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COLEÇÃO: PASTORAL & MIGRAÇÃO
Percepção do Fenômeno Migratório em cidades das Dioceses
do Rio Grande do Sul - Jurandir Zamberlam e Giovanni Corso - 2004
O Processo Migratório no Brasil e os desafios da Mobilidade
Humana na Globalização - Jurandir Zamberlam - 2004
Pastoral dos Migrantes - Jurandir Zamberlam e Giovanni Corso - 2005
Memória - 1° Congresso Mundial dos Leigos Scalabrinianos Piacenza - Jurandir Zamberlam e Giovanni Corso - 2005
Tendências da Mobilidade humana na três Fronteiras - Jurandir
Zamberlam e Giovanni Corso - 2006
Memoria - 1er Congreso Mundial de los Laicos Scalabrinianos
en Piacenza - Presencia Sudamericana - Jurandir Zamberlam e
Giovanni Corso - 2006
A emigração da Grande Criciúma na ótica de familiares - desafios para a Igreja de origem e de destino - Jurandir Zamberlam,
Giovanni Corso, Wladmyr Külkamp, Ludgero Buss - 2006
Emigrantes brasileiros no Paraguai - presença Scalabriniana Jurandir Zamberlam, Giovanni Corso, Joaquim Filippin, Eduardo
Bresolin e Eduardo Geremia - 2007
Desafios das Migrações para a Igreja do Rio Grande do Sul Jurandir Zamberlam, Giovanni Corso, Joaquim R. Filippin, Lauro
Bocchi, Egídia Muraro, Guilherme Ilarze - 2007
Foz do Iguaçu em contexto de mobilidade - Paróquia Bom Jesus do Migrante - Jurandir Zamberlam, Joel Ferrari, Giovanni Corso,
Joaquim R. Filippin - 2007
João Batista Scalabrini - Apóstolo dos MIgrantes - Redovino
Rizzardo - 2007
João Batista Scalabrini - Apóstolo dos Migrantes. / Redovino
Rizzardo. Porto Alegre : Solidus, 2007. 86 p.
1. História. 2. Biografia. 3. Migração. 4. Religião. - I. Rizzardo, Redovino
- Título.
CDU 312:325(816.5)
Diagramação: Eduardo Geremia
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Apoio: CIBAI - Migrações
SUMÁRIO
Apresentação I ..........................................................
05
Apresentação II .........................................................
06
Apresentação III ........................................................
07
A missão do Bispo Scalabrini ...................................
09
Uma paróquia de periferia .........................................
15
A ambição de um bispo ............................................
19
Pelos rincões da diocese ..........................................
23
Apóstolo da catequese .............................................
29
Enviado aos pobres ...................................................
33
Um bispo revolucionário ............................................
39
Congregar na unidade os filhos de Deus dispersos .........
45
O apelo na estação ferroviária ...................................
51
Roubar ou emigrar ....................................................
57
A obra scalabriniana .................................................
63
A terra prometida da Igreja? ......................................
69
O paraíso terrestre ....................................................
73
Estou pronto, Senhor, partamos! ...............................
83
Referências ...............................................................
88
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APRESENTAÇÃO I
A experiência da emigração está marcando nossa
realidade brasileira. Mais de cinco milhões de pessoas já
escolheram outros países para viver.
A necessidade de interpretar esta experiência para agir
adequadamente nos leva a procurar as pessoas que a viveram
como profetas e mestres. O Bem-aventurado João Batista
Scalabrini no século XIX percebeu o êxodo migratório em
sua diocese e se posicionou profeticamente no campo
jurídico, político, social, assistencial, cultural e religioso.
Estudou o fenômeno da emigração italiana para chegar
ao migrante real, que visitou nos Estados Unidos e no Brasil
e acompanhou pelos religiosos e religiosas das
Congregações por ele fundadas.
Scalabrini é mestre e sua experiência e exemplo podem
nos ajudar a entender hoje com inteligência e coragem a
sofrida realidade migratória.
Nosso agradecimento a Dom Redovino Rizzardo por ter
autorizado esta nova edição de sua obra.
Amigo leitor, votos que o encontro com o coração de
Scalabrini o torne amigo dos migrantes para realizar-se como
cidadão e cristão.
Porto Alegre, Natal de 2007.
Pe. Giovanni Corso - Diretor do CIBAI-Migrações
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APRESENTAÇÃO II
O Bem-aventurado João Batista Scalabrini,
homem de olhar atento, coração cheio de compaixão
e caridade, foi um bispo que amou seu rebanho para
além de sua diocese e de seu país. Ao ver seu povo
migrar, partindo para as Américas, quis que
sacerdotes, irmãos, irmãs e leigos, acompanhassem
a travessia e o destino dos migrantes.
Para nós missionários, missionárias e leigos
scalabrinianos ele é “Pai dos Migrantes, Apóstolo da
Catequese e da Reconciliação”. Não obstante as
injustiças e conflitos que acompanham os migrantes,
Scalabrini sabia ver na migração um desígnio da
Providência Divina.
Hoje diante do fenômeno das migrações sempre
mais complexo, acompanhado da tentação da
xenofobia e de ver o migrante como problema,
Scalabrini nos ensina que a reconciliação é o caminho
para a construção da cidadania universal. A migração
é um convite para a globalização da solidariedade.
Na lógica da Palavra de Deus, o migrante nos recorda
que estamos de passagem, buscando “uma pátria que
não é terrena”, como nos dizia Scalabrini.
Pe. Adilson Pedro Busin, cs - Superior Provincial
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APRESENTAÇÃO III
Atendendo ao pedido insistente de vários amigos,
no sentido de terem uma biografia de João Batista
Scalabrini, o apóstolo dos migrantes, mais simples e
popular, a ser difundida em nossas comunidades
eclesiais, ofereço esta nova publicação à Igreja do
Brasil.
Desde logo esclareço que nada de novo traz o
presente trabalho. Aliás, justamente pela tentativa de
ser simples e popular, é muito incompleto, não
passando de um resumo do livro João Batista Scalabrini, publicado por Edições Paulinas, em 1987.
Sentir-me-ia muito recompensado se o opúsculo
servisse de incentivo e ânimo a quantos se dedicam
aos irmãos desvalidos, sobretudo migrantes, o grande
ideal de um bispo que tinha por ambição ajoelhar-se
diante do mundo para lhe suplicar uma só graça, a de
poder fazer-lhe o bem.
D. Redovino Rizzardo- Bispo de Dourados - MS
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“...eram anciãos curvados pela idade e pelas fadigas; homens
na flor da idade; senhoras que arrastavam os filhinhos atrás
de si, ou os carregavam ao colo; meninos e meninas, todos
irmanados por um só pensamento e guiados a uma única
meta. Eram emigrantes...”
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A MISSÃO DO BISPO SCALABRINI
No dia 16 de julho de 1904, um dos maiores
jornais brasileiros da época, “O Estado de S. Paulo”,
sob a manchete acima, trazia um longo e violento artigo
de fundo, assinado nem mais nem menos do que por
seu diretor, Paulo Rangel Pestana:
“Há poucos dias chegou às nossas plagas o
bispo de Piacenza, na Itália. Um bispo como os
outros, a que costumamos mandar os importunos se queixarem? Não! Este é um tanto
diferente! Além de ser personagem muito íntimo
do Papa Pio X e fundador da Congregação de
São Carlos, consta que trouxe importante
incumbência do governo italiano, desse
mesmíssimo governo sacrílego que, por ter penetrado em Roma a tiros de canhão e a golpes
de baioneta, foi excomungado por um dos sucessores de S. Pedro...
A que veio o prelado forasteiro? A converter
infiéis à fé que, a cada instante, invoca? A
buscar óbolos para as obras pias e para a salvação das almas pagãs? Nada disso, que tais coisas são velharias dos séculos dos denegados
e ingênuos Anchietas! Os missionários modernos cuidam de assuntos mais práticos, preo-9-
cupando-se com problemas políticos e industriais. Aventuram-se ainda pela Ásia, África e
América, mas carregam debaixo do braço a carabina carregada e o caixote de mercadorias,
para delimitar “as zonas de influência” das nações colonizadoras, a cujo serviço se votaram.”
Segundo o jornal paulistano, se essa era a missão
do prelado forasteiro, “à nossa chancelaria compete
negociar com a Santa Sé sobre o caso. Com
habilidade, não lhe será difícil obter êxito. Se,
entretanto, formos desatendidos, retiremos nossa
legação do Vaticano e aceitemos a luta franca,
declarada, honesta. Não somos quem mais sairá
perdendo...”
Mas quem era esse bispo perigoso e subversivo
que chegara ao Brasil para comprometer “a unidade
nacional, deslealmente atacada”, como insistia em
afirmar Rangel Pestana? Que viera fazer ou buscar
em nossa pátria? E que espécie de organização era
a Congregação de São Carlos?
Vamos por etapas! Iniciemos... pelo começo!
O início é Fino Mornasco, um lindo povoado do norte
italiano, perto da cidade e do lago de Como. Aí em 8
de julho de 1839, nascia o menino que tanto
preocuparia o diretor do “Estadão”! ... Seus pais, Luís
Scalabrini e Colomba Trombetta, constituíam uma
família simples e habituada ao trabalho. Como
acontece com quase todos, sua maior preocupação,
que às vezes os fazia verter lágrimas amargas, era o
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sustento e a educação dos oito filhos que foram
chegando, cinco rapazes e três meninas. Para dizer
da situação social e econômica da família e da época,
é suficiente esclarecer que três deles tiveram de
emigrar para a Argentina. (O primogênito, porém,
algum tempo depois regressou para cuidar dos velhos
pais.)
Até os 18 anos, João Batista Scalabrini foi um jovem
como qualquer outro. Dedicava-se com afinco ao
trabalho e ao estudo. O que o distinguia era uma
enorme capacidade intelectual: sempre o primeiro da
classe! Mas a característica que mais tocava quem o
conhecia era sua grande força de vontade, que o
levava a fazer a pé, todas as semanas, os dez
quilômetros que o separavam de Como, onde fez o
segundo grau. Se, quando adulto, foi conhecido como
“o bispo das mãos furadas”, porque tudo o que recebia
passava adiante, esse seu espírito altruísta e generoso
podia ser percebido já nesses primeiros anos.
Quantas vezes, os minguados tostões e a parca
merenda que os pais lhe passavam foram
endereçados por ele a colegas mais necessitados!
Aos 18 anos, o jovem Scalabrini declarou que
queria ser padre. Ninguém, porém, se surpreendeu.
De fato, se era um rapaz normal e comum, também
não eram poucos os que encontravam nele indícios
de que seu caminho seria diferente. A abertura às
necessidades alheias fazia-o preocupado com a
formação cristã dos colegas de estudo e de lazer.
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Superando com decisão o medo e a vergonha próprios
dessa idade, transmitia-Ihes com alegria e convicção
o que aprendia da Palavra de Deus.
Em outubro de 1857, ingressou no seminário
diocesano de Como, onde fez os estudos filosóficos
e teológicos. E após cinco anos e meio, no dia 30 de
maio de 1863, um mês antes de completar 24 anos,
já era padre!
