida de antemão, nem mesmo se foi sentida
ulteriormente. Compreende-se, então, que é necessário verificar se existe uma outra função
para a divisão do trabalho social que não aquela voltada para o desenvolvimento intelectual e
material das sociedades.
E, ao fazer-se tal questionamento, o autor quer saber primeiro se tal divisão possui
um caráter moral. A fim de estabelecer um método seguro para aferir se existe ou não um
grau de moralidade aí presente, ele parte da ideia de que não havendo um fato para medir o
nível de moralidade média de uma civilização, é possível estabelecer um parâmetro para
aferir pelo menos a imoralidade coletiva:
O número médio dos suicídios, dos crimes de todo tipo, pode, com efeito, servir para
marcar a elevação da imoralidade em uma dada sociedade. Ora se fizermos a
experiência, ela não redundará em honra para a civilização, pois o número destes
fenômenos mórbidos parece crescer na medida em que as artes, as ciências e
indústria progridem (DURKHAEIM, 1983, p.24).
O sociólogo nos assegura em seguida, que, se tal parâmetro não serve para concluir
que a civilização é imoral, pode confirmar que, se a função material e intelectual da divisão
do trabalho tem sobre a vida moral uma influência positiva e favorável, esta é muito fraca. De
fato, ao tomar como base a atividade econômica desenvolvida pela civilização, vê-se que ela
está desprovida de caráter moral. São nos grandes centros, e, em consequência das antinomias
da vida urbana, que ocorrem o maior número de suicídios e outros crimes. Derrubam-se
florestas inteiras para construir cidades e, em seguida, derruba-se esta cidade para construir
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uma única usina hidrelétrica; troca-se dez homens por uma máquina, pequenos artesãos por
grandes multinacionais. Há uma ruptura na teia de relações estabelecida entre os homens e,
consequentemente, surgem as adversidades. Sob o foco das necessidades materiais, a
sociedade, de fato, cresce, mas vê-se que estas necessidades nem sempre são morais.
Atribuir um caráter moral à divisão do trabalho significa separá-la da zona neutra da
moral. Se se estabelece uma relação de compensação entre as vantagens econômicas e seus
inconvenientes morais, certamente não seria possível dizer qual das duas prepondera. Correrse-ia o risco de se invocar a primazia da moral para condenar radicalmente a divisão do
trabalho em seu aspecto intelectual e material. Durkheim (1983, p. 26) argumenta neste
sentido que, “[...] além desta ultima ratio4 ser um golpe de estado científico, a evidente
necessidade de especialização, torna tal posição impossível de sustentar”.
Deduz-se, então, que se existe outra função para a divisão do trabalho social, esta deve
resolver a dualidade moral que gira em seu entorno, de tal forma que haja um argumento
moral mais objetivo e que não admita a neutralidade. Neste sentido, Durkheim (1983, p. 27)
propõe:
Assim, somos conduzidos a considerar divisão do trabalho sob um novo aspecto.
Neste caso, com efeito, os serviços econômicos que ela pode prestar são pouca
coisa ao lado do efeito moral que ela produz, e sua verdadeira função é criar entre
duas ou várias pessoas um sentimento de solidariedade.
Nessa perspectiva, tem-se como exemplo a sociedade conjugal na qual,
modernamente, todos os membros dividem as semelhanças e principalmente as
dessemelhanças: “o mais notável efeito da divisão do trabalho não é que aumenta o
rendimento das funções, mas que as torna solidárias” (DURKHEIM, 1983, p.30). Desta
maneira, é que no casamento, cada qual contribuindo com uma parte da relação, desde o sexo
4
Do latim ultima razão. Argumento decisivo e terminante. ULTIMA RATIO. In: Expressões em latim e
outras línguas on-line. Disponível em:<http://www.larsoft.net/Publico/Item.aspx?Codigo=212>. Acesso em: 29
mai.2008.
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até as tarefas corriqueiras como cuidar dos filhos, pagar as contas e arrumar a casa, mantémse o sentimento de dependência e ajuda mútua.
Assim, a maior ou menor diferenciação entre os indivíduos pode nos revelar qual o
grau de solidariedade de uma sociedade. E o caráter aglutinador da divisão do trabalho
assegura a unidade social a partir desta diferenciação. Segundo Durkheim (1983, p. 31):
É legítimo supor que os fatos que acabamos de observar se reproduzam aqui, mas
com amplidão; que também estas grandes sociedades políticas podem se manter em
equilíbrio só graças à especialização das tarefas; que a divisão do trabalho é a fonte,
senão única, pelo menos principal da solidariedade social.
Com isso, a sociologia durkheimiana nos possibilita compreender que a divisão do
trabalho desempenha um papel muito mais importante que aquele lhe foi atribuído
primeiramente; ela é uma condição de existência: assegura a coesão social e por isso assume
este importante caráter moral.
