Professora Márcia Regina da Silva Wider Não há limites para quem deseja crescer Até que enfim o tão esperado dia chegou, carregado de ansiedade e, ao mesmo tempo, um certo aperto no peito ao deixar para trás a família, pela primeira vez. Foi impressionante, em um grupo de aproximadamente quarenta pessoas, tivemos apenas uma a burlar o horário combinado para a saída. Partimos no dia trinta de junho do ano de dois mil e quinze (30/06/15), exatamente às dezessete horas e dezenove minutos, rumo ao desconhecido, já que, para a maioria, seria a primeira viagem a Paraty, Rio de Janeiro e principalmente a FLIP- Festa Literária Internacional de Paraty. Viajamos a noite toda, a chuva caía forte e intensamente, lavando o coração choroso e partido, daqueles que deixaram para trás seus familiares e limpando todo o caminho que iríamos percorrer. Em certos momentos, causava-me preocupação, medo e angustia, porém, com a certeza de que estávamos abençoados por um Deus maior e que este nos conduziria na ida e na volta. Nem o DVD consegui assistir direito, diante dos balanços do ônibus, nas rodovias esburacadas e mal conservadas. Demorei muito a pegar no sono e a cada instante o nervosismo tomava conta de todo o meu corpo. Como sentei-me próxima ao corredor, quase não pude observar a paisagem fora das janelas, também devido ao embaraço dos vidros causados principalmente pelo calor dos corpos aquecidos por cobertores e o ar frio da parte externa. A madrugada chegou e logo pude perceber uma claridade, findando a noite apavorante que acabara de vencer. Assim foi aparecendo a paisagem urbana seguida de alguns trechos de serras e arvoredos, o que ainda resta da mata atlântica brasileira, e comecei a alegrar-me. Nesse momento, era notório o cansaço e o desejo de descer daquele ônibus e poder conhecer a bela Paraty. Avistamos as primeiras praias. E, imaginem a alegria daqueles que nunca tinham avistado o mar antes, indescritível. A manhã passou tão rápida que nem percebi e logo pudemos pisar em solo paratiense. Que visão encantadora tive daquele lugar, casas antigas, pessoas circulando por todo lado, casas comerciais, embarcações, turistas, ônibus, muitos, e de todos os lugares... Nossa, era um sonho, pessoas de todas as cores, raças, etnias, cultura e de diferentes padrões sociais. Que lugar divino! Apesar do deslumbramento, fomos aturdidos por uma surpresa: teríamos de carregar as malas, pois não era permitido que nosso motorista conduzisse o veículo até o hostel onde passaríamos os próximos quatro dias. Nossa, que sufoco! Já não bastava o cansaço da viagem, carregamos nossas bagagens pelas ruas estreitas, com pedras enormes recobrindo o solo. Foi muito engraçado, as rodinhas de nossas malas foram destruídas pela caminhada. Ao adentrar no hostel Che Lagarto, tivemos outra surpresa, esperávamos encontrar um lugar pouco agradável. No entanto, fomos recebidos por pessoas hospitaleiras e humildes, um ambiente simples, aconchegante, limpo, gostoso, com muitas plantas e um ótimo atendimento. Após algumas horas para colocar as coisas no lugar, tomar um banho, alimentar-se e descansar, partimos para o centro histórico. Era chegada a hora de conhecer a famosa FLIP- Festa Literária Internacional de Paraty- que, neste ano, em sua 13ª edição, homenageou o poeta, romancista, crítico musical, gestor público, folclorista e agitador cultural, Mario de Andrade. Este ano completa 70 anos da morte do autor paulista e seu nome foi a melhor escolha para receber a homenagem na festa literária, fundamentalmente pelo caráter atual de sua obra que serviu e serve de molde para a cultura brasileira do século XXI, por tratar da cultura popular e indústria cultural, patrimônio material e