E agora, que fazer? Na época, a Itália tinha padre
sobrando! Havia paróquias de 50, 100 ou 200 pessoas!
Por isso, o Pe. João Batista pensou ter chegado o
momento de realizar seu sonho juvenil: ser missionário
na índia. Partiu para Milão, decidido a integrar o PIME:
Pontifício Instituto das Missões Estrangeiras. Ele
mesmo nos narra a sua vocação numa homilia que
pronunciou em 1884, quando presidiu, como bispo de
Piacenza, à celebração do envio de cinco missionários
do PIME para o exterior:
“Na vida do homem há momentos memoráveis,
que não se esquecem jamais. Num deles, que
guardo sempre no fundo do coração, vejo-me
de joelhos diante de minha querida mãe, pedindo-lhe a bênção, antes de partir e agregarme ao vosso benemérito instituto. Em lágrimas,
ela ma concedeu; e eu me apresentei nessa
casa com ânimo trepidante. As palavras que vi
esculpidas no alto da entrada: Seminário das
Missões Estrangeiras, pareciam desvendar todo o futuro de minha atividade apostólica. O
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diálogo que, em seguida, mantive com este homem venerando, que está a meu lado honra
insigne do clero lombardo (Mons. José Morinoni,
o primeiro superior do PIME) e que jamais se
cancelará de minha mente, parecia-me dizer que
este realmente devia ser o meu porvir, de acordo com a vontade divina.
Surgiram, todavia, circunstâncias imprevistas, não
sei se por castigo dos meus pecados ou por outros
desígnios ocultos de Deus. E a cruz de lenho do
missionário se transformou nesta de ouro, que
trago no peito, e que freqüentemente me leva a
queixar-me com meu Deus porque me deu esta,
e não a primeira! Mas, depois, devo dizer:
“Cumpra-se em tudo a vontade de Deus!” De
minha parte, porém, não deixarei nunca, como
jamais o deixei até hoje, de considerar-me vosso
co-irmão espiritual, ou, pelo menos, um agregado!
E é com inveja, amados jovens e filhos, que vos
vejo partir para terras longínquas!”
Quem não lhe permitiu deixar a Itália foi seu bispo, que
lhe disse: “Eu preciso de você; suas Indias são a Itália!”
Certamente, não lhe foi fácil ver desmoronar um ideal que
vinha acalentando! ... Mas, abandonando-se confiante nos
braços de Deus, voltou ao seminário diocesano, por mais
sete anos, primeiramente como professor e, em seguida,
nos últimos dois anos, como reitor.
Mesmo assumindo com empenho suas funções no
seminário, o padre procurava permanecer ligado ao povo,
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a quem dedicava seu tempo livre e suas energias. Assim,
por exemplo, em 1867, quando também sua terra natal,
Fino Mornasco, e outras localidades vizinhas foram
assoladas por uma epidemia de cólera, ele julgou “uma
graça extraordinária de Deus”, como então escreveu a um
amigo, poder dedicar-se aos irmãos doentes. E neste serviço prodigalizou-se tanto que o próprio governo lhe conferiu,
em maio de 1869, uma medalha de bronze, “como
testemunho de admiração e de reconhecimento”
...entre meus paroquianos alguns milhares de operários da seda;
tecelãos, fiandeiros e tintureiros... (Scalabrini, 1870)
Imgrantes bolivianos em São Paulo (2007)
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UMA PARÓQUIADE PERIFERIA
Em julho de 1870, o Pe. Scalabrini assumiu a
direção da paróquia de São Bartolomeu, uma das
maiores e mais importantes da cidade de Como, com
uma população que ultrapassava seis mil habitantes.
Em sua maior parte, a comunidade era constituída
por operários da indústria têxtil, que trabalhavam a
seda. Com a força e o entusiasmo de sua juventude apenas completara 31 anos -, e sobretudo de seu
amor ao povo, ao qual se doava sem meias medidas,
o novo pároco escolheu como meta e prioridade a
formação cristã das crianças e da juventude, o cuidado
dos doentes e a evangelização e promoção da classe
trabalhadora.
A catequese será sempre um dos pilares de sua
atividade pastoral, inclusive e principalmente quando
bispo de Piacenza. Ele, que percebia renovar-se
constantemente em seu coração a vocação missionária, assim se dirigia aos catequistas: “Muitas
vezes, talvez, ficais invejando aqueles que, menosprezando a voz da carne e do sangue, atravessam
os mares e se dirigem a terras longínquas, a fim de
levar a fé aos povos ‘que jazem nas trevas e na
sombra da morte’ (Lc 1,79)! Mas por que pensar assim?!
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Ensinando o catecismo às crianças, fazeis coisa que
iguala em merecimento a obra de conversão dos
pagãos, e o vosso nome ficará escrito no livro da vida,
ao lado dos maiores heróis!”
Se é verdade que montou, enquanto o permitiam
as condições eclesiais da época, uma eficiente e
vasta estrutura catequética paroquial, escrevendo, em
1875, a primeira de uma longa série de publicações a
respeito: o Pequeno catecismo para os jardins de
infância, contudo, estava convencido de que os
primeiros responsáveis pela formação cristã dos filhos
eram justamente os pais: “Vós, pais, sois os primeiros
mestres do catecismo. Com o vínculo conjugal,
assumistes obrigação muito grave: sois pais na carne
para serdes seus pais no espírito!”
O ensino religioso de nada serviria se faltasse o
testemunho da caridade, sobretudo junto aos doentes
e aos pobres. Eis por que, num período histórico de
profunda crise social, fruto dos desmandos do
liberalismo econômico e da revolta das classes
populares, insufladas pelo socialismo marxista, o Pe.
João Batista caminhou lado a lado com seus irmãos
trabalhadores, como ele mesmo o lembrará em 1899,
no opúsculo O socialismo e a ação do clero:
“Durante vários anos, fui pároco de um bairro
da minha cidade de Como. Contava entre meus
paroquianos alguns milhares de operários da
seda; tecelãos, fiandeiros e tintureiros. Naqueles
anos, pude verificar de perto a dolorosa situação
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dos trabalhadores, dolorosa por si mesma e
pelas conseqüências a que pode andar sujeita.
Como repercutia neles qualquer crise política
ou financeira, mesmo se distante, que reduzisse
ou paralisasse o movimento industrial! Como
sentiam qualquer infortúnio da vida, por menor
que fosse, como uma doença ou uma desgraça
acidental, que diminuísse a sua produção diária!
A essas breves interrupções, que arrancavam,
contudo, uma a uma, um pedaço de pão ao
pobre do operário, sucedia, de vez em quando
as grandes crises industriais, que suspendiam
qualquer atividade. Nestes casos, sobrevinham
a miséria e a fome, no sentido mais estrito da
palavra, só camufladas, durante certo tempo,
pelo crédito do comerciante ou por uma
antecipação do salário industrial. Assistia-se,
então, a um corre-corre angustioso de homens
em busca de trabalho, e de mulheres em busca
de socorros! Oh! tristes dias aqueles em que
eu, visitando os doentes, subia pelas míseras
escadas e não ouvia o toque seco e ritmado do
tear! Tristes em todos os sentidos, porque, junto
com a miséria, entravam freqüentemente nas
famílias a imoralidade e a desonra!”
O padre tinha razão de se preocupar e afligir pela
situação. As leis trabalhistas não existiam, ou, se
existiam, eram sempre a favor dos patrões. Normalmente, o horário de trabalho começava às 6 horas
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da manhã e se prolongava até as 18, sem intervalo
algum, nem mesmo para o almoço. Vigorava a lei do
mais forte, sem exceção nenhuma, inclusive para as
mulheres e crianças. Mas ele não se limitou a constatar
e a denunciar; sua caridade pastoral nada desdenhava
de quanto o ajudasse a aproximar-se dos pobres, nem
que fosse apenas para procurar-Ihes emprego junto
às indústrias.
Poucos foram os anos em que o Pe. Scalabrini
esteve à testa da comunidade de São Bartolomeu;
mas foram suficientes para granjear a estima e a
admiração de todos e despontar como líder natural. A
obra que tornou seu nome conhecido na Lombardia e
em grande parte da Itália, porém, foram as onze
conferências que pronunciou na catedral de Como em
1872, sobre o Concílio Vaticano I, inaugurado em 8 de
dezembro de 1869, e encerrado em julho de 1879,
em face dos acontecimentos bélicos que terminaram
com a ocupação de Roma, em 20 de setembro
seguinte. Parece não haver dúvida de que a publicação
das palestras num opúsculo, que chegou a alcançar
quatro edições, uma delas de 12 mil exemplares, tenha
sido o último cartucho a levar a Santa Sé a nomeá-Io
bispo de Piacenza.
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AAMBIÇÃO DE UM BISPO
O primeiro jornal de Piacenza a noticiar, no dia 16
de dezembro de 1875, que a diocese tinha novo pastor,
deixou ver, nas entrelinhas, que o ambiente cultural e
social da alta sociedade local não se comovera muito
com o fato: “Temos pontífice! Foi nomeado bispo de
Piacenza o Pe. João Batista Scalabrini, pároco de São
Bartolomeu, em Como. Dizem que é homem de muita
ciência e de muito coração. Tanto melhor!” De fato, a
característica dominante em vários setores da
população parecia ser um acentuado anticlericalismo,
conseqüência provável do domínio que a Igreja
exerceu na Itália, sobretudo nos Estados Pontifícios,
anexados ao recém-constituído Reino Italiano, pelo rei
Vítor Manuel lI.
O novo prelado, que passará à história como “um
bispo para cujo amor não era suficiente uma diocese”,
como o definiu o Papa Bento XV, ou ainda como “um
homem cuja pátria foi o mundo”, quis ser sagrado em
Roma, a capital do catolicismo. E a igreja escolhida
para a celebração do evento foi a capela da
Congregação para a Evangelização dos Povos - novo
sinal de seu espírito missionário e universalista. Era o
dia 30 de janeiro de 1876.
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No mesmo dia, enviou a seu povo uma longa carta,
lida em todas as igrejas da diocese, onde traçava seu
programa de serviço eclesial: “Enviado em primeiro
lugar aos pobres e aos infelizes que carregam a vida
na dor e na desolação, com eles sofrerei, esforçandome sobretudo em auxiliar e evangelizar os pobres que,
ricos de fé, foram escolhidos pelo Redentor como
primeiros e herdeiros do Reino prometido por Deus
àqueles que o amam. Não recusarei fadiga alguma,
no intuito de chegar a ser pai dos abandonados,
mestre dos simples, guia dos sacerdotes e pastor de
todos, a fim de que, fazendo-me tudo para todos,
consiga ganhar todos a Cristo!”
Mais tarde, em 1896, discursando numa festa em
homenagem ao grande amigo que era o bispo de
Cremona, Jeremias Bonomelli, D. Scalabrini
explicitava melhor seu pensamento sobre a missão
episcopal na Igreja:
“Na sua tarefa de superintendente, sempre difícil
e freqüentemente perigosa, o bispo não pode
esquecer as dificuldades que oprimem o povo,
ocultando-se no crime do silêncio, ultrajando,
assim, a justiça de Deus.