Para proceder a verificação da hipótese acerca da coesão social, Durkheim (1983)
classifica as diferentes espécies de solidariedade social e as relaciona ao Direito. Observa-se
que quanto maior a coesão, maiores e mais complexas são também as relações. É preciso
encontrar um elo que não conseguindo manter a coesão, pelo menos a restabeleça quando
rompida. O sociólogo justifica sua proposição quando afirma que “a vida geral da sociedade
não pode se desenvolver num ponto sem que a vida jurídica se estenda ao mesmo tempo e na
mesma proporção” (DURKHEIM,1983, p.32).Assim, é que
sob o foco de um Direito
classificado em diferentes espécies, pode-se verificar como essas caracterizam esse elo. Para
tal verificação, Durkheim (1983, p.34) estabelece que:
Devemos dividir as regras jurídicas em duas grandes espécies, segundo tenham
sanções repressivas organizadas ou sanções apenas restitutivas. A primeira
compreende todo o direito penal; a segunda o direito civil, o direito comercial, o
direito processual, o direito administrativo e constitucional [...].
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Sob a égide do Direito Penal, infere-se que aquilo que provoca a ruptura do vínculo
social exigindo a manifestação do direito repressivo seria o crime. Sendo esse crime uma
forma de violência que manifesta claramente os estágios da maldade humana, após sua
ocorrência há uma imediata preocupação em se restabelecer a ordem, fazer com que os efeitos
daquele mal sejam minimizados ou retornem ao seu autor a fim de penalizá-lo. A partir deste
ponto, para elucidar melhor a teoria durkheimiana acerca do rompimento desta coesão social
provocada pelo crime, reflexo da violência urbana verificada nos dias atuais, propõe-se o
estudo do caso de Fabiano Lopes da Silva, o “Paulista”, a partir de seu relato de vida, tal
como consta no anexo I.
2.1 ANÁLISE SOCIOLÓGICA DO CASO PROPOSTO
Para se proceder a análise do caso ora mencionado, é necessário retornar ao ponto
anterior. Percebe-se que inúmeras são as possibilidades de apreciação da matéria, tanto sob o
foco sociológico quanto psicológico. A fim de manter-nos fiéis ao tema proposto, adota-se o
ponto de vista sociológico, mesmo porque o estudo da solidariedade social pertence à
Sociologia. Durkheim (1983, p.33) afirma que a solidariedade, na verdade,
É um fato social que se pode conhecer bem só por intermédio de seus efeitos sociais.
Se tantos moralistas e psicólogos puderam tratar a questão sem seguir este método, é
porque contornaram a dificuldade. Eliminaram do fenômeno tudo o que há de mais
social para dele reter apenas o germe psicológico do qual ele é o desenvolvimento.
Compreende-se que, para um indivíduo comportar um fato social5 tão importante, é
preciso que o seu organismo o comporte; e esse comportar depende, apenas em um primeiro
momento, da estrutura psíquica. Sendo a natureza dos fatos sociais externa aos membros da
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sociedade, pode-se neste caso abandonar as causas psíquicas responsáveis pelas ações do
personagem Fabiano e ater-se às de cunho sociológico, mesmo porque “é muito raro que a
estas análises de pura psicologia não se encontrem misturadas algumas considerações
sociológicas” (DURKHEIM, 1999, p.33).
A partir do perfil histórico do personagem Fabiano, é possível identificar as
circunstâncias que o envolveram na criminalidade. Através da leitura do caso apresentado,
percebe-se um jovem que viveu no núcleo normal de uma família. Ele era desde a infância
uma pessoa agitada; a mãe foi orientada a tratá-lo, mas, por força do amor materno, não
reconheceu que a estrutura psíquica de seu filho era falha; considerado filho bom e carinhoso,
revelou muito cedo sua decepção com o “mundo dos adultos” e logo começou a usar
entorpecentes. A mãe relata que viveu o mesmo drama de qualquer família que abriga em seu
seio um viciado em tóxicos: Fabiano “pegava as coisa dentro de casa para vender e costumava
chegar da rua muito tarde”, relata a mãe, que, na tentativa de corrigi-lo, surrava-lhe muito.
Desde o núcleo familiar encontra-se a presença da punição, da repressão como forma
de solução para as crises.Entende-se que havendo uma quebra de rotina que revele a
transgressão de alguma norma, a sociedade exige pelo Direito, a imposição de uma pena que
busque o resgate da ordem ou pelo menos a sensação de compensação ou vingança. Na esfera
familiar, os pais são aqueles que detêm o controle da situação e operam o direito doméstico.
Para a mãe de Fabiano, por exemplo, as travessuras deveriam ser penalizadas com castigos
corporais, como ela mesma relata que o fez. Verifica-se que Fabiano sofreu durante toda a sua
vida muitas penas e cada vez que uma lhe era imposta, rebelava-se mais. A violência passou
a ser para Fabiano, uma forma de praticar a justiça em detrimento à decepção para com o
mundo e a intrínseca maldade humana.
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Tais fenômenos compreendem “toda maneira de agir fixa ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma
coerção exterior (QUINTANEIRO, 2003, p.68).
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As várias idas e vindas de Fabiano ao sistema prisional brasileiro possibilitam
questionar a validade da pena e o seu efeito em torno dos diversos crimes praticados por
Fabiano, inclusive das que fora acometido quando criança. Na visão de Durkheim (1983,
p.35) :
Existem sem dúvida crimes de espécies diferentes; mas, entre todas as espécies há,
não menos seguramente, algo de comum. O que o prova é que a reação que eles
determinam por parte da sociedade, a saber a pena, é, salvo diferenças de grau,
sempre e em toda parte a mesma.