imaterial, fala brasileira e língua escrita, cultura indígena, literatura, identidade e gênero. Sempre em grupo, passeamos pelas ruas, maravilhados com a arquitetura antiga das construções, olhando as pedras que calçavam o solo, cantores populares a entoar cantos ao som de seus instrumentos, poetas a recitar poesias, pessoas a conversar, a caminhar, a degustar da culinária, doces e bebidas da antiga cidade. Conduzidos pelas professoras Alexandra e Edilaine, visitamos a Casa Folha, Casa Rocco, a Tenda da Flipinha, a Tenda dos Autores, a Praça Central, Casa SESC, o SESC Paraty. Caminhamos por todas as ruazinhas do centro histórico, inclusive nos deparamos com o ator Pascoal da Conceição, de posse de um lindo ramalhete de flores brancas, na fila de entrada para a tenda dos autores. Esse ator representou Mário de Andrade na minissérie “Um só coração”, apresentada na TV Globo, no ano de 2004. Paramos no centro Cultural SESC Paraty para apreciar o grupo Caravan Maschera que apresentava um teatro com os personagens Romeu e Julieta, na praça. Inesquecível pelo valor da obra que tratava de ideias divergentes entre o casal, ao mesmo tempo que dialogava com as dúvidas da juventude atual. Percebi algo importante na recepção da plateia: todos riam tanto que quando a peça começou a dialogar com questões polêmicas e problemas vividos por muitos e muitas jovens, o público continuou a entender como uma comédia. Minutos depois, às vinte horas, no Centro Cultural SESC Paraty, assistimos ao Espetáculo Ledores no Breu, com o ator Dinho Lima Flor. Eu nem sei bem como expressar a emoção que vivi ao presenciar uma cena tão rica, tão marcante, tão viva, tão real, uma reflexão sobre as consequências dos muitos analfabetismos, reflexão tão necessária, porém, pouco executada. Eu amo teatro, considero a arte mais valiosa, logo, só tenho a dizer que foi fantástico, emocionante, magnífico, divino e digno de muitos aplausos. Neste momento, esqueci de tudo e de todos, senti-me um ser completo, realizado. E se vocês estão pensando que a noite acabou aqui, estão enganados. Continuamos andando, sedentos de cultura e lembramos do show de abertura da FLIP. O show aconteceu na Praça da Matriz, Tenda da Flipinha e contou com a presença do poeta, cantor e compositor Luís Perequê, o grupo Os Caiçaras e a cantora paulistana Dani Lasalvia. Foi neste momento que o nosso grupo esteve em peso, todos juntos em um mesmo espaço, ouvindo, dançando, lanchando e apreciando o ritmo diferente dos músicos. Como ninguém é de ferro, resolvemos seguir para o hostel, dormir um soninho da beleza. Novo dia, o sol apareceu radiante. Aos poucos fomos nos reunindo, às oito horas, para tomarmos o delicioso café da manhã. Imaginem o quão delicioso: frutas variadas, pães de diferentes qualidades, bolos, iogurte, suco, chá, café, leite, geleia, margarina e até cereais, ouviu bem? CEREAIS, no hostel. Ah, sem contar dos macaquinhos que rodeavam os turistas, dependurados nas árvores e no pergolado que cobria o local em que estavam as mesas. Vez ou outra algum ou alguma turista teimosa descumpria a regra e alimentava os pobres bichinhos. A hora passou e todos preparavam- se para ir à Casa Folha assistir “A arte do romance” com o autor Carlos Heitor Cony, mediado por Sérgio Dávila. Eu, professora Dora e professora Ana Paula não pudemos acompanhá-los, pois ficamos no hostel para preparar o almoço da turma. Ficamos tristinhas por não participar, porém, felizes ao perceber que muitos se deliciaram com o alimento por nós preparado. Durante a tarde, resolvemos visitar as praias de Trindade. Conduzidos por um motorista em uma circular, subimos a serra para conhecer o lugar que diziam ser encantador. Eita! Que visão