Sacrificar-se incessantemente para a dilatação
do Reino de Cristo nas almas; expor, se for
preciso, a vida pela salvação do rebanho amado; colocar-se de joelhos, por assim dizer, diante do mundo e implorar, como uma graça, a
permissão de lhe fazer o bem: eis o espírito, a
identidade e a única ambição do bispo!”
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O ingresso oficial na diocese aconteceu em 13 de
fevereiro, para coincidir com o início dos festejos
comemorativos do sexto centenário de morte do bemaventurado Gregório X, papa originário de Piacenza,
que governou a Igreja de 1271 a 1276; fora eleito no
conclave de Viterbo, célebre porque os habitantes da
cidade se sentiram na contingência de destelhar o teto
do palácio papal para obrigar os cardeais a apressar
a eleição, que já ia para mais de ano.
Bons tempos aqueles! Para uma diocese relativamente pequena - 241.259 habitantes -, havia nada
menos do que 364 paróquias, com uma média de 663
pessoas para cada uma... Os padres, por sua vez,
eram 735, sem contar os 60 religiosos! Durante os
29 anos de seu episcopado, o bispo terá a alegria de
ordenar 442 sacerdotes diocesanos, numa média de
mais de 15 por ano! ...
Pode-se dizer que a formação sacerdotal foi sempre
a primeira de suas preocupações. Dizia ao povo:
“Mesmo se a maior parte dos jovens dos nossos
seminários os abandonam e poucos alcançam a meta,
contudo, esses poucos valem muito, e se tornam a
alegria do céu e da terra. Dentre cem gotas de chuva
que caem sobre a terra, noventa e oito viram lama;
das outras duas, porém, uma umedece a fronte da
criança na pia batismal, e entrega um filho à Igreja; e a
outra se verte no cálice do sacerdote, identifica-se com
o sangue de Cristo, e entrega Deus aos homens”.
Dirigindo-se aos sacerdotes, continuava: “Esforçai- 21 -
vos para preparar desde agora outros vós mesmos,
que possam pastorear a diocese mais tarde, quando
ela tiver a dor de vos perder. Por isso, verificai se em
vossas paróquias não haja meninos de inteligência
aberta, índole sincera, caráter vivaz e, ao mesmo
tempo, dóceis, estudiosos, modestos, de costumes
ilibados e levados ao serviço dos altares. Encontrandoos, tomai-os sob vossos cuidados com desvelo todo
particular! Recomendo-o insistentemente!”
E terminava categórico: “Não espereis santificar
os outros se antes não sois santos vós mesmos, pois
só a santidade produz obras santas! Lembrai-vos que
não foram os sábios da sinagoga que iluminaram o
mundo, mas os doze humildes pescadores da
Galiléia!”
“...o bispo não pode esquecer
as dificuldades que oprimem
o povo, ocultando-se no crime
do silêncio, ultrajando, assim,
a justiça de Deus...”
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PELOS RINCÕES DA DIOCESE
É um princípio tão antigo que já se tornou sabedoria
popular: “Ninguém ama o que não conhece!” Dom
Scalabrini não quis ser bispo de gabinete e de
escritório, esperando visitas, resolvendo problemas
e ditando normas. “0 bom pastor conhece as suas
ovelhas” (Jo 10,14). Por isso, durante os 29 anos de
episcopado, visitou por bem cinco vezes a quase
totalidade de suas comunidades paroquiais, pequenas
ou grandes, próximas ou distantes, com o objetivo de
fazer seus os sofrimentos e as alegrias, as
esperanças e as decepções, as vitórias e os fracassos
do povo que recebera por herança do Senhor:
“A mais bela consolação que um bispo pode receber
é conhecer de perto os seus amados filhos e por
eles ser conhecido! Viremos até vós para vos
incentivar à prática das virtudes cristãs: a piedade, a
concórdia e a paz; para levantar nossa voz na defesa
dos oprimidos; para ser o amparo dos pobres e o
consolador dos aflitos; para acolher os transviados
e unir as lágrimas da consolação às do arrependimento, decidido a sacrificar por vós não só a nossa
comodidade, o nosso sossego e o nosso descanso,
mas também a nossa própria vida!”
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Um padre daqueles tempos nos descreve alguns
pormenores dessas visitas:
“No período em que D. Scalabrini iniciou a
primeira visita pastoral, não é exagero afirmar
que em mais de duzentas paróquias não era
possível chegar senão em lombo de burro ou
de cavalo. Deve-se também acrescentar que
então, na zona montanhosa, a maior parte das
casas paroquiais não estavam em condições
de hospedar o bispo e o seu reduzido séquito
por uma noite sequer, nem mesmo
precariamente. Assim, não lhe era possível
passar diretamente de uma paróquia a outra,
como fará mais tarde, mas devia estabelecer,
como se diz, o quartel-general na sede do vicariato; de lá partia quase cada manhã e regressava à noite. Por isso, fazia diariamente várias horas de cavalgada. Se alguém conhece
as nossas montanhas e pensa nos atalhos mais
próprios para cabras que formavam, muitas
vezes, o único meio de comunicação; nas subidas a pique em que só conseguia ficar na sela quem se agarrasse ao pescoço do cavalo;
nas descidas em declive que a prudência mais
elementar aconselhava fazer com as próprias
pernas; nos rios que, para atravessar, era preciso dar longas voltas até encontrar o local
menos perigoso, deverá convir que se tratava
de bem outras viagens do que de lazer!”
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Como nas biografias dos antigos santos, também
o roteiro dessas visitas não dispensava os fioretti que
embelezam a vida dos que não medem sua doação a
Deus e aos irmãos. Escutemos um pároco que o
acolheu em sua casa:
“Certa vez, o bispo se encontrava em visita pastoral na paróquia de Pradovera. Na tarde daquele dia, devia dirigir-se à paróquia de Cogno
San Bassano, distante aproximadamente cinco
quilômetros, por estrada de montanha. No
momento em que estava partindo, desabou
furioso temporal, acompanhado por chuva torrencial. Nós, sacerdotes, suplicávamos que
adiasse a viagem para a manhã seguinte, ou
pelo menos que aguardasse o aguaceiro parar.
Ele, porém, nada quis ouvir, e partiu sob chuva
que descia a cântaros, dominado pelo
pensamento de que naquela localidade havia
um povo a esperá-lo.”
Outro sacerdote nos narra um fato pitoresco, mas que
nos deixa entrever a pobreza da maioria das paróquias
das montanhas, tão pobres que alguns padres chegavam
a passar fome:
“Jamais se queixava da alimentação, da cama
ou de qualquer contratempo. A esse respeito,
ele mesmo lembrava, todo sorridente, que, certa
vez, numa casa paroquial de Valnure, havia
dormido numa cafua que tinha todos os
vestígios de ter sido usada como galinheiro.
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Pode-se, então, imaginar que espécie de companhia o manteve acordado a noite inteira! E
como se isso não bastasse, foi deliciado até o
amanhecer pelo canto dos galos e pelo cacarejar das galinhas, dele separados por frágil
parede.”
Até mesmo um jornalista ateu, presente à chegada
do bispo em uma localidade do interior, viu-se obrigado
a reconhecer em 1879:
“Enquanto escrevo, uma inteira população comovida, exultante e febricitante se prostra, se
inclina e se arrasta aos pés de D. Scalabrini!
Ouço o disparo dos mortaretes e de outras armas de fogo a pipocar incessantemente, confundindo-se com os gritos de um povo delirante.
Percebo as lágrimas, os gritos sufocados, os
gemidos convulsos de jovens e de velhos, de
homens e de mulheres, de senhores e de
pobres, que vêem em D. Scalabrini um Deus
descido novamente sobre a terra! Esta
população representa a ignorância, estamos de
acordo; mas representa também o número: são
18 milhões contra 8! É a força material, é o
fanatismo!” (Como se conclui, em 1879, a Itália Contava
com uma população de 26 milhões de habitantes: 8 milhões de
esclarecidos, e 18 de ignorantes ... )
Para dizer dos frutos de renovação espiritual e
social trazidos por suas visitas pastorais, expomos o
exemplo de Fierenzuola. Quando de sua chegada à
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cidade, no início de 1878, teve que se assessorar de
outros dezoito padres para atender as confissões da
comunidade, até altas horas da noite. Na manhã
seguinte, por três horas seguidas continuou dando a
comunhão ao povo. Praticamente ninguém se excluía
da participação aos sacramentos, senão os seis ou
sete anticlericais presentes em qualquer lugarejo.
A visita convertia-se em autêntica renovação
popular. Confirma-o o Pe. Francisco Gregori, um dos
primeiros biógrafos de João Batista Scalabrini:
“Os frutos colhidos desse impulso moral dado
por ele à diocese pela sagrada visita realizada
numa forma verdadeiramente apostólica, especialmente na primeira vez, quando, à ação do
apostolado, deve-se acrescentar a peculiaridade da novidade, foram realmente extraordinários. Gente endurecida no mal que regressava
a Deus; escândalos que se extirpavam; uniões
irregulares que se acertavam; ódios inveterados que se extinguiam, ou, pelo menos, amainavam; em suma, por toda a parte, o reflorescimento da piedade religiosa e da vida cristã.”
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“...embora jovem, a alma quando bem instruída no catecismo,
experimenta em si mesma seu Deus, atira-se a Ele com ardor,
ama-O, adora-O, através de belezas que adornam o universo.
Quem faz alguma experiência a respeito, não tem necessidade
de palavras para se convencer.
Falai de Deus a uma criança, no modo que convém à sua idade e
capacidade e ela vos mostrará que não falais de um Ser estranho
à sua natureza. No fundo de sua alma o Ser Supremo fez sentir
sua existência, desde os primórdios da vida e desenvolvendo-se
gradualmente pelo catecismo, na criança este germe precioso,
conforme a idade, far-lhe-á brilhar na mente, a parte mais bela e
sublime de sua vida...”.
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APÓSTOLO DA CATEQUESE
Pelo fato de João Batista Scalabrini ter passado à
história como apóstolo dos migrantes, ficou em
segundo plano outro aspecto marcante de sua
influência na Igreja, pioneiro que foi da renovação
catequética italiana. Mas o próprio papa Pio IX, numa
audiência que lhe concedeu em 7 de junho de 1877,
ou seja, logo no início de seu episcopado, reconheceulhe publicamente os méritos nesse campo, afirmando:
“Hoje tem-se muita preocupação com o segundo
andar das residências, e pouca com o primeiro, que
é o mais importante. A catequese é precisamente a
base onde se deve fundamentar toda a pregação e
toda a ação pastoral. Salvamos a sociedade mediante
uma boa catequese. Assim, como atestado de nossa
identidade de vistas, oferecemos a D. Scalabrini uma
cruz peitoral, e o apresentamos como apóstolo da
catequese!”
Desde quando pároco em Como, o Pe. Scalabrini
demonstrara tanto interesse pelo assunto, que seu
bispo o tinha encarregado de programar um novo
esquema de organização catequética para toda a
diocese. E mal ingressou em Piacenza, passou a pôr
em prática o plano que vinha esboçando há tempo.
