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COLEÇÃO PRIMEIROS 89 PASSOS
João B. Cintra Ribas
O QUE SÃO PESSOAS DEFICIENTES
Editora Brasiliense
Coleção primeiros 89 passos.
LEITURAS AFINS
Coleção Primeiros Passos
_ O que são direitos das pessoas - Dalmo de AbreuDallari.
Coleção Cantadas Literárias
_ Feliz ano velho - Marcelo Rubens Paiva
João Batista Cintra Ribas
O QUE SÃO PESSOAS DEFICIENTES
Brasiliense
40 anos de bons livros
Copyright @ João Batista Cintra Ribas
Capa e ilustrações:
Miguel Paiva
Revisão:
Hercílio de Lourenzi
Silvana L. Cobucci
Editora Brasiliense s. a.
01223 - r. general jardim, 160
São Paulo - Brasil
ÍNDICE
-
O deficiente e sua imagem ...........7
Os meandros da deficiência ..........25
As pessoas deficientes nos bastidores ..........50
Pessoas deficientes: relações econômicas e políticas .......80
Indicações para leitura ..............89
Para meus Pais
Fábio meu irmão,
Maria Helena Villas Boas Concone,
Ana
não
sem
e o
É
O
E
O
Rita de Paula:
sei o que eu faria
as idéias, a abertura intelectual
carinh0 de Vocês.
que Narciso acha feio
que não é espelho
a mente apavora
que ainda não é mesmo velho.
Caetano Veloso
pag:07
O DEFICIENTE E SUA IMAGEM
Escrever sobre pessoas deficientes é muito mais difícil e complexo do que poderia pa
recer. Um dos problemas sérios reside no fato de que qualquer "noção" ou "definição" de de
ficiência implica uma imagem que nós fazemos das pessoas deficientes. Sempre que usa
mos palavras do tipo "excepcional", "cego", "surdo", "inválido", "louco", "aleijad
o", "anormal" etc., temos em mente uma concepção daquilo que estas palavras querem d
izer. Apesar de quase sempre as usarmos de forma indiscriminada, sem muita preoc
upação, elas sempre têm algum significado para nós. As palavras são expressões verbais criad
as a partir de uma imagem que a nossa mente constrói.
Digamos, então, que alguém pergunte a você o que são pessoas deficientes. Qual seria a s
ua
pag:08
resposta? Pense um Pouco. Todos nós, deficientes
ou não, somos capazes de imaginar. A pessoa que
agora esta em sua mente se adequa a um dos
"conceitos" mencionados no Parágrafo anterior?
Vale dizer: a pessoa que você imaginou tem as características
de um "cego", de um "demente", ou de um "paralítico" com todas as pessoas
possíveis idéias que se podem fazer a respeito dessas palavras?
Para ficar mais claro vou dar alguns exemplos:
Digamos que você tenha pensado num cego como
aquele bilheteiro
malvestido que ganha muito
pouco vendendo a sorte grande. Se você não
pensou nesta pessoa, digamos que você tenha
pensado em alguém que não era deficiente, se
acidentou num desastre de automóvel, foi para
uma cadeira de rodas, se tornou, portanto,
um deficiente físico e agora se recusa a sair de casa.
Mas, se Você não pensou ainda nesta pessoa,
digamos que Você tenha pensado num paraplégico
dinâmico, que acorda cedo, trabalha, estuda,
passeia e dorme tarde. Ou, então, naquela pessoa
"normal" que você conhecia e que, de repente,
não se sabe bem por que, desandou a ficar louca,
e agora é considerada um deficiente ou doente
mental.
Todas estas imagens em mente estão, sem
dúvida, permeadas por uma concepção de deficiência.
Mais que isso, esta concepção implica
que estamos situando o deficiente em relação
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àquilo que também imaginamos ser a sua própria
vida. Quando falo naquela pessoa que se acidentou
no desastre e agora se recusa a sair de casa, paralelamente
eu faço uma comparação em minha mente
de como acredito que era a vida dela antes e
depois do acidente. Eu não a penso apenas como
um homem ou uma mulher portadora de deficiência.
Eu a penso segundo uma interpretação que me leva a construir imagens. Seja conhecend
o alguma pessoa deficiente, seja por meio
de relatos de pessoas ligadas, seja ainda com
base em mensagens veiculadas ou artigos
publicados pelos meios de comunicação, o
importante a reter é que quando chamamos as
pessoas deficientes de "inválidos", insanos", "ceguinhos" ou "portadores de handic
ap", estamos sempre pensando naquela imagem
construída e impressa em nossa mente.
A partir da década de 70, muita gente, principalmente fora de nosso País, começou a pe
nsar que estes "termos" ou "definições" não davam conta da realidade total e concreta
das pessoas deficientes. Poderiam ser termos equivocados. Ou poderiam ser concei
tos enviesados por concepções ideológicas. Ou poderiam simplesmente ser palavras mal-a
cabadas que tenderiam
a fragmentar a imagem dos deficientes.
Um pouco com o intuito de tentar precisar
melhor os "termos" - e consequentemente as imagens -, alguns órgãos da Organização das
pag:10
Nações Unidas se manifestaram em favor de lançar mundialmente o termo "pessoas deficie
ntes". Surgiu a Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes, aprovada pela Assem
bléia Geral da ONU, em 9 de dezembro de 1975, que proclama em seu artigo 1: "O ter
mo 'pessoas deficientes' refere-se a qualquer pessoa incapaz de assegurar por si
mesma, total ou parcialmente, as necessidades de uma vida individual ou social
normal, em decorrência de uma deficiência congênita ou não, em suas capacidades físicas ou
mentais". Por outro lado, a Organização Mundial de Saúde publicou em 1980 uma Classif
icação Internacional dos Casos de: 1) Impedimento (na tradução do inglês impediment), 2) D
eficiência
(disability) e 3) Incapacidade (handicap). O impedimento
diz respeito a uma alteração(dano ou lesão) psicológica, fisiológica ou anatômica em um órgão
estrutura do corpo
humano. A deficiência está ligada a possíveis
seqüelas que restringiriam a execução de uma atividade. A incapacidade diz respeito ao
s obstáculos encontrados pelos
deficientes em sua interação com a sociedade, levando-se em conta a idade, sexo, fat
ores sociais e culturais.
A Declaração e a nova terminologia, tentando colocar fim à ambigüidade que os antigos "t
ermos" suscitam, tentam também, ao que parece, precisar melhor quem é ou não é deficient
e, a fim de apagar uma eventual imagem deturpada. Afinal
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a imagem estereotipada de uma pessoa cega, surda, paraplégica ou até deficiente ment
al faz dela uma pessoa deficiente? Resposta: não. No entanto, me parece que a ONU
e a OMS, apontando seu foco para as pessoas deficientes, diagnosticando suas def
iciências, e designando quem é ou não é deficiente, não chegam efetivamente a aclarar as i
magens. Ao centralizar o foco nas pessoas e nas deficiências, a ONU e a OMS deixam
de
apontá-lo para a razão da obscuridade, qual seja, a própria imagem que todos nós temos d
as pessoas deficientes. Eu não sei se a nossa imagem muda significativamente ao sa
bermos que tal
pessoa não é "incapacitada", mas apenas deficiente". Acredito que a imagem não mude su
bstancialmente a não ser quando trabalhada
em si mesma.
Se entrarmos por este caminho, surgirá ainda a seguinte pergunta: mesmo com a tent
ativa de "definição" por parte da Organização Mundial de Saúde (que tenta responder a esta
s questões),
a rigor, grande parte de todos nós não é em
maior ou menor grau deficiente? Afinal, muitos de nós são portadores de algum tipo d
e lesão, são míopes, diabéticos, hipertensos, têm altura
ou peso não considerados adeq
, possuem algum tipo de disfunção orgânica etc. Existem ainda pessoas que necessitam e
xtrair um órgão ou uma parte do corpo: é o caso, por exemplo, das mulheres que precisa
m fazer a mastectomia
pag:12
(extração cirúrgica de um ou dos dois seios). Neste sentido, quando falamos de pessoas
deficientes, podemos relativizar a este ponto? Até hoje este assunto não está fechado
. Mas eu não sei se não seria perda de tempo se deter muito nele. Pois, se nos ative
rmos somente às pessoas isoladas nos esquecemos de que elas fazem Parte do mundo.
Na nossa Sociedade, mesmo que a ONU e a OMS tenham tentado eliminar a incoerência
dos "conceitos", a palavra "deficiente" tem um significado muito forte. De certo
modo ela se opõe à palavra "eficiente". Ser "deficiente", antes de tudo, é não ser "cap
az", não ser "eficaz". Pode até ser que, conhecendo melhor a pessoa, venhamos a perc
eber que ela não é tão "deficiente" assim. Mas, até lá, até segunda ordem o "deficiente" é o
não-eficiente"
Assim é que em qualquer sociedade existem
valores Culturais que se consubstanciam no modo como a sociedade está organiza. São
valores que se refletem imediatamente no pensamento e nas imagens dos homens, e
norteiam as suas ações. São valores que terminam por se refletir nas palavras com que
os homens se exprimem. Assim sendo, em todas as sociedades a palavra "deficiente
" adquire um valor Cultural segundo padrões, regras e normas estabelecidos no bojo
de suas relações sociais.
A realidade natural é diversa: nós homens não
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somos fisicamente todos iguais. E claro que fazemos parte da mesma espécie, mas ca
da um de nós tem altura diferente, cor de pele e de olhos diferentes, peso diferen
te etc. Somos todos homens, porém diversos. Fisicamente temos, portanto, característ
icas diferentes uns dos outros. As pessoas deficientes talvez sejam um pouco mai
s diferentes, já que podem possuir sinais ou seqüelas mais notáveis.
Mas a realidade social também é diversa: nós homens não somos também socialmente todos igu
ais. Acontece, todavia, que não podemos meramente transpor a realidade natural par
a a realidade social. Não é porque os homens são naturalmente diferentes entre si que
devem ser socialmente diferentes. O fato de os homens se relacionarem quantitati
va e qualitativamente diferente no plano social é uma construção sociocultural. E uma
diferença que não nasce da Natureza: nós homens a construímos.
Vivemos, assim, em sociedades em que os homens são socialmente desiguais. São socied
ades problemáticas, com profundas divisões entre classes sociais. Muito mais crítica d
o que a divisão entre deficientes e não-deficientes, a divisão estrutural entre classe
s permeia todas as demais divisões. Se a sociedade está dividida pela base entre ric
os e pobres, empresários e trabalhadores assalariados, e, por extensão, ideologicame
nte, entre superiores e inferiores, melhores e piores,
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estas divisões vão acabar por permear todas as outras.
Nesta medida, não se trata também de querermos nos convencer que todas as pessoas são
socialmente iguais. Muitos dizem que, "no fundo, somos todos iguais". Alguns pro
fissionais chegam a dizer que "pessoas deficientes e não-deficientes são iguais pera
nte a sociedade". Não, não são. Todos são de fato diferentes socialmente. São diferentes s
ocialmente porque construíram e foram construídos neste mecanismo de relações sociais qu
e os diferenciam.
Entretanto, não é nessa realidade social dividida que pensamos viver. Não é nessa socied
ade fraturada entre homens que dizemos pertencer. A realidade se nos apresenta c
omo um todo que deve ser organizado, homogêneo, em ordem, e em que cada homem deve
ser solidário um com o outro. Pode ser que neste ou naquele momento a sociedade
não esteja neste pé de equilíbrio. Este pode ser um momento de transição que tenderá a de n
ovo se organizar. Para além disso, sempre nos é colocado que a sociedade deve ser um
corpo estruturado, o qual tem órgãos, sendo que cada órgão tem uma função social muito prec
isa. Trata-se de pensarmos a nossa realidade social de um ponto de vista fisiológi
co, como um corpo humano, com órgãos que se relacionam entre si numa estruturação que de
ve trazer o equilíbrio e a harmonia para este corpo.
pag:15
Assim sendo, para que não se quebre o equilíbrio, não pode haver "órgãos estragados" ou em
"mau funcionamento. Um corpo com órgãos "deficientes" não é um "corpo social" bem-estru
turado e em ordem. Desta forma, não é toda a sociedade que estaria fragmentada, mas
apenas uma parte dela seria considerada "fora do normal".
O nosso corpo individual tem íntima ligação com esse "corpo social". Todos nós nos expre
ssamos através da realidade sociocultural. Esta realidade está tão presente em nosso c
orpo, como o nosso corpo está presente na realidade. Na medida em que a sociedade
não é vista como uma realidade sociocultural fraturada, diversa, que apresenta contr
adições internas, mas sim vista como um "corpo social" que deve estar em ordem, o co
rpo humano também deve acompanhar a ordem social. Isso eqüivale a dizer que um corpo
humano que apresente qualquer malformação (amputações, seqüelas de qualquer tipo etc.) não é
um corpo estruturalmente em ordem.
Nesta nossa sociedade a ordem é por demais valorizada. Sempre ouvimos as pessoas d
izerem que uma sociedade sem ordem jamais chegara ao progresso. Sempre ouvimos t
ambém que um órgão qualquer que esteja apresentando uma disfunção pode contaminar o resto
do "corpo social". Estas são idéias facilmente transponíveis para o nosso corpo humano
individual. Um corpo
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deficiente seria, sob este raciocínio, um corpo que apresenta
necessariamente disfunções, incapacidades e não estaria em ordem. Um corpo que não está em
ordem consequentemente não poderá alcançar o progresso tão desejado. Logo, será um corpo
fadado a não ter realizações, não ter progressos, a ser sempre dependente.
Além desses um outro valor muito cultuado em nossa sociedade é o valor do sucesso. A
s pessoas se dispõem numa hierarquia tal que
quem tem maior êxito nos seus papéis predeterminados maior status terá. Existe uma pré-n
oção que determina o que é o êxito e o que é o sucesso e como as pessoas terão de fazer para
alcança-lo Muitas vezes, um corpo "bem-formado" essencial para conquista. Aliás, ex
istem também pré-noções que determinam o que é o organização homogeneidade ordem...
Isto é o estigma. Toda pessoa considerada fora das normas e das regras estabelecid
as é uma pessoa estigmatizada. Na realidade, é importante perceber que o estigma não e
stá na pessoa ou, neste caso, na deficiência que ela possa apresentar. Em sentido in
verso, são os valores culturais estabelecidos que permitem identificar
quais pessoas são estigmatizadas Uma pessoa traz em si o estigma social da deficiênc
ia. Contudo, é estigmatizada porque se estabeleceu que ela possui no corpo uma mar
ca que a distingue
pejorativamente das outras pessoas. Porque a
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nossa sociedade divide-se estruturalmente em classes sociais, aqueles considerad
os "iguais" colocam-se num pólo da sociedade e aqueles considerados "diferentes" c
olocam-se no outro pólo. Mais do que isso: muitos dos considerados "diferentes" in
trojetam essa divisão como se ela fosse absolutamente natural. Aceitam a consideração
de "diferentes" e admitem até a condição de "inferiores".
Pela lógica dos valores sociais dominantes, uma pessoa estigmatizada deve tentar s
e parecer como a mais "normal" possível. Até um educador de cegos, Wilhelm Heimers,
em seu livro Como Devo Educar Meu Filho cego?, afirma categoricamente: "Muitas d
eficiências físicas podem ser aliviadas por meio do uso de próteses que tornam defeito
mais aceitável para as outras pessoas. No caso da pessoa cega, o olho se apresent
a deformado, como morto, e provoca repulsa, especialmente quando a pessoa esboça c
om o olho movimentos próprios dos videntes. Um olho artificial não ajuda a pessoa ce
ga, mas permite-lhe disfarçar o defeito e elimina o aspecto desagradável da órbita ocu
lar. Se por uma coincidência qualquer a aplicação de uma prótese se torna impossível, reco
menda-se o uso de óculos escuros. A pessoa cega que se adapta ao ambiente e se com
porta de um modo normal sem chamar a atenção sobre sua deficiência facilita enormement
e o relacionamento com os outros e
pag:18
prestigia sua imagem no mundo dos "videntes".
