mesa: Interrogações a partir da clínica psicanalítica com crianças na contemporaneidade Coordenador: Alessandra Cássia Leite Barbieri CLÍNICA PSICANALÍTICA COM CRIANÇAS SEVERAMENTE TRAUMATIZADAS Márcia Regina Porto Ferreira Esse trabalho se baseia na minha dissertação de mestrado, cuja tese se intitula “Crianças que não conseguem esquecer – sobre o traumático na infância”. Refere-se ao atendimento psicanalítico a crianças que estavam ou estiveram em abrigos coletivos que desenvolvo há mais de dez anos, coordenando um grupo de trabalho em conjunto com Maria Luiza Ghirardi na Clínica Psicológica do Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo. Objetiva refletir sobre o estatuto das inscrições e derivações psíquicas produzidas não somente frente ao desaparecimento de forma brutal do primeiro objeto de amor e de seu entorno, mas também frente as vivências relativas aos freqüentes e dramáticos episódios que o precederam e o sucederam e quais as implicações no fazer clínico com essas crianças. É com essa proposta, por exemplo, que Françoise Dolto, Jenny Aubry e Caroline Eliacheff trabalharam de forma revolucionária com crianças em situação de risco social na França, que Donald D. Winnicott se debruçou no atendimento às crianças inglesas evacuadas da guerra e que Marisa e Ricardo Rodulfo se dedicaram às crianças seqüestradas e adotadas nos tempos da ditadura militar argentina. Tenho atendido e supervisionado muitos casos de crianças que apresentam marcas indestrutíveis no corpo e na alma provocadas pelos próprios adultos que delas cuidavam. Abusos físicos e sexuais, lamentavelmente são bastante freqüentes na história dessas crianças. Privações das necessidades básicas são engrandecidas pelas vivências de um desamparo radical, para nada relativos à condição do desamparo essencial por que experiencia e constitui todo filhote humano. Aliás, para muitas dessas crianças, a própria condição de sujeito humano esteve desconsiderada. E, mesmo depois de serem abrigadas, essas crianças continuaram se defrontando com situações des-historicizantes diante de abruptos rompimentos de vínculos, referências e projetos. Silenciamentos e emudecimentos onde faltaram subjetivantes palavras. Durante todo esse estudo estive submetida ao dilema de correr o risco de provocar censura e repulsa por uma possível exposição abusiva das histórias dessas crianças ou de correr o risco de ser cúmplice de silêncios que minimizariam a contundência dos relatos. Se não posso nem devo fazer generalizações estigmatizantes e padronizadoras, também não desejo me abster de relatar uma certa prevalência nos quadros encontrados. Penso ser particularmente notável, como na referida clínica tenho me deparado muito frequentemente com a exacerbação de uma pulsionalidade que dificilmente se transforma num verdadeiro brincar, aquele brincar facilmente apreensível em crianças menos atingidas por trágicas vivências. As crianças abrigadas atendidas, não raro, apresentam uma agitação motora, cujas ações se traduzem mais frequentemente por um transbordamento pulsional, por vezes, intolerável para quem com elas convive. Esses transbordamentos se apresentam predominantemente pela via da descarga direta do próprio corpo, seja através das enureses e encopreses rebeldes, das agitações motoras excessivas, de preocupantes expressões masoquistas ou “gratuitamente” sádicas. Não raro são expulsas das escolas, reiteradas vezes abandonadas e desamparadas. Trata-se de uma clínica geralmente marcada pelo excesso, pelas inundações, pelos transbordamentos nas sessões psicanalíticas. Comprometimentos no processo de aprendizagem também é muito freqüente entre elas. Muitos bebês sábios, nos dizeres de Férenczi (1933), foram igualmente encontrados que, paradoxalmente, dificilmente conseguiam aprender a ler e a escrever. Para me aprofundar na minha questão, fui fazendo uma investigação sobre o conceito de trauma na obra freudiana. Constatei, com a ajuda de autores clássicos da psicanálise e diversos autores contemporâneos, dentre eles Bleichmar, Uchitel e os Botella, que na obra freudiana esse é um conceito bastante discutível, complexo e por vezes contraditório. Seja como for, o resgate das considerações freudianas sobre a neurose traumática, me levaram a formular que o conceito de “trauma psíquico” inclui, no mínimo, duas categorias distintas, mas nem por isso inarticuláveis: os traumas assimiláveis e os traumas inassimiláveis. Sobre os traumas assimiláveis me refiro àqueles traumas constituintes, passíveis de, num segundo tempo, num