De fato, considerando o crime uma ruptura drástica desta coesão construída pela
divisão do trabalho social, o direito atua como um elo para restabelecer a integridade do corpo
social. Fabiano, como parte deste corpo, não compreendeu que estes fatos sociais contra os
quais se rebelara tinham tamanha força.
É importante considerar ainda que cada cidadão, sendo parte de um grupo
especializado em determinada tarefa social, deve dedicar-se a fim de contribuir para o
crescimento moral de tal grupo. Mesmo que realize estas obrigações com o fito individual de
garantir sua sustentação material, está obrigado a contribuir para a manutenção do caráter
moral presente da sociedade, uma vez que as relações vividas no dia a dia não podem ser
conduzidas de outra forma. Durkheim denomina estes laços que unem os membros entre si,
sem nenhum intermediário, de consciência coletiva. Segundo Quintaneiro (2003, p.81) “a
função que o indivíduo desempenha é o que marca seu lugar na sociedade”. Daí, deduz-se que
esta consciência comum ocorre quando os indivíduos se diferenciam a tal ponto que a
interdependência entre eles seja evidenciada por esta mesma diferenciação. Assim, se a
consciência coletiva é comprometida, é a solidariedade social que a reestrutura através do
direito repressivo e suas penas.
Fabiano fez parte de grupos sociais importantes: primeiro a família, em que não
conseguiu sentir os efeitos desta solidariedade. O pai era alcoólatra e não cumpria seu papel
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de educador ou mesmo de julgador. Sentiu os primeiros efeitos da violência. A mesma
violência que praticara muitas vezes depois, dentro dos presídios de Belo Horizonte. À mãe,
faltava-lhe estrutura e mesmo referências. Os irmãos, ao contrário de Fabiano, seguiram
caminhos aparentemente menos árduos; um deles, que era policial, dividiu com Fabiano, ao
mesmo tempo, o amor de irmão e a decepção de defenderem lados opostos. A questão é que
Fabiano,assim como muitos jovens brasileiros, experimentou, já no seio da família, o sabor
amargo da maldade humana. Num cenário familiar aparentemente normal, surgiu Fabiano, “o
predador das penitenciárias”. Depois que ingressou de vez no mundo da criminalidade, a
violência passou a ser definitivamente a sua forma de fazer justiça. Ele não compartilhou da
solidariedade aqui estudada, mas certamente experimentou a solidariedade que habita naquele
meio.
Ao rebelar-se contra a sociedade, Fabiano passa a sentir na carne os efeitos disso, pois
ele contribuiu com a manutenção de uma moral não oficial: é preso várias vezes, vive à
margem, tenta recuperar-se, mata e morre cruelmente. A solidariedade social e
consequentemente a consciência coletiva se perderam em meio ao turbilhão de mazelas que
assolaram a vida de Fabiano. O direito penal, aqui tomado como referência, não cumpriu sua
missão de reestruturar aquele indivíduo para o convívio social. E não foi por uma ação
naturalística ou evolutiva simplesmente, mas resultado de uma sociedade que toma padrões
morais para os seus componentes, mas não os alimenta como deveria. Neste sentido,
Durkheim (1983, p.54) afirma que:
Existe uma solidariedade social que provém do fato de que um certo número de
estados de consciência é comum a todos os membros de uma mesma sociedade .É a
ela que o direito repressivo figura materialmente, pelo menos no que ela tem de
essencial.
Sendo o Direito um elo tão importante, só pode ser realmente reconhecido pela
sociedade se esta consciência comum o compreende como tal, não a fim de acabar com os
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“Fabianos” ou vingar-se deles, mas resgatá-los e recuperá-los, a fim de que possam reassumir
seu papel na sociedade. E o cerne ao qual podemos retornar então é: até que ponto o Direito
pode manter uma sociedade realmente coesa?
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Embora existam no ser humano duas consciências, uma contém apenas estados que
são pessoais a cada um e que nos caracterizam, enquanto que os estados que compreendem a
outra são comuns a toda sociedade. A primeira representa a personalidade individual e a
constitui; a segunda representa o tipo coletivo, e, por conseguinte, a sociedade sem a qual ele
não existiria. A maldade humana figura nas duas, girando sobre o eixo psicológico e
sociológico. O caso Fabiano leva a considerar essas duas hipóteses, ainda que, na perspectiva
de Durkheim (1983), consideram-se os fatos sociais como mais relevantes.
A consciência coletiva forma-se a partir das semelhanças e dessemelhanças entre os
membros de uma sociedade; quanto maior essa diferenciação, mais alto é o nível de
dependência entre esses indivíduos. Através da divisão do trabalho social, Durkheim (1983)
ensina como essa solidariedade se forma e influencia as relações humanas. Havendo essa forte
inclinação entre os homens, multiplicam-se as ocasiões que têm para se relacionarem,
aumenta-se a solidariedade e também a adversidade. E quando surge a adversidade, nasce a
violência, reflexo da maldade humana. Fabiano fez parte de vários grupos e bem ou mal
contribui com a coesão social e sua ruptura. Pode-se considerar que todo homem tenha um
pouco de Fabiano à medida que contribui ou não com a manutenção da solidariedade social.
A prática criminal é uma destas formas de violência.
