4º ENCONTRO NACIONAL DE GRUPOS DE PESQUISA – ENGRUP, São Paulo, pp. 739-758, 2008. ARAGUAÍNA-TO: A PRINCIPAL CIDADE ECONÔMICA DO ESTADO E A PERIFERIA QUE ESCONDE AS VÍTIMAS DO TRABALHO ESCRAVO POR DÍVIDA ARAGUAÍNA-TO: LA PRINCIPAL CIUDAD LA SITUACIÓN ECONÓMICA DE LA PERIFERIA Y QUE SE ESCONDE A LAS VÍCTIMAS DE LA MANO DE OBRA ESCLAVA DE LA DEUDA Alberto Pereira Lopes Doutorando em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo Fundação Universidade Federal do Tocantins [email protected] Resumo O trabalho faz uma análise da questão referente aos camponeses residentes na cidade de Araguaína-TO, vítimas do trabalho escravo, em suas condições socioeconômicas, que é elucidada em sua localização, estrutura residencial. O estudo teve como objetivo, investigar as famílias que residem nas periferias de Araguaína-TO, em seus aspectos sociais e econômicos para compreender porque estes personagens atravessam a fronteira do seu lugar, ou saem das periferias das cidades sendo vítimas do trabalho escravo por dívida, como aponta em registros de ocorrência policial e a própria imprensa local e nacional, que tem informado tais atrocidades. Palavras-chave: trabalho, escravo, terra Resumen El trabajo es un análisis de la cuestión relativa a los campesinos que viven en la ciudad de Araguaina-TO, las víctimas de la mano de obra esclava en sus condiciones socioeconómicas, que es aclarada en su ubicación, estructura residencial. El estudio tuvo como objetivo investigar, las familias que viven en los suburbios de Araguaina-TO, en sus aspectos sociales y económicos, para entender por qué estas personas que cruzan las fronteras de su lugar o salir de las periferias de las ciudades son víctimas del 740 4º ENGRUP, São Paulo, 2008 LOPES, A. P. trabajo esclavo de la deuda, como puntos de éxito en los registros policiales y locales y la prensa nacional ha informado de que tales atrocidades. Palabras clave: trabajo, esclavos, la tierra A cidade de Araguaína-TO situada à margem da Belém-Brasília, é o local onde apresenta os maiores índices de entrada e saída de aliciadores e aliciados, mediante a sua posição geográfica, em que esta faz ligações com vários estados que também estão no cenário do trabalho escravo por dívida. A sua principal fonte de renda baseiase na agropecuária, atividade que tem mais utilizado o trabalho degradante que se constitui no interior da propriedade privada formando a cadeia do trabalho escravo contemporâneo. Dessa forma, uma cidade que antes da construção da BR 153 (Belém- Brasília) vivia de um comércio eminentemente pequeno, torna-se a partir da construção dessa rodovia e aos incentivos do Estado sobretudo em apoio à classe dominante, consegue reproduzir grandes estabelecimentos agropecuários, numa demonstração do avanço das frentes pioneiras em direção a mais nova fronteira agrícola, concretizando de certa forma a valorização das partes periféricas do país, como também ocupando determinadas áreas vazias com a introdução da grande propriedade, expropriando a população que já se encontravam nesta região. Para Gaspar estudando a cidade de Araguaína e sua região vem reforçar a expansão do capital em direção a fronteira agrícola: Vê-se desta forma o paradoxo de uma fronteira agrícola, que, dado a expansão da empresa agro-pastoril, oferece melhores condições para a reprodução dos estabelecimentos que, utilizando tecnologia moderna, conseguem elevar a taxa de desmatamento, eliminar a lavoura, dispensando a mão de obra permanente, provocando uma intensa mobilidade populacional, sem com que isso tenha elevado a ascensão na escala social da grande maioria da população. (GASPAR, 2002, p. 72). Araguaína-TO: a principal cidade econômica do estado e a periferia que esconde as vítimas do trabalho escravo por dívida, pp. 739-758. 