paradisíaca, areias brancas, silêncio e tranquilidade, águas cristalinas, vegetação linda, estilo rústico, pena que o clima fresco e o vento tornaram a água fria para um banho agradável. Mesmo assim, alguns atreveram-se a banhar nas águas geladas de Trindade. No caminho de volta, já viemos discutindo a nossa programação para curtir a noite no centro histórico. Tomamos um banho rápido e acompanhadas das professoras Alexandra e Edilaine, às oito horas, fomos a Casa SESC, no Café Literário, onde Mario Alex Rosa, Antônio Cícero e Leonardo Villa- Forte conversavam sobre as representações do corpo nas produções literárias e nas artes em geral. Leonardo Villa- Forte revelou-se um leitor assíduo, contudo não diria, um escritor excelente. Porém admirei-o pela capacidade em criar textos a partir de recortes de muitos outros textos, também pela ideia de criar um paginário. As ruas estavam abarrotadas, gente de todo lugar, muitos estrangeiros, livros, artistas, poetas, autores. Transeuntes se esbarravam pelo caminhar apressado, em busca de não perder nada, de apreciar ao máximo possível. Uma chuva fina caía sobre a população que mesmo sem guarda-chuvas insistia em continuar nas ruas, de um lado para outro a procura do saber. Encerramos a noite do segundo dia ao som do musical “Nascente e Foz”, na Tenda da Flipinha, depois de degustar algumas especiarias da culinária paratiense. Hoje o dia amanheceu nublado, mas prometendo muito, visto que, iríamos fazer o tão falado passeio de escuna. Foi uma pena ter deixado duas de nossas companheiras de fora. Ninguém queria chegar atrasado e deixar de fazer o passeio. E foi o que aconteceu, chegamos no horário combinado, embarcamos e seguimos viagem a bordo de uma escuna de madeira, com serviço de bar, restaurante, banheiro, equipamento de mergulho, frutas e café. Ao longo do trajeto ouvimos músicas aconchegantes e de qualidade, interpretadas por um violeiro que também desempenhou a função de guia turístico. A paisagem vista por nós era encantadora, presente de um Deus único, de um pai para um filho amado. Realizamos quatro paradas, na Praia da Lula. Lagoa Azul, Praia Vermelha e Ilha Comprida. Com direito a nadar junto aos cardumes, caminhar pela praia ou mesmo ficar a bordo. Na terceira parada foi servido o almoço a bordo, com a embarcação parada, porém o balanço das águas do mar movimentava o barco causando enjoos em alguns tripulantes. Após o delicioso almoço ofereceu-se um café quentinho como cortesia e foi exatamente nesse momento que pedimos e cantamos a canção “Tocando em frente” de Almir Sater e Renato Teixeira, em homenagem aos visitantes da cidade de Dourados, MS. Na quarta e última parada, todas as pessoas de nosso grupo desceram na praia para prestigiar o lugar. Foi um passeio incrível, destes que ficarão eternizados em nossa mente. Retornamos ao cais de partida e após a foto oficial da turma dirigimo- nos ao hostel. Cansamos muito, porém, não o suficiente para deixar de conhecer as maravilhas da noite carioca, oferecidas pela FLIP. Partimos para mais um evento, desta vez na Casa Rocco ouvimos Karina Buhr e a apresentadora Mariana Rolier na mesa “Desperdiçando rima”. Nossa! Adorei ouvir a declamação de poesias feita pela poetisa que além de bem humorada, irônica e feminista é militante e tem preocupação política. Ainda sobrou pernas para visitar a feira de livros dos autores da FLIP, em especial. Como sempre, a noite terminou na Tenda da Flipinha, no musical Nascente e Foz - Música e Poesia: Pedro Sá e a influência de Manuel Bandeira. Último dia de Festa Literária, para nossa equipe, ninguém queria perder um segundo. Levantamos cedo, tomamos o nosso delicioso café e saímos dispostos a curtir tudo que fosse