É interessante verificar que é incutido na pessoa deficiente que ela deve colocar um
a prótese porque deve fazer tudo para se parecer com uma pessoa "normal". E o mais
grave: o deficiente aceita isso. Quase nunca ele pensa que uma prótese se destina
também à correção de uma situação física que se deixada para depois talvez venha a ser tarde
No conjunto dos valores culturais que definem o indivíduo "normal", estão incluídos p
adrões" de beleza e estética voltados para um corpo esculturalmente bem-formado. Aqu
eles que fogem dos "padrões", de certa forma agridem a "normalidade" e se colocam à
parte da sociedade É por isso que se procura alcançar por qualquer meio e a qualquer
preço estes "padrões". E isso não diz respeito somente às pessoas deficientes... As pes
soas estigmatizadas são pessoas que, muito embora tenham sido criadas nesta socied
ade e nesta cultura, não são reconhecidas nem por esta sociedade, nem por esta cultu
ra.
Então estas pessoas são excluídas da sociedade?
Isto não é tão simples assim. Estas pessoas não
são sumariamente excluídas da sociedade. O
processo não é automático Existe um mecanismo
social muito bem feito que pende para a
"exclusão" e ao mesmo tempo pende para a
"integração". O "diferente" é segregado, não obstante existe
na sociedade uma "ideologia
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de integração", que consiste em apregoar que todos os cidadãos são iguais e que por iss
o ninguém deve ser excluído do convívio social. Já vimos que os cidadãos não são iguais na so
iedade. Por isso dizer que são iguais é esconder uma realidade diversa. No fundo, es
te mecanismo social é altamente discriminador.
Essa tentativa de integração acontece concretamente através das instituições, quais sejam,
a escola, os hospitais psiquiátricos, as penitenciárias e mesmo os centros de reabi
litação. São
eles que na maior parte das vezes tentam preparar
o indivíduo para que seja aceito e integrado no
social. Os centros de reabilitação tentam preparar
os deficientes para que a sociedade os aceite.
A tendência da sociedade, por sua vez, é
continuar em sua lógica de exclusão. Instaura-se o impasse.
O mecanismo social que exclui e a um só momento pretende integrar o deficiente tra
z para ele e para todos nós uma confusão muito grande de pensamentos. O nosso raciocín
io não entende por que fala-se tanto em integração e mesmo assim o deficiente é marginal
izado. Não entende por que não é reconhecido por esta mesma cultura em que encontra-se
inserido. Isso pode levá-lo a considerar-se um estranho em seu próprio mundo. Toda
pessoa, deficiente ou não, que, submetida à engrenagem da estrutura sociocultural, não
se encontra em
pag:20
seu próprio mundo tende a se desligar dele. Como única e última alternativa tenta proc
urar um outro mundo em que seja reconhecida.
E preciso perceber que a busca de um outro mundo, a busca de reconhecimento e id
entidade, está muito ligada a um processo social ambíguo e contraditório. As tensões fam
iliares, profissionais, sociais, podem levar um indivíduo a apresentar "comportame
ntos desviantes", estando ele à procura de um mundo cujos valores lhe sejam identi
ficáveis. Nesta medida (tento mostrar que deficiência e doença mental não representam ne
cessariamente a mesma coisa), não só o deficiente mental (em geral considerado como
portador de baixo potencial intelectivo) pode apresentar "comportamentos desvian
tes". Há também pessoas não-deficientes mentais que, por se verem imbuídas de várias tensões
, podem apresentar os ditos "comportamentos divergentes" e assim serem considera
das "doentes mentais" ou "loucas".
Michel Foucault, importante filósofo francês contemporâneo, em Doença Mental e Psicologi
a, afirma: "De fato, quando homem permanece estranho ao que se passa na sua ling
uagem, quando as determinações econômicas e sociais o reprimem, sem que possa encontra
r sua pátria nesse mundo, então ele vive numa cultura que torna possível uma forma pat
ológica como a esquizofrenia; estranho num mundo real, é enviado
pag:21
Figura.
"...estranho num mundo real".
pag:22
a um 'mundo privado', que objetividade nenhuma pode mais garantir; submetido, en
tretanto, ao constrangimento desse mundo real, ele experimenta este universo par
a o qual foge, como um destino". Neste sentido, procurando um novo mundo para en
contrar-se, a pessoa que não se reconhece em sua própria cultura encaminha-se
para o que Foucault chamou de um "mundo mórbido". Essa pessoa seguramente se disti
nguirá das outras, pois apresentará comportamentos próprios deste "mundo mórbido" em que
encontra. Essa pessoa será, no mínimo, "anormal" e, no máximo, "louca".
Não é preciso ser deficiente para não ser reconhecido pela sua própria sociedade. O negr
o, o homossexual, O louco e até qualquer um que divirja das normas e regras da ord
em social podem ser considerados "desviantes" e assim situarem-se fora da socied
ade. O "desviante" é aquele que não está integrado, que não está adaptado, que se apresent
a física e/ou intelectualmente normal, e portanto encontra-se à parte das regras e d
as normas. Deste modo, o que mede o "desvio" ou a "diferença" social são os parâmetros
estabelecidos pela organização sociocultural.
Porém, esta organização sociocultural precisa ser por nós desmistificada. O que quero di
zer é que não podemos fazer dela uma noção abstrata que encubra e obscureça todas as suas
articulações e mecanismos concretos que se
pag:23
refletem no nosso dia-a-dia. É muito comum jogarmos a culpa de tudo o que nos acon
tece numa entidade abstrata chamada sociedade ou sistema. Sempre ouvimos falar q
ue a sociedade não costuma reintegrar ex-presidiários nem integrar deficientes. Isto
não é verdade. A verdade é que esta tal sociedade é assim, discriminadora e excludente,
ela é assim porque os homens que nela habitam construíram historicamente e reproduz
em divisões estruturais entre classes, divisões estas permeadas por conflitos incon
ciliáveis, com desdobramentos múltiplos, que determinam todas as exclusões e discrimin
ações efetuadas.
E aqui voltamos para a imagem que fazemos das pessoas deficientes. Vimos que a nív
el da Natureza todos nós, seres humanos, apresentamos características diferentes uns
dos outros. Vimos que neste nível as pessoas deficientes têm as suas diferenças mais
notáveis; são, de fato, portadoras não de seqüelas diferenciadoras. Vimos também que estas
diferenças biológicas não podem jamais ser transportadas para as diferenças sociais, as
quais são construídas culturalmente pela organização social forjada pelos homens. São est
as diferenças sociais valorativas - e não necessariamente as biológicas - que determin
am que as pessoas deficientes são pessoas submissas. São
estas diferenças sociais que fabricam mecanismos de exclusão e de tentativa incoeren
te de intepag:24
gração social. São estas diferenças sociais e estes mecanismos que fazem os considerados
"diferentes" construir um mundo próprio "mórbido", na medida em que não se "encaixam"
e não se reconhecem neste mundo que também é deles. Vemos, enfim, que ao imaginarmos
em nossa mente um "inválido", um "ceguinho" um "defeituoso" ou um "maluco", é impres
cindível que busquemos os elementos que constituem essa imagem nas articulações concre
tas da estrutura sociocultural
Esta é uma breve introdução num breve livro. Muitas das questões que dizem respeito às pes
soas deficientes foram e vão ser daqui por diante quase que apenas levantadas. Evi
dentemente não há espaço para uma discussão mais profunda. Gostaria apenas de indagar se
não cabe, hoje, a todos nós, repensar a imagem que elaboramos com relação às pessoas defi
cientes. Uma imagem dominante, que incide arbitrariamente sobre interpretações subje
tivas e que leva a ações paternalistas, assistencialistas e caritativas. Acredito qu
e caiba a todos nós, deficientes ou não-deficientes, reavaliarmos esta imagem, anali
sando a sua origem e sua articulação com a organização sociocultural em que vivemos.
pag:25
OS MEANDROS DA DEFICIÊNCIA
No Brasil não existem pesquisas para sabermos quantos deficientes existem ao certo
e quais são suas deficiências. No mundo, a Organização Mundial de Saúde afirma que uma en
tre dez pessoas é portadora de deficiência física, sensorial ou mental, congênita ou adq
uirida. Isto eqüivale a dizer que por volta de 10% dos habitantes da Terra são pesso
as deficientes. Aqui no Brasil, segundo a ONU, a porcentagem estatística deveria s
er, por estimativa, a mesma: 10% da população seria deficiente. No entanto, acredito
que aqui a porcentagem é maior. Primeiro, porque a OMS diz que nos países do Tercei
ro Mundo esta porcentagem pode chegar a 15% ou até 20%. Depois, porque aqui as reg
iões pobres são imensas (principalmente Norte e Nordeste), locais de maior incidência
de defipag:26
ciência, cujos meios de vida e prevenção s~ insatisfatórios.
A rigor, existem três tipos de deficiência, sendo que um deles divide-se em dois. Ex
istem as deficiências físicas (de origem motora: amputações, malformações ou seqüelas de vári
tipos etc.), as deficiências sensoriais, que se dividem em deficiências auditivas (s
urdez total ou parcial) e visuais (cegueira também total ou parcial), as deficiência
s mentais (de vários graus, de origem pré, peri ou pós-natal).
Deixe-me trocar em miúdos. Vamos, porém por partes. Primeiro, vamos dividir a origem
das deficiências em pré-natal, em que se incluem as congênitas, de um lado, e peri e
pós-natal, de outro. Quanto à primeira origem, após a concepção, o embrião leva três meses pa
a se formar definitivamente. É nesta época de formação que podem ocorrer as malformações. Aq
ui encontram-se basicamente duas causas: 1) doença da mãe ou do feto, ou 2) distúrbios
genéticos.
Se a mãe contrair alguma doença infecciosa (por exemplo: rubéola, toxoplasmose, sífilis)
ou alguma doença metabólica (por exemplo: tireopatia) nos três primeiros meses de gra
videz, o feto pode ser acometido de uma malformação. É neste primeiro trimestre de ges
tação queo feto se forma por inteiro: cabeça, braços, pernas, órgãos sexuais etc. A doença in
ecciosa metabólica da mãe pode acabar sendo transmitida
pag:27
para o filho em seu ventre, acarretando a malformaç5o. Há casos em que a mãe já é portador
a da doença, mas não sabe porque não existem sintomas. No entanto, a doença está sendo tra
nsmitida ao filho e este pode nascer com alguma rnalformação.
Por outro lado, a ingestão de drogas também pode ser responsável por malformações. Não é acon
elhável a qualquer mulher grávida tomar qualquer tipo de remédio (principalmente calma
nte) sem orientação médica. Na década de 50, existiam calmantes considerados muito fraco
s, contendo talidomida, que foram responsáveis por um número muito grande de crianças
deficientes. Até hoje existe uma associação chamada Associaç5o das Vítimas da Talidomida.
Existem ainda os efeitos da radiação. O Raio-X, por exemplo, pode acarretar malformações
no espermatozóide do pai, no óvulo da mãe, ou no embrião, o que pode gerar o nascimento
de um filho deficiente. É por isso que as mães que estão gerando filhos não devem tirar
radiografias.
Dentro das malformações de origem pré-natal, encontramos também as causas congênitas. Esta
s dizem respeito à carga genética transmitida hereditariamente ao feto. Genes altera
dos de antepassados podem ocasionar malformações. O feto pode adquirir um gene deletér
io (degenerado) de parte da família do pai ou da família da mãe,
pag;28
o que vai interferir na sua constituição.
As malformações ocorridas no período dos primeiros três meses de gravidez podem trazer q
ualquer dos três tipos de deficiência. A deficiência física, a sensorial e a mental, e a
té mesmo a combinação de algumas deficiências (chamadas deficiências múltiplas) podem ser ge
radas por doenças da mãe ou do feto, por disfunç5o causada por radiação ou por transmissão h
ereditária de genes alterados. Podem nascer crianças portadoras da síndrome de Down (m
ongolismo), distrofia muscular progressiva, mielomeningocele, surdez, cegueira,
hidrocefalia, microcefalia etc.
Mas as deficiências não têm somente origem pré-natal. Elas também podem ter origem peri ou
pós-natal, às quais chamamos deficiências adquiridas. Podem ocorrer por acidentes ou
doenças. As doenças infecciosas que atacam crianças ou adultos podem ser responsáveis po
r seqüelas. As doenças infecciosas mais comuns suo: varíola, meningite, encefalite, sa
rampo, tracoma, poliomielite, hanseníase etc. Estas doenças, se não são tratadas no início
e com presteza, podem trazer qualquer dos três tipos de deficiência. As crianças prem
aturas, por possuírem menor defesa contra agentes agressores, podem vir a ser acom
etidas por doenças que acarretem deficiências. Em geral, são tomados os cuidados neces
sários.
Existem, por outro lado, as doenças nãopag:29
infecciosas, que acometem mais os adultos. Estas
são, na maioria, a hipertensão, que pode ocasionar
o derrame e consequentemente a hemiplegia,
e as doenças das artérias, que levam a amputações.
As deficiências adquiridas podem ainda ter
origem nos acidentes de parto, de trabalho, de trânsito etc. Em geral, a paralisia
cerebral e a epilepsia, por exemplo, são deficiências ocorridas devido a um acident
e no momento do parto. Um acidente de automóvel pode fazer deslocar alguma vértebra
da coluna vertebral, atingindo a medula espinhal, trazendo a paraplegia ou até a t
etraplegia. Um acidente de trabalho, o qual pelo menos aqui no Brasil é muito freqüe
nte, pode ocasionar uma amputação ou uma doença grave que traga algum tipo de seqüela.
Todas as pessoas deficientes são iguais? Claro que não. O estigma da deficiência acaba
por fazer com que a população acredite que todos os deficientes são iguais. Isso não é ve
rdade. Certamente teremos deficientes com graves limitações incapacitadoras, mas tam
bém teremos indivíduos cuja deficiência não lhes traz nenhuma (ou quase nenhuma) incapac
idade. Um portador de deficiência mental severa tem limitações. Um portador de paralis
ia cerebral leve não tem limitações. Mas, então, novamente, podemos chamar de "deficient
es" aqueles que não possuem nenhuma (ou quase nenhuma) limitação?
O que me parece importante é que um deficiente
pag:30
físico que "transe" muito bem com o seu aparelho ortopédico, com a sua cadeira de ro
das e com a vida, sem dúvida poderá ter as suas limitações atenuadas. Ao passo que um de
ficiente qualquer, que deixe a deficiência ou a vida comandá-lo mais do que a medida
mesma em que ele comanda a deficiência ou a vida, um deficiente desses estará sujei
to a ter mais limitações. Eu sei que isto não é fácil. Sei que quando o deficiente está posi
cionado numa classe social que o impede pela pobreza material de comprar aparelh
o, cadeira de rodas, aprender o alfabeto Braille ou o manual, fazer reabilitação etc
., ele estará sentenciado a ser sempre comandado pela vida. Sei também que quando se
tem tudo isso, mas faltam perspectivas que não surgem porque existe o paternalism
o, o estigma, o preconceito e a sua própria cabeça, ele estará também fadado a ser coman
dado pela vida.
O que estou querendo mostrar, apenas, é que a deficiência é relativa. Relatividade est
a que se apresenta tanto a nível sociocultural, como também exclusivamente a nível físic
o. Aliás, nem a OMS conseguiu uma definição matematicamente precisa de quem é ou quem não é
deficiente neste nosso mundo. De minha parte, acredito que precisar corretamente
quem é e quem não é deficiente não é a coisa mais importante. A coisa mais importante são a
s implicações que decorrem a partir de um processo
pag:31
que engloba a deficiência.