741 Estas medidas vieram favorecer uma elite já consolidada no país. No entanto, a maioria da população foi arremessada da sua vida simples no campo para se refugiar nos arredores das cidades, tornando-se vítimas fáceis para os aliciadores cumprirem com um ciclo que na década de 1970 começa a ficar a luz da sociedade, que é a peonagem, uma nova forma de exploração para o grande proprietário, com acumulação do capital a partir da criação dos meios de produção, no caso a abertura das fazendas. Foi a partir dos planos de incentivos que os governos militares criaram para a impulsionar a economia da região amazônica por meio de uma política centralizadora, resultando a intensificação da imigração em direção a nova fronteira agrícola do país, tantos pelos empresários, grandes proprietários do Sudeste e Sul, como trabalhadores do nordeste que vinham na esperança de conseguir um pedaço de terra para trabalhar. As vias de circulação para esta região pelos imigrantes e sua população residente antes era feita pelos os rios e na nova dinâmica do capital a partir da década de 1960 toma nova configuração com a construção das rodovias, servindo de eixo de ligação e facilidade de integração de uma região a outra. Dessa forma, Araguaína que se encontra localizada a margem da BelémBrasília torna-se um local de entrada de contingente populacional vindo de várias regiões do Brasil, como dos estados do Nordeste e Sudeste para abrirem seus negócios a partir da pecuária. Como afirma Gaspar em relação à origem dos imigrantes para a cidade de Araguaína: No que diz respeito, à origem destes imigrantes, foi visível na primeira etapa deste processo um maior fluxo no Maranhão e Piauí, formado por poceiros (Sic.) e pequenos proprietários, seguidos de fazendeiros de Goiás e Minas. Após 1970, em processo acelerado, chegaram os empresários urbanos mineiros e paulistas. (GASPAR, 2002, p. 72). O que se percebe é a formação das frentes de expansão derivada pelos primeiros imigrantes para o município de Araguaína em busca de uma melhor 742 4º ENGRUP, São Paulo, 2008 LOPES, A. P. sobrevivência como no caso os posseiros que lutam pela posse da terra ainda em determinadas áreas da região Amazônica. No outro aspecto, podemos observar as frentes pioneiras que a partir da década de 1970 foram impulsionadas pelo incentivo dos militares para levar o milagre econômico para o campo. É diante dessa questão que as frentes pioneiras desenvolvem-se os mais trágicos processo de grilagem na região, especulação, destruição das áreas ocupadas pelos posseiros, numa demonstração de força e poder. Esta cidade que fica ao norte do Estado do Tocantins faz parte da nova fronteira agrícola do país, da qual tem sido o lugar ideal para a expansão da propriedade privada, em que os donos dos meios de produção têm utilizado a força de trabalho de trabalhadores que se submetem às atrocidades de um trabalho movido do medo e da ausência de liberdade. Diante desta questão, o medo de quem se encontra confinado nas propriedades é determinante no contexto da resistência, isto devido às ameaças dos que os dominam, como os gatos, os pistoleiros, o próprio dono da propriedade. Figueira argumenta sobre esta relação do medo com os trabalhadores confinados: Nas fazendas ou em casa, a capacidade de resistir ao medo também está restrita a algumas circunstâncias. Se o trabalhador está acompanhado por outros, ele se sente protegido. Se eles demonstram, simulada ou verdadeiramente, coragem, o amedrontado experimenta mais segurança e é incentivado a resistir; se os demais se manifestam tão ou mais enfraquecidos que ele, o amedrontado fica mais inseguro ou, por isso mesmo, para não ficar em pior situação, busca forças, inclusive religiosas, para a resistência. A disposição para enfrentar o medo se manifesta de forma diferente, porque as pessoas têm características diferentes, pessoais ou sociais – educação, origem social, vergonha, status, pressão ou o apoio da família, de amigos, de subalternos ou superiores. (FIGUEIRA, 2004, p. 156). A nova fronteira agrícola tem sido um ambiente repressivo dos que não fazem parte dos grupos chamados civilizados, porque os desprovidos são os que irão servir Araguaína-TO: a principal cidade econômica do estado e a periferia que esconde as vítimas do trabalho escravo por dívida, pp. 739-758. 