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Restam então outras possibilidades a serem questionadas: como o Direito pode
contribuir para que as penas aplicadas aos infratores abandonem o caráter vingativo e
assumam verdadeiramente o educativo? Como educar a sociedade a praticar uma moral
possível e de cunho não meramente material? Existem muitos Fabianos por aí: refletem na
face da sociedade a violência. São vítimas ou autores da maldade humana?
A pergunta
inicial segue sim, sem resposta, e não se sabe até quando. A sociedade, como corpo solidário,
não se dispondo a qualificar que tipo de moral realmente importa na formação de seus
membros, corre constantemente o risco de formar cidadãos que desconhecem as regras
impostas e deixam aflorar a maldade sem qualquer pudor. Os laços continuam se rompendo, e
o direito... bem, o direito que deveria ser elo, ora fixa-se de um lado,ora de outro... mas elo
que se preze deve sempre fixar os dois lados do que não se pode romper .
REFERÊNCIAS
DURKHEIM, Emile. Da divisão do trabalho social. In: Coleção os Pensadores. São Paulo:
Abril cultural, 1983, p.23-70.
QUINTANEIRO, Tânia; BARBOSA, Maria Lígia de Oliveira; OLIVEIRA, Márcia Gardênia
Monteiro de. Um toque de clássicos: Marx, Durkheim, Weber. 2.ed. belo Horizonte: UFMG,
2003. 159p.
SIMÕES, Elaine Amaro leite. O caso Fabiano Lopes da Silva, o “paulista”: de filho bom e
carinhoso a predador das penitenciárias. Texto proposto para debate em sala de aula pelos
discentes do Curso de Formação de Sargentos no ano de 2004, disciplina Sociologia Aplicada,
na Academia de Polícia Militar de Minas Gerais.
ULTIMA RATIO. In: Expressões em latim e outras línguas on-line. Disponível
em:<http://www.larsoft.net/Publico/Item.aspx?Codigo=212>Acesso em: 29 mai.2008.
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ANEXO I - Trechos de “O caso Fabiano Lopes da Silva, o ‘Paulista’. De Filho bom e
carinhoso a ‘predador das penitenciárias”, de Elaine Amaro Leite Simões
No dia 14 de dezembro de 2001, vários detentos confinados em uma pequena cela da
Divisão de crimes contra o Patrimônio, em Belo Horizonte, assistiram a uma cena que nunca
mais esqueceram. O colega Fabiano, também conhecido como “Paulista”, saiu do banheiro
segurando a cabeça e o coração de um outro colega, o Tufinha. Com os braços abertos e
segurando cada membro em uma das mãos, disse com naturalidade: “Ele matou meu amigo, o
Serginho, estou fazendo justiça só isso”. Ninguém até hoje disse o contrário.
A vítima acabara de chegar à cela e, segundo o Fabiano, eram inimigos de outros
tempos. “Não esperei, fiquei com muito ódio dele, e o matei”. Para Fabiano não existe perdão.
“Não aceito certos tipos de pessoas, os pilantras, estupradores, traidores e alcaguete não
perdôo mesmo”, lembra se referindo a quatro vitimas fatais que, em menos de um ano, fez
dentro dos diversos presídios e casas de detenção pelo qual passou. Não se sabe ao certo
quantos homicídios Fabiano cometeu, ele mesmo não sabia precisar. Durante as entrevistas
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ele preferiu falar dos casos mais graves, aqueles que lhe deram notoriedade e respeito
rapidamente.
Até o dia 10 de maio, quando foi assassinado, cumpria pena numa penitenciaria de
segurança máxima, a Nelson Hungria, em Contagem, onde os encarcerados vivem em celas
individuais. Mesmo assim, a segurança reforçada não impediu que no dia dois de fevereiro de
2003 fugisse, transpondo um muro de 10 metros. Esteve foragido por dois meses. “Fui preso
novamente porque voltei a Belo Horizonte para acertar contas com um traidor, um pilantra, aí
a polícia me reconheceu na rua”, lembra. Disse que durante o período de fuga, esteve no
Espírito Santo e em Rondônia, mas não conseguiu se estabelecer nas cidades porque a ideia
de matar o traidor o perseguia.
CRIANÇA PROBLEMA
Quando tinha 8 anos , depois de sucessivas expulsões das escolas , a mãe, Maria Eva,
foi aconselhada a levá-lo a um psiquiatra. “Embora o médico tenha prescrito medicamento,
ele nunca chegou a usá-los.” A mãe dele não acreditava muito em remédios e achava que a
inquietação era coisa de criança mesmo, que ele ia, com o tempo, ficar mais calmo, pois,
apesar de todas as aprontações, ele sempre foi carinhoso e amoroso com a mãe e o pai, hoje
ela diz que se arrepende muito e que se ele tivesse se tratado não estaria preso”, diz a tia e
madrinha, Geralda.Já a relação com os irmãos, principalmente com os mais velhos, não era
boa, brigava todos os dias “Meus irmãos me rejeitavam, não me levavam para as festas que
frequentavam diziam que eu era muito agitado e não gostavam de mim”, lembra Fabiano. A
família era constituída de quatros irmãos, o pai e mãe. “Meu pai nunca bateu, minha mãe me
batia e gritava comigo, mas sempre gostei dela e do meu pai, ela fazia isso para me corrigir”,
diz.