Mas, mesmo não dando muita importância para as definições exatas, acredito ser fundament
al desmistificar algumas coisas. Dois pontos importantes, até porque eles se refle
tem nas relações sociais que se entabulam na nossa sociedade, precisam ser na medida
do possível corretamente explicitados. Um deles diz respeito à diferenciação entre doença
e deficiência. O outro diz respeito a se existe ou não a possibilidade de transmissão
ou contágio da deficiência. Estes são dois pontos muito nebulosos que não raro, devido
até à má informação reinante entre a população, são objeto de confusão, acarretando preconcei
nfundados. Vamos, então, por partes.
Quanto ao primeiro item - doença/deficiência - é preciso esclarecer a relação existente. A
s pessoas deficientes, salvo algumas poucas exceções, não são pessoas doentes. Ao contrári
o, como quaisquer outras pessoas, devem gozar de boa saúde. A relação existente entre
doença e deficiência é que algumas deficiências se originam em doenças. A deficiência, neste
caso, é a seqüela trazida pela doença. A poliomielite, por exemplo, é uma doença infeccio
sa que traz como conseqüência urna seqüela: a paralisia de um ou mais membros. E impor
tante frisar que passada a fase da doença (pólio), a pessoa pode se tornar deficient
e. Não obstante, esta mesma pessoa pode também gozar de boa saúde para o resto da vida
. E verdade que
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existem algumas exceções, que são os casos em que a doença muito forte atingiu a pessoa
de forma grave a ponto de trazer complicações como, por exemplo, complicações respiratória
s. Mas é verdade também que grande parte (eu diria a maior parte) dos que tiveram póli
o hoje são pessoas que gozam de muito boa saúde e, portanto, são apenas deficientes.
A consideração de que todo (sem tirar nenhum) deficiente é um doente vai muito mais lo
nge. Mesmo aqueles que se dizem especialistas consideram as pessoas deficientes
como doentes. Peter Herriot, psicólogo inglês, organizador dos livros do Curso Básico
de Psicologia, na introdução do livro de Rosemary Shakespeare, Psicologia do Deficie
nte, afirma: "À maneira da sociedade, é provável que nos congratulemos com o fato de t
ermos começado a pensar nas pessoas deficientes como doentes e não como vítimas da pun
ição divina".
Doença é um processo. Deficiência é um estado físico ou mental eventualmente limitador. Ex
istem, é verdade, alguns casos - mais incomuns - de simultaneidade. Nestes as pess
oas são portadoras de uma doença que se associa à deficiência. Três exemplos devem ser o b
astante: a distrofia muscular progressiva (tipo de doença muscular), a hanseníase (m
al-de-Hansen, indevidamente chamada de lepra) e os distúrbios cardiovasculares. Me
smo assim, a maioria destas doenças pode
pag:33
ser curada, restando somente a deficiência ou nem isso. Com tratamento médico adequa
do, a hanseníase é curada, deixando na pessoa apenas as seqüelas advindas da doença. Por
outro lado, uma cirurgia cardíaca pode eliminar a doença, eliminando também a deficiênc
ia, pois, como os distúrbios cardiovasculares são responsáveis por algumas incapacidad
es físicas pessoais, uma vez eliminados estar5o também eliminadas as incapacidades e
a deficiência. Estes casos requerem cuidados médicos, já que a deficiência está associada
a uma doença. Mas, sanada a doença, não há mais por que considerar como ainda sendo doe
nte ou no mínimo "ex-doente" a pessoa que agora está completamente curada ou apenas
deficiente.
Contudo, preciso sublinhar que com isso não estou querendo minimizar uma doença ou d
izer que consultar médico é bobagem. Isso nunca. Assim como o excesso de cuidado des
necessário pode ampliar a deficiência, a falta de cuidado também pode aumentá-la. Existe
m casos de crianças que nascem deficientes e, por ignorância dos pais ou absoluta ca
rência de condições financeiras, acabam por não consultar médicos especialistas ou por não f
azer a reabilitação necessária. Além disso, existem também casos (e não são poucos) em que os
pais deixam de consultar médicos e vão consultar milagreiros, pais-de-santo, benzede
iros etc. Acredito que
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cada um tem a sua fé, o que leva as pessoas a procurar alternativas para o que con
sideram poder ser consertado. Mas nesta crença deve estar incluída também a fé no médico e
nos profissionais de reabilitação que, em tese, saberão tratar da deficiência.
Por outro lado, isto não exime de responsabilidade estes médicos e profissionais de
reabilitação. Muitos pais procuram outras alternativas por se cansarem de ver o filh
o passar por vários médicos e não ter melhora significativa. O rosto dos pais sentados
à porta dos consultórios dos médicos do INAMPS traduz um misto de esperança, desorientação,
conformismo e desolação. Em geral estão mal informados acerca da deficiência e da viabi
lidade de reabilitação de seus filhos. São despachados de um posto do INAMPS para um o
utro local, muitas vezes longe, onde fazem exames clínicos, e depois para ambulatóri
os ou hospitais. São atendidos grosseiramente por algumas atendestes. São inseguros
quanto ao futuro. Pior do que isto, existem casos provados de pessoas deficiente
s que ao longo do caminho trilhado por consultórios e hospitais, foram acrescentan
do para si deficiências e incapacidades. Muitas cirurgias ou tratamentos equivocad
os levaram à aquisição de novas deficiências e não à superação delas. Alguns deficientes cheg
até a se considerar como "cobaias".
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Alguns profissionais chegam até a confundir deficiências. Num trabalho apresentado n
o V Congresso Brasileiro de Prevenção da Cegueira (1982), Júlia K. Hori, Nely Garcia e
Tomázia Dirce P. Lara afirmam logo na primeira página:
"A experiência no trabalho com crianças portadoras de deficiência mental ou visual tem
demonstrado que algumas crianças que freqüentam classes especiais para deficientes
mentais são portadoras de dupla deficiência (mental e visual), ou apenas de deficiênci
a visual; sendo diagnosticadas como deficientes mentais por interferências comport
amentais, e por não poderem responder satisfatoriamente aos instrumentos convencio
nais de avaliaç5o psicológica". Por incrível que pareça, neste trabalho realizado em Garça
, Marília e Quintana (municípios de São Paulo) foram encontradas crianças deficientes vi
suais cujo diagnóstico constava como deficiência mental.
Sei que este é um assunto delicado. Sei também que vivemos num País pobre de recursos,
que aqui o campo médico da fisiatria ainda é incipiente, e que muitas deficiências se
configuram numa incógnita, devido muitas vezes à dificuldade de se encontrar a orig
em, as causas e o método mais adequado de reabilitação. Todavia, estamos muito acostum
ados a respeitar e aceitar sem questionamento um diagnóstico que consideramos legíti
mo porque foi proferido por um especialista autorizado e com competência suficient
e para
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tratar de doenças. Desta forma, se algo não der certo, aceitamos que o diagnóstico e/o
u tratamento falharam, e não que a autoridade falhou.
Os médicos e profissionais de reabilitação não estão também acostumados a fazer a integração
o/equipe/pais e/ou família/deficiente. Esquecem-se que na ausência do médico ou da equ
ipe de reabilitação são os pais que se tornam os terapeutas principais. Muitos médicos c
hegam a se ver completamente perdidos em algumas deficiências que a eles se aprese
ntam e, ao invés de debater o caso com a família e com o próprio deficiente, se escond
em atrás de diagnósticos confusos e abstratos e excluem os pais das terapias. Deste
modo, pais e deficientes estarão desinformados, desorientados e impotentes para a
total reabilitação.
Nesta medida, pode ser que percamos a fé que nos move e nos incentiva a procurar n
o médico e nos profissionais de reabilitação a cura de uma doença ou a correção de uma defic
iência. Perdemos a confiança e procuramos alternativas em milagreiros e pais-de-sant
o. Estes são também mais acessíveis, menos distantes, falam mais a nossa língua. Acredit
o que caiba a todos nós repensar a relação médico/paciente e profissionais de reabilitação/d
eficiente em todos os aspectos. Não só no aspecto da autoridade competente, como tam
bém na falta de comunicação que freqüentemente se estabelece.
pag:37
Para tanto, é preciso rediscutir a visão médica e de reabilitação. É preciso notar que, muit
o mais do que "pacientes" ou "reabilitandos" as pessoas situam-se diferentemente
em classes sociais, posicionam-se politicamente de diversas formas e possuem va
riadas crenças religiosas.
O segundo ponto que chamei de nebuloso diz respeito à diferenciação entre transmissibi
lidade e contágio. A ignorância e o senso comum dizem que "deficiência pega". "A hanse
níase (mais conhecida por lepra) é contagiosa." "Não se pode encostar no epilético, se não
se quiser ser também um." Ou, por outro lado, dizem que "todo filho de deficiente
será também um deficiente". Isto tudo não é bem verdade.
Quanto à transmissibilidade já cheguei a tocar no assunto. E verdade que as deficiênci
as causadas por disfunção de genes podem ser transmissíveis hereditariamente. Porém - e
isso é importante ~, essa transmiss5o é condicional, ou seja, pode ser que aconteça e
pode ser que não aconteça. Dependendo da carga genética do deficiente, seu filho poderá
ou não herdar seus genes responsáveis pela deficiência. Assim, não é regra geral que todo
filha de deficiente será deficiente. Acredito que um aconselhamento genético não deve
ser desprezado.
Quanto ao contágio isto trata-se mais de um mito do que de uma argumentação verdadeira
Não sendo infecto-contagiosa nenhuma doença
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pode passar pelo contágio de pessoa para pessoa. Além do mais, para que a doença passe
é preciso uma certa convivência com o doente, além de uma certa predisposição para pegar
a doença. O hanseniano é portador de uma doença infecto-contagiosa. Não obstante, só se pe
ga a doença se se conviver com ele um período suficientemente longo para que ela pas
se para o outro organismo. Caso contrário, pode-se tranqüilamente ficar perto de um
hanseniano sem correr nenhum risco. Por outro 1ado, quando a doença estiver em fas
e negativa (livre de contágio) ou quando restarem apenas as seqüelas e a doença já tiver
ido embora definitivamente, aí então é que nem convivendo com o agora ex-hanseniano s
e contrairá a doença.
Existe também um mito muito grande que circunda a figura do epilético. Dizem que a s
aliva do epilético é contagiosa. Com efeito, a epilepsia é uma lesão cerebral e como tal
não pode jamais passar para qualquer indivíduo pelo contágio. O indivíduo saliva por ur
na conseqüência da crise. Não se pega epilepsia pela saliva do epilético. Novamente: som
ente doenças infecto-contagiosas podem ser passíveis de transmissão pelo contágio de um
indivíduo doente para outro são.
E preciso ficar claro, portanto, que seqüela
não pega em ninguém. A deficiência não é contagiosa: ela não contamina. As seqüelas de
pag:39
Figura.
Somos deficientes doutor, não conseguimos comer...
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qualquer doença, incluindo a hanseníase, bem como a epilepsia, e mesmo a distrofia m
uscular progressiva, que consiste numa doença aliada a uma deficiência, não são contagio
sas. Pode-se tranqüilamente conviver com as pessoas deficientes, usar suas roupas,
beber e comer nos mesmos utensílios.
No Brasil, a deficiência nos leva de chofre para a questão social. Nós somos considera
dos um "país em desenvolvimento" (Terceiro Mundo). Nestes países a incidência de defic
iência é maior:
existem pelo menos 300 milhões de deficientes (num total de 500 milhões no mundo int
eiro). E, como afirma a Rehabilitation lnternational (entidade internacional de
reabilitação, com sede em Nova York), os deficientes do Terceiro Mundo são "gente para
quem as únicas condições de vida são a pobreza, a fome, a ignorância, a miséria e a falta d
e perspectiva".
De fato, aqui no Brasil grande parte da população é subnutrida, o que leva à carência dos
mais diversos tipos de proteínas e calorias, imprescindíveis para o organismo e para
a geração de filhos sadios. Só no Nordeste o índice de cegueira causada pela falta de v
itamina A é alarmante. Segundo os dados da RAIS (Relação Anual de Informações Sociais) e d
o Censo IBGE de 1980, 49,8% da população brasileira economicamente ativa recebe até 2
salários mínimos por mês, o que não dá para sustentar uma
pag:41
família constituída de um casal com dois filhos. Os que moram nas zonas rurais mais
pobres e nas favelas e cortiços urbanos não têm acesso constante e adequado aos serviços
de saúde e assistência. Falta educação, falta preparo profissional, falta saneamento bási
co, falta higiene, falta prevenção, falta informação, falta perspectiva de vida.
Estas pessoas estão muito perto da deficiência. Condições precárias de vida aproximam as d
oenças e deficiências. E, quando deficientes, muitos se vêem em condição de abandono. Exis
tem casos provados de pessoas deficientes que não são doentes, são somente deficientes
, mas que perambulam de hospital em hospital por não possuírem um mínimo de condição socia
l e financeira que lhes permita levar uma vida independente. São pessoas praticame
nte abandonadas, sem família, e que não têm condições de Viver sozinhas. E, como a sua per
manência em hospitais acaba sendo onerosa, esses deficientes transitam de hospital
em hospital, diminuindo assim o ônus de cada um. Estão literalmente ao "Deus-dará".
Falar em má condição social, em má condição de vida, abre novo espaço para que se fale em rea
ilitação. Dos 300 milhões de deficientes do Terceiro Mundo, a maioria não conta com os s
erviços de reabilitação.
Mas, o que entender quando se fala em reabilipag:42
tação? No conceito de reabilitação está incluída a parte física, a parte psíquica (emocional)
a parte social. Quando uma pessoa portadora de deficiência congênita ou nos casos ma
is freqüentes adquirida por acidente entra num centro de reabilitação, a filosofia que
a envolve é a de que ela é um ser humano que será reconhecido em sua totalidade. A su
a reabilitação será, portanto, integral. Ela será reabilitada física, psíquica, profissional
, socialmente etc. Acontece, todavia, que, no mais das vezes, isso não ocorre. Por
quê?
Porque existem vários fatores que podem estar dentro e/ou fora da instituição de reabi
litação, e que impedem a total reabilitação do deficiente. Vamos por partes. Primeiro, v
ejamos o que ocorre por dentro da instituição.
Os centros de reabilitação existentes esforçam-se para reabilitar as pessoas deficient
es. Da equipe de reabilitação devem fazer parte o pessoal médico - fisiatra, neurologi
sta, pediatra, urologista etc. - e o pessoal clínico - fisioterapeuta, fonoaudiólogo
, terapeuta ocupacional, psicólogo, assistente social, enfermeiro, técnico em órteses
e próteses, pedagogo etc. E essencial que haja um entrosamento muito grande no int
erior da equipe. Mas isso não é sempre o que acontece. Dentre outros problemas, exis
te um que me parece ser muito sintomático. Trata-se da hierarquia existente no int
erior da equipe de reabilitação. Ao invés de um entrosamento
pag:43
de todos os membros da equipe, o que ocorre muitas vezes é uma relação autoritária entre
um membro e outro, cada um querendo se colocar um degrau acima na escala hierárqu
ica. Isto infelizmente ocorre em detrimento do reabilitando. E ele que, em última
instância, sofre as conseqüências do mau entrosamento interno da equipe, o que redunda
muitas vezes num empecilho para a sua completa reabilitação.