743 para a expansão da propriedade privada, por meio de sua força de trabalho que priva o direito da própria liberdade, além de utilizar a sua mão-de-obra para fortalecer a acumulação do capital, sem receber o valor necessário para sua sobrevivência. É a partir da fronteira agrícola que o trabalhador vai a busca de algo perdido, que é a sua dignidade como ser humano, e nela advém à esperança de encontrá-lo o necessário para resgatar o tempo perdido da sua própria vida. Mas nessas nuanças de encontro e desencontro, a fronteira vai ser o local de ambição de grupos que instalaram sua forma de dominação para apreender aqueles que apenas tem a força de trabalho como o meio de produção da sua existência. É diante dessa concepção que Martins enfatiza sobre a fronteira como o local dos diferentes grupos que se constituem em busca da terra enquanto renda a partir da materialização do trabalho da qual é adquirida para a reprodução do capital em sua forma contraditória. Assim afirma Martins: A fronteira é, sobretudo, no que se refere aos diferentes grupos dos chamados civilizados que se situam “ do lado de cá”, um cenário de intolerância, ambição e morte. É também, lugar da elaboração de uma residual concepção de Esperança, atravessada pelo milenarismo da espera do advento do tempo novo, um tempo de redenção, justiça, alegria e fartura. O tempo dos justos. Já no âmbito das respectivas concepções do espaço e do homem, a fronteira é, na verdade, ponto limite de territórios que se redefinem continuamente, disputados de diferentes modos por diferentes grupos humanos. Na fronteira o chamado branco civilizado é relativo e sua ênfase nos elementos materiais da vida e na luta pela terra também o é. (MARTINS, 1997, p. 11) Diante dessa condição, a terra tornou-se cativa para os pequenos trabalhadores, e exclusiva para os grupos econômicos que estão presentes desde a época do então Milagre Brasileiro na década de 1970, em que os incentivos fiscais foram destinados 744 4º ENGRUP, São Paulo, 2008 LOPES, A. P. para a burguesia expandir suas riquezas em regiões que se configuravam como um atraso marcante. As formas degradantes do trabalho, nele contido o trabalho escravo contemporâneo se inicia a partir do aliciamento, embasado em falsas promessas, que levam centenas de camponeses para propriedades geograficamente isoladas, onde serão aprisionados por jagunços armados, cerceando a liberdade num assalto à dignidade humana. Perante a legislação dos direitos humanos, todos os seres humanos são livres e iguais em direitos. Mas, para os dominadores o único direito é a força e o poder, que se aglutinam com a expansão da propriedade, vinculada ao trabalho degradante, comprometido com o pressuposto do progresso e do desenvolvimento inexorável. Segundo a Organização Internacional do Trabalho- OIT, o trabalho escravo contemporâneo no Brasil: (...) resulta da soma do trabalho degradante com a privação da liberdade. O trabalhador fica preso a uma dívida, tem seus documentos retidos, é levado a um local isolado geograficamente que impede o seu retorno para casa ou não pode sair de lá, impedido por seguranças armados. No Brasil, o termo usado para este tipo de recrutamento coercitivo e prática trabalhista em áreas remotas é trabalho escravo; todas as situações que abrangem este termo pertencem ao âmbito das convenções sobre trabalho forçado da OIT. O termo trabalho escravo se refere à condições degradantes de trabalho aliadas à impossibilidade de saída ou escape das fazendas em razão de dívidas fraudulentas ou guardas armados. (Relatório Global da OIT, 2007, p. 32). Contudo o que temos presenciado nessa sociedade dita moderna e globalizada, são relatos de trabalhadores submetidos à prática, análoga ao trabalho escravo. Prática essa que se emaranha como erva daninha corroendo a dignidade de tantos trabalhadores. Como apresenta esta vítima na cidade de Araguaína: “ O modo dele tratar agente, agente lá é tratado mesmo é como escravo tem sua hora pra entrar, mas Araguaína-TO: a principal cidade econômica do estado e a periferia que esconde as vítimas do trabalho escravo por dívida, pp. 739-758. 