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Maria Eva e Arlindo Vicente, apesar de mineiros, moravam em Guarulhos, São Paulo,
desde que se casaram, onde tiveram e criaram seus filhos. “O Fabiano fazia umas coisas
muito estranha durante a infância, ao mesmo tempo em que era um menino bom e carinhoso,
atormentava os vizinhos defecando na porta deles, jogava barro nos carros limpos, mas era
generoso, tirava comida de dentro de casa para dar aos mendigos, pegava cachorros doentes
na rua e trazia para dentro de casa”, conta. Ainda, segundo a mãe, ele não admitia covardia.
Próximo a casa onde morava existia uma “rinha” de galos, onde se faziam apostas
diariamente. Ele chegava em casa dizendo que aquilo não era certo e que precisava tomar uma
atitude para salvar os bichos. “Um dia ele pegou os galos e pintou todos eles de tinta azul,
alem disso colocou esparadrapos nos bicos, o pai dele ficou furioso porque teve de pagar
aqueles galos caríssimos”, lembra a mãe . Quando questionado pelo pai, Fabiano justificou o
ato dizendo que não devemos maltratar animais e que , para ele, era uma maneira de salvá-los.
Segundo a mãe, esse momento marcou a vida do menino, que se mostrou muito decepcionado
com o mundo dos adultos.” Ele chegava em casa correndo, espantado, me dizendo que os
galos estavam lá brigando e que eu deveria fazer alguma coisa e parar aquela covardia, dizia
para ele que não era possível, que fosse brincar”, narra.
Maria Eva se lembra bem quando o filho começou a usar drogas,” vivemos o mesmo
drama que qualquer família vive quando um começa a usar drogas, pegava coisas dentro de
casa para vender e costumava chegar da rua muito tarde, apesar da pouca idade”, lembra. A
mãe ainda lembra “que batia muito nele” e completa “uma vez o deixei de castigo dentro do
meu quarto e quando fui ver o que ele estava fazendo, quietinho que não se ouvia nada,
percebi que havia picado todo meu colchão com um alicate de unha, parecia que havia
nevado, bati tanto nele nesse dia, me arrependo de tanta coisa...”, relata triste Maria Eva, que
é dona de casa.
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O pai é motorista de táxi e trabalha em um aeroporto. “O Arlindo, pai dos meninos,
tem depressão bipolar e toma Lítio, além disso, bebe, nunca bateu nos meninos, mas sempre
foi frio, ausente”, lembra a mãe. O irmão mais velho é Policial Militar em São Paulo, o
segundo tem também um táxi e trabalha com o pai. O mais novo veio para Belo Horizonte
para tentar ajudar o irmão quando soube de seu envolvimento com o crime. Trabalha em um
supermercado, é radiologista em um Hospital e gosta de estudar. Nos finais de semana sempre
conseguia um tempo para visitar o irmão. Embora sendo expulso de várias escolas, Fabiano
conseguiu o 2º ano do segundo grau.
A mãe lembra que, quando tinha cinco ou seis anos, conseguia solucionar jogos com
meninos bem mais velhos, “a pedagoga da escolinha me disse que ele era hiperativo e
precisava de terapias, eu não entendia muito bem estas coisas e não fiz os tratamentos
sugeridos”, lembra. Para Fabiano, a escola era agradável, desde que os professores
conseguissem acompanhá-lo. Muitas vezes, quando aconteciam discussões e brigas entre os
alunos era ele o escolhido para “apartar” a confusão. Geralmente ele ouvia os dois lados
decidia em favor do lado oprimido. “Até a que eu gostava de estudar, mas eu sempre fui
muito agitado, já quebrei uma carteira na professora e ela se machucou bastante, ela havia
agredido um amigo meu”, admite.
Aos dez anos já frequentava as favelas próximas a sua casa. ”Lá as pessoas me
aceitavam, fiz muitos amigos, saímos muito era bom pichar no centro de São Paulo, também
roubamos supermercados e farmácias, gostava de colocar fogo no comércio ou em carros”,
relata Fabiano. Um dia perguntou a mãe se ela se lembrava do incêndio da padaria, dizendo
que sim, ele disse “fui eu, mãe”. Eva disse que não acreditava. ”Ele tinha no máximo 14 anos,
como podia fazer coisas tão cruéis?”, questiona a mãe.
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A PRIMEIRA ARMA
Fabiano tinha 13 anos quando teve acesso a sua primeira arma, conseguiu com os
amigos da favela que frequentava e a intenção era matar o irmão mais velho, depois de um
desentendimento. “Fui lá buscar a arma para matar meu irmão, era longe de casa, na volta,
sentei num banco da praça e passei a noite ali sozinho, eu me lembro que chorei muito e
pensei, não posso matar meu irmão, isso não posso fazer, pensei na minha mãe e no meu pai
e desisti, mas fiquei com a arma para roubar, eu sempre quis ser famoso, ser uma pessoa
respeitada, poderosa”, comenta.
ADEUS BONDADE
Fabiano sempre teve facilidade de estabelecer relacionamentos, embora fosse difícil
mantê-los, devido ao seu “gênio difícil”, fora do núcleo familiar.