Como já disse, a reabilitação deve levar necessariamente em conta que o reabilitando é u
m ser humano total. Ao meu ver, este deve ser o espírito não só da equipe de reabilitação,
como também o das instituições. No entanto, aliado aos problemas suscitados na escala
hierárquica, existe o fato de que os profissionais e algumas instituições enxergam a
reabilitação segundo algumas "linhas" e "escolas" que entram em choque entre si. A p
rincípio, não deveria haver problema. As várias "linhas" e "escolas" poderiam, numa di
scussão salutar, fazer trocas de experiências e expectativas, o que resultaria num b
enefício para o reabilitando. O que causa problema é que, ao que parece, o choque en
tre s diversas abordagens não se traduz na troca de experiências, mas, sim, na tenta
tiva deste ou daquele profissional e deste ou daquele centro de reabilitação (ainda
que inconscientemente) de querer impor "a melhor abordagem".
Assim, é de extrema importância citar aqui
pag:44
algumas linhas do texto de José Geraldo Silveira Bueno, Excepcional: Integração ou Seg
regação. Diz assim: "O que não podemos deixar ocorrer é que profissionais fiquem se digl
adiando e tentando provar que seus procedimentos são os mais adequados e eficazes,
porque se baseiam num corpo de princípios teóricos mais corretos. Esta disputa é alta
mente salutar quando ocorre a nível teórico, em estudos e polêmicas que têm como objetiv
o conhecer cada vez mais a problemática dos excepcionais. Mas quando ela ocorre em
nível prático, com instituições querendo, de qualquer modo, manter toda a sua clientela
dentro de seu esquema e recusando a verificar se muitos de seus educandos não ser
iam melhor atendidos através de outros processos, esta disputa acarretará, seguramen
te, grandes prejuízos aos indivíduos que dizemos ser a razão de nosso trabalho".
Estes são alguns dos problemas internos apresentados pelos centros de reabilitação. In
felizmente, aqui não tenho espaço para tratar da vida cotidiana da instituição. Vejamos,
agora, o que ocorre por fora da instituição. A que papel ela tem se prestado?
Existem centros de reabilitação oficiais e particulares. A nível federal, existem os C
entros de Reabilitação Profissional (CRPs) ligados ao INAMPS. Aqui em São Paulo, a nível
estadual, só existe um: a Divisão de Reabilitação Profissio-
pag:45
nal de Vergueiro, do Hospital das Clínicas da FMUSP. A nível municipal, a capital de
São Paulo não conta com nenhum centro de reabilitação. Quanto aos particulares, estes e
stão mais voltados para o aspecto assistencial, de abrigo (asilo) e médico. Poucos são
os que têm também caráter profissional. São centros em que o reabilitando paga por sua
reabilitação, ou é encaminhado pelo INAMPS, ou entra na parte assistencial. Para supri
r as defasagens orçamentárias, a Legião Brasileira de Assistência (LBA) ajuda a manter,
através de verbas, os centros particulares.
Há pessoas que dizem que são poucos os centros de reabilitação. Mas alguns dos que exist
em não estão com a sua lotação esgotada. Talvez os critérios de avaliação para atendimento de
"pessoas deficientes reabilitáveís" sejam subjetivos a ponto de não superlotar os cent
ros existentes. O fato é que a situação parece ser no mínimo controvertida: de um lado,
os centros existem e, de outro, uma enorme parte das pessoas deficientes no Bras
il é carente dos serviços de reabilitação.
O Estado não tem uma política de reabilitação. A Comissão Estadual (São Paulo), que fez um r
elatório sobre pessoas deficientes no Ano Internacional das Pessoas Deficientes (1
981), após afirmar que "reabilitação, ou habilitação Para alguns casos, é uma das necessidad
es básicas
pag:46
de toda pessoa deficiente", "considerou fundamental a criação de uma Coordenadoria d
e Atividades de Reabilitação que tenha a responsabilidade de planejar, incrementar e
coordenar as atividades de atendimento a pessoas deficientes em todos os seus a
spectos". Até hoje esta Coordenadoria não foi fundada. Aliás, diga-se de passagem, qua
se nada do que foi proposto num "plano de ação" pelas Comissões Nacional e Estadual pa
ra o Ano Internacional foi realizado.
Para não dizer que nada se fez, em julho de 1982 foi montado, através da Secretaria
de Saúde do Estado de São Paulo, "um Grupo de Trabalho para estudar e propor o Plano
de Operacionalização, visando o cumprimento, de imediato, da Proposta de Atuação no cam
po da Secretaria da Saúde, do recomendado pela Comissão Estadual de Apoio e Estímulo a
o Desenvolvimento do Ano Internacional das Pessoas Deficientes" (Diário Oficial nº 1
14, de 22/06/1982). Este Grupo de Trabalho apresentou um relatório extremamente su
mário, com sugestões muitas vezes vagas, e em nenhum dos itens consta qualquer propo
sta de implantação da tão esperada Coordenadoria de Atividades de Reabilitação. Nenhum dos
itens foi até hoje plenamente executado.
Por mais que a filosofia interna dos centros de reabilitação seja a de reabilitar a
pessoa
pag:47
deficiente, levando em conta que se está diante de uma pessoa total, a realidade s
ocial adversa de fora dos muros da instituição, para onde o "reabilitando" se dirige
, vai fazer com que ele volte ao estágio em que se encontrava antes de ingressar n
o centro. Sei de exemplos de pessoas deficientes que saem de favelas, vão para o c
entro de reabilitação, se "reabilitam", mas voltam para a favela de onde vieram. Ora
, voltar para a favela significa que novamente o "reabilitado" vai sofrer necess
idades materiais, econômicas, psicológicas etc., que o farão regredir ao ponto em que
se encontrava antes de ir para o centro. Muitas dessas pessoas, quando retornam
ao centro, voltam com escaras, debilitados fisicamente, oprimidos psicologicamen
te, duplamente frustrados e sem perspectivas de vida.
Imaginem uma pessoa que sai de uma favela (e não são poucas), vai para o centro de r
eabilitação e parte de lá cheio de expectativas, fazendo planos, acreditando que irá ser
integrada ou reintegrada na sociedade. Imagine o baque que esta pessoa leva ao
voltar para casa, passar necessidades materiais, não encontrar emprego, não poder es
tudar... A realidade em que se encontrava dentro da instituição é uma, e a realidade d
e fora é outra bem diferente. O mundo dentro da instituição é um, o mundo fora da instit
uição é outro. A sua vida dentro da instituição é estruturada, homogênea, em ordem; a sua vid
fora da instipag:48
tuição é dividida, contraditória, incoerente e adversa. A instituição tenta integrá-lo, a rea
idade social tende a desintegrá-lo.
Aqui se encontra, concretamente, aquilo de que falei, ainda que de forma um pouc
o abstrata, no capítulo anterior. O indivíduo, antes de ir para a instituição, vivia num
mundo do qual era sempre excluído. Ao entrar na instituição, trabalha-se no sentido d
e integrá-lo. Mas ao sair depara-se novamente com a realidade social que mais uma
vez tentará segregá-lo. A cabeça deste indivíduo não deve entender nada. E por isso que el
e volta sistematicamente para a instituição. A instituição trabalha com ele e não com a so
ciedade. A instituição muitas vezes não percebe que aquele reabilitando é fruto do socia
l. A instituição trabalha com o reflexo do social e não com o social propriamente dito
. A instituição se fecha em si mesma. Às vezes tenho a impressão de que a instituição ajuda
a manter este social. Muito embora alguns profissionais estejam cônscios do papel
desempenhado pela instituição na sociedade e façam da sua consciência seu instrumento de
trabalho.
Hoje em dia fala-se muito em "reabilitação simplificada". Na verdade, este conceito
ainda não está muito nítido. Mas, a grosso modo, trata-se do seguinte: seria a tentati
va de descentralizar os serviços de atendimento de reabilipag:49
tação, atendendo as pessoas deficientes na própria região onde moram, contando, para iss
o, com as técnicas e recursos próprios da região e com a colaboração da família e da comunid
ade enquanto um todo. Esta proposta está calcada no pressuposto de que os centros
de reabilitação localizam-se apenas nas grandes cidades e que, assim, são de difícil ace
sso para os que moram no interior. Além disso, existe também a proliferação de clínicas qu
e não são especialistas no atendimento à reabilitação (fisioterapia, fonoaudiologia etc.)
e que, desta maneira, não estão essencialmente preocupadas com a reabilitação integral d
o indivíduo.
O ponto central da "reabilitação simplificada" prende-se ao fato de que os países dito
s em desenvolvimento deveriam adequar a necessidade de reabilitação de todas as pess
oas deficientes à sua realidade social de países pobres.
As notícias dizem que o México e alguns países da África já começaram a implementar a "reabi
litação simplificada". Seria ela uma alternativa? É difícil dizer por enquanto. O que me
parece claro, não obstante, é que se a "reabilitação simplificada" for a campo e se dep
arar com a diversidade e a adversidade social em que se encontram as pessoas def
icientes que moram em subúrbios, periferias, favelas, cortiços, meio rural desprivil
egiado etc., se deparará também com uma questão que é política.
pag:50
AS PESSOAS DEFICIENTES
NOS BASTIDORES
A família nuclear é a unidade mais próxima do indivíduo. Todos os valores culturais, est
abelecidos pela forma de organização social (econômica, política etc.), passam pelo indi
víduo, através da unidade familiar. A formação da personalidade é, sem dúvida alguma, influe
nciada pela família que detém e faz circular em seu interior o reflexo do social mai
or e mais abrangente de toda a organização. Nesta medida, a educação dispendida na criação d
e um filho, seja ele deficiente ou não-deficiente, vai ter necessariamente que pas
sar pelos valores culturais que envolvem todos os habitantes desta formação sociocul
tural.
Esta, na realidade, não é uma relação mecânica. Não se trata de pensar a criança ou o adulto
pag:51
como um mero reprodutor daqueles valores que constam na organização cultural. De out
ra forma, as pessoas interagem com todos os valores culturais que a elas se apre
sentam, e se compõem, em si mesmas, numa rede de sentimentos, preocupações e conseqüente
s ações. Existe, evidentemente, uma dominância da interferência de certos valores cultur
ais estabelecidos pela divisão social. Mas a realidade é dinâmica, sempre em transform
ação, sempre se metamorfoseando em novas realidades e, assim, ou fazendo os valores
dominantes se adequarem para continuarem dominantes, ou ocasionado uma ruptura q
ue engendraria novos e transformados valores. De um modo ou de outro, as pessoas
, os valores e a realidade estarão sempre em constante superação.
Isto para mim é importante, pois o que vai neste capítulo (e, claro, o que vai no li
vro todo) não é aquilo que eu penso de como deve ou deveria ser uma pessoa deficient
e. Jamais pensei em construir um "modelo" de deficiente. Modelos
não existem. Todas as pessoas são aquilo que a sua história, sua condição social e seu eu
permitem. Todas as pessoas devem ser exatamente como são, sem que ninguém possa dize
r como deveriam ser. Existem circunstâncias na vida das pessoas - e a deficiência po
de ser uma delas - que as levam a assumir atitudes perante a vida. Sempre assumi
mos atitudes. É verdade,
pag:52
porém, que eu não sei até que ponto segurei a minha interpretação sobre as pessoas deficie
ntes. Este parágrafo eu escrevo depois do trabalho todo terminado, e decido encaixálo aqui, antes que você leia o resto. A minha intenção foi a de fazer apenas um relato
crítico do que acontece cotidianamente, em geral, com as pessoas deficientes e aq
ueles que as cercam. Não quis construir modelos mas quero ser sincero, acho que não
consegui deixar de lado a minha imagem das pessoas deficientes.
Acredito que grande parte das famílias não estão preparadas para receber um membro def
iciente. Acredito mais: que não estão preparadas, principalmente porque receberam to
da carga ideológica que reina no interior de nossa cultura. Deste modo as reações pode
m ser as mais variadas: rejeição simulação segregação superproteção paternalismo exacerbado,
mesmo piedade
Em geral, um casal nunca tem a idéia de que um dia Poderá ter um filho que nasça com q
ualquer tipo de deficiência Uma família não tem a idéia de que um membro poderá um dia sof
rer um acidente que o faça deficiente. A palavra deficiente adquire uma conotação nega
tiva Deficiente será aquele membro que dará sempre muito trabalho, que viverá encostad
o às custas da família. Pode ser que o deficiente congênito ou adquirido seja realment
e portador de uma limitação ou incapacidade grave. Porém, uma
pag:53
enorme parte dos casos é passível de reabilitação a ponto de conseguir que, mesmo com gr
aves lesões, uma pessoa deficiente leve uma vida independente e até com contribuições pa
ra a família e a sociedade. Existem casos de pessoas portadoras de síndrome de Down
(mongolismo) e de deficiência mental (principalmente os mais próximos da condição limítrof
e) que brincam, passeiam, trabalham em serviços simples, e até fazem compras sozinho
s Quanto às deficiências físicas e sensoriais, estas são muito mais passíveis de reabilitação
o que quer dizer que estas pessoas têm muito mais condições de nunca serem dependentes
da família.
Eu sei que pensar assim não é tão fácil quanto parece. As mães, principalmente, se abatem
muito ao perceber que têm um filho deficiente. Muitas mães e país se esquivam de ler b
ons livros sobre deficiência ou de consultar médicos ou especialistas em reabilitação pa
ra não sofrerem ou (o que acreditam) não verem o seu filho sofrer Mas é importante diz
er que esta parada tem que ser enfrentada. Se ela não for enfrentada, a tendência é a
estagnação, o aprofundamento da deficiência e a consideração de que o filho é cada vez mais
"anormal" Pelo contrário se a parada for assumida e enfrentada - e o enfrentamento
pode muitas vezes ser mais ameno do que o esperado - os pais terão tudo para no f
uturo - e o futuro pode também estar mais
pag:54
próximo do que o esperado - conseguir enxergar a conquista do enfrentamento da par
ada.
A imagem pejorativa da deficiência na cabeça das famílias repercute na educação que os pai
s oferecem aos filhos. J. Espínola Veiga (cego), em seu livro A Vida de Quem Não Vê, t
em uma passagem primorosa sobre a atuação tradicional dos pais com relação ao filho defi
ciente: "O filho vai de 3 para 4 anos, e nada se lhe ensina. 'Coitadinho, deixa!
...' Mexem-lhe o café, picam-lhe o pão, põem-lhe a comida na boca, descascam-lhe a ban
ana, deixam-no que meta a mão no prato. 'Coitadinho! Já basta o que ele sofre!...' E
a criança não sofre nada com a falta da vista (. . .). Sofrera, sim, mais tarde, a
conseqüência dessa educação mal dirigida".
O que Espínola Veiga quer dizer com isso? Lá no fundo, ele quer dizer que a família as
sume que tem um filho incapaz até de comer sozinho. Quer dizer que a família subesti
ma o filho a ponto de não permitir que as suas potencialidades aflorem naturalment
e. Mais do que isso, a família acaba por querer sentir pela criança, além de imputar-l
he um sofrimento do qual ela não padece.
Porque, em, geral, uma criança com deficiência congênita não sofre absolutamente nenhum
constrangimento por ser deficiente. Na verdade,
a criança deficiente nunca teve outro modelo
a não ser o da deficiência. Ela nunca foi uma
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criança não-deficiente para saber o que é sê-lo. Ela, de início, não sofre por não ser um "no
mal". Uma criança que nasceu cega, nunca enxergou e por isso não tem por que sofrer.
Uma criança paraplégica, que sempre andou com aparelho ortopédico, dificilmente sofre
rá por não andar sem ele. Somente a partir de uma certa idade, quando o mundo descob
rir que ela é deficiente e começar a mostrar-lhe que ela é "diferente", então sim esta c
riança se verá mal com a sua deficiência e provavelmente sofrerá. Ninguém sofre com a defi
ciência, todos sofrem com o estigma. Deste modo, a atuação dos pais ou familiares, que
no fundo é acreditar numa "anormalidade" do filho, incide diretamente na constitu
ição física e intelectual, bem como na personalidade da criança deficiente.