745 não pra sair. (...)Enquanto não acabava o dia não podia sair não, ta entendendo, ai se você trabalhava só de manhã pra o meio dia já descontava o resto do dia na bóia.” Na fala deste trabalhador mostra a forma como acontece o trabalho escravo por dívida, em que as relações de trabalho entre trabalhadores e patrão estão submetidas a uma relação de poder, de domínio, daquele que acumula capital sobre o que trabalha para acumulação do capital em formas de relações não-capitalistas de produção. Como afirma Martins: O capitalismo engendra relações de produção não-capitalistas como recurso para garantir a sua própria expansão, como forma de garantir a produção não-capitalista do capital, naqueles lugares e naqueles setores da economia que se vinculam ao modo capitalista de produção através das relações comerciais. (MARTINS, 1998, p. 21) Neste contexto, as relações que se constituem no interior das fazendas agropecuárias representam a exploração do trabalho, isto diante das atividades que são exercidas pelos trabalhadores em que a mão-de-obra não é paga por quem a contrata. No entanto, o que temos é uma relação ampliada do capital com modos de relações não-capitalistas, ou seja relações pré-capitalistas que traduz a acumulação primitiva. Estas relações se configuram nesta modalidade que atinge muitos brasileiros que são desprovidos de direitos e se submetem às práticas análogas de trabalho escravo. É diante dessa concepção, que o trabalhador encontra o aliciador que a contrata, com promessas falsas para trabalharem em fazendas isoladas de aglomerações urbanas, tornando-se assim as vítimas do trabalho escravo. Segundo o Plano de Erradicação do Trabalho Escravo do Estado do Tocantins esse crime acontece por quatro fatores: a servidão por dívida, o isolamento geográfico das fazendas para onde os trabalhadores são levados, a presença de guardas armados e por último a retenção dos documentos. Numa teia de relações que se 746 4º ENGRUP, São Paulo, 2008 LOPES, A. P. configura no medo e no sentimento, na coragem de submeter ao desconhecido, diante das necessidades de sobrevivência esta é única opção de vida. Neste contexto, o fluxo do modelo econômico vigente onde de certa forma o rural não se conjuga como estância única desse processo escravocrata, pois só absorve mão-de-obra em determinadas temporadas para serviços específicos, tornando-se os trabalhadores como objetos descartáveis. No que diz respeito ao homem que saiu do campo e foi para a cidade, encontra-se em sua maioria desempregado e sem qualificação. Este é o perfil dos trabalhadores camponeses, em especial da cidade de Araguaína-TO que ficam aptos a trabalhar sem maiores exigências, tornando indivíduos descartáveis e substituíveis, vulneráveis ao trabalho escravo contemporâneo. A periferia da cidade é o encontro dos que aliciam os trabalhadores para trabalharem em fazendas, da qual ficam vulneráveis às práticas de trabalho escravo, mediante ao desemprego, ao grau de analfabetismo, a ausência de políticas públicas nas áreas de moradia, falta de saúde, alimentação. Todos esses fatores contribuem para que os trabalhadores busquem alternativas para a sua sobrevivência, sobretudo o trabalho nas fazendas, seja para abertura de novas áreas, para a plantação de pastos, construção de cercas ou trabalhar nas carvoarias. Uma das periferias em que podemos encontrar esses trabalhadores é o Monte Sinai em Araguaína, uma área ocupada ilegalmente, onde se percebe as condições de cada morador que improvisam sua moradia. A ilegalidade não só da área ocupada, como também da energia elétrica, onde são feitas as gambiarras levando perigo para a comunidade. Segundo alguns moradores já aconteceram mortes, de crianças que pisaram em fios elétricos que estavam no chão das casas que incendiaram devido autocircuito. Desse modo, o Monte Sinai tem a sua história como local de recrutamento dos trabalhadores para entrarem na cadeia do trabalho degradante. Um dos recrutados contou a sua história em fazendas do estado. A preservação da sua identidade é uma forma de não expor a sua própria vida diante da complexidade que é o trabalho escravo por dívida, que atinge pessoas poderosas. Nesse sentido, vamos chamar a vítima de um nome fictício, José. Araguaína-TO: a principal cidade econômica do estado e a periferia que esconde as vítimas do trabalho escravo por dívida, pp. 739-758. 