a posteriori, produzir recalques, sintomas, formações de compromisso entre instâncias psíquicas em conflito. Traumático é o próprio encontro da criança com o adulto. Já os traumas inassimiláveis, característico das nomeadas “neuroses traumáticas”, expõe o sujeito diante de um montante de excitações pulsionais, que o toma de surpresa, que se torna impossível de ser inserido nas séries psíquicas, de serem simbolizadas, de virem a ser recalcadas e de fazer sintoma. Dizem respeito a vivências que se mantém no registro do irrepresentável, tão bem referidas por autores como o casal Botella, Sara e César. Estive defendendo, portanto, que há traumas assimiláveis, metabolizáveis, constituintes e outros que são inassimiláveis, imetabolizáveis pelo eu. Esse meu estudo, portanto, se centra sobre a clínica com crianças que frequentemente apresentam quadros relativos a esse trauma inassimilável e que corresponde à neurose traumática de que fala Freud. São crianças que revelam que a cena traumática é da ordem de uma vivência de des-ser, de des-ajuda, de perda de si. Além de terem vivido sensações decorrentes da intromissão de inscrições imetabolizáveis impostas pelo outro adulto, também pouco contaram com um outro adulto substituto que lhes servissem de pára-excitação que impedisse que ficassem abandonadas ao excesso de excitações assim produzidas. Evidenciam que intensas vivências como essasrompem a membrana de proteção aos estímulos externos e o aparelho psíquico fica a mercê de inundações de excitações internas. A depender do grau com que o trauma inassimilável se expande pelo aparelho psíquico, pode desde manter-se como uma corrente psicótica solta, desligada e ineligável, que insiste por se apresentar, e nem por isso se representar, ou chegar a estalar o ego como num curto-circuito psíquico devastador. Adotando a terminologia utilizada por Bleichmar (1999), posso dizer que para a maioria das crianças que atendi e supervisionei predomina, mais freqüentemente, a expressão de manifestações psíquicas que não são da ordem do sintoma, mas, sim, do transtorno. Essa distinção, central no pensamento clínico dessa autora, indica que em muitas dessas crianças há a operância de um mecanismo diverso do recalcamento – e que, portanto, não produz sintoma: o das clivagens, que se manifestam através das repetições compulsivas, sob égide da pulsão de morte, que impedem a instalação mesma do recalque. Essas repetições não podem ser nomeadas como memória de experiências traumatizantes. Essas crianças vivem um perpétuo presente, no sentido de que verdadeiramente o que fica impossibilitado é o esquecimento para poder virem a recordar. São compulsões à repetição de um mais além ou aquém do princípio do prazer, numa incessante busca por uma inalcançável simbolização. Ou seja, a rigor essas vivências não alcançam o estatuto de representação, mas se configuram melhor como uma apresentação do que foi experimentado. A concretude das cenas traumáticas exibidas em sessão, deixam mostras de um insepultamento no inconsciente daquilo que foi vivido em excesso. Diante do excesso de realidade, não se armam representações que a recubram. Não raro me deparo com uma verdadeira e contundente encenação de abusos: aquilo que a criança viveu passivamente é imposto ativamente ao outro adulto. Tenho observado, também, que essas crianças apresentam uma forma bastante freqüente de se expressarem nas sessões psicanalíticas: não raramente, essas crianças se escondem e assustam aqueles que as deveriam encontrar. Procurá-las é preciso, infindavelmente. Escondem-se, quase que invariavelmente na sala de espera, durante a sessão analítica e no momento da saída. São dramatizações bastante vívidas, insistentes e geralmente mudas. Parecem buscar, nesse fort-da compulsivo, mais além do que a simbolização da separação, uma elaboração possível pela vivência de perda da representação do objeto mãe. São elas que ativamente se escondem para assistirem, de forma invertida, o que foi experimentado: o susto pela ausência abrupta do objeto e a angústia daquele que procura. Alguns autores resgatam o conceito de signos de percepção[1] freudiano, para discorrerem particularmente sobre o que tenho nomeado de “trauma inassimilável”. Sobre esses signos de percepção propostos por Freud na Carta 112 (52) a Fliess, Bleichmar dirá que são as primeiríssimas inscrições do real que permanecem soltas no aparelho psíquico até que sejam transcritas. Mas há inscrições muito particulares que nunca se articulam nem são transcritas ou são insuficientemente