Muitos testes têm constatado que as pessoas deficientes têm tendência para terem um at
raso ou mesmo um déficit cognitivo. Isso quer dizer que a interpretação de dados tem l
evado os profissionais (principalmente psiquiatras e psicólogos) a concluir que ex
iste um "padrão" de desenvolvimento físico e intelectual, e que as pessoas deficient
es estão sempre atrasadas para chegar neste "padrão". Rosemary Shakespeare, psicóloga
inglesa, considerada especialista em pessoas deficientes, em Psicologia do Defic
iente, afirma: "Muitas deficiências envolvem problemas de desenvolvimento cognitiv
o - progresso irregular
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nos processos pelos quais Percebemos o nosso meio circundante aprendemos, compre
endemos e recordamos fatos sobre o mundo e atuamos apropriadamente". Mais adiant
e a autora conclui insofismável; "A deficiência motora, a cegueira e a surdez têm um e
feito comprovadamente retardador em alguma fase do desenvolvimento".
Os motivos causadores do retardamento cognitivo estariam na seguinte seqüência. 1) c
omprometimento do cérebro na deficiência ou seja, possuem retardamento pessoas com l
esão cerebral estrutural; 2) "falta de experiência, quer resultante das limitações da próp
ria deficiência, quer do ambiente em que a pessoa vive". Mesmo levando em consider
ação que o ambiente Pode causar o retardamento ainda assim a autora parece priorisar
a deficiência em si mesma como motivo do retardamento. Pois ela afirma com todas
as letras: "Sejam quais forem os fatos envolvidos, é evidente que a deficiência quer
o cérebro esteja afetado ou não, está relacionada com o reduzido aproveitamento educa
cional".
A questão, acredito eu, não está em saber se as pessoas deficientes são Portadoras de um
retardamento cognitivo. Pode até ser que, na realidade, muitas delas, assim como
também muitas outras pessoas não-deficientes sejam portadoras desse retardamento. A
questão está em saber por que estas pessoas apresentam o
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atraso.
Qualquer pessoa, quer seja ela deficiente ou não-deficiente, está sujeita a não conseg
uir passar pelas experiências cotidianas que todas as crianças passam. Isto pode dec
orrer da conjunção de fatores biológicos com fatores culturais. Uma criança portadora de
um nível grave de deficiência sensorial, talvez, principalmente se não lhe derem os m
eios e métodos adequados, deixe de aprender a ler com a mesma idade de uma criança não
-deficiente. No entanto, qualquer criança não-deficiente, mas que seja subnutrida,
que viva numa condição social precária, ou mesmo que viva num ambiente repressivo, pre
conceituoso, autoritário, pode não apresentar a mesma resposta.
Além disso, e aprofundando essa linha de raciocínio, se uma criança deficiente vive nu
m
ambiente em que é considerada como um "diferente", com toda a carga ideológica que e
ssa
palavra possui, e que assim precisa ser tratada pela família e pela sociedade como
uma "anormal", esta criança está destinada a efetivamente não aprender a ler no tempo
previsto para todas as crianças além de ter a sua deficiência acentuada ou multiplica
da. Velamos, novamente, uma importante passagem do livro de J. Espínola Veiga, em
que ele demonstra com muita pertinência como o ambiente familiar e Sociocultural p
ode propiciar o surgimento
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de uma defasagem cognitiva:
"Mundo precário e mesquinho, ainda mais amesquinhado pela própria mãe atemorizada com
a idéia do filho machucar-se. 'Tira a mão daí, meu filho, não mexe aí, isso faz dodói' (...)
Enquanto o cérebro dos outros de contínuo se povoa de imagens, o dele se estiola na
aridez que há de atormentar toda a vida. (...) Mas, pouquíssimas vezes o ambiente f
acilita-lhe o desenvolvimento dessas atividades. As amuações da casa, os receios da
mãe, a compaixão dos que o cercam, manietam-no desde logo. (...) Essa estreiteza de
mundo, essa falta de variedade nos brinquedos, essa repetição contínua das mesmas ativ
idades, acaba por criar no cego O defeito mental que o acompanhará pela vida toda"
Se a forma escolhida pelos pais para criar um filho deficiente estiver imbuída de
valores negativos, esta criação Poderá até afetar outros filhos não-deficientes. As coisas
precisam ser levadas naturalmente, mas nem sempre é isto
O que acontece. Até que todos os valores culturais estejam,
inculcados na cabecinha do irmão não~deficiente,
ele enxergará aquele irmão que nasce
u com alguma deficiência apenas como uma pessoa que tem alguma coisa em seu corpo
que não é igual ao dele. Ele fará distinções biológicas e estas evidentemente vão existir. Ma
as distinções pessoais - como por exemplo,
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não querer brincar com o irmão deficiente, não querer falar com ele, ter vergonha dele
erc, - não serão feitas porque neste nível para ele o irmão não é distinto. Mas, se no proc
esso de
crescimento os país e familiares separarem valorativamente um irmão do Outro, então aí p
oderá nascer a rejeição entre eles.
Um irmão, por não ser deficiente, não terá que ter mais valor do que o deficiente. É claro
que os cuidados dispendidos poderão ser eventualmente diferentes. Afinal, o irmão d
eficiente poderá solicitar maior atenção ou algum tipo
de cuidado especial. Isso não quer dizer que tenha menos valor do que o outro. O não
-defíciente saberá entender de forma natural que seu irmão é diferente biologicamente ma
s não necessariamente a nível pessoal
Por outro lado, o que também não se pode deixar ocorrer é exatamente o inverso: o esti
gma de] "diferente" passar para o filho não-deficiente. Se houver numa casa dois f
ilhos, sendo um deficiente e o Outro não-deficiente, e nesta casa estiver presente
o estigma valorativo, então um vai ser diferente do outro e o outro vai ser difer
ente do primeiro.
Pode ser, por exemplo, que o primeiro filho de um casal tenha nascido sem deficiên
cia, mas o segundo filho tenha nascido deficiente. Neste caso, pode ocorrer que
a atenção dada ao filho
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não-deficiente se volte toda para o deficiente, mais a carga valorativa. Em primei
ro lugar, o filho não-deficiente se sentirá, com toda a razão invadido. "Pronto, acabo
u-se o que era doce,
este moleque nasceu assim e se tornou o centro das atenções." Em segundo lugar, o ir
mão não-deficiente poderá correr o risco, por paradoxal que isto possa parecer, de não t
er os seus feitos e ações observados em seu devido mérito. Na medida em que seu irmão é de
ficiente, ele que é "normal" e "sadio" não fará mais do que a obrigação de fazer as coisas
bem-feitas. Assim sendo, por mais que seja fantástica, não haverá merecimento algum e
m sua ação. E o irmão deficiente que deverá fazer as coisas malfeitas, o irmão não-deficient
e deverá obrigatoriamente fazer as coisas bem-feitas.
Passada a fase de criação, a criança deficiente entra na adolescência. Costuma-se dizer
que a adolescência é a fase crítica das pessoas deficientes. Ora, a adolescência é a fase
crítica de qualquer pessoa. Por ser crítica ela pode, na verdade, acrescentar alguns
"grilos" na cabeça dos deficientes. Um deles é a "transa" com seu corpo. Existem na
nossa sociedade valores culturais que dizem que o homem "perfeito" deve ser mus
culoso e viril e a mulher "ideal" possuir boas curvas. Até os 13 ou 14 anos um jov
em qualquer não precisa necessariamente estabelecer relações valorativas de seu corpo
com a sociedade. Até
pag:61
Figura,
SEJA HOMEM
Academia Atlas.
pag:62
esta idade os jovens usam seu corpo para brincar, correr, nadar etc., e, salvo a
s pessoas portadoras de limitações muito fortes, as demais, de um jeito ou de outro,
se quiserem, podem fazer tudo isso.
Mas chegada a fatídica "idade da puberdade", os jovens são cobrados a fazer o seu co
rpo corresponder à carga de valores culturais. Nesta ocasião um corpo que não estiver
em "ordem" (física e intelectualmente) encontrará as primeiras barreiras para intera
gir com o social. Até este momento, até os 13 ou 14 anos, as pessoas são "crianças". Até e
sta idade, as pessoas não devem ter responsabilidades, não precisam pensar direito {
porque têm quem pense por elas), não precisam ter
físico muito bem arranjado (até porque têm quem cuide delas). Ao atingir a adolescência,
o jovem é iniciado a uma fase pré-adulta. Agora ele aprenderá a interagir com o mundo
, a estudar de forma
mais efetiva, a querer exprimir a sua sexualidade, a responder a uma série de resp
onsabilidade a "começar a ser gente". Para tanto, este social em ordem não admitirá um
a pessoa em desordem Uma pessoa "fisicamente diminuída" (expressão infeliz que const
a de alguns livros sobre deficiência) ou "intelectualmente retardada" não poderá respo
nder a todas as solicitações da formação sociocultural.
Muita gente, inclusive alguns considerados especialistas, costumam dizer que as
pessoas
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deficientes apresentam um comportamento próprio. Isso é como se existisse o "comport
amento do deficiente". Eqüivale dizer todo o deficiente físico, sensorial e (até) ment
al
apresentaria comportamentos análogos decorrentes, em última instancia, da sua própria
deficiência. O cego seria desconfiado por natureza. O deficiente físico (principalme
nte o paraplégico) seria complexado por natureza. O deficiente mental se masturbar
ia por natureza. Todos os deficientes seriam sempre revoltados ou resignados por
natureza. Sempre por natureza.
Este é um outro aspecto que não está delineado. Vamos por partes. Aqui, acredito eu, p
recisamos verificar com muito cuidado os dois casos de deficiência - congênita e adq
uirida em separado. Cabe lembrar, também, que à semelhança do que foi colocado anteriormente
acerca da virtual presença de atraso e déficits cognitivos nas pessoas deficientes,
aqui também não me parece que a questão está em saber se o deficiente apresenta ou não um
tipo específico de comportamento. Pode ser que apresente, como também pode ser que m
uitas pessoas não-deficientes também apresentem, um tipo específico de comportamento.
Na realidade, a questão está em saber por que um tipo específico de comportamento pode
surgir.
Vejamos os deficientes congênitos. Como já falei, as pessoas que nascem com deficiênc
ia
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crescem percebendo-se como pessoas que biologicamente possuem alguma diferença notáv
el, a qual os outros não possuem. Muito provavelmente, não será isso que a fará ter um t
ipo qualquer de comportamento considerado "desviante". No que decorrer disto é que
poderemos talvez encontrar o elemento gerador que faz apresentar este eventual
comportamento. Quando criança, o deficiente não chega a ligar se aquela velhinha lhe
disse que "Nosso Senhor Jesus Cristo, que para todo o sempre seja louvado, fará u
m dia você ficar bom". Ele também não chega a se preocupar quando a molecada da rua, o
chama de "ceguinho", "aleijado", ou alguma coisa que o valha. Quando criança, ele
como que adapta o mundo às suas limitações e, se não houver restrições, sairá por aí brincan
e correndo ao seu modo.
É quando ele chega na adolescência que começará a ser cobrado por todos os valores socio
culturais. Neste momento se apresentará para ele a divisão estrutural da sociedade.
Ela o marcará e estigmatizará na subdivisão entre "iguais" e "diferentes". Ele a incor
porará. Pode ser que se revolte ou se resigne ao se dar conta de que é um "deficient
e". Pode ser que em fuga acredite que não é deficiente e inversamente assuma uma con
dição de "normal". Provavelmente, será aqui que se configurará seu primeiro "problema".
Ao meu ver, é somente quando a
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pessoa deficiente introjecta as noções e regras socioculturais, que distinguem as pe
ssoas em deficientes e não-deficientes, somente neste momento nascem de fato os "p
roblemas".
"Problema" é uma coisa relativa e também cultural. Para muitos deficientes as soluções p
ossíveis e viáveis para a sua deficiência já foram encontradas. Não se trata mais, portant
o, de um problema no sentido literal da palavra. As vezes, parece que as pessoas
querem imputar um "problema" aos deficientes. As vezes, eles mesmo se imputam "
problemas". O que estou querendo dizer é que esta palavra tem uma conotação pejorativa
que indica que a pessoa tem um "problema" porque é deficiente. Não, não é bem assim. A
não ser em casos de incapacidades gravíssimas, a deficiência em si não traz necessariame
nte "problemas" perpétuos e insolúveis.
O que traz de fato "problemas" para as pessoas deficientes são as coisas que deco
rrem de seu meio social de vida. Eles estão muito mais ligados à organização sociocultur
al, do que à capacidade física das pessoas. Algumas mães de deficientes mentais chegam
a dizer que têm um "problema crucial": nunca haverá quem cuide de seus filhos com a
mesma paciência e atenção que elas lhes dão e que eles necessitam. Por isso, sequer pod
em morrer... Mas, esquecem-se que não é porque o filho é deficiente mental que elas não
podem morrer. Elas não podem morrer
pag:66
porque a organização social em que vivemos não está preparada para acolher os deficiente
s mentais.
Assim, "problema" é não ter como melhorar a condição física e intelectual deste deficiente
mental. "Problema" é os deficientes não conseguirem emprego, escola, não terem dinhei
ro para fazer reabilitação, não serem aceitos nos centros de reabilitação, morarem em fave
las, não terem dinheiro sequer para comprar um aparelho ortopédico, uma cadeira de r
odas, um aparelho auditivo ou uma bengala. Existem muitas maneiras de resolver "
problemas" advindos exclusivamente da deficiência biológica. Existem talvez poucas m
aneiras de resolver "problemas" advindos de uma condição de vida precária.
Mas, às vezes, alguns deficientes encontram outro tipo de "problema". Existem defi
cientes que não gostam muito de responder perguntas. As crianças são as mais perguntad
eiras que existem. Aproxime-as de um deficiente e elas logo o puxarão pelo braço par
a perguntar: "por que você é assim?" Ou: "o que é que você tem?" E se o deficiente se co
nstrange - o que muitas vezes ocorre - a criança logo diagnostica: "já sei, você não tom
ou vacina quando era pequenininho que nem eu". Mas isto não acontece só com as criança
s. Quantas vezes não vemos um deficiente passando na rua e uma pessoa o olhando co
m uma expressão facial exatamente igual a um ponto de interrogação?
pag:67
Quando a pessoa que olha é mais desinibida, ela chego até o deficiente e pergunta: "
como é que foi isso aí, ô meu?" Porém, quase sempre o deficiente se esquiva da pergunta.
Talvez lhe seja difícil falar sobre. Lembro-me do caso de um rapaz deficiente que
, perguntado numa roda de bate-papo se queria dar alguma opinião sobre um assunto
diverso, mas que se relacionava com deficiência, disse um "não" em alto e bom som. E
stas pessoas não se expõem.
Não acredito sinceramente que a simples curiosidade seja danosa ou mesmo ofensiva.
Acho que ela não deve ser objeto de mal-entendido. Todo deficiente que se preze s
aberá detectar o que está por trás de uma pergunta e de um olhar. A simples curiosidad
e, ao meu ver, é salutar. Aliás, nada é mais esclarecedor do que o debate. É o intercâmbio
de idéias, emoções e experiências. Não que este intercâmbio tenha que ser feito exclusivame
nte entre deficientes e não-deficientes. Entre homens e mulheres também. Entre namor
ados também. Entre amigos também. E entre deficientes e não-deficientes também. Se a per
gunta é maldosa, maliciosa ou preconceituosa, aí então não haverá intercâmbio e talvez, nest
e caso, não valha mesmo a pena responder. O deficiente saberá quando há a simples curi
osidade ou o interesse e quando há o preconceito.