747 José tem 26 anos e mora no Monte Sinai uma das periferias de Araguaína, e foi vítima das atrocidades que é o trabalho degradante nas fazendas, em que viu a sua liberdade ser retirada de uma forma violenta, não no sentido físico, mais no sentido do ser cidadão. Ele tem medo de expor a sua própria experiência devido às represálias que possam acontecer, como não adquirir trabalho, como também a violência por parte daqueles que estão envolvidos como gatos e fazendeiros, que poderá lhe custar a sua própria vida. Nesse momento o pesquisador tem que ser cauteloso naquilo que é perspicaz a pesquisa, diante de um trabalho tão complexo que envolve uma série de sujeitos que formam a cadeia do trabalho escravo contemporâneo. É preciso dar confiabilidade à pessoa que está envolvida nesta cadeia, para que a mesma possa retratar os fatos. Assim, entre uma conversa e outra podemos ter um diálogo e a própria confiança do trabalhador. Assim segue José com a sua história, com poucas frases construídas, mais que retratam uma realidade presente no Brasil contemporâneo: José: (...) não rapaz foi no ano retrasado, faz pouco tempo o senhor de Alessandro na fazenda Colatina. E você trabalhava em que? José: Lá era limpar pasto, era destocar, plantar pau de assar peixe, fazer pé de cerca. E o que eles prometeram. José: Rapaz faz como o dizer do outro, lá dizia que era um salário né. descontado meio mundo de coisa ai só recebia mal R$ 260,00.” A forma com que os gatos e os senhores fazendeiros atuam é na base das promessas falsas, como a assinatura de carteira de trabalho, que muitas vezes é assinada de forma irregular, além da totalidade do dinheiro recebido onde era 748 4º ENGRUP, São Paulo, 2008 LOPES, A. P. descontado instrumento de trabalho, alimentação adquirida na cantina. A assinatura da carteira era uma forma fraudulenta para enganar os trabalhadores. Assim segue Jose: Ele descontava não sei que tem mais lá, desconto moradia, não sei que tem mais lá, ta entendendo bóia essas coisas iam descontando tudo. “ Onde vocês ficavam para trabalhar? José: Antigamente era na sede, ai ele fez um barracão né. De onde era os mantimentos que vocês precisavam para a alimentação? José: O mantimento era da cantina né, por causa que lá já tinha cantina. tá entendendo? e fazia comida, e tudo tinha que ser na hora certa. ta entendendo? e alguma coisa que vocês precisasse a fazenda não dava não, tinha que comprar na cantina. E vocês tinham liberdade de sair antes do contrato acabar? José: Não E se vocês o fizesse o que acontecia? José: Ai descontava né.” Como podemos observar, no caso da alimentação não era suficiente para manter os trabalhadores e estes precisavam comprar ainda na cantina, uma forma de ganhar em cima do trabalho, como também em cima do que pagou para deixar na cantina. A falta de liberdade é algo evidente na fala da vítima. Ainda sobre o aspecto da liberdade e da própria violência instaurada pelos gatos ou fazendeiros, ele menciona um dos episódios vistos: “Não ele não chegou a ameaçar não, mas faz como o dizer do outro, mas vi ele dá uma lapada num peão, mas o peão foi sem vergonha, ele Araguaína-TO: a principal cidade econômica do estado e a periferia que esconde as vítimas do trabalho escravo por dívida, pp. 739-758. 749 levou só uma lapada na rede e vazou na capoeira e não voltou mais lá não.” A forma como atua os donos da fazenda e os gatos é de mostrar o poder perante o outro, numa forma de domínio para que o trabalhador tenha obediência e sujeição, utilizando estratégias para amedrontá-los, chegando a violentá-los quando necessário. Assim José prossegue em relação ao gato: “Olha desse tempo que eu estava lá, esse lá tinha uma arma, agora não sei se era pra se defender caso agente fizesse alguma rebelião lá dentro, agente não sabe de nada.” Em relação às denúncias, muitas vezes o fazendeiro ou o gato acabam sabendo da visita da Polícia Militar ou Ministério Público, e acabam mandando os trabalhadores embora as escondidas para que não seja autuada a fazenda. “Exato, muitas vezes o homem sabia que iam denunciar a fazenda dava as contas e botava pra ir embora sem direito a nada. Nossa carteira ficava com eles. ta entendendo?” O estigma contemporâneo da escravidão não é a cor, mas a falta de liberdade de homens e mulheres como afirma a OIT (Organização Internacional do Trabalho), questão essa, que na cidade se fortalece e encontra base para continuidade e maturação nas relações