possível. Ás dez horas assistimos, na Flipinha, ao Espetáculo “Felinda”, apresentação do grupo Carroça de Mamulengos, trupe formada por uma família de brincantes, atores, músicos, bonequeiros, contadores de histórias e palhaços, do Instituto Gandarela, patrocinados pela Petrobras. Que espetáculo! Formidável, dinâmico, criativo, personagens que evocam o lúdico e o popular, e ao mesmo tempo misturam ficção e realidade. Após o almoço, fizemos um tour pela cidade de Paraty, visitamos algumas lojas e casas comerciais, livrarias, passeamos pela praça do chafariz, onde contadores de histórias relatavam que ali era a única fonte de água doce da cidade no início da colonização e que todos os moradores vinham buscar água para beber. Tirei muitas selfies, retratando o povoado, a cultura, as apresentações, o cais, as cachaçarias que são predominantes em quase toda a cidade e dizem ainda pertencer a uma família de grandes posses. Entrei em uma livraria e, de repente, ao olhar para janela avistei um tempo que se transformara rapidamente de quente e claro para outro escuro, com nuvens e um clima ameno. Mesmo assim resolvemos seguir para o sarau, à Beira-Mar, onde ocorreria a leitura de poemas a bordo do saveiro Soberano da Costa, na Baía de Paraty. Todavia embarcamos errado e a escritora e leitora só falava a língua inglesa. Havia muitos que não dominavam esta língua e foi necessário a intervenção por parte de um dos organizadores, que infelizmente não fez uma boa tradução do que foi relatado, segundo os tripulantes que tinham domínio da linguagem utilizada. Tudo estava muito bom, quando inesperadamente começou a chover, ventos fortes e gelados balançavam a embarcação. Desprotegida, com vestimentas inadequadas para o frio, tive que me ausentar da leitura e seguir para parte da escuma que me protegia do frio cortante. Que tristeza eu queria tanto participar de um sarau e acabei não tendo a oportunidade, pois o barco que traria os poetas brasileiros partiria do cais às quinze horas. Desembarcamos molhadas pela chuva e tremendo de frio, porém certas de que não poderíamos perder por nada a participação de Frei Beto no evento. Às dezessete horas, teve início o bate-papo entre Frei Beto e Guiomar de Grammont, mediados por Pedro Velasquez, com o tema “Conexão HavanaAraguaia”. Quanta honra estar frente a frente com estes escritores que exploravam com maestria o assunto exposto em seus livros e a preocupação com a política social no mundo. Ainda hoje tento encontrar palavras para definir esse momento maravilhoso, exclusivo, relevante, didático, expressivo, grandioso, reflexivo e acredito o melhor de todos. E, por fim, presenciamos, alguns minutos, a última mesa de debates, da noite, com Karina Buhr e Arnaldo Antunes. Aquela deve ser mesmo uma mulher de outro mundo, pela fala, pela simplicidade, pela honestidade e bom humor, este, articulado e direto, garantiu muitos aplausos ao falar de seus poemas. Depois voltamos a visitar a feira de livros e aproveitamos para adquirir alguns exemplares. De cada momento vivido por nossa turma, guardo na lembrança a naturalidade, o amor e o respeito com que cada um deu, recebeu e tratou o outro, já que tínhamos até então uma convivência restrita. Pessoas especiais, lugares incríveis, cultura, conhecimento e vontade de saber uniram pessoas de diferentes padrões sociais, culturais e valores. Para quem deseja aprender não há barreiras nem obstáculos que não possam ser quebrados ou mesmo driblados. Há apenas uma ponte onde você é o único responsável pela decisão entre cruzar ou não. Hoje mais que nunca reafirmo algumas palavras ditas pelos compositores Almir Sater e Renato Teixeira: “Só levo a certeza de que muito pouco eu sei/ Nada sei”.