O mesmo se refere ao olhar. O olhar nem sempre é maldoso. Algumas pessoas podem nu
nca ter
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se deparado com um deficiente na rua. A gente sempre olha para aquilo que nunca
viu, que vê pouco ou que tem curiosidade de ver. Muitos deficientes reclamam: "as
pessoas olham mesmo", "tem gente que pára de andar ou pára o que está fazendo para olh
ar", "tem gente que até entorta o pescoço para conseguir ver melhor"... Isso é verdade
, as pessoas até que olham. Disfarçadamente ou não, elas olham. Mas não são todas. E nem s
empre são olhares maldosos. Além disso, se a gente for para a rua acreditando de ant
emão que vai ser olhado, então vai mesmo. As vezes, as pessoas nem olham, ou olham a
té sem se dar conta direito para aquilo que estão olhando, e alguns deficientes já diz
em: "o mundo olha para mim". Os olhares são uma coisa importante. Cabe a nós sabermo
s distingui-los: preconceito, piedade, indiferença, admiração, paquera, atração...
O "sentir-se olhado" faz com que alguns deficientes não queiram ir para a rua. Faz
mais: com que o deficiente se enxergue segundo aquela imagem pejorativa que o c
oloca numa situação de inferioridade e subjugação. Existem deficientes que não se olham no
espelho, acreditando ver
uma imagem desagradável para os seus olhos. Se a pessoa se olha como um "Zé-ninguém",
só pode crer que qualquer olhar que venha dos outros esteja imbuído de aversão. É precis
o que gostemos de nós, para que gostemos dos
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outros, e os outros gostem de nós.
Se bem que muito do que aqui já foi falado serve tanto para deficientes congênitos q
uanto para deficientes adquiridos, vejamos, agora, um pouco melhor os deficiente
s adquiridos. Quando uma pessoa adquire uma deficiência nos primeiros anos de vida
, ela cresce e se forma quase como uma pessoa deficiente congênita. As experiências
físicas que ela teve quando não era portadora da deficiência não serão muito significativa
s para que marquem de forma contundente a sua vida depois da aquisição. Porém, quando
a pessoa adquire a deficiência no período da adolescência ou já quando adulta, talvez lh
e seja mais penoso enfrentar.
A reabilitação física lhe será difícil, pois todas as experiências de que dispõe referem-se a
tempo em que não era deficiente. A reabilitação social pode lhe ser ainda mais difícil,
pois, se ele tinha todos os sentimentos valoratívos para com os deficientes, terá a
gora para com ele mesma. A piedade, a repulsa, a indiferença, o nojo, podem se tra
nsformar em autopiedade, auto-repulsa etc. Como resultado desses sentimentos pod
e nascer um sentimento maior: a autonegação. E por isso que é muito comum ouvirmos da
boca dessas pessoas que "a vida agora acabou", que era melhor ter morrido", que
"agora não servirá mais para nada". . . As pessoas acreditam que a vida de um defici
ente é uma vida absolutamente
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desprovida de significado e qualquer perspectiva. De modo que, adquirindo uma de
ficiência, a sua vida estará então destinada a não ter mais qualquer sentido.
Este sentimento de autonegação deve ser passageiro. Alguma coisa faz a pessoa sair d
esse estado mórbido. Mas esta alguma coisa pode ser uma derivação do antigo estado. To
das as pessoas, quando estão numa situação que as importuna, tentam muitas vezes a saída
através de uma fé ou uma crença que minimize os efeitos incômodos da situação. As pessoas q
ue adquirem a deficiência estão sobremaneira colocadas numa situação incomodativa, e ain
da mais com um agravante:
não existe jeito sobre a Terra que as faça sair daquela condição física. Não existe reconsti
tuição clínica ou cirúrgica possível (pelo menos conhecida até hoje) para uma medula lesiona
da
- principal causa das deficiências motoras adquiridas. Existem, sim, alternativas
que as façam sair daquela situação: órteses, próteses, meios auxiliares de locomoção etc.
Acontece, todavia, que além de a pessoa ter sobre si mesma o conceito de "diferent
e", estes instrumentos (aparelhos, cadeiras de rodas, bengalas etc.) são marcados
pelo estigma social. Portanto, estas alternativas acabam sendo prontamente recus
adas. Às vezes, não basta para a pessoa acidentada voltar a andar com aparelho, com
uma perna mecânica, voltar a fazer coisas
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com um braço mecânico. Ela poderá até voltar a fazer as mesmas coisas, mas não se consider
ará mais uma pessoa "normal". Isto, sem dúvida, poderá fazer com que as pessoas se aga
rrem a algo que lhes substitua (pelo menos inconscientemente) uma sensação de vazio.
Eliane Gonçalves de Araújo e Luiz Itamar Jaínes, ambos portadores de deficiência adquiri
da, escrevem no livro Vivendo o Desafio: A Libertação das Deficiências Físicas: "(...) u
m dos maiores milagres é viver constantemente agradecendo a Deus por seu estado (o
que lhe propicia um amadurecimento global), aproveitando sua posição de doente e pr
ocurando tirar proveito, não vendo somente o lado negativo do problema, mas tentan
do se superar da melhor forma possível, não se sentindo triste por sua enfermidade p
orque, através de sua doença, passa a descobrir que a verdadeira felicidade não está nas
coisas, mas dentro das pessoas. "
Isso, ao meu ver, leva o deficiente a uma resignação passiva que pode, inclusive, le
vá-lo a ter a sua deficiência acentuada. Veja bem: eu não estou querendo de forma algu
ma questionar a convicção religiosa das pessoas. Acho até que todos nós, de alguma forma
, acreditamos em algo. Acho também que é natural nos agarrarmos em qualquer coisa na
hora em que algo jamais previsto acontece. Entendo até que as pessoas tentam a qu
alquer custo encontrar o porque
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de um acidente ou de uma deficiência. Entretanto, não posso deixar de colocar o que
eu penso.
Acho que existem dois tipos de questão nas linhas que citei:
1) Deus, indiretamente, é o responsável pela deficiência. Isso esconde toda uma situação s
ociocultural em que todos nós nos encontramos, situação esta que maximiza a deficiência.
Além disso, já que Deus é o responsável indireto, o deficiente corre o risco de ser env
olvido pela resignação. Mesmo que ele enfrente a vida como qualquer um, talvez se cu
rve à frente dos obstáculos que se lhe apareçam, acreditando que "todos nós temos a noss
a cruz para carregar", que "existem pessoas piores neste mundo" e que a não-superação
deste ou daquele obstáculo "deve ser oferecida a Deus".
2) A deficiência traz para as pessoas riquezas inusitadas. A própria Eliane Gonçalves
de Araújo, em autobiografia na contracapa do livro, reitera:
"Hoje ela explode em alegria jogando basquete, tirando o 1º lugar numa corrida sob
re suas novas pernas: as rodas, visitando doentes nos hospitais e podendo lhes d
izer que há muita luz na paraplegia". Este é um assunto difícil de se tocar, mas será qu
e a deficiência traz de fato luz e riqueza? Existem deficientes que dizem que não. E
stes dizem justamente o contrário: que a deficiência "enche o saco", que ela é um empe
cilho,
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que se pudessem optar não seriam nunca deficientes. Aqueles, os que encontraram a
essência da vida na deficiência, parecem dizer que, se pudessem optar, optariam por
já terem nascido deficientes. Como ficar, ou melhor, com quem ficar? A deficiência é b
oa ou ruim?
Eis uma pergunta muito difícil. De certa forma, ela se liga a uma outra muito disc
utida entre os deficientes. E a seguinte: o deficiente deve ou não assumir a defic
iência? Não sei dizer ao certo. Mas o que sei é que alguns deficientes parecem querer
obrigar outros deficientes a assumir. Veja bem: o que é assumir a deficiência para u
m jovem para quem a palavra "deficiente" soava como algo distante e impossível, e
que, de repente, por causa de um acidente, se viu dentro dela? Querer que ele as
suma o quê? Aliás, o que é assumir? Já para quem é deficiente desde que nasceu ou desde mu
ito pequeno, talvez a condição lhe seja mais fácil, pelo menos menos estranha. Às vezes,
quando estamos dentro de algo de que não gostamos, queremos que outros também estej
am dentro. Então: a deficiência é boa ou ruim? Há uma outra hipótese: a de que a deficiência
não é boa nem ruim. E a deficiência, apenas.
Precisamos ainda parar um pouco para pensar no aspecto da sexualidade. Somente há
Pouquíssimo tempo atrás é que começou-se a
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estudar a sexualidade das pessoas deficientes. Até então, nada se comentava a respei
to. Os especialistas (principalmente médicos e psicólogos) preferiam não falar sobre a
sexualidade dos deficientes. A família ignorava ou se esquivava através de evasivas
de tomar uma posição. Por conseguinte, qualquer manifestação sexual era prontamente aba
fada e reprimida. Hoje isto tudo mudou? Não, não mudou muito.
Ainda hoje muitas famílias ignoram ou censuram a expressão da sexualidade dos seus d
eficientes. Chegam mesmo a desconhecer ou não admitir que as pessoas deficientes t
enham a mesma energia sexual das outras pessoas. Com efeito, as pessoas deficien
tes não são pessoas assexuadas. Todos nós, deficientes ou não-deficientes, somos portado
res de energia sexual. A sexualidade nasce naturalmente com as pessoas. A deficiên
cia física, sensorial ou mental não afeta em nada este impulso sexual que a Natureza
deposita em todos nós. Por outro lado, ao contrário também do que muita gente pensa,
o impulso sexual não termina com a aquisição de uma deficiência. A energia sexual não vai
embora porque a pessoa se tornou deficiente.
Isto está muito ligado ao mito de que os deficientes físicos, portadores de lesão medu
lar, são
pessoas com funções sexuais alteradas. Cabe frisar, todavia, que isto é verdade apenas
para
uma parte. Pesquisas mostram que entre 54%
pag:75
e 87% dos homens portadores de lesão da medula espinhal podem ter ereções. O tipo, o nív
el ou a gravidade da lesão é que podem levar o indivíduo a não ter ereção. Para as mulheres,
a lesão medular em quase nada afeta as suas funções sexuais. A grande maioria delas c
ontinua a ter lubrificações vaginais, podendo apenas perder a sensação em volta dos lábios
vaginais e clitóris.
É importante notar que existem pessoas portadoras de um tipo de lesão medular que ab
solutamente não comprometeria a função sexual e que, no entanto, são pessoas que apresen
tam problemas de função sexual. Apesar de a lesão não ser comprometedora, muitos homens
e muitas mulheres apresentam estes problemas. Acontece que a origem destas disfu
nções pode estar na mente destas pessoas. Voltamos, portanto, ao que foi colocado no
início: estas pessoas terminam por assumir uma condição que não existe. Acham que um de
ficiente não pode ter sexo, acreditam nisso, e acabam por não levar uma vida sexual
regular.
A educação sexual recebida, por todos nós, quer deficientes ou não, é quase sempre precária,
quando não distorcida. Os preconceitos, os tabus, as repressões, além de tudo, envolv
em os pais, a família, os próprios jovens, desvirtuando a expressão total da sexualida
de. Por isso mesmo, os jovens adolescentes não recebem as informações necessárias que os
introduziriam na iniciação
pag:76
sexual de modo natural.
No caso dos deficientes, há ainda um agravante:
os pais, na maioria das vezes, não informam nada, além de tentar cortar pela raiz qu
alquer manifestação sexual. Mas, quando informados sobre sexo, recebem toda a orient
ação sexual regrada pelos mesmos preconceitos e tabus. Os deficientes, como todas as
outras pessoas, situam-se em famílias comuns.
E verdade que a maior parte das pessoas deficientes possuem as suas funções sexuais
inalteradas. Mas pensemos por um momento naqueles poucos que de fato têm as suas f
unções sexuais abaladas por causa da deficiência. Função e desempenho sexual são duas coisas
diferentes. Não é porque a função sexual está alterada que o desempenho sexual também terá q
e ser alterado. E importante perceber que a expressão da sexualidade das pessoas,
quer elas sejam deficientes ou não-deficientes, não precisa se restringir a atitudes
convencionais e tradicionais. A sexualidade está muito ligada à noção de prazer.
É por isso que, ao meu ver, é muito problemático e complexo falar aqui num certo senti
do de "sublimação". Comumente o conceito de "sublimação" aparece aqui como "substituição" ou
"transferência" obrigatória: o deficiente que não pudesse se realizar sexualmente (e
aqui é sempre colocado implícita ou até explicitamente que todos os deficientes não pode
m se realizar
pag:77
sexualmente) deveria transferir o prazer sexual para outras atividades. Ora, res
ta saber o seguinte: se a expressão e/ou o desempenho sexual das pessoas pode ser
relativizado, isto é, se o prazer sexual e afetivo pode ser satisfeito e realizado
não somente através de concepções absolutas e tradicionais, por que não realizá-los? Se as
pessoas podem se unir, obter prazer sexual e realização amorosa no domínio sexual, por
que transferir para outro domínio?
Por outro lado, a sexualidade está muito ligada à noção de amor. O relacionamento sexual
sem amor, principalmente em certa fase da vida, pode ser uma opção. Mas, em outras
fases, pode ser insuficiente. Pode ser que se torne imprescindível a união da sexual
idade com o amor. Isto faz com que as pessoas se aproximem. Faz com que não-defici
entes, se aproximem de não-deficientes, deficientes se aproximem de deficientes, não
-deficientes se aproximem de deficientes. O amor e a atração sempre transcendem a de
ficiência.
Um outro dado importante na questão da sexualidade é que existe uma grande preocupação p
or parte dos pais, familiares, médicos, psicólogos etc., no sentido de que os defici
entes mentais se masturbam de forma exagerada e em qualquer lugar público. Isso po
de ser verdade. Porém, mais uma vez as pessoas deixam de analisar o porquê da mastur
bação para ficarem se Preocupando com ela própria.
pag:78
A masturbação não é uma atividade execrável. Pelo contrário, é uma manifestação natural da se
dade. Pesquisas demonstram que as pessoas iniciam com vigor a masturbação na adolescên
cia, diminuem de freqüência na fase adulta, para depois aumentar lá pela meia-idade. S
e não há nada de mau para todas as pessoas, por que seria errado para as pessoas def
icientes mentais? Por outro lado, parece que alguns especialistas querem constat
ar que a razão da masturbação constante estaria na própria deficiência. Ora, isto não é verda
e. Os deficientes mentais muitas vezes se masturbam porque não lhes resta outra co
isa para fazer. São crianças, jovens ou adultos que estão em casa, hospitais ou entida
des especiais sem terem várias atividades que preencheriam o seu tempo. Além disso talvez mais importante -, não têm contato afetivo de obtenção de prazer com outras pess
oas. Quando todos nós não temos mais nada para fazer, procuramos sempre uma alternat
iva. Quando os deficientes mentais não têm mais nada para fazer, e não têm um contato di
reto afetivo, procuram a alternativa que lhes está mais ao alcance e lhes dê mais pr
azer: a masturbação.
Entretanto, o caso dos deficientes mentais me parece que merece um destaque espe
cial. Todos eles, como já foi colocado, têm seus impulsos e funções sexuais inalterados.
Em não se tratando de deficiência mental severa, o
pag:79
restante, embora não criticamente, se percebe como deficiente. Perguntam-se: "por
que meu irmão aprendeu a ler com 7 anos e eu não?" Questionam-se: "por que as outras
crianças atinam rapidamente com as coisas e eu não?" Os limítrofes, os deficientes le
ves e também os moderados, por terem ciência e certa consciência de sua deficiência, tam
bém, se lhes for ensinado, terão ciência e consciência da sua sexualidade.