socioeconômicas, onde iremos encontrar grande contingente de desajustes sociais, vítimas de uma sociedade desigual e injusta. De acordo com esta questão, os trabalhadores que sofreram a prática de trabalho escravo por dívida ele poderá reincidir pelo fato de sua própria condição em termos da falta de trabalho para manter a sua família, como podemos observar na fala do José: 750 4º ENGRUP, São Paulo, 2008 LOPES, A. P. “Olhe, digamos assim, na falta de emprego como estou agora, voltaria sim. Como estou sem emprego, e lá e com carteira assinada e se só existisse aquele lugar pra trabalhar eu voltaria, mas como não existe eu não volto não.” É a afirmação da falta de perspectiva, onde a única alternativa está no trabalho das fazendas, e caso o gato ou o fazendeiro souber que houve denúncias por parte de alguns trabalhadores, este não os contrata, eis o medo de se identificar porque na falta de emprego o retorno é a única solução. Como podemos observar a cadeia que se forma do trabalho escravo por dívida está pautada na degradação do trabalhador em termos econômicos e sociais, pela falta de alternativa para sair de uma situação de desprezo, do medo, e do nada. Do nada pela própria história que são vividas cada trabalhador quando são vítimas das atrocidades nos lugares que trabalham sem destino e sem perspectiva de melhoria nas condições de trabalho. Assim, os aliciadores e donos de grandes propriedas têm se beneficiado com a miséria do outro, as periferias das cidades, como Araguaína é um achado que tem valor significativo no contexto da força do trabalho necessário para os capitalistas. Nesse sentido, Araguaína tem sido um celeiro de recrutamento de trabalhadores em toda a sua periferia, como afirma o membro da coordenação da CPT: “(...) se você anda nas periferias de Araguaína também existe alguns pontos, só que mais discretos. Aqui em Araguaína existe vários setores que existe gatos também, e que aliciam as pessoas nesses bairros periféricos, só que de uma forma mais discreta. Porque nos bairros por ser diferente do ponto estratégico da feirinha, o gato a partir do momento que ele pensa em aliciar um trabalhador para qualquer fazenda no Pará, Mato Grosso, Maranhão, ele vai fazer de uma forma bem discreta, porque as pessoas estão um pouco atenta o que é ser aliciado por um gato. Mas existe sim, como: Araguaína Sul, Tereza Hilário, próximo a feirinha o setor chamado Eldorado, todos são pontos de aliciamento. Só que os gatos vão de forma mais discreta para não Araguaína-TO: a principal cidade econômica do estado e a periferia que esconde as vítimas do trabalho escravo por dívida, pp. 739-758. 751 dar tanto na cara que está juntando pessoas para levar para as fazendas fora do estado”. (E. R.C, Jun., 2008) É a partir da cidade que começa o inicio da cadeia do trabalho degradante, porque nela se encontra o trabalhador que foi expulso das terras onde trabalhava, e foi se refugiar nas periferias. Nesse sentido, a cidade de Araguaína, é o local propício para esta relação, pois têm uma posição geográfica privilegiada, ficando a margem da rodovia Belém-Brasilia, fazendo fronteira com vários Estados. A cidade é porta de entrada e saída de muitos imigrantes que procuram pensões para sua estadia, e são esses locais, os pontos de encontro do aliciador, como apresenta o quadro às rotas de ligações dos trabalhadores ao local de origem onde são regatados. 752 4º ENGRUP, São Paulo, 2008 LOPES, A. P. Deslocamento de trabalhadores: ligações entre os estados de origem dos libertados e os locais de libertação de escravos Estado de Locais de libertação Rotas de ligação origem Maranhão Araguaína/ Bico (TO) Piauí Araguaína/ –do-Papagaio BR 122/ BR 010/BR 226/ BR 153/ BR 230 Bico –do-Tocantins BR 316 /BR 230/ BR 153 Bico –do-Tocantins BR 153/ BR 226/ BR 230 Bico –do-Tocantins BR 242/ BRO 20/ BA 460/ (TO) Tocantins Araguaína/ (TO) Bahia Araguaína/ (TO) Goiás Araguaína/ TO 280/ BR 153 Bico –do-Tocantins BR 153/ BR 226/ BR 230 Bico –do-Tocantins BR 230/ BR 153 (TO) Pará Araguaína/ (TO) Fonte: Relatório global da OIT, 2007. Org. Alberto P. Lopes. Abr. 2008. O quadro apresenta de forma precisa os Estados que originam os trabalhadores que são aliciados, para tornarem-se o escravo