Em Belo Horizonte, depois de experimentar ser uma pessoa de responsabilidade, não
adaptou e voltou a fazer o que mais gostava: assaltar bancos. “Já participei de sequestros, não
gosto, trafico também não gosto, agente tem que matar muita gente para se impor, gosto de
assaltar bancos, é rápido e, dando tudo certo ninguém morre” lembra.
Os assaltos são bem planejados e a técnica ele aprendeu quando ainda morava em São
Paulo. “Saímos em quatro, para entrar na agência usamos revólver de plástico, muito
parecidos com uma PT, aí a gente passa pela porta com detector de metal facilmente, dois
ficam lá fora armados com metralhadoras e fuzil, de verdade, para dar cobertura, os dois
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outros que entram, um coloca a arma bem na cara do segurança e grita para ele se assustar, ai
é só pegar rapidamente o revolver e o assalto é feito com a arma do segurança, o outro pega o
dinheiro e saímos em fuga, normalmente usamos de dois a três carros diferentes, roubados ou
com placas frias”, conta. Foram vários assaltos bem sucedidos e o papel de Fabiano era quase
sempre o de surpreender o segurança, tomar sua arma e ameaçar funcionários e clientes.
Fabiano se lembra de quando foi preso pela primeira vez em Belo Horizonte, em 2001,
aos 20 anos. Ele e um grupo de três homens estavam assaltando uma agência do Banco
Bandeirante, à Avenida Pedro II, pela primeira vez. “Não deu tempo, o cara me reconheceu,
os que estavam do lado de fora deram tiros no vidro da agência, aí saímos correndo, mas
fomos perseguidos pela polícia”. Para ele, assaltar bancos é um bom negócio, rende de 5 a 20
mil reais para cada um dos membros da quadrilha em cada investida. “O Fabiano me disse
que foi violentamente espancado pela polícia quando preso pela primeira vez, com isso ele se
convenceu que deveria ser uma pessoal também violenta para ser respeitada, foi quando
começou a praticar esses assassinatos cruéis atribuídos a ele”, diz Maria Eva.
Não se lembra de quantos assaltos já praticou, mas foram muitos. “Dá para comprar
roupas, moto, presentes para as namoradas, se a gente não tem a gente rouba, é o único jeito,
mas evitamos matar, só em ultimo caso, como uma vez em São Paulo, eu estava sozinho em
um supermercado e o cara pulou em minha frente tentando agarrar a arma , tive que reagir e
ele morreu, é a vida”, lamenta. A mãe afirma que o filho errou, mas crimes foram
injustamente atribuídos a ele, “meu filho não sabe defender, aceita tudo que dizem dele, é
muito ingênuo”.
VAI MORRER
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Tufinha era assaltante, assim como Fabiano e Serginho. No sistema prisional existem
leis próprias e quando uma promessa é feita não há como deixar de cumprir, “isso
desmoraliza o cara”. Num desentendimento, Tufinha jurou matar Serginho e cumpriu a
promessa. Fabiano muito amigo da vitima, jurou matar Tufinha. Um dia se encontrariam, e
não demorou. Colocados propositadamente juntos, na mesma cela, Fabiano cumpriu a
promessa.
Foi um crime brutal. Fabiano surpreendeu o inimigo com uma corda improvisada e o
estrangulou, depois golpeou sua cabeça varias vezes no chão e nas paredes, deixando seu
rosto completamente desfigurado.
Não satisfeito e dominado por uma raiva que não soube explicar, utilizou uma pequena
lamina de barbear, retirada de um Prestobarba, para cortar o tecido do pescoço até que
restasse a coluna vertebral a qual quebrou, separando a cabeça do corpo. Utilizando ainda a
lamina cortou o peito da vitima, produzindo uma abertura da qual retirou o coração com as
mãos. “Arrancar a cabeça não foi tão difícil, eu dei um golpe e o osso partiu, o coração foi
mais difícil porque como a lamina era muito pequena não deu para abrir completamente o
peito dele, ai fiz um buraco na barriga e arranquei o coração, puxei com força e mesmo assim
foi difícil”, relata sem remorsos.
Fabiano diz que em São Paulo é comum arrancar cabeça de determinados criminosos,
é lei entre os presos. “Agora, esse negócio de arrancar coração, olhos, nariz fui eu que
inventei”, sorri. Lembra que, quando viu o Tufinha entrando na cela, começou a ficar muito
nervoso, agitado e trêmulo. Teve uma incontrolável vontade de matar a vítima. “Parece que
sou duas pessoas, é uma raiva que não consigo controlar, eu sei que não deveria fazer, pois
aumentaria ainda mais minha pena, mas eu não consegui segurar o ódio que foi me dominado,
queria acabar come ele em pedaços assim como fiz com um outro pilantra, que foi ate pior”,
19
comentou, aumentando o tom de voz, porem não deixando de mostrar certa satisfação em
reviver os fatos.
VULTOS E VOZES
“O pior lugar do mundo é lá na furtos”, lembra Fabiano, pra ele um dos lugares em
que esteve preso e que não consegue esquecer tudo o que passou. “Foi lá que matei e piquei
os caras, parece que a gente fica ainda pior, agente só tem ódio, muito ódio”.
Segundo ele, as pessoas detidas na “furtos” são muito agressivas porque ficam
amontoadas, não podem receber visitas e nunca tomam sol, o cheiro da cela é fétido, horrível.