Existem alguns deles que se casam ou se unem e se dão muito bem. Acontece, contudo
, que, na maior parte dos casos, lhes são sempre negadas as informações imprescindíveis
e fundamentais. Existem inúmeros casos de jovens mulheres que aparecem grávidas. Exi
stem homens jovens que são explorados por homossexuais. Existem vários casos de defi
cientes mentais que se casam e, ao terem o primeiro filho, não sabem como dar cont
a da criança. Não tenho espaço para tratar com profundidade sobre este assunto. Fica,
porém, registrado que a falta de informação correta e dada de forma natural é um dos gra
ndes empecilhos para que os deficientes mentais possam expressar a totalidade de
sua sexualidade. Com isso, muito provavelmente, estariam reduzidas muitas das a
nsiedades que percorrem a vida dos deficientes mentais e daqueles que os cercam.
pag:80
PESSOAS DEFICIENTES:
RELAÇÕES ECONÔMICAS
E POLÍTICAS
A nossa sociedade capitalista, muito mais do que dividida entre deficientes e nãodeficientes, divide-se entre aqueles que são proprietários das empresas industriais,
comerciais e financeiras e aqueles que trabalham nestas empresas recebendo um s
alário. As pessoas deficientes, como todas as outras, também se colocam numa ou nout
ra posição. Esta divisão estrutural tem levado
o Brasil (assim como os demais países) a uma má distribuição de renda, fazendo com que u
ma pequena parte da população situe-se na camada alta (em termos de riqueza) e o res
tante situe-se na chamada "classe média" e na camada baixa.
A maioria das pessoas deficientes localiza-se na camada baixa da população. É fácil de s
aber
pag:81
por quê: porque a população mais pobre está mais sujeita à carência de alimentação mínima nec
, à falta de higiene, à moradia em habitações precárias, à falta de saneamento básico, aos ac
dentes de trabalho e, portanto, mais exposta a doenças, contaminações e acidentes que
podem trazer como conseqüência o nascimento de crianças deficientes ou à aquisição da deficiê
cia. São pessoas que moram em barracos nas favelas ou periferias distantes, em peq
uenos cômodos sujos dos cortiços etc. O quadro da saúde da população agrava-se, na medida
em que sabemos que certa parte dos trabalhadores não contam com os serviços da Previ
dência Social por não serem registrados em carteira de trabalho. Isso influi diretam
ente no processo de reabilitação de uma criança ou de um adulto deficiente. Sem contar
com os benefícios do INAMPS, o deficiente sem poder aquisitivo se vê com as perspec
tivas de reabilitação reduzidas.
A isto devemos acrescentar o alto número de acidentes e doenças de trabalho. Anualme
nte, por volta de 15% dos trabalhadores nas empresas consideradas de alto risco
se acidentam. Os ramos de atividades que mais causam acidentes são:
construção civil, indústria pesada (mecânica, metalúrgica) e de veículos. Quais as causas do
s freqüentes acidentes? A principal não é a falha humana do trabalhador, como se poder
ia supor.
pag:82
Pelo contrário, a causa primeira dos acidentes é a falta de segurança nas condições de tra
balho. É comum vermos trabalhadores da construção civil sem cintos de segurança ou capac
etes. A isto devemos somar a condição mesma de vida do trabalhador, que o obriga a u
ma longa jornada de trabalho, a perfazer seu parco salário com excessivas horas ex
tras, a ter suas horas de sono restringidas por ter que pegar condução (ônibus ou trem
) não condizente com o que se chama de transporte coletivo. Enfim, os acidentes de
trabalho têm também origem no cansaço físico e mental do trabalhador.
Este, após um acidente, pode se tornar deficiente (o que ocorre em grande parte do
s casos), vindo a engrossar as fileiras de pessoas deficientes congênitas quase qu
e completamente marginalizadas do mercado de trabalho. Por que os deficientes são
marginalizados e não encontram emprego?
Porque vivemos numa estrutura econômica e social que implica alto grau de competit
ividade a nível de oferta de mão-de-obra. É, pois, uma estrutura discriminativa. Não é pre
ciso ser deficiente (ser portador de um impedimento ou incapacidade) para que os
trabalhadores sintam que aqueles que não se adequam ao ritmo da produção - seja ela,
em sentido amplo, industrial, comercial ou financeira - não estão aptos para determi
nadas tarefas. Sem dúvida alguma, é uma questão de aptidão. Aquele
pag:83
Figura.
pag:84
operário da linha de produção, por exemplo, que não solde uma peça no seu tempo regulament
ar, será engolido pela esteira de peças. Ou, então, aquele funcionário que não carimbe tan
tos papéis quantos devam ser carimbados num determinado tempo será engolido pelo tem
po e pelo acúmulo de papéis. Nos dois casos fatalmente tanto o operário quanto o funci
onário não estarão aptos para as tarefas. E não é preciso que eles sejam deficientes, bast
a que sejam lentos em seus movimentos e/ou não consigam se automatizar.
Aqui preciso abrir um parênteses que não pode ser relegado a segundo plano. Quando f
alo que o mercado de trabalho exclui os deficientes, estou pensando, logicamente
, naqueles que têm ativa participação na sociedade. Eqüivale dizer:
penso em pessoas que saem às ruas, lutam pela vida, trabalham, passeiam, estudam e
tc. O dado importante é que existe um contingente muito grande de deficientes que,
por várias razões de certa forma aqui já trabalhadas (absoluta falta de condições finance
iras para a compra de aparelhos ou instrumentos, superproteção familiar, má informação dos
pais ou responsáveis), estão dentro de casa impossibilitados de sair às ruas para qua
lquer atividade - desde trabalho até lazer.
Sempre pensando no volume da produção e/ou serviços (princípio norteador da economia cap
ipag:85
talista), o empresário ou quem contrata se verá cheio de dúvidas - ou mesmo de preconc
eitos - ao empregar um deficiente, Isto faz com que, no mais das vezes, o empreg
ador não contrate os serviços dos deficientes. Estes preconceitos consistem em acred
itar,, mesmo sem nada que confirme, que as pessoas deficientes são lentas para qua
lquer tipo de tarefa, solicitam chegar tarde e sair cedo do serviço, ou mesmo falt
ar sempre. Os empresários, em sua maioria, garantem de antemão que as pessoas defici
entes são, enfim, trabalhadores que não correspondem às exigências do ritmo imposto pela
produtividade. A frase "a vaga já foi preenchida" é uma constante na vida do defici
ente que procura emprego. O que se tem visto, no entanto, é que: 1) raro é o deficie
nte que procura um serviço cuja tarefa lhe é difícil ou impossível de cumprir, e 2) quas
e nunca é perguntado ao próprio deficiente se ele estaria preparado para a tarefa of
erecida.
Aqui encontra-se o motivo gerador da alienação da força de trabalho das pessoas defici
entes. Trata-se de um círculo vicioso. O mercado de trabalho é competitivo e por iss
o mesmo segregativo para todos. A rotatividade da mão-de-obra desqualificada é inten
sa, jogando à margem das empresas um exército de pessoas que mais do que ninguém preci
sa trabalhar para manter a vida. Deste exército fazem parte os considerados menos
aptos. É certo e claro que para os emprepag:86
sários e para o Estado os deficientes estão incluídos entre os menos aptos. Ao mesmo t
empo, os deficientes - principalmente os acidentados de trabalho - se tornam one
rosos para o Estado, que precisa intervir na sua reabilitação, sem ter o seu trabalh
o produtivo como retorno.
Para o acidentado de trabalho, a sua vida torna-se então mais penosa. Após o acident
e, o trabalhador geralmente é encaminhado pelo INAMPS a um Centro de Reabilitação Prof
issional. Entretanto, mesmo depois de "reabilitado", ele, Juntamente com boa par
te dos trabalhadores acidentados, não é reintegrado no serviço. Mesmo que o trabalhado
r acidentado não possa reingressar na mesma função, o processo de reabilitação deve torná-lo
apto para a função mais adequada no seu caso. Acontece que, tendo mão-de-obra não-defic
iente à vontade no mercado de trabalho, o empresário evidentemente não quererá empregar
ou reimpregar mão-de-obra que preconceituosamente acredita estar inabilitada.
Esta é uma situação de impasse. Pois, por um lado, o trabalhador acidentado onera o Es
tado que arca financeiramente com o seu processo de reabilitação, com pensão ou aposen
tadoria. Por outro lado, os empresários se recusam a empregar este trabalhador, po
is o interesse fundamental da empresa é o lucro privado, sendo retirado da cada ve
z maior produção efetuada
pag:87
por seus trabalhadores "aptos".
Isto nos leva a refletir sobre o emprego público. A Lei Estadual 10 261/68 prevê que
para ser empossado em cargo público o cidadão tem que "gozar de boa saúde, comprovada
em inspeção realizada em órgão médico oficial". Saúde e doença, para o Estado, confundem-se
om deficiência. A questão é, portanto, muito mais de ordem médica do que de ordem legal.
Os médicos do Estado e seus subjetivos critérios vetam para o emprego público trabalh
adores deficientes plenamente aptos para o cargo ou função que pleitearam. A Lei che
ga a afirmar que deficiência física comprovadamente estacionária não será impedimento para
a caracterização da capacidade psíquica desde que não impeça o desempenho da função. No enta
to, mesmo com a Lei, os médicos do Estado alegam que nenhum médico, em sã consciência, p
ode afirmar taxativamente que as deficiências não podem ser passíveis de progressão. Ape
sar de alguns avanços legais recentes, os critérios que não dão a medida exata da capaci
dade das pessoas deficientes continuam persistindo.
Quando falamos em mercado de trabalho, não podemos nos esquecer das oficinas prote
gidas. São elas destinadas a acolher a mão-de-obra das pessoas consideradas deficien
tes em alto grau e, portanto, pelo menos aparentemente, absolutamente sem condições
de competitivipag:88
dade no mercado de trabalho. Nestas oficinas trabalham somente deficientes menta
is severos, deficientes físicos muito limitados e alguns cegos. No raciocínio que te
nto desenvolver fica claro que não podemos examinar a discriminação da força de trabalho
das pessoas deficientes (em qualquer grau) sem levarmos em conta o sistema de r
elações de trabalho capitalista extremamente competitivo para todos os trabalhadores
- quer deficientes ou não-deficientes. Alguém poderia argumentar, todavia, que as pe
ssoas colocadas neste parágrafo são portadoras de um grau elevado de limitação física ou m
ental que as impossibilitaria de exercer qualquer cargo ou função. Esta afirmação, contu
do, deve ser revista.
Pois existem inúmeras empresas que precisam dos trabalhos mais rudimentares, que não
necessitam hábil destreza, precisa coordenação motora ou aguda capacidade de raciocínio
. Caberia, então, a pergunta: as oficinas abrigadas ou protegidas, sob a justifica
tiva de "proteger" o trabalho dos que não podem competir no mercado de trabalho, não
estariam dando
e eliminando de uma vez por todas essa da força de trabalho ociosa que deveria sen
do empregada pelas empresas comuns, que fosse através de seções protegidas?
Sei que este é um assunto complexo, altamente polêmico e que não vai ser esgotado nest
e pequeno
pag:89
espaço. Mas O importante a lembrar é que, mais uma vez, o assunto esbarra na formação ec
onômica existente em nossa sociedade. Como fazer diante de um mercado de trabalho
que, para existir, tem que ser altamente competitivo? Ao meu ver, o estudo das o
ficinas protegidas não deveria terminar por aí, como se este mercado de trabalho fos
se um assunto resolvido. Pelo contrário, acredito que a análise deveria começar justam
ente por aí, mostrando que as oficinas protegidas -. uma instituição - são uma decorrência
lógica da competitividade: são a alternativa encontrada para incorporar trabalhador
es que, devido a graves limitações, são considerados como impossibilitados de se adapt
ar ao ritmo imposto pela produção.
A marginalização no mercado de trabalho leva as pessoas deficientes às mais variadas c
ondições sociais. As que conseguem, vão trabalhar em empresas comuns ou no máximo nas of
icinas protegidas. Contudo, as que não conseguem, ou vão viver até morrer como párias so
ciais, em eterna dependência das famílias ou das instituições de caridade, ou vão ter que
procurar as mais variadas alternativas de sobrevivência. Neste contexto encontramse muitos mendigos (principalmente cegos e deficientes físicos) e aqueles que vive
m de expedientes:
os camelôs, os vendedores de bilhetes de loterias, OS que vendem balas e adesivos
nos semáforos,
pag:90
os que simplesmente pedem dinheiro em nome de entidades de deficientes etc. Esta
s são pessoas que não têm como sobreviver. Uma vez, ao parar num farol próximo ao bairro
do lbirapuera, aqui em São Paulo, cheguei a ver um deficiente físico que fazia exib
ições para ganhar dinheiro. Ele era paraplégico, colocava as suas pernas nas costas e
andava somente sobre duas bengalas canadenses. Após a exibição, passava de carro em ca
rro angariando alguns trocados.
Isto, muitas vezes, ao invés de fazer gerar propostas políticas, que pretendem dar c
abo da situação de miséria em que se encontram muitos deficientes, faz gerar propostas
de cunho assistencial e caritativo. Impelidos por uma precária condição de vida, muit
os deficientes aceitam e até assumem viver sob o abrigo da caridade. O que signifi
ca o assistencialismo? Significa que a pessoa deficiente que não tem como sobreviv
er vai ter garantido roupas, comida e repouso. Acontece, todavia, que isto se co
nfigura apenas como um paliativo que, quando muito, resolve uma condição imediata de
desespero. A instituição, assim, está cumprindo o seu papel. Os asilos, os centros as
sistenciais e filantrópicos, na medida em que dão conta de acudir os deficientes mai
s carentes, mantêm uma situação de pobreza e de não-questionamento social.
Além de estarem numa condição subumana de vida, alguns deficientes são explorados por
pag:91
entidades de deficientes, que se dizem assistenciais, mas que muitas vezes seque
r existem legalmente. Através do constrangimento público e da tentativa de sensibili
zação expondo a sua própria deficiência - o que leva ao reforço do estigma de "inferior" , as pessoas deficientes exploradas vendem balas e doces nos "pedágios" e ficam so
mente com uma parte do dinheiro arrecadado, sendo que o restante é destinado à entid
ade "fantasma". Este é um comércio lucrativo, em que se explora uma mão-de-obra barata
e onde se extorque o dinheiro arrecadado pelos deficientes. Estas entidades, qu
e nem sequer existem legalmente, costumam ficar com mais da metade da féria do dia
. Em 1981, Ano Internacional das Pessoas Deficientes, os chamados "pedágios" arrec
adavam cerca de Cr$ 500 mil num fim de semana.
Todavia, não basta que ataquemos sumariamente este tipo de entidade, sem que as an
alisemos melhor. Aliás, é bom que se diga que nem todas as entidades são achacadoras.
Existem entidades assistenciais de deficientes, sim, cujos integrantes vão para os
semáforos vender doces, e que não extorquem o dinheiro obtido. Estas, por mais que
compactuem com o constrangimento de ver os deficientes nas ruas vendendo coisas,
precisam ser levadas a sério. Sabe por que um deficiente procura uma entidade par
a vender balas (e na opinião de alguns "vender
pag:92
a deficiência")? Porque, na realidade, muitas vezes a entidade é a única e/ou a última a
lternativa de sobrevivência de um deficiente sem poder aquisitivo, sem nível educaci
onal algum, sem especialização que lhe possa garantir um emprego, sem quase nada. A ún
ica "válvula de escape" torna-se, portanto, a entidade que os leva a vender doces
nas ruas.
De qualquer maneira, não pensemos que é fácil para um deficiente ter que expor a defic
iência para vender doces e conseguir dinheiro para viver. Acho que nunca vou me es
quecer da expressão facial de um deficiente que, após eu recusar o que ele queria ve
nder, disse-me:
"É... você não sabe o que é isto.. ." Isto é o subemprego: fruto de uma sociedade capitali
sta dividida, de um mercado de trabalho competitivo e excludente e de uma realid
ade brasileira de grande oferta de mão-de-obra, de profunda ausência de emprego, de
poucas alternativas.