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Sua atuação nesse campo foi vasta e duradoura:
fundou a primeira revista catequética italiana,
organizou o primeiro congresso catequético nacional,
publicou vários livros sobre a formação cristã da
juventude, de tal forma que, em 1880, após apenas
quatro anos de atividade episcopal, as crianças que
aos sábados e domingos freqüentavam as lições de
catecismo eram 34.430, e quase 5.000 os catequistas
que as acompanhavam!
Com muito acerto, escreve uma testemunha
ocular: “O mais belo era ver o jovem prelado fazer-se
pequeno com os pequenos, entrar em cada sala de
aula, sentar-se entre as crianças, interrogá-las e
congratular-se com elas pelos progressos que faziam
com sua diligência na aprendizagem da doutrina
cristã”. Uma pessoa amiga, que morava em Gênova,
descreve uma visita que fez ao bispo de Piacenza:
“Tendo ido visitar D. Scalabrini, encontrei todas
as salas do vasto palácio episcopal cheias de
jovens. O próprio bispo, auxiliado pelo vigário
geral e pelo professor de teologia do seminário,
ensinava o catecismo aos alunos das escolas
públicas. Uns vinham às quintas-feiras, e outros,
aos domingos. Ministrava-lhes uma verdadeira
aula de religião, iniciando dos primeiros
rudimentos. Permitia-lhes levantar qualquer
objeção, e quando não respondia na hora,
reservava a solução para quando o permitisse
a seqüência das lições.”
- 30 -
Ele mesmo se esforçava para praticar o que pedia
aos catequistas: “Os vossos pequenos alunos devem
perceber que vós os amais. Mais do que de qualquer
outra coisa, eles precisam da ternura que nasce da
piedade. Fazei-vos pequenos com eles; não repareis
em suas leviandades ou na sua indocilidade;
compadecei-vos de suas grosserias e de sua
dificuldade em aprender o que ensinais. Jamais vos
mostreis cansados ou enfastiados com eles!”
A catequese devia preparar para a vida concreta,
em todos os seus níveis: social e econômico, cultural
e político, familiar e individual. Dizia, com efeito:
“Educar a criança é fazer com que sua alma palpite
às palavras: Deus, pátria, liberdade, igualdade e
fraternidade, como as consagra o Evangelho! “
E noutra ocasião: “Muitos afirmam: ‘A civilização
atual pede uma coisa ao homem religioso, e outra ao
homem político’. Não! Dividir o homem em dois é
loucura, sofrimento, hipocrisia e covardia! Na vida
política e social, o homem não pode refletir no exterior
senão o que vive dentro. Jesus Cristo não ensinou
dois tipos de moral, uma pública e outra particular,
uma para o homem de família e outra para o homem
de negócios. Algum dia, aliás, ele nos pedirá contas
de acordo com o seu Evangelho, que é o seu código
único, imutável e eterno, de todos os nossos
pensamentos, palavras e atividades particulares e
públicas, religiosas e civis!”
Fazemos nossa, por isso, a opinião do Pe. Sílvio
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Riva, reconhecida autoridade na catequese italiana
atual:
“Entre os apóstolos da educação, deve ser lembrado com particular reconhecimento o bispo
Scalabrini. Eu o chamaria Doutor da Catequese,
no sentido eclesiástico que o termo costuma
significar. A história da catequese na Itália está
lhe reivindicando o título de pioneiro das
melhores propostas catequéticas atuais. Seu
nome e sua obra se juntam aos de S. Pio X,
enquanto ofereceu ao grande pontífice, no
momento de se codificar a legislação
catequética, um patrimônio de experiências, de
normas pastorais e de precisas conclusões que
se alastraram, mais tarde, por toda a Igreja
católica.”
“...a mais bela consolação que um
bispo pode receber é conhecer de
perto os seus amados filhos e por eles
ser conhecido! Viremos até vós para
vos incentivar à prática das virtudes
cristãs: a piedade, a concórdia e a paz;
para levantar nossa voz na defesa dos
oprimidos; para ser o amparo dos
pobres e o consolador dos aflitos; para
acolhe r os tra nsviados e u nir as
lá grim as d a consolação às do
arrependimento, decidido a sacrificar
por vós não só a nossa comodidade, o
nosso sossego e o nosso descanso,
mas também a nossa própria vida!...”
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ENVIADO AOS POBRES
Pode ser que D. Scalabrini não tenha conseguido
descobrir e desvendar, pelo menos tanto como faz
hoje a teologia da libertação, o ponto de discernimento
que separa os filhos do Reino dos adeptos do antiReino, o mundo de Deus do mundo pelo qual Cristo
não quis rezar (Jo 17,9). Para Deus, essa linha
divisória é o encontro, ou desencontro, com o pobre,
o desvalido, o menor, o último: “Cada vez que o
fizestes (ou deixastes de fazer) a um desses meus
irmãos mais pequeninos, foi a mim que (não) fizestes!”
(Mt 5,40.45).
Na prática, porém, cada página de sua existência,
desde a juventude, está aberta para o outro. Não
separava o amor a Deus do amor ao homem. Uma
norma de vida era: “Fazer feliz uma só pessoa é mais
importante do que ser feliz!” Repetia convicto: “Que
maior alegria pode haver do que ir ao encontro dos
pobres, orientar os simples, libertar os oprimidos,
enxugar as lágrimas dos aflitos, salvar as almas, fazer,
enfim, um pouco de bem?!”
Para ele, as necessidades convertiam-se em apelos, que não o deixavam ficar de braços cruzados.
Ficou famosa na história de Piacenza a estiagem de
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1879, durante os meses de junho, julho e agosto,
seguida por um longo e terrível inverno. O que uma
não conseguiu arruinar, o outro se encarregou de o
fazer. Sua generosidade não conheceu limites. Ele,
que gostava de afirmar: “Quem dá a Deus dez, recebe
de volta cem”, tocou com as mãos os frutos da
caridade e da Providência divina. Com o exemplo de
sua renúncia pessoal e com o auxílio de muita gente
boa, a partir de dezembro de 1879, conseguiu distribuir
aos milhares de agricultores empobrecidos que
corriam para a cidade em busca de comida, mil
refeições diárias, que foram crescendo até chegar a
quatro mil, em fevereiro seguinte.
Quando nada mais tinha para dar, vendeu os cavalos
da carruagem e um precioso cálice que recebera do
papa Pio IX. A quem o criticava dizendo que estava
exagerando, retrucava: “À casa dos pobres o bispo pode
ir a pé, como Jesus, que andava a pé por entre as míseras
populações da Galiléia e da Judéia. E quando o povo
sofre a fome, na celebração da missa, Deus prefere
cálice de latão a cálice de ouro ou de prata...”
Houve até um deputado, esquerdista, que não teve
vergonha de dizer em pleno Parlamento romano:
“Não podemos permitir que o bispo de Piacenza
tenha mais coração do que nós! Este bispo distribui
diariamente mil sopas aos pobres. Eu não sou muito
réu de clericalismo, mas confesso que admiro esse
padre; aliás, se todos os padres se assemelhassem a
ele, até eu me faria clérigo!...”
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Para João Batista, os bens pertencem a Deus, e
só têm valor se colocados a serviço da caridade. Dizia:
“A verdadeira fraternidade não pode suportar que,
enquanto uns sofrem desconsolados, outros se
acomodem e assistam indiferentes”. Tudo o que
recebia passava adiante. Julgava melhor desfazer-se
de tudo agora, por amor, do que mais tarde, na hora
da morte, por obrigação... De fato, em 1883, quando
um pavoroso terremoto destruiu vasta região no sul
da Itália, doou até mesmo a cruz peitoral de ouro,
recebida do papa Pio IX, explicando: “De minha parte,
dou o que de mais precioso me resta, a cruz peitoral
de ouro que me presenteou Pio IX. Estou convencido
de não poder interpretar melhor o coração do santo
Pontífice do que empregá-la no alívio de tão grande
número de pessoas!”
Sempre os fatos falam mais do que as palavras;
por isso, trazemos vários deles, que nos delineiam a
estrutura humana, moral e espiritual do santo bispo.
Narra um sacerdote que com ele convivia: “O
ecônomo da casa vivia seriamente preocupado. Certo dia, encontrei-o todo abatido na sala de espera do
bispo. Levando-me a um canto, sussurrou-me: ‘Sabe,
ontem entreguei ao bispo o dinheiro do semestre e
hoje - hoje, compreende?! - ele não tem mais nada!’
Noutra ocasião, o padre tomou coragem e lhe falou:
‘Se Vossa Excelência continuar desse jeito, acabará
morrendo sobre a palha!’ E o bispo, sorrindo com
bondade: ‘Caro padre, não seria nada extraordinário
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um bispo morrer sobre a palha quando se sabe que
Jesus a escolheu como berço!’ “
Entre os prediletos de seu coração, estavam os
presos, os doentes e os surdos-mudos. Escrevia,
certa ocasião: “A situação comovedora desses jovens
surdos-mudos me vinha freqüentemente à mente,
desde 1879. Naquele inverno extremamente rigoroso,
descobriu-se um deles quase morto de frio, perdido
em meio aos campos e à neve de Carpaneto. Levado
à cidade, depois de se lhe ter tratado os pés e as
mãos cobertos de frieiras, as autoridades, não
sabendo onde deixá-lo, puseram-no na cadeia, onde
ficou por vários meses. Certo magistrado de então,
após ler a minha carta pastoral sobre os surdosmudos, veio conversar comigo para ver o que eu podia
fazer por ele. Respondi: ‘Tragam-no aqui, e ficará
comigo, em minha casa!’ “
Em se tratando da Igreja, tinha a sua opinião
formada sobre o uso dos bens: “Dos bens terrenos, a
Igreja apenas precisa do que é necessário, ou útil,
para promover com liberdade e independência a
difusão dos bens eternos!” Esse radicalismo ia mais
longe quando se referia aos religiosos. “Numa casa
religiosa de Piacenza não se observava muito o voto
de Pobreza. D. Scalabrini sofria diante de Deus, e não
se cansava de dirigir exortações paternas a respeito.
O mal, porém, não cessava. Certo dia, pedem-lhe
para dirigir-se a essa casa, onde encontra toda a
comunidade em prantos: ‘Veja, Excelência, a que nos
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reduziu o incêndio desta noite!’ A resposta não se fez
esperar: ‘Acendam logo as velas na igreja; vamos
louvar o Senhor! Não há motivos para lágrimas, mas
para bendizer a Deus que, com este incêndio, sanou a
casa de vocês ... ‘ “
Logo após fundar a Congregação dos Missionários
de São Carlos, um monsenhor pediu para nela
ingressar. Mas não se esqueceu de perguntar pelas
garantias que o novo instituto lhe ofereceria... O
Fundador respondeu imediatamente:
“Quem tem verdadeira vocação, ingressa sem
preocupações com o futuro, bem sabendo que
está nas mãos de Deus. Entregar-se a ele com
toda a simplicidade é muito mais importante do
que buscar quaisquer garantias de estabilidade
moral e econômica do Instituto!...”
Grupo de leigos, padres, irmãs, formandos(as)
em missão com brasileiros no Paraguay
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UM BISPO REVOLUCIONÁRIO
O verdadeiro cristianismo é sempre revolucionário.