Privadas, roupas sujas, restos de comida e cigarro se misturam com o chão frio na hora de
dormir.
E a noite que as formas e os sons ganham aspectos terríveis, “as pessoas que morrem
aqui ficam vagando por aqui mesmo, a gente vê vultos, sente arrepios estranhos, ouve os
gritos dos mortos que foram torturados, barulho de correntes, os policiais também escutam
sons estranhos e já vira “vultos”, conta.
Assustado, Fabiano narra momentos ainda mais dramáticos. “Lã morre gente demais, e
os mortos não vão embora, ficam lá, tenho certeza porque já vi”, diz. Conta ainda, que neste
período, não dormia, às vezes fechava os olhos durante pouco tempo e despertava,
sobressaltado, com algum ruído estranho ou a sensação de alguém tentando acordá-lo. Foi
nessa fase que questionou a existência de Deus e qualquer forma de amor e bondade. “O ser
humano e ruim, e cruel, Deus não existe isso e bobagem”, relata. Mesmo assim tinha medo de
ser assassinado
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PERIGO ANUNCIADO
Durante a última visita que recebeu da mãe, há poucos mais de um mês, pediu para
que ela não voltasse, pois o pai muito doente precisava mais dela do que ele. Arlindo Vicente
sofre de depressão bipolar e não esta bem de saúde, principalmente agora, com a morte do
filho. Fabiano continuou recebendo atenção da família, dos padrinhos, dos irmãos mais jovens
e da namorada. “Todos gostavam muito dele, se ele fosse ruim com a gente , não iríamos
visitá-lo frequentemente, ele errou , matou, assaltou bancos e estava pagando pelo que fez,
mais não vamos deixar de amá-lo, respeitá-lo, isso nunca”, diz com tristeza a madrinha.
Os familiares não sabem exatamente como as vitimas foram mortas e mutiladas, não
conhecem os laudos de autópsia e nem as fotos da perícia local, pensam que ele agiu de forma
violenta para se defender. “E não e só isso, Fabiano não sabe dizer não, ele é ingênuo demais,
devido que esses crimes foram praticados por ele, sozinho, claro que outros ajudaram o
problema e ele assumiu a culpa sozinho, como sempre, ele me disse que exagerava para
chamar a atenção, para se impor, e ainda para não contar, deixar ele mesmo resolver a vida,
que jamais iria dedurar os colegas”, confessa a mãe.
Fabiano parou de fumar cigarros porque faz mal, mais admitiu uso da maconha;
drogas como crack e cocaína não assimilou. Também gostava de beber, mais sem exageros.
“Não há dificuldades em se obter as coisas na cadeia, basta pagar por elas”, comenta outro
parente.
Usava jóia, gostava de roupas boas, bonitas e bem passadas. Todo o dia, parte da
manha tomava sol junto com outras pessoas, nas horas seguintes assistia televisão. A
namorada mora em Brasília e vinha um final de semana por mês, quando dormiam juntos
conversavam e faziam planos. Planejava ser pai breve.
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Segundo o policial Marcos Fabio, Fabiano criou inimizades dentro do presídio e jurou
de morte um colega, que também fez a mesma promessa. Ambos estavam recolhidos no
mesmo pavilhão. “A hora do Sol, que é o momento que eles podem se cruzar, estávamos
evitando deixá-los juntos, no mesmo horário, uma saia da cela pela manha e o outro à tarde”,
lembra o policial.
Nos dias 14 a 27 de abril de 2004 Fabiano foi julgado e condenado a mais de 12 anos
de reclusão, pela morte de Baiano, somando um total de 70 anos. “Durante o julgamento ele
confirmou tudo, não se defendeu de nenhuma acusação, não envolveu o nome de ninguém,
parecia a pior pessoa do mundo e os jornais se aproveitaram muito disso, falaram tanta
mentira”, diz a mãe.
EXAME PSIQUIÁTRICO
Compulsados todos os elementos disponíveis os peritos concluem que o periciando
(Fabiano Lopes da Silva) apresenta quadro de transtorno de personalidade antissocial (o
mesmo que transtorno de personalidade psicopatia ou associal). Tal quadro do ponto de vista
psiquiátrico forense significa perturbação da saúde mental e tolhe parcialmente apenas a
capacidade de determinações. Tem assim inteira capacidade de entendimento e parcial
capacidade de determinação.É um transtorno de comportamento que evidência uma
disparidade flagrante entre o comportamento e as normas sócias predominadas. Os transtornos
de conduta já podem ser evidenciados durante a infância e a adolescência. Como constante da
CID 10 apresentaram em gera retirados atos de transgressão como:
1.
Indiferença insensível pelos sentimentos alheios;
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2.
Atitudes flagrantes e persistentes de irresponsabilidade e desrespeito por
normas, regras e obrigações sociais;
3.
Incapacidade de manter relacionamentos, embora não haja dificuldade em
estabelecê-los;
4.
Muita baixa tolerância à frustração e um limiar para descarga de agressão
incluindo a violência;
5.
Incapacidade de experimentar culpa e de aprender coma experiência,
particularmente punição;
6.
Propensão marcante para culpar os outro para oferecer racionalização
plausíveis para o comportamento que levou o paciente a conflito coma sociedade.