É preciso também que paremos um momento para observar a formação educacional das pessoas
deficientes. Logo de início, é preciso dizer que nem todas as pessoas deficientes n
ecessitam de educação especial. Em tese, a simples existência de uma deficiência não faz d
e seu portador um candidato em potencial para a educação especial. O tipo e o grau d
a deficiência, seus efeitos, e fundamentalmente o nível de nossos cursos regulares i
nfluirão sem dúvida no direcionamento que o
pag:93
aluno deficiente deve tomar.
Assim, é somente a partir de um diagnóstico que se pode avaliar se uma pessoa defici
ente necessita ou não de educação especial. Este diagnóstico, no entanto, esbarra muitas
vezes em alguns pontos - principalmente naqueles que se referem a "linhas" ou "
escolas" seguidas por quem avalia - que não dão a medida exata da deficiência e que, a
penas, avaliam segundo "padrões", "rótulos" e "enquadramentos" de uma pessoa deficie
nte dentro de uma classificação subjetiva.
Se o diagnóstico for subjetivo e impreciso, ele corre o risco de enviar pessoas de
ficientes para a educação especial, para salas de aula em que só estarão presentes pesso
as deficientes, muito embora estas pessoas possam freqüentar aulas de educação comum,
onde estarão presentes pessoas deficientes e não-deficientes. Uma criança que não precis
a ser matriculada em escolas ou classes especiais deve ser matriculada em escola
s comuns e conviver com qualquer pessoa. Talvez, o bom mesmo seria que não existis
sem escolas especiais, mas apenas classes especiais, o que proporcionaria um con
tato maior entre deficientes e não-deficientes. Mas isto não é tão simples.
A questão da subjetividade do diagnóstico coloca ainda um problema. Existem classes
especiais em escolas públicas para crianças consideradas menos capazes de acompanhar
as classes
pag:94
comuns, em geral consideradas portadoras de limitações mentais (chamados "alunos exc
epcionais"). Tais classes se constituem não apenas em fonte de estigmatização, como, p
ior ainda, em instrumento de limitação da capacidade de aprendizagem e aperfeiçoamento
das crianças.
Por outro lado, não podemos inconseqüente e irresponsavelmente afirmar que qualquer
criança deficiente pode freqüentar qualquer curso em escolas comuns. Talvez muito me
nos pela sua própria deficiência, e muito mais pela precariedade e insuficiência dos n
ossos cursos regulares. Uma criança deficiente, que necessitasse de educação especial,
talvez pudesse freqüentar classes comuns, se o nível educacional dos cursos fizesse
jus às expectativas de aprendizagem de alunos comuns. Mas nem para estes o nível ed
ucacional satisfaz. Há surdos e cegos que, ao terminarem os cursos de 1º e 2º graus em
determinadas escolas especiais, estão intelectualmente melhor formados do que alu
nos não-deficientes que terminaram em escolas comuns.
Os objetivos gerais da educação especial fundam-se nos objetivos da educação comum a tod
as as pessoas: desenvolvimento das potencial idades do educando, auto-realização e p
reparação para o trabalho e para ser cidadão (Lei 5692/71). Com isto, pretende-se comp
reender os alunos deficientes especiais à luz da compreensão dos
pag:95
alunos comuns. No entanto, além dos questionamentos de ordem interna, a educação espec
ial ainda esbarra nos seguintes entraves: 1) apenas 10% dos alunos que necessita
m estão de fato matriculados em escolas ou classes especiais;
2) ausência de número necessário de classes especiais; 3) precariedade de recursos; 4)
falta de professores especializados.
Não podemos nos esquecer também que o Ano Internacional das Pessoas Deficientes (198
1)
em muito pouco contribuiu para que os deficientes deixassem de ser marginalizado
s. Ao meu ver, a contribuição do AIPD foi a de fazer acordar a sociedade para o fato
de que no conjunto de suas relações sociais existe mais uma contradição:
existem 10% da sua população que, por serem deficientes, ou por serem considerados c
omo tais, sofrem "problemas" sociais.
Por outro lado, até por seu caráter paternalista, o AIPD trouxe falhas que terminara
m por reiterar alguns preconceitos e discriminações. As Comissões Nacional e Estadual
(São Paulo) tiveram em muito pouco ou quase nada realizadas as suas propostas. As
pessoas deficientes continuam discriminadas no mercado de trabalho, nas escolas
e no processo sociocultural. As pessoas deficientes continuam estigmatizadas pel
a população que não perdeu o seu preconceito. A ignorância dos habitantes não foi substituíd
a por informações corretas. As pessoas deficientes,
pag:96
ricas ou pobres, por se acreditar que são todas carentes, continuam recebendo inde
vida e equivocadamente esmolas nas ruas. A imagem das pessoas deficientes, enfim
, continua fragmentada.
Tudo isso leva os deficientes a se reunirem. Existem entidades de deficientes não
só de cunho assistencial, mas também de cunho político. Existem hoje entidades que bri
gam pelos "direitos das pessoas deficientes". Algumas conquistas têm, de fato, sid
o feitas.
Não obstante, ao meu ver, as entidades de deficientes podem correr o risco de se c
entrarem por demais em suas reivindicações específicas, como se elas estivessem deslig
adas de um contexto sociocultural mais amplo e mais profundo. Se isso acontecer,
podem incorrer em dois equívocos: 1) se auto-segregarem em suas reivindicações, e 2)
fazerem, de certa forma, o jogo dos mecanismos de manutenção das relações sociais. Deixe
-me explicar melhor.
Quanto ao primeiro caso, não se pode acreditar que é a sociedade como um todo ou os
não-deficientes que se voltam contra os deficientes. Pelo contrário, todos nós estamos
inseridos em relações sociais determinadas, que segregam e discriminam também outros
segmentos da população. Pensar que os obstáculos sociais enfrentados pelos deficientes
são absolutamente específicos e em nada dizem respeito a outros grupos ou
pag:97
outras frações da população é pensar que os deficientes constituem um grupo marginal de pe
ssoas que não se enquadra ou não se adapta na sociedade.
Quanto ao segundo caso, corolário do caso anterior, pensar as pessoas deficientes
como um grupo marginal, o qual é o único ou um dos únicos que a sociedade não integra, é i
ncorporar a "ideologia da integração" que faz parte das relações sociais em que vivemos.
Pensar assim é fazer o jogo dos mecanismos que tentam a perpetuação deste estado de c
oisas e, portanto, da discriminação e da segregação. Pensar assim é pedir para ser integra
do em relações sociais que não integram porque a integração não é um dos seus componentes bá
os.
É claro que as pessoas deficientes têm reivindicações próprias, quais sejam, a construção de
difícios (principalmente públicos) sem barreiras arquitetônicas, assunção integral por par
te do Estado no que se refere a reabilitação, oportunidade de emprego e educação e melho
ria nos transportes coletivos. Porém, cabe notar que, por mais que estas reivindic
ações nos pareçam específicas, elas estão atadas àquilo que as originou, isto é, a um sistema
sociocultural que engendra relações sociais que excluem e marginalizam outros tantos
segmentos da população.
Os elementos da organização social não estão
pag:98
soltos. Ao contrário, estão todos relacionados e enredados. Pensar que os deficiente
s são discriminados no mercado de trabalho é uma constatação que deve ser válida na medida
em que nos leve a enxergar que este tipo de mercado de trabalho em si só é discrimi
nador. Pensar que o Estado não tem uma política de reabilitação é outra constatação que deve
er valor na medida em que nos faça enxergar que o sistema de saúde é insuficiente no B
rasil. Pensar numa sociedade em que as pessoas deficientes vivam melhor é pensar não
só na situação singular em que elas se encontram, mas também nos mecanismos que absorve
m e circunscrevem todas as pessoas. Enfim, pensar numa sociedade melhor para as
pessoas deficientes é necessariamente também pensar numa sociedade melhor para todos
.
pag:99
INDICAÇÕES PARA LEITURA
A bibliografia sobre pessoas deficientes não é de muito fácil alcance. Além de material
importante se encontrar ainda não traduzido, as melhores coisas não são muito veiculad
as ou sequer estão editadas.
Primeiramente, vejamos o que existe sobre definições e classificações de deficiências. Três
livros são muito usados aqui no Brasil: O Indivíduo Excepcional, de Charles W. Telfo
rd e James
A. Sawrey (Zahar, 1976); Crianças Excepcionais, seus Problemas, sua Educação, de Lloyd
e M. Dunn (Ao Livro Técnico, 2 volumes, 1971) e Deficiência Mental, de Stanislau Kry
nski (Atheneu, 1969).
Bons livros mesmo são alguns que ainda não foram traduzidos. Um ótimo: Living Fully. A
Guide for Young People with a Handicap, Their
pag:100
Parents, Their Teacher & Professíonals, de Sol
Gordon (Fayetteville, New York, Ed-U Press,
1975). Outros bons (porém mais específicos):
El Zurdo y su Mundo, de Carlos Wernicke
(Buenos Aires, Panamericana, 1980); El Niño
con Síndrome de Down (Mongolismo), de David
S. Smith e Ann Asper Wilson (Buenos Aires,
Panamericana, 1976); El Niño con Deficiencias
Físicas, de Linda Routledge (Barcelona, Editorial
Médica y Técnica, 1980); além de uma recente
publicação (junho de 1982) da UNICEF intitulada
El Niño Autista: Manual para Padres.
Outros livros que se referem à área da Psicologia, são: Psicologia do Deficiente, de R
osemary Shakespeare (Zahar, 1977) e Psicologia Aplicada à Reabilitação, de Maria Helen
a Novaes (Imago, 1975).
Acredito ser importante ler os relatórios e publicações oficiais editados no Ano Inter
nacional das Pessoas Deficientes. A saber: Relatório de Atividades da Comissão Nacio
nal para o Ano Internacional das Pessoas Deficientes e Relatório da Comissão Estadua
l (São Paulo) de Apoio e Estímulo ao Ano Internacional das Pessoas Deficientes. Temo
s também, da Comissão Conjunta em Aspectos Internacionais da Deficiência Mental (revisão
técnica para o Brasil e prefácio de Stanislau Krynski), Deficiência Mental: Prevenção, Me
lhoria e Prestação de Serviços.
Dos órgãos internacionais ligados à ONU,
pag:101
existem textos muito interessantes. A revista
O Correio da Unesco tem três números publicados especificamente sobre deficiência. Um
saiu em maio de 1974 (Ano 2, nº 5) e os outros dois saíram, respectivamente, em março
de 1981 (Ano 9, nº 3) e agosto de 1981 (Ano 9, nº 8). As duas últimas revistas têm artig
os muito bons. Da UNICEF temos a publicação A Deficiência
Infantil: Sua Prevenção e Reabilitação, editada em português, em 1980. Da Rehabilitation I
nternational há uma publicação que me parece muito importante: The Economics of Dísabílity
:
Internationals Perspectives, editada em março de 1981 (pena que não tenha tradução). É tam
bém interessante ler, da Rehabilitation nternational, a "Carta para a Década de Oite
nta", que se encontra traduzida no Relatório da Comissão Nacional. Leia também a "Decl
aração dos Direitos das Pessoas Deficientes", aprovada pela ONU em 1975, que se enco
ntra na revista O Correio da Unesco, março de 1981, Ano 9, nº 3.
Existem os livros escritos pelos próprios deficientes. Acredito que eles sejam de
grande interesse. A saber: Posso Ajudar Você?... Minha Experiência com Meu Filho Exc
epcional (um ótimo livro) de Iva Folino Proença (T. A. Queiroz, 1981); Minha Profissão
é Andar, de João Carlos Pecci (Summus, 1980); A Vida de Quem não Vê, de J. Espínola Veiga
(José Olympio, 1939);
pag:102
À Margem da Vida: Num Leprosário do Acre, de Francisco Augusto Vieira Nunes (Bacurau
) (Vozes, 1978); Educação dos Cegos no Brasil, de Aires da Mata Machado Filho (Belo
Horizonte, Imprensa Oficial de Minas Gerais, 1931); Vivendo
o Desafio: A Libertação das Deficiências Físicas, de Eliane Gonçalves de Araújo e Luiz Itama
r Jaines (Loyola, 1981). Feliz Ano Velho, de Marcelo Rubens Paiva é um livro inova
dor. Deve ser o primeiro a ser lido.
Sobre educação especial um livro importante é Fundamentos de Educação Especial, de Marcos
José da Silveira Mazzotta (Pioneira, 1982). Sobre acidentes de trabalho temos um l
ivro muito bom:
As Vítimas do Capital: Os Acidentados de Trabalho, de Márcia Regina da Costa (Achiamé,
1981). Sobre sexualidade e deficiência há o livro Sexo para Deficientes Mentais, de
Marilda Novaes Lipp (org.) (Cortez/Autores Associados, 1981). O texto de Sol Go
rdon, intitulado "Os direitos sexuais das pessoas", que se encontra neste livro,
é muito bom.
Sobre os entraves que se interpõem para o ingresso de deficientes no serviço público,
há um texto que considero da maior relevância, pois foi escrito por uma deficiente q
ue narra sua experiência com o serviço médico e com a burocracia, embora tenha sido ap
rovada em concurso público. O texto chama-se Minha Vida/Minha Luta, de Zenaide Gut
ierrez (Pirapag:103
cicaba, SP). Sobre o Ano Internacional das Pessoas Deficientes existem dois sérios
artigos: "O Ano Internacional das Pessoas Deficientes e suas Implicações Sociais na
Atual Realidade Brasileira" e "Pessoas Deficientes e TV: Análise de uma Reportage
m", ambos de Romeu Kazumi Sassaki (Cedris - Centro de Desenvolvimento de Recurso
s para a Integração Social). Sobre deficiência auditiva e realidade brasileira é impresc
indível ler Os Mitos da Educação e Reabilitação do Deficiente Auditivo no Brasil, de José Ge
raldo Silveira Bueno (Derdic - Divisão de Educação e Reabilitação dos Distúrbios da Comunicaç
da PUC/SP).
Dentre outros livros que consultei, aqueles que nortearam minhas reflexões foram:
Estigma:
Notas Sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada, de Erving Goffman (Zahar, 1982)
; Desvio e Divergência: Uma Crítica da Patologia Social, de Gilberto Velho (org.) (Z
ahar, 1981); Doença Mental e Psicologia, de Michel Foucault (Tempo Brasileiro, 197
5); Psiquiatria e Antipsiquiatria, de David Cooper (Perspectiva, 1982); Tabu do
Corpo, de José Carlos Rodrigues (Achiamé, 1980) e As Classes Sociais e o Corpo, de L
uc Boltanski (Graal, 1979).
Biografia
Nasci em S5o Paulo - na capital. Morei em Salvador (BA), quando era pequeno, e d
e lá me lembro bem de algumas coisas: do coco mole, do acarajé, do verde do mar e do
sol de Abaeté. Morando definitivamente em São Paulo, fiz uma faculdade de Comunicação S
ocial e me habilitei em Jornalismo. O curso de Jornalismo me deu muito pouco, em
todos os sentidos, e eu fui fazer Ciências Sociais na PUC.
Não me preocupava em penetrar a fundo na deficiência, porque acreditava que as pesso
as deficientes eram, no mínimo, vistas como um "objeto de estudo". Talvez fosse um
preconceito meu.
Não parece, mas me cobro muito. Isto fez com que eu acreditasse. Hoje acho que a d
eficiência é um assunto fascinante. Acho até que ela está muito próxima da Antropologia.
Caro leitor:
Se você tiver alguma sugestão de novos títulos para as nossas coleções, por favor nos envi
e. Novas idéias, novos títulos ou mesmo uma "segunda visão" de um já publicado serão sempr
e bem recebidos.
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O que são pessoas deficientes