E se não o fosse, nem seria cristianismo! A época de
D. Scalabrini é uma época de grandes transformações
sociais e culturais. E a Igreja, anticonformista por
natureza, é simultaneamente fonte e vítima das
tensões que acompanham a humanidade. Sua
missão, de acordo com o bispo de Piacenza, não se
esgota na sacristia:
“É erro acreditar que a religião não imponha
deveres que ultrapassem o pequeno círculo da vida
privada, e que nada tenha a ver com as relações do
indivíduo com a sociedade. O catolicismo não é
apenas a verdade religiosa; é a verdade completa, ou
seja, a verdade econômica, política e social”.
Uma das principais crises do momento era a
questão social. No dia 4 de maio de 1886, o mundo
se comoveu com o massacre de Chicago, ocasião
em que foram mortos pela polícia 80 operários,
apenas por se manterem fiéis à proclamação publicada no dia 19: “A partir de hoje ninguém deve trabalhar
mais de oito horas por dia: oito horas para o trabalho;
oito horas para o descanso; e oito horas para a
educação!”
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Não se pode negar: a Igreja oficial tinha uma visão
do problema bastante conservadora e paternalista.
Mais do que apresentar ou buscar uma terceira via ao
capitalismo e ao marxismo, parecia contentar-se em
combater seus erros... Finalmente, em 1891, o papa
Leão XIII publicou a encíclica Rerum Novarum, que
recebeu o apoio incondicional de João Batista:
“Leão XIII não se limitou a pregar a caridade
aos ricos e a resignação aos pobres. É uma
obra de justiça que se deve iniciar, se se quer
restituir a confiança à classe operária, e, com a
confiança, a tranqüilidade. Se os trabalhadores
têm deveres, têm também direitos, e esses
direitos precisam ser tutelados pela sociedade,
se não quisermos que eles próprios tenham que
defendê-los com a violência! Justiça e caridade:
justiça para todos e caridade com todos, este o
programa de Leão XIII!”
Aliás, o bispo, que só se sentia compromissado
com a justiça e o bem do povo, não tinha medo de
continuar:
“O nosso objetivo não é fazer política, no sentido que querem dar a entender os nossos adversários. Queremos, isso sim, nos dedicar antes de tudo à renovação moral, sem contudo
esquecer as necessidades de ordem
econômica que responderam às legitimas
aspirações, sobretudo da classe operária! Até
hoje, os aproveitadores do povo humilde não
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fizeram senão magníficas promessas, que
nunca passaram de letra morta! Prometeram
pão e justiça, e o povo continua sem pão e sem
justiça!”
Para melhor entender seu pensamento social e
político e como queria a atuação da Igreja no contexto
histórico em que se insere, trazemos uma página
bastante longa de seu escrito de 1891: O Centenário
de S. Luís Gonzaga, que, em grande parte, não passa
de uma reflexão sobre a encíclica Rerum Novarum:
“Avante, pois, com as máquinas, as indústrias,
as descobertas e as conquistas da ciência! Que
a preço de longas fadigas o homem progrida e
tente melhorar em toda a parte e sob todas as
formas a condição da existência humana! Tudo
bem! Eu me alegro de todo o coração, porque tudo
isso não é senão glorificar a obra de Deus.
O que pedimos nós, homens da igreja, porém é
que o Evangelho seja chamado a dirigir as
transformações econômicas e indutriais , e que
a prática sincera de sua lei purifique e enobreça
o progresso material, de sorte que não
fomentem nas várias classes os instintos brutais, origens de discórdias e de lutas fratricidas!
Compete precisamente a nós, homens da Igreja, esta missão de paz e de regeneração social;
mais do que aos outros, a nós que recebemos
de Deus os meios e o mandato para tanto. Eu
quisera que o entendessem todos os membros
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do meu clero! Em nossos dias é quase impossível reconduzir a classe operária à Igreja se
não mantivermos com ela um relacionamento
constante fora da Igreja! Devemos sair do
templo se quisermos exercer uma ação salutar
no templo!
Precisamos ser homens de nosso tempo,
vivendo a vida do povo, aproximando-nos dele
com a imprensa, as associações, as equipes,
os círculos operários, os patronatos para
crianças, enfim, com toda a espécie de
beneficência privada e pública! Meus amigos,
o mundo caminha, e nós não podemos ficar
para trás por certas dificuldades formalísticas
ou por ditames de uma prudência malentendida! Se não se fizer conosco, se fará sem
nós e contra nós!”
Uma Igreja viva e participativa, era o que ele
sonhava e desejava. Em 1896, numa carta pastoral
sobre o que se deve entender por ação católica na
sociedade, repisava e completava os conceitos de
sempre:
“Não nos iludamos: se não agirmos nós, agirão
os outros, sem nós e contra nós! Talvez nos
possam acusar de agirmos por objetivos
escusos e por finalidades interesseiras; antes
de a nós, porém, essa acusação foi dirigida
contra Jesus Cristo, que, apesar de ensinar que
se desse a César o que é de César, foi condenado como agitador do povo. Fazer o próprio
- 42 -
dever e ficar em paz com todos é simplesmente impossível!
Precisamos nos convencer cada vez mais que
hoje já não é suficiente o que era antigamente.
Para tempos novos, técnicas novas; para
chagas novas, remédios novos; para novas artes de guerra, novos sistemas de defesa!
Hoje em dia, como já vos disse noutra ocasião,
é preciso que o sacerdote, principalmente o pároco, saia do templo se quiser exercer uma ação
salutar no templo! Contudo, devemos nos
entender bem: saia do templo depois de ter buscado luzes e forças na piedade e na oração;
saia do templo, mas conserve o olhar sempre
voltado para o templo; saia do templo como o
sol de seu pavilhão: esplêndido da luz de Deus
e do fogo da caridade que ilumina, aquece e
fecunda!”
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Audiências Públicas sobre o
fenômeno migratório em Porto Alegre - RS
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CONGREGAR NA UNIDADE OS FILHOS
DE DEUS DISPERSOS
Todos os santos, que são os únicos verdadeiros
cristãos, têm como ideal de vida a comunhão. João
Batista Scalabrini não fez exceção à regra. Foi o que
compreendeu outro santo, Luís Orione, que assim
sintetizou a atuação do amigo de Piacenza:
“D. Scalabrini era um homem que procurava
entrar no campo adversário salvando o essencial e cedendo tudo quanto podia, no intuito de
ganhar os ânimos e realizar o máximo bem
possível. Eu explicaria sua atuação com estas
palavras: ‘Entrar com a deles para sair com a
nossa!’ Era uma pessoa que não perdia ocasião de fazer de si mesmo uma ponte, com o
santo objetivo de conciliar e unir firmemente os
filhos do Pai comum dos fiéis. Ao invés de se
fixar nas aparências, mirava a alma das coisas,
lutando para extirpar quanto de sectário afligia
os seus tempos.”
Não era fácil para ninguém acertar o caminho a
seguir quando se tratava de conciliar o que parecia
inconciliável. A Igreja fora colocada no escanteio!
Depois de uma série de desencontros e de lutas, em
- 45 -
20 de setembro de 1870, perdera o pouco que ainda
sobrava dos antigos Estados Pontifícios. Ressentida,
fechara-se em si mesma, e passou a ver adversários
em todos quantos não sintonizassem com suas
opiniões políticas, culturais e sociais. O fosso que a
separava da sociedade leiga parecia aumentar
indefinidamente. De um lado o governo, manipulado
pela maçonaria, dilapidava seus bens e perseguia seus
membros; de outro, a autoridade pontifícia condenava
e excomungava. Já não se podia ser,
simultaneamente, católico e italiano!
A oposição mútua chegou a tanto que, já em 1861,
o episcopado italiano tinha adotado como norma e
prática política o princípio: “Nem eleitos nem
eleitores!” Já que o governo mandava e desmandava
a seu bel-prazer, roubando, caluniando e prendendo
quem lhe fazia oposição, os católicos foram proibidos
de votar e de ser votados!... Em 1871, logo após a
tomada de Roma, a Santa Sé fez sua a proibição,
com o famoso decreto: “Non expedit: não é
conveniente”, que em 1886, passou a significar:
”Non licet: não é permitido!”
Não é que D. Scalabrini tentasse servir a dois
senhores ou acender uma vela a Deus e outra ao
diabo... Mas jamais aceitou a dicotomia, a oposição
sistemática e a luta que muitos, inclusive eclesiásticos, achando-a natural, chegavam a incentivar!
A solução era participar. A omissão não leva a nada!
Era o que dizia em 1887 ao amigo Jeremias Bonomelli,
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bispo de Cremona, comentando um abaixo-assinado
que organizações católicas pretendiam endereçar ao
Parlamento italiano pedindo uma aproximação com o
Vaticano: “É algo deveras curioso: primeiro, os
católicos devem ficar fora do Parlamento; depois,
promovem-se e apóiam-se abaixo-assinados a esse
mesmo Parlamento! Se isso é coerência, então eu
não entendo mais nada!”
Sua filosofia política está sintetizada numa carta
pastoral que enviou ao povo de Piacenza, em 1882:
“Hoje não é mais possível ficarmos acomodados em nossas casas, suspirando ou
chorando, quando o fogo da descrença se dilata
e ameaça destruir a fé de nossa terra. Saiamos
de nossas tendas, mas lembrados de que não
temos outras armas senão a fé e a caridade!
Com estas armas, ingressemos na vida
pública, de acordo com o que as leis civis e a
consciência de católicos nos consentem, sem
olharmos para facções políticas, dispostos a
morrer antes de pactuar com a falsidade e a
injustiça! Ingressemos na vida pública, não
como inimigos do poder constituído, mas como
incansáveis adversários do mal, onde quer que
se encontre! Ingressemos como homens da
ordem, que sabem, a exemplo de Cristo e da
Igreja, tolerar o mal, se for preciso, sem jamais
aprová-lo ou praticá-lo! É preciso participar da
vida pública, servindo-se de todos os meios
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lícitos, para o triunfo da verdade e da justiça!”
O fato de ter assumido uma posição clara, firme e
totalmente aberta ao diálogo com o mundo lhe criou
muitas dificuldades com lideranças da Igreja e da
sociedade italiana, inclusive com o próprio papa Leão
XIII, do qual dizia a Jeremias Bonomelli em 1886:
“Escrevi-lhe mais vezes, e sempre forte e alto, talvez
até demais! Cheguei a dizer-lhe que em breve terá
que apresentar-se diante de Deus, ao qual deverá
prestar contas da multidão de almas que se vão
perdendo; falei-lhe também dos danos imensos que
está causando aos bispos, que já não têm liberdade
nem de palavra nem de ação...”
Com muita razão, em 1968, recebendo em audiência um grupo de missionários scalabrinianos, o
papa Paulo VI reconheceu em João Batista Scalabrini
o apóstolo da conciliação, afirmando:
“Vocês me oferecem uma ocasião propícia de
render homenagem à memória de seu Fundador. Célebre por algumas posições que, podemos dizer, anteciparam os acontecimentos da
história dos católicos na Itália, teve pontos de vista
particulares, então muito discutidos, mas de
longo alcance, quanto à posição do papado no
Estado italiano, e à participação, na época
proibida, dos católicos na vida pública da nação.