Do ponto de vista da psiquiatria forense, configura incapacidade parcial, mas a
periculosidade é elevada, pois há tratamentos, mas não cura.
DUAS FACES OU PARA FABIANO
A trágica previsão feita pelo policial da penitenciaria Nelson Hungria se concluiu, dia
10 de maio de 2004, às 9horas da manha, durante o banho de sol. Fabiano morreu de forma
violenta. No IML fui informada de que ele tinha mais de 50 perfurações no corpo,
principalmente na região torácica e nos olhos, alem de grave traumatismo craniano.
Fui ao velório porque acreditava encerrar esse caso, lá encontraria a família e uns
poucos amigos, todos inconformados. Colheria informações, tudo confirmado, ficaria por lá
não mais que 20 minutos. Nada disso, fiquei mais tempo que imaginei. Era verdade, ele tinha
morrido. E tinha mãe, pai, irmãos, tios, amigos. Claro tive o “privilegio macabro” de ver a
mãe chegar, amparada, seu corpo parecia uma mola. Desmaiou quando olhou para o filho.
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Perguntei a uma senhora: “ela não o viu?”, “não acabou de chegar”. Este momento e duro, a
gente se emociona mesmo, fiquei contendo a emoção e me perguntando, “será que posso
chorar por uma alma tão cruel, por alguém que mal conhecia?”. Mas por que todos choram?
Uma moça chamada Alessandra, a namorada, parecia distante, incrédula. Havia passado o
final se semana com ele, espremidos (juntinhos) na cela, dormiu dois dias com seu amor.
Repetia isso. “Meu amor”. Fabiano tinha um amor.
Agora eu sei que Fabiano não representa mais perigo. Livre, deixou essa vida. Mas o
que mesmo ele queria da vida? Por que matar ou por que se defender? No fundo é a mesma
pergunta. Fabiano não se defendia, assimilava as acusações tão irresponsavelmente, como foi
sua curta vida.
Fiquei pensando, lembrando das vitimas que ele havia feito nas cadeias, nas ruas de
São Paulo, Belo Horizonte. Quando o conheci, no presídio, há pouco mais de uma semana,
torcia para que ele fosse responsável por muitas mortes, mais de 20, que sairia de lá com uma
historia única. Poderia narrar o caso de um assassino cruel e transformar isso em livro, em três
meses, no máximo, assim como qualquer “abutre”. Mas não foi assim, me relevo, mais uma
vez, cheia de contradições. Estava agora, no velório do “meu amigo”, triste, como se ali
tivesse ido um irmão. Compartilhava a dor, meio constrangida porque era para mim tudo
muito estranho. Será que fizeram justiça? A justiça é assim tão cruel? Lembrei das aulas de
Criminologia Geral, o professor de excelente caráter e bom coração, falando do “bode
expiatório” e percebi que eu posso ter, sempre que quiser, um outro jeito de ver as coisas.
Os acontecimentos têm mesmo dois lados, duas faces, ate os crimes mais cruéis, como
os cometidos por Fabiano e o que fizera com ele. Mais isso só a bondade percebe, engraçado
pensar em bondades numa hora dessas. Nessa noite, no IML, o senhor que me atendeu, cheio
de raiva e má vontade, contou que “O Paulista era o cara mais perigoso de Minas”. Não era.
Acredito que esse tenha sido a minha primeira experiência com o cinismo das instituições,
24
como a policia e a imprensa. A pena de morte esta a declarada e consumada. Quem pode ser
mais perigoso nesse jogo de interesses? Pensei, surgiu agora um outro “corredor das
penitenciarias”, titulo que Fabiano ostentou lamentavelmente durante três anos e que entregou
quando morreu. Seus últimos momentos de fama e poder foram quase insignificantes, não
houve cobertura nacional. Parou de matar para morrer.
Agora ele já não interessa mais. Outros serão fabricados para desviar nossa atenção e
macular a essência, a alma da hipocrisia, essa besta gigante que se alimentava do nosso
silêncio. Fabiano dizia que dentro da cadeia as leis eram outras, leis que agora eu quero
conhecer. Como são feitas, por quem? Para quem? Não saí do velório com a historia
encerrada, pelo contrario minha duvida aumentaram. Sai mais envolvido do que entrei. Sai
com a sensação de que tinha uma historia nas mãos e, me desculpem, o Fabiano era uma das
vitimas, alem, é claro, de todos aqueles que matou. Não o estou defendendo, até porque já é
tarde, ele está morto, eu vi e até contei detalhes para os inconformados com a “bandidagem”.
Todos, sociedade, imprensa, policia, instituições financeiras, podemos sair disso satisfeito e
tranquilos, ou não?
Somos todos iguais? “Eles” (Fabianos, Tufinhas, Baianos) vão para o mesmo lugar,
comprovam a mesma coisa, engrossam as mesmas estatísticas: sangue policia IML, jornal,
laudos velórios. Passei o resto da noite em claro e me perguntando, de uma forma quase
melodiosa, o caminho da cura é a doença? O caminho do perdão é a sentença? E confirmo,
cansada, mais um dia nascendo. Mas “a marcha fúnebre prossegue, a PAZ esta morta e
desfigurada no IML” (F.C.).
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A MALDADE HUMANA NA SOCIEDADE ATUAL: UMA