contemporâneo em direção ao estado do Tocantins, precisamente no município de Araguaína. Esses Estados do Brasil onde mais originam esses trabalhadores conforme o quadro como Maranhão, Piauí, Tocantins, Bahia, Goiás e Pará, tanto podem ocorrer à origem, como são receptores do trabalho escravo contemporâneo. Nesse sentido, Araguaína é a cidade do Tocantins que mais tem recebido trabalhadores aliciados, devido a sua localização geográfica da qual tornam-se as rotas de ligação, conforme os dados apresentados no quadro. Diante desta questão, o resultado destas formas e relações de trabalho, estão vinculadas à estrutura agrária brasileira, que emana o poder, a violência contra a dignidade humana, onde as pessoas são vergonhosamente aprisionadas na condição análoga ao escravo sem direito, apenas deveres a cumprir, tendo como única Araguaína-TO: a principal cidade econômica do estado e a periferia que esconde as vítimas do trabalho escravo por dívida, pp. 739-758. 753 ferramenta sua força de trabalho, ou seja, numa moderna forma de submissão ao trabalhado, para subtração do que lhe é mais essencial e único bem que lhe proporciona a sua existência. Essa teia de relações que se desenrola fomentando o fluxo do modelo econômico vigente. De certa forma, a fazenda na verdade não se conjuga como estância única desse processo escravocrata, pois ela só absorve mão-de-obra em determinadas temporadas para serviços específicos, usando da superexploração do camponês. O esquema de relações, se constitui a partir do gato/fazendeiro que buscam suas vítimas em sua maioria analfabetos, desagregados de seus vínculos familiares, os imigrantes , que partem do seio de suas famílias na busca de melhores condições de vida fugindo de privações e aliviando a receita da família em períodos difíceis. Nesse sentido, o camponês em sua essência tem uma concepção de uma melhor qualidade de vida e se aventuram em terras estranhas, tornando-se entretanto, presas fáceis para o processo que começa no aliciamento e no adiantamento de uma quantidade mínima em dinheiro como abono inicial, o que futuramente torna-se seu grilhão ideológico que o manterá cativo. Essa rede induz e leva centenas de camponeses para o interior de grandes propriedades, e estes só sentem que se tornaram escravos a partir do momento que lhes é tolhido o direito de ir e vir. Nesse momento, se deparam com jagunços armados que utilizam práticas de torturas tais como: ameaças, terror psicológico, coerção física, punições e assassinatos, no caso se qualquer um ouse buscar a liberdade perdida. Trazendo esta questão para o município de Araguaína-TO (foco desse estudo) localizado ao Norte do Brasil, essas relações se estabelecem características peculiares que são percebidas na sua própria constituição histórica, sendo o principal elo entre o Norte e o Nordeste brasileiro, absorvendo grande contingente de migrantes de toda região circunvizinha especialmente dos Estados do Pará, Maranhão, Piauí e Ceará. Assim, pensar nestas contradições que são construídas pelo sistema capitalista, é compreender os diversos contrastes que se repercute na estratificação das classes sociais no Tocantins especificamente a cidade de Araguaína, como local de estabelecimento da atividade agropecuária e das relações de poder que foram 754 4º ENGRUP, São Paulo, 2008 LOPES, A. P. solidificadas pelos projetos governamentais na ditadura militar. É na pecuária em que as relações de peonagem se constituem e tem se consolidado, como fator primordial para a formação das fazendas. É o contraste da riqueza que se consolida por meio da miséria do outro. O outro que utiliza seu bem maior que a força de trabalho para acumulação do capital para os que desfilam pela cidade. Assim, a cidade é o eixo dessa desigualdade, que emblema o contraste tão peculiar na fronteira agrícola. Diante a esta questão, Araguaína, reúne condições favoráveis (mão de obra barata, miserabilidade em sua periferia etc.) que o torna venerável para o sistema contemporâneo escravocrata. Outra característica peculiar do município, é o fato de reunir os maiores fazendeiros da região Norte como residentes, o que explica a formação dos grandes latifúndios que se vivificam principalmente