Jamais aprovou a fórmula em vigor: “Nem
eleitos, nem eleitores!” Se isso lhe valeu grandes discussões, também lhe valeu o mérito de
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ter intuído qual devia ser a posição dos católicos
em nosso país!”
Outro santo que reconheceu os méritos de João
Batista nesse campo foi Luís Guanella, seu colega no
seminário de Como. Deixou escrito mais tarde: “A Igreja
é como um exército; se uns pertencem à vanguarda,
outros estão na retaguarda! João Batista Scalabrini
ficou na vanguarda - mas sempre com o papa!”
“Sempre com o papa”, pois, para ele, a unidade
eclesial estava acima de tudo. Era ela que lhe fazia
repetir: “Precisamos fazer conhecer ao papa o
verdadeiro estado das coisas!” De fato, jamais a
identificou com a omissão, o silêncio e o passivismo.
Como bispo, sentia-se responsável por todas as
Igrejas. Em todo o caso, vendo no papa o centro e o
sinal da unidade da Igreja, não media suas palavras,
que, aliás, brotavam do fundo do coração, quando
reafirmava sua adesão ao Pontífice romano:
“Será sempre nosso orgulho pensar em tudo e
sempre como o papa, julgar como ele, sentir como
ele, agir como ele, sofrer com ele, combater com ele
e por ele! Considerar-nos-emos felizes se pudermos
dar o sangue e a vida pela sua causa, que é a causa
de Deus!”
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O APELO NA
ESTAÇÃO FERROVIÁRIA
Desde pequeno, João Batista conviveu com o
grave problema que afetava a maior parte dos países
europeus de seu tempo: a emigração em massa de
milhões de trabalhadores que buscavam melhores
condições de vida na América. Só da Itália e apenas
durante o seu episcopado (1876-1904), saíram
7.861.000 pessoas, sem contar os clandestinos.
Através de seus vários escritos sobre o problema, um
dos mais graves da atualidade, segundo ele próprio
reconhecia, teremos a ocasião de conhecer de perto
alguns de seus aspectos mais dolorosos.
Comecemos com o que se poderia denominar a sua
vocação ao novo serviço na Igreja.
“Há vários anos, assisti em Milão a uma cena
que me deixou na alma um sentimento de profunda tristeza. Passando pela estação, vi o
salão, os pórticos laterais e a praça vizinha tomados por trezentas ou quatrocentas pessoas
mal vestidas, divididas em diversos grupos. Sobre suas faces bronzeadas pelo sol e sulcadas
pelas rugas precoces que a penúria sói imprimir, transparecia a agitação dos sentimentos
- 51 -
que invadiam seus corações naquele momento.
Eram anciãos curvados pela idade e pelas fadigas; homens na flor da idade; senhoras que
arrastavam os filhinhos atrás de si, ou os carregavam ao colo; meninos e meninas, todos
irmanados por um só pensamento e guiados a
uma única meta.
Eram emigrantes. Pertenciam às várias províncias da Alta Itália, e com trepidação esperavam o trem que os levaria às praias do Mediterrâneo, donde zarpariam para a longínqua
América, com a esperança de terem menos
hostil a fortuna e menos ingrata a seus suores
a terra. Partiam, os pobrezinhos: uns chamados
pelos parentes que os haviam precedido no
êxodo voluntário; e outros, sem saber para onde, levados pelo poderoso instinto que faz migrar as aves. Iam para a América, onde tantas
vezes o ouviram dizer, - havia trabalho bem
remunerado para qualquer pessoa de braços
fortes e de boa vontade. Com lágrimas nos
olhos, tinham-se despedido do torrão natal, que
os ligava a si por numerosas e doces
lembranças. Mas sem remorso abandonavam
a pátria, que apenas lhes era conhecida sob
duas formas odiosas: o recrutamento e a cobrança dos impostos! Pois, para o deserdado,
a pátria é a terra que lhe garante o pão; e lá,
bem longe, esperavam consegui-la menos parcimonioso e menos custoso.
- 52 -
Parti comovido. Uma onda de sentimentos
tristes me invadia o coração. Quem sabe quantas desgraças e privações - pensava comigo
mesmo - tiveram de suportar para lhes afigurar
leve um passo tão doloroso! E quantas ilusões,
quantos novos sofrimentos lhes reservava o
futuro incerto! Quantos deles, na luta pela vida,
sairiam vitoriosos?! Quantos não sucumbiriam
no burburinho das cidades ou no silêncio das
planícies desertas? E para quantos, mesmo
achando o pão do corpo, não faltaria o pão da
alma, não menos necessário do que o primeiro,
e perderiam, numa vida totalmente materialista,
a fé de seus pais?!
Desse dia em diante, surpreendi-me muitas vezes com o pensamento voltado para esses infelizes, e aquela cena me traz à mente outra
não menos dolorosa, não vista mas entrevista
pelas cartas dos amigos e pelos relatórios dos
viajantes. Eu os vejo desembarcarem numa
terra estranha, em meio a um povo que lhes
fala uma língua incompreensível, vítimas fáceis
de explorações desumanas; vejo-os banhar
com seu suor e com suas lágrimas um sulco
ingrato e uma terra que exala miasmas
pestíferos; alquebrados pelas fadigas e consumidos pela febre, suspiram inutilmente pelo céu
da pátria distante e pela antiga pobreza da casa
paterna; e, finalmente, sucumbem sem a
amizade dos entes queridos que os consolem
- 53 -
e sem a palavra da fé que lhes aponte o prêmio
prometido por Deus aos bons e aos oprimidos.
E aqueles que triunfam na rude batalha da vida,
ei-los no isolamento, esquecidos totalmente de
qualquer princípio sobrenatural e de qualquer
preceito da moral cristã, e, perdendo dia após
dia o sentimento religioso, que já não é
sustentado pelas práticas de piedade, acabam
permitindo que os instintos brutais substituam
as aspirações mais elevadas!
Ante tão deplorável estado de coisas, pergunteime freqüentemente: que solução se deve
buscar? Quando leio nos jornais, circulares do
governo alertando as autoridades e o público
contra as artimanhas de certos agenciadores que
recrutam verdadeiras caravanas de escravos
brancos para levá-las longe da terra natal, como
instrumentos cegos de uma cobiça desregrada,
com a miragem de lucros fáceis e abundantes;
quando constato, pelas cartas dos amigos e
pelos relatórios de viagem, que os párias dos
emigrantes são os italianos; que as tarefas mais
vis - se é que pode haver vileza no trabalho! são executadas por eles; que os mais
abandonados e, por isso mesmo, os menos
respeitados, são os nossos compatriotas; que
milhares e milhares de nossos irmãos vivem
quase desprotegidos pela mãe-pátria, objeto de
prepotências quase sempre impunes, sem o
conforto de uma palavra amiga, então, confesso- 54 -
o, sinto o rubor da vergonha aquecer-me a face,
sinto-me humilhado na minha condição de
sacerdote e de italiano, e me pergunto
novamente: que fazer para socorrê-las?!
Não faz muitos dias que um nobre e jovem
viajante me trazia a saudação de várias famílias naturais das montanhas de Piacenza, residentes nas margens do Orenoco: “Diga ao
nosso bispo que sempre lembramos dos seus
conselhos, que reze por nós e que nos mande
um sacerdote, porque aqui vivemos e morremos como bichos!” Essa saudação de filhos
distantes me soou como admoestação, e a pergunta que me fiz seguidamente concretizou-se
nestas considerações que agora passo ao
público, e que fui escrevendo à medida que nasciam do coração. Chamo sobre elas a atenção
do clero italiano, do laicato católico e de todos
os homens de boa vontade, já que a caridade,
verdadeira trégua de Deus, não conhece
partidos, e o sangue de Jesus Cristo a todos
nos irmana numa só fé e numa única esperança,
e de todos nos torna devedores!”
- 55 -
- 56 -
ROUBAR OU EMIGRAR!
A revolução industrial, junto com o enriquecimento
da elite social, também trouxe a miséria para vastas
parcelas da sociedade. Os campos começaram a se
esvaziar. A máquina passou a substituir o homem, que
se sentia cada vez mais instrumentalizado e oprimido.
Valia pelo que produzia. Para muita gente, a emigração
se apresentava como a única alternativa. Escutemos
novamente a palavra do apóstolo dos migrantes:
“É de todos conhecido o provérbio: “A fome é
má conselheira!” Quem poderia conter um povo que freme sob as convulsões do estômago,
se não houvesse a esperança de encontrar
alhures o pão cotidiano? Ê fácil, portanto, responder aos que, impressionados com os males causados pela emigração, perguntam ingenuamente: “Por que tanta gente emigra?” A
emigração, na quase totalidade dos casos, não
é um prazer, mas uma necessidade inevitável.
Sem dúvida, há entre os emigrantes também
maus elementos, vagabundos e viciados;
constituem, contudo, a minoria. A imensa maioria, para não dizer a totalidade dos que deixam
a pátria para dirigir-se à longínqua América, não
- 57 -
pertencem a essa espécie; não fogem da Itália
por desprezarem o trabalho, mas porque é este
que lhes falta, e não sabem como viver e manter
a família. Um homem excelente e cristão
exemplar de um lugarejo das montanhas, onde
eu me encontrava há vários anos em visita
pastoral, apresentou-se a mim pedindo a
bênção e uma piedosa lembrança para si e para
os seus, de partida para a América. Às minhas
observações, ele retrucou com este dilema, tão
simples quanto doloroso: ‘Ou roubar ou emigrar!
Roubar, não devo nem quero, porque Deus e a
lei o proíbem; ganhar o pão para mim e para os
filhos aqui é impossível. Que fazer, então?
Emigrar é a única saída que me resta!’ Nada
pude acrescentar...”
A emigração reflete os erros de uma humanidade
que teima caminhar à margem da fé e do amor. Ao
invés da partilha, da justiça e da comunhão, que
caracterizam o plano divino, o progresso sem Deus
leva o homem ao abismo do consumismo, do
individualismo e da ambição. E nesse jogo sujo de
interesses mesquinhos, a corda sempre arrebenta do
lado mais fraco! É o que, com outras palavras, já
escrevia o bispo de Piacenza em 1898:
“Tudo conspira contra o migrante. Freqüentemente, suas desgraças começam ainda antes
de deixar sua humilde habitação, sob as vestes
do agente de emigração que o força a partir,
- 58 -
fazendo resplandecer diante dele uma
conquista fácil de riqueza, envia-o para onde lhe
agrada e convém, e não aonde o interesse do
emigrante exigiria. [...Muitas companhias de
navegação contratavam agentes de emigração,
pagando-os de acordo com o número de
emigrantes arregimentados. Na maioria das
viagens de navio transoceânica, eram dezenas
ou até centenas os mortos devido às péssimas
condições de higiene, é preciso lembrar que os
navios transportavam também os animais para
o abate...]. Tais desventuras o acompanham durante a viagem, muitas vezes desastrosa, e
continuam à sua chegada em regiões assoladas
por doenças terríveis, em atividades
inadequadas às suas capacidades, sob patrões
que se tornaram desumanos pela fome
insaciável do ouro ou pelo hábito de considerar
o trabalhador como um ser inferior. Assim, os
males recrudescem sob as mil ciladas que a
maldade lhes arma em países estrangeiros,
seja porque ignoram a língua e os costumes,
seja porque vivem num isolamento que, muitas
vezes, equivale à morte do corpo e da alma.