transcritas. No trauma inassimilável, irrepresentável, o ego buscaria pelos signos de percepção: uma percepção visual, auditiva, olfativa, sensorial, enfim, ligada simultaneamente à experiência de pavor, num esforço por dar inteligibilidade e evitar o estado de desamparo. Essa repetição alucinatória de uma percepção simultânea à experiência irrepresentável, seria um “último recurso, sua última possibilidade de ligação” (Botella & Botella, p.166). Para que possam fazer parte da memória, essas vivências precisam ser esquecidas. É necessário esquecer ou “inquecer”, como diz Mezan (1993). Para tanto, é necessário intervir na clínica de modo diverso daquele quando nos deparamos com traumas assimiláveis, que são constitutivos e conseguem produzir sintoma. Em vez de se trabalhar com a interpretação, desenvolver intervenções na linha do que Bleichmar tem nomeado comosimbolizações de transição. Na ausência de representações, buscar por indícios, fragmentos de uma história traumaticamente vivida, ao modo da abdução, que possam antecipar um texto que magnetize futuras representações e que promovam transcrições no pré-consciente. Sem jamais desconsiderar a vivência fantasmática do sujeito, considerar a realidade mesma nesses casos é de fundamental importância: impede que o desmentido, a confusão de línguas, seja praticada em nossa função analítica. Na busca por uma figurabilidade possível diante do irrepresentável a oferta por parte do analista também de desenhos e de escritas que ilustrem uma possível articulação com o estado de desamparo e de pânico vividos e continuamente revividos, promovem exitosamente a possibilidade de se aceder ao pensamento. Desenhar e escrever para transcrever. A alucinação do objeto perdido, depois de instalada, poderá ficar colocada a serviço de uma recusa da percepção da perda, pelo temor da deflagração do afeto doloroso que disso advém. A proposta é de auxiliarmos a criança a fazer uma renúncia, uma ultrapassagem da satisfação alucinatória para poder aceder ao investimento no objeto e, da identidade de percepção à identidade de pensamento. Com isso, transformar a angústia automática presente nessas compulsões em angústia sinal, própria do recalcamento. O que de importante essa clínica alerta é que não se deve se apressar em fazer intervenções simbólicas ao modo de uma interpretação, antes que se tenha proposto transplantes simbólicos, hipóteses ao modo abdutivo no enunciar elementos de uma realidade possivelmente vivida. Posteriormente, na medida em que o trabalho analítico avança, as interpretações vão ganhando espaço e as intervenções na linha das simbolizações de transição se tornam desnecessárias e até mesmo impróprias. É digno de nota que nessa clínica também se impõe bastante frequentemente, além das intervenções simbolizantes, a necessidade de interromper a deflagração da pulsão de morte. O analista se utiliza de uma “verbalização irruptiva”, nos dizeres de Zygouris (1995) ou de “castração simbólica”, nos dizeres de Dolto (1988), que ponha fim a um ato ou relato fascinado e repetitivo sobre aquilo do que o paciente não pôde e continua não podendo escapar. A criança traumatizada repete tanto a cena traumática que se re-traumatiza incessantemente. Interrupções de ações e, por vezes, das sessões se fazem necessárias. Diante de casos de inassimiláveis traumatismos, o ego do analista tende a se fragilizar e a se defender do que de traumático a ele também se impõe. Não raras vezes, as crianças que atuam de forma tão violenta os dramáticos acontecimentos vividos, promovem reações defensivas no analista: um desinvestimento de sua função ou um desinvestimento da criança ou, então, um superinvestimento na teoria. As propostas dos autores relatadas nesse estudo vêm em auxílio da manutenção da própria possibilidade do analista continuar operando em sua função. A partir de minha experiência clínica junto a crianças abrigadas, indico também algumas propostas específicas e que têm sido desenvolvidas no grupo de trabalho a que pertenço. Além dos atendimentos psicoterápicos propriamente ditos, é bastante importante serem incluídas abordagens da ordem de uma clínica institucional. A excelência do trabalho da clínica institucional, composta por equipes de profissionais, se anuncia como mais pertinente para se receber esses casos em relação à clínica dos consultórios particulares. A experiência mostra que essa é uma clínica que dificilmente se mantém dentro de quatro paredes da sala de sessão de análise. O psicanalista, quer queira quer não, é convocado