com a construção da Rodovia Belém-Brasília (153) que atraiu dezenas de famílias para os trabalhos de desmatamentos, e agenciamento de pasto. Foi nesse período, que se formaram as médias e grandes fazendas na região as quais predominam. O município conta com uma estrutura montada para receber os trabalhadores, como é conhecida popularmente a “feirinha”. Um lugar com duas funções distintas: Primeiro, no decorrer do dia funciona o comércio de mercadorias como: açougues, lojinhas de roupas, mercadinho de cereais, onde a população transita normalmente. No segundo momento, no cair da noite os bares se acentuam, e as mercadorias expostas são os seres humanos, que vão desde a prostituição ao aliciamento da mão-de-obra escrava que se conjugam nesse esquema. De acordo com alguns estudos, a feirinha é o principal ponto de aliciamento de trabalhadores escravos. Atualmente esse local já não recebe mais o mesmo contingente de trabalhadores que recebia em anos atrás, inclusive alguns estabelecimentos já não funcionam. Entretanto outros irão vivenciar essa forma camuflada de relações degradantes. Contudo o local ainda fervilha na noite araguaínense, propiciando bares, prostituição e sedução de peões. Esse esquema já é negociado com o aliciador que pagam essas pequenas dívidas contraídas pelos peões, e estes se tornam seu grilhão que o tornará cativo do sistema e ao tornar-se desnecessário o trabalho serão abandonados a sua própria sorte. As informações advindas da CPT no período de julho de 2005 a julho de 2007, o município de Araguaína foco deste estudo aparece com um número considerável de Araguaína-TO: a principal cidade econômica do estado e a periferia que esconde as vítimas do trabalho escravo por dívida, pp. 739-758. 755 casos de escravidão contemporânea, na pecuária, visto que o município é considerado, a capital do boi gordo. A pecuária fomenta a economia do município e consequentemente a do estado. Sendo que esta atividade segundo Ong Repórter Brasil aparecem na lista suja (mecanismo de coação contra a prática escravocrata) que impossibilita a aquisição de empréstimos para investimentos na propriedade, e também a comercialização de seus produtos com empresas e órgãos que aderem a esse mecanismo, punindo o escravocrata no bolso. Nesse sentido, quando não são mais necessários e estes por sua vez tentam sair da fazenda exigindo seus direitos, ou tentam fugir da fazenda, são geralmente assassinados e enterrados na própria mata, em alguns casos, seus corpos viram comidas para os animais carnívoros para chamar a atenção dos trabalhadores que ficaram. Os que conseguem escapar da morte são submetidos aos maus tratos, tornando-se verdadeiros escravos da fazenda. Assim, essas teias de relações estabelecidas no rural são decorrentes principalmente da dívida do Estado em relação à sociedade, devido à falta de políticas coercitivas, que restrinja o poderio do latifúndio fomentado pelo próprio modelo desenvolvimentista econômico. Para que estas formas degradantes de trabalho sejam erradicadas, são necessárias políticas públicas voltadas às questões sociais e econômicas dos milhares de brasileiros sem oportunidades que vivem no interior desse país em condições subumanas. Condições estas voltadas para uma vida digna (qualificação profissional, educação, saúde, lazer) e principalmente políticas de distribuição de renda, que refletem diretamente no combate ao trabalho escravo, além da fiscalização por meio do grupo móvel que tem se intensificado, em conjunto com as instituições não governamentais atuando com rigor como, CPT, (Comissão Pastoral da Terra) Grupo de Direitos Humanos representantes e Ong’s (Organização não governamentais) com seus engajados de erradicar esse tipo trabalho que afeta diretamente a condição do homem, enquanto sujeito social. Portanto, diante dessa questão de cunho atual percebe-se que a mudança precisa ocorrer partindo dos representantes da sociedade no Congresso Nacional, para erradicar esse mau que se expande em todo território nacional. 756 4º ENGRUP, São Paulo, 2008 LOPES, A. P. REFERÊNCIAS BARBOSA, Y. M. As políticas territoriais e a criação do Estado do Tocantins. 1999. 158p. 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