Poderia citar inúmeros fatos que demonstram
de quantas lágrimas é banhado e de quanta
amargura é repassado o pão dos emigrantes
que, levados para lá por vãs esperanças ou por
falsas promessas, foram ao encontro de uma
odisséia de infortúnios, do abandono, da fome,
- 59 -
e não raramente, da morte, quando esperavam
um paraíso; colorido pela miragem da
necessidade, pensavam ver o Eldorado, sem
lembrar que o simum violento da realidade
rompe num instante com as cidades encantadas dos sonhos. Infortunados! Abatidos pelas
fadigas, pelo clima e pelos insetos, caem
exaustos sobre a gleba fecundada por seus
suores, à margem das florestas virgens, que
souberam desbravar não para si nem para os
filhos, atingidos por essa doença fatal e gentil
que é a saudade, sonhando, talvez, com a pátria que não foi capaz de lhes dar nem mesmo
o pão, e invocando inutilmente o ministro da
sagrada religião de seus pais, para lhes suavizar
os terrores da agonia com as imortais
esperanças da fé!”
Apesar de reconhecer todas as facetas dolorosas
da emigração, principalmente quando forçada e sem
proteção nenhuma, D. Scalabrini percebia nela
também seus aspectos positivos, como o enriquecimento recíproco dentre os diversos povos e
culturas, e inclusive a propagação da fé:
“A emigração abre caminhos novos ao comércio, facilita a difusão das descobertas científicas
e industriais, funde e aperfeiçoa as civilizações,
e alarga o conceito de pátria para além dos
confins materiais, dando ao homem como pátria
o mundo. E há ainda outra razão, que é a
- 60 -
principal: assim como a antiga grandeza do
império romano foi preparada pelo Céu para
tornar mais fácil e rápida a difusão do
cristianismo, da mesma forma a emigração se
presta admiravelmente à propagação, em toda
a parte, do conhecimento de Deus e de Jesus
Cristo.”
Mas, para tanto, não era suficiente ver, julgar e
denunciar! D. Scalabrini sempre se caracterizou como
homem de ação. Se tinha em mente um vasto projeto
de promoção e evangelização dos migrantes, importava
começar a agir. Foi o que fez.
“Anualmente milhares de trabalhadores nordestinos deslocam-se
para São Paulo para o corte de cana-de-açúcar...”
- 61 -
- 62 -
A OBRA SCALABRINIANA
Se quisermos pensar numa data que assinale o
início da atividade do bispo de Piacenza em favor dos
emigrantes, poderemos colocar 1887. De fato, foi
precisamente nesse ano que publicou o primeiro, e
talvez o mais importante, de seus sete escritos
destinados, cinco deles, a conscientizar a opinião
pública italiana sobre as proporções do novo êxodo, e
dois, a propor algumas pistas concretas de
evangelização e de pastoral migratória, endereçados
respectivamente à sua congregação religiosa e à
Igreja.
Nesse mesmo ano, lançou as sementes de duas
organizações, uma religiosa e leiga a outra, que concretizassem e perpetuassem o seu amor pela nova
causa. Eis como ele próprio as apresentará, poucos
anos depois, numa conferência que pronunciará em
Roma:
“Sendo que os males da nossa emigração, além
dos já enumerados e inerentes a toda emigração, derivam do descaso em que é abandonada, e se resumem na perda da fé, por falta de
instrução religiosa; no esquecimento da nacionalidade, por falta de estímulos que a con- 63 -
servem viva; e na ruína econômica, pela facilidade com que cai nas malhas da especulação,
fundei duas sociedades que tivessem em mira
diminuir e destruir, se fosse possível, tais males. Duas sociedades compostas uma de sacerdotes e outra de leigos; uma religiosa e outra
civil; duas sociedades que se auxiliassem e se
completassem mutuamente.
A primeira é uma congregação de missionários
que busca principalmente o bem-estar espiritual dos nossos emigrantes; a segunda, sobretudo o seu bem-estar material. A primeira alcança seu objetivo fundando igrejas, escolas,
orfanatos e hospitais através de sacerdotes
unidos como uma família mediante os votos
religiosos de castidade, obediência e pobreza,
prontos a voar para qualquer lugar aonde são
enviados: como apóstolos, mestres, médicos
e enfermeiros, de acordo com as necessidades.
A segunda dissuade a emigração quando a percebe prejudicial e, se nada mais pode fazer,
vigia para que a atuação dos agentes não ultrapasse os limites da legalidade; por fim, orienta
e encaminha os emigrantes a um destino
melhor.”
Como se percebe, a estrutura e os objetivos das
duas organizações, sobretudo da segunda, precisam
ser vistos à luz do século passado, quando, na Igreja,
tudo girava em torno do sacerdote, e os leigos não
- 64 -
tinham ainda alcançado a sua autonomia... Com o
passar dos anos, porém, tanto a Congregação dos
Missionários de São Carlos como a Sociedade São
Rafael - estes os nomes com que serão batizadas definirão melhor suas metas, assumindo um campo
de ação mais adulto e eficaz.
A Congregação dos Missionários de São Carlos
nasceu no dia 28 de novembro de 1887. Naquele dia,
na Igreja de Santo Antonino, em Piacenza, o Fundador
recebeu o compromisso religioso dos padres José
Molinari e Domingos Mantese, que formaram a
primeira comunidade da nova congregação. No dia
12 de julho do ano seguinte, por ocasião da primeira
profissão religiosa, seus membros já chegavam a
doze. Nesse mesmo dia, dez deles foram enviados
ao Brasil e aos Estados Unidos como missionários
dos migrantes. Desta forma, o bispo via realizada,
numa forma talvez nunca antes imaginada, a antiga
vocação missionária.
A razão do nome dado à congregação foi explicada
pelo bispo em 1892, numa carta-aberta a seus
missionários:
“São Carlos, como já foi dito muito bem, era
um daqueles homens de ação que não
hesitam, não se dividem e não recuam
jamais; que em tudo o que fazem colocam
toda a energia da própria vontade, toda a
integridade de seu caráter, tudo o que são! E
vencem!”
- 65 -
Por sua vez, a Sociedade São Rafael nasceu na
Alemanha, em 1868, e, dentro de poucos anos, estava
ramificada em vários países europeus. Composta de
advogados, professores, médicos e outros voluntários,
tinha como objetivo a defesa e a promoção dos
interesses dos migrantes, principalmente nos portos
de embarque e desembarque, e nos países de
destino. Na Itália, chegou em 1887, quando João
Batista fundou em Piacenza uma espécie de filial, com
o nome de Associação de Patronato. Em 1891, já
estava instalada no porto de Nova lorque.
Para uma assistência mais completa aos migrantes, cujas necessidades se descortinavam cada
vez mais urgentes, já não eram suficientes uma
congregação masculina e uma sociedade leiga. O
próprio bispo o reconheceu em 1889, falando com um
grupo de irmãs:
“A ação dos sacerdotes não seria completa
sem a de vocês. Há coisas que somente vocês
podem conseguir. Deus infundiu no coração da
mulher uma força toda particular, que a leva a
exercer uma influência misteriosa nas mentes
e nos corações”.
Foi por isso que em 25 de outubro de 1895, por
sugestão do Pe. José Marchetti, diretor do Orfanato
Cristóvão Colombo, de São Paulo, completou a sua
obra fundando a Congregação das Irmãs Missionárias
de São Carlos Borromeu.
- 66 -
Tais fundações, porém, constituem apenas um
aspecto de sua ação desenvolvida na Igreja e na sociedade italiana. Simultaneamente, levou à frente,
junto às autoridades civis, toda uma gama de iniciativas visando uma legislação mais humana e eficaz
em favor dos emigrantes, sobretudo em 1888 e em
1901, quando o Parlamento foi chamado a legislar
sobre o assunto.
Durante os anos de 1891 e 1892, D. Scalabrini
visitou as maiores cidades da Itália, no intuito de
implantar em cada uma delas equipes locais da
Sociedade São Rafael.
Por fim, em maio de 1905, um mês apenas antes
de falecer, enviou à Santa Sé um longo documento
propondo a criação de um organismo do Vaticano,
encarregado de promover a pastoral migratória em
âmbito de Igreja universal, organismo ainda hoje
existente sob a denominação de Pontifícia Comissão
de Migrações e Turismo.
Para sermos um pouco mais completos, só nos
cabe acrescentar que, em 1962, a herança espiritual
do apóstolo dos migrantes se concretizou numa
nova fundação, a das Missionárias Seculares Scalabrinianas. Complementando a presença religiosa das
Congregações de São Carlos e atualizando a ação
da Sociedade São Rafael, revivem o aspecto leigo
da obra scalabriniana, tão insistentemente recomendado por João Batista Scalabrini.
- 67 -
“São Carlos, como já foi dito muito bem, era um daqueles
homens de ação que não hesitam, não se dividem e não
recuam jamais; que em tudo o que fazem colocam toda a
energia da própria vontade, toda a integridade de seu
caráter, tudo o que são! E vencem!”
- 68 -
A TERRA PROMETIDA DA IGREJA?
Desde 1892 João Batista tencionava visitar seus
missionários e os emigrados italianos nos Estados
Unidos e no Brasil. Contudo, a cada ano que passava,
os obstáculos mais diversos impediam, ou
retardavam, a efetivação desse anseio. Finalmente,
em 1901, conseguiu o tempo suficiente para dirigirse aos Estados Unidos. Partiu do porto de Gênova no
sábado, dia 20 de julho, junto com outros 1.200
emigrantes. No dia seguinte iniciava sua atividade
pastoral, que se estenderá até o dia 3 de agosto, data
de seu desembarque em Nova lorque. Escrevia então:
“Celebro a santa missa sobre a tolda, à vista do
mar muito tranqüilo. Assistem a ela recolhidos
todos os passageiros. É domingo. Não consigo
exprimir-lhes o que sinto! São impressões
celestiais, divinas! No momento da elevação da
hóstia, todos se comovem até às lágrimas!”
Diariamente, pelo espaço de uma hora, dava
catecismo a um grupo de jovens. No dia 28 de julho,
ministrou-lhes o sacramento da crisma e a primeira
eucaristia.
Sua permanência nos Estados Unidos se pro- 69 -
longou até 12 de novembro, inteiramente preenchida
por uma programação intensa e cansativa, mas rica
em frutos e bênçãos. De 19 a 24 de agosto, pregou
um retiro a sessenta sacerdotes italianos, no
seminário diocesano de Dunwoodie. Escrevia no
último dia:
“O Pe. Teodoro Paroli havia viajado duas noites
e dois dias, desde Nova Orleans; outros
viajaram quarenta e duas horas. Provinham de
quase todos os Estados, e representavam as
várias regiões da Itália. Falei sempre com
profunda emoção, e os bons padres estavam
mais comovidos do que eu! Vi vários chorarem
copiosamente. O fato é novo: um bispo italiano
que prega a sacerdotes italianos a 8.000
quilômetros da Itália! Eu exultava, e os padres
vibravam!”