a entrar em contato com as inúmeras instâncias que se responsabilizam por essas crianças. Embora os pais possam estar ausentes, muitos outros atores compõem a cena dessa clínica, geralmente de forma ruidosa: os familiares de origem, os educadores e gestores de abrigos, os técnicos das Varas da Infância e da Juventude, as agências internacionais de adoção, os candidatos a pais adotivos, Conselhos Tutelares, a escola. O psicanalista da criança abrigada raramente poderia, e até mesmo não deveria, sozinho se confrontar com as múltiplas demandas inerentes à realidade dessas crianças. Ou seja, muito frequentemente ele é inundado por um excesso de realidade externa que precisa ser metabolizada reportando-se a outros profissionais da equipe e à instância institucional que o protege e o transcende. Essas chamadas “crianças em situação de risco” têm sido muito rara e insuficientemente escutadas em sua singular subjetividade, uma vez que os serviços de atenção à infância desamparada, em nosso país, são quase que exclusivamente promovidos pelos campos da assistência social e do direito. Esses campos tendem a cair na armadilha do universal, do normativo e, como diz Roudinesco (2000), “nada é mais próximo da patologia do que o culto da normalidade levada ao extremo”. Estamos sempre alertas a não ficarmos tentados a ocupar o lugar do portador da verdade, mas levar às suas máximas conseqüências não a prática da certeza, mas a prática da dúvida, primar por fazer falar e promover as pequenas verdades singulares recalcadas ou ininalguradas. Diante disso, temos desenvolvido práticas que nos colocam na direção da ousadia e do desafio de dispor de nossas ferramentas a serviço de uma efetiva participação social da Psicanálise, sem perder de vista as exigências teóricas e éticas de seus fundamentos. Penso que, na constatação de que a maioria dessas crianças carrega uma história de um início de vida seriamente traumatizante, multiplamente traumática, a Psicanálise pode contribuir com suas propostas clínicas tanto nos âmbitos do atendimento psicoterápico propriamente dito, no âmbito de intervenções inter-institucionais e no âmbito da formulação de políticas de atenção à infância relativas e alternativas ao abrigamento coletivo, para que ações subjetivantes destinadas a essas crianças e a seu entorno evitem de produzir novos traumatismos provocados por equivocadas medidas de proteção imperantes. Alguns dados estatísticos podem esboçar uma justificativa para essas propostas. Uma pesquisa realizada na cidade de São Paulo[2], apurou entre novembro de 2002 e março de 2004 que das 4.847 crianças e adolescentes que vivem em abrigos coletivos, 463 crianças têm de 0 a 2 anos de idade, sendo que 145 são bebês menores de 1 ano de idade! Apesar dos esforços de muitos, constata-se a precariedade dos cuidados oferecidos a essas crianças e a seus familiares, conforme essa mesma pesquisa indica quando afirma que 67% das crianças e adolescentes abrigados possuem família, porém, o trabalho junto à ela aponta para a (...) ausência de uma política de desabrigamento, pois o desenvolvimento de trabalhos isolados e fragmentados não possibilitam o enfrentamento efetivo dessa situação (p. 93) A perspectiva desse estudo é a de endossar e engrossar as fileiras das várias e louváveis iniciativas no sentido da desinstitucionalização de crianças, de evitar o abrigamento desnecessário e de se problematizar as condições em que se encontram crianças abrigadas e familiares em situação de risco social. No momento, estão sendo estudadas e iniciadas ações no sentido da implantação de programas governamentais com famílias acolhedoras, principalmente diante dos casos em que a separação dos familiares é e deve ser temporária, tais como nos casos de internações hospitalares e de reclusões carcerárias parentais. Para muitas dessas iniciativas temos colaborado de alguma forma, e temos creditado à Psicanálise a possibilidade de minimizar os efeitos e o montante de ocorrência de vivências traumáticas, experienciadas não somente pelas crianças, mas também por seus familiares e por aqueles que delas passaram a cuidar. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA 1. Obras de Sigmund Freud SIGMUND, Freud. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro. RJ. Imago Editora. Esboços para a ‘Comunicação preliminar’ de 1983. (1940-41 [1982]). Volume I. Extratos dos documentos dirigidos a Fliess. 1950 [1892-1899]. Volume I A dinâmica da transferência. 1912. Volume XII. 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