Em 10 de outubro, teve uma audiência particular
com o presidente Teodoro Roosevelt. No dia 15,
recebeu uma homenagem da comunidade italiana de
Nova lorque no Catholic Club, onde pronunciou uma
conferência sobre a missão da América no mundo,
missão que, se aplicada a toda a América - do Norte,
Central e do Sul -, não deixa de ter atualidade também
hoje, sobretudo se se pensa no incremento do
catolicismo que os imigrantes europeus trouxeram aos
Estados Unidos, e no novo estilo de Igreja incentivado
pelas comunidades eclesiais de base da América
Latina:
- 70 -
“Mais de uma vez e com uma alegria que me
entusiasmava, admirei os grandes desígnios de
Deus sobre a América, a Terra Prometida da
Igreja católica! Dia virá em que nesta terra, se a
inércia, a ignorância dos caminhos de Deus, o
descanso sobre os louros conquistados, ou o
confronto de santas aspirações não desviarem
os povos do plano divino, todas as nações terão
gerações numerosas, ricas, felizes, sadias e
religiosas, as quais, mesmo conservando cada
uma as riquezas da própria nacionalidade,
viverão profundamente unidas!
Desta terra abençoada, surgirão ideais, amadurecerão princípios, desabrocharão forças novas e misteriosas, que regenerarão o Velho
Mundo e lhe darão o verdadeiro significado da
liberdade, da fraternidade e da igualdade; demonstrar-lhe-ão que povos diferentes pela origem podem conservar sua língua e suas características nacionais, unidos política e
religiosamente, sem barreiras que os dividam
e sem armamentos que os destruam uns aos
outros! Assim, com a América e pela América,
realizar-se-á o grande ideal do Evangelho: ‘Um
só rebanho e um só pastor!’ “ (Jo 10,16).
O Pe. Orestes Alussi, numa carta que escreveu a
um amigo no dia da despedida de seu Fundador, em
12 de novembro, assim descreve a permanência do
Bispo na América do Norte:
- 71 -
“Ele se deteve nos Estados Unidos três meses
e dez dias, e em tão breve espaço de tempo
pronunciou 340 discursos, crismou milhares de
crianças, viajou dia e noite por milhares de quilômetros, dormindo nos trens e mudando constantemente de leito, de alimento, de clima e de
hábitos. Contudo, entre tanta atividade, era visto
sempre contente e sempre gozando, graças a
Deus, de boa saúde, sinal evidente de que Deus
o queria na América para fazer o bem aos
italianos aqui radicados. E o conseguiu!
Precisamos agradecer a Deus de todo o
coração, porque a curta estada de D. Scalabrini
na América reergueu de muito o moral dos
emigrados, e todos, sem distinção nenhuma,
reconheceram nele um verdadeiro apóstolo e
um santo inteiramente dedicado à salvação das
almas!”
- 72 -
O PARAÍSO TERRESTRE
Os Estados Unidos eram apenas a primeira etapa
de outra viagem, bem mais difícil e aventurosa, que
seus missionários exigiam: a visita ao Brasil. Apesar
da idade que avançava e da atividade febril que levou
adiante nos anos de 1902 e 1903, para recuperar o
“tempo perdido” - como definia os três meses
passados na América do Norte -, em 1904, o bispo
dos migrantes julgou chegado o momento de conhecer
o Brasil e de, na Argentina, rever Pedro, o irmão que
não via há 36 anos. Os amigos e familiares recorreram
a todo tipo de expediente para dissuadi-lo, bem
sabendo das dificuldades de locomoção que o
esperavam em nosso país. Mas foi tudo inútil.
Começou a estudar a língua portuguesa e preparou
uma homilia em honra de Nossa Senhora, que
pronunciará no santuário de Nossa Senhora de
Caravaggio, no Rio Grande do Sul.
Desta vez, partiu de Nápoles, em 17 de junho, após
ter sido recebido pelo papa Pio X, que o encarregou
de representá-lo junto aos migrantes, e lhe prometeu
que todos os dias, às 7 horas da manhã, faria um
momento de oração em seu favor. Em sua companhia
viajava um grupo de padres e de irmãs de sua
- 73 -
Congregação, destinados às missões do Brasil.
Como fizera na primeira viagem, passou a se dedicar
inteiramente aos quinhentos emigrantes que viajavam
com ele, cem deles naturais da Turquia. Escrevia no
dia 19:
“É domingo. Pode-se dizer que hoje começou a
nossa missão. O navio parece transformado
num mosteiro. Celebro a missa e falo comovido,
comovendo os quinhentos passageiros. Como
o Evangelho se presta bem: o Mestre divino
instruindo, da barca, as multidões, e eu, sobre
a tolda, no meio do mar!... As palavras de Jesus
Cristo: “Faze-te ao largo!” (Lc 5,4) me inspiram
bons pensamentos. Mesmo sem o ser,
tornamo-nos eloqüentes! Muitas são as
pessoas que se aproximam da mesa sagrada.
É uma cena de paraíso!”
Após uma viagem de 20 dias, em 7 de julho
chegava ao Rio de Janeiro, acolhido pelo Arcebispo
Joaquim Arcoverde Albuquerque Cavalcanti.
Escrevia em seu diário de viagem:
“Deixei o navio para admirar a belíssima cidade
do Rio de Janeiro e seu porto grandioso, único
no mundo. Imaginem um braço do mar cheio
de ilhotas e cercado, por três lados, de montes
mais ou menos altos e, agora, no coração do
inverno, totalmente verdejantes e tomados por
casas e palácios e terão uma pálida idéia da
realidade! O arcebispo do Rio de Janeiro
- 74 -
recebeu-me com a cordialidade de um velho
amigo. No regresso, acompanhou-me até o
navio. Pareceu-me um homem inteligente e
equilibrado. Aqui no Rio de Janeiro é estimado
e amado por todos; ele, porém, lembra ainda
São Paulo, onde foi bispo durante muitos anos
e realizou um bem extraordinário.”
No dia 8, celebrou seu último aniversário na terra
durante a viagem para Santos, onde chegou ao
entardecer. No dia 9 de manhã subiu para São Paulo,
num trem especial, colocado à sua disposição pelo
governo paulista. Na capital, dezenas de amigos e de
autoridades civis e eclesiásticas estavam à sua
espera, tendo à frente o bispo local, José de Camargo
Barros. Entre eles, naturalmente, os primeiros eram
os seus missionários e missionárias, bem como os
orfãozinhos, garbosos por abrilhantarem a recepção
com uma poderosa banda. Como residência, ele
preferiu ficar no Instituto Cristóvão Colombo, ao lado
de seus filhos e filhas, declinando gentilmente da
oferta que lhe fizeram tanto o bispo paulistano como
o abade de São Bento. Com o primeiro, encontrou-se
poucos dias depois e, como fizeram com D. Joaquim,
tratou da assistência prestada - ou a ser prestada aos imigrantes italianos.
As primeiras impressões, como quase sempre
acontece, foram ótimas: “Trata-se de um lugar maravilhoso! Dir-se-ia que o paraíso terrestre devia, ou
podia, ser esse!...“ O que mais lhe interessava, porém,
- 75 -
eram as pessoas. Escrevia em 11 de julho:
“Os nossos bons missionários gozam de estima
e veneração em todas as camadas sociais,
tanto no clero como no laicato. Os dois orfanatos merecem realmente admiração. Seus 260
orfãozinhos edificam pela bondade, piedade e
educação. Destas duas casas, já saíram 810
jovens, formados e encaminhados a uma profissão. Os missionários seguem o regulamento da casa-mãe.
Tudo está bem e me dá grande consolo. Hoje
conferi as despesas: 980.000 liras, sem sequer
um centavo de dívida! É um milagre da Providência divina! De fato, sustentar trezentas
pessoas, incluindo missionários, irmãs, mestres de oficinas e de artes, sem afundar em
dívidas, só pode ser obra de Deus!”
Passou todo o mês de julho fazendo visitas a
autoridades, colégios e seminários, mas principalmente a comunidades e fazendas onde estavam os
seus migrantes, pelos quais tinha vindo ao Brasil. No
dia 30 escrevia de Rio Claro:
“Encontro-me cerca de 250 milhas ao norte de
São Paulo, visitando os nossos italianos que trabalham nas fazendas. Esta, onde me hospedo,
é uma das melhores. Seu proprietário é o conde
Prates, um bom católico. No centro da colônia
construiu uma capela, onde os italianos se
- 76 -
reúnem para a reza; a cada dois anos recebem
os sacramentos, por ocasião da visita de
nossos missionários. Agora que vejo como são
as coisas, devo reconhecer que eles são
verdadeiros heróis! Nestes dias estão quase
todos fora de casa, pregando e confessando, e
durante meses a fio passam de fazenda em
fazenda, com grandes sacrifícios. Se pudesse
dispor de uma centena de autênticos sacerdotes, quanta glória se daria a Deus e quanto bem
se faria a essas pobres almas abandonadas,
que quase alcançam a casa de um milhão!”
No dia 5 de agosto, após pregar um retiro a seus
missionários e missionárias, inaugurou a seção
feminina do Instituto Cristóvão Colombo, na Vila
Prudente, SP. No dia 9, partiu para o Rio de Janeiro,
com destino a Niterói, onde foi hóspede dos
salesianos, que haviam recebido ordens de seu superior, Pe. Miguel Rua, de o acolher e tratar com toda
a fidalguia.
No mês que transcorreu em São Paulo, além de
festas e aplausos, recebeu também dois violentos
ataques do jornal “O Estado de S. Paulo”, como vimos
desde o início. A resposta do bispo foi serena:
“Não tenho missão política de governo algum.
Minha missão é essencialmente religiosa. Uma
missão, digamos, política teria comprometido a
minha ação e dado margem a ressentimentos.
Aliás, detesto decididamente a política. Tenho
- 77 -
muitas outras coisas a fazer! Meu programa se
resume nestas exatas palavras: fazer todo o
bem que se pode sem causar transtornos a
ninguém! ...”
No dia 11 de agosto, João Batista deixou o Rio de
Janeiro, e precisou de seis dias para chegar a Curitiba,
numa viagem bonita, mas cansativa, primeiramente
de navio, até Paranaguá, e em seguida de trem.
Acolhido com alegria pelos missionários, montou seu
quartel-general em Santa Felicidade, donde visitava
diariamente as comunidades italianas vizinhas ou
distantes, inclusive até Ponta Grossa, na região do
Tibagi, onde conheceu os Índios. Eis como uma
testemunha ocular lembra o fato:
“O bispo limitou-se a visitar os primeiros povoados, apesar de desejar ir mais adiante. Lembro que, na ocasião, ele recebeu do cacique
como presente duas galhetas de metal para a
missa, que haviam pertencido aos missionários
jesuítas, expulsos da região pelo governo português, galhetas que o Servo de Deus ofereceu ao Santo Padre, Pio X. A visita alegrou a
tribo, e o cacique suplicou que intercedesse junto
ao Grande Sacerdote, o papa, para lhes
conseguir um missionário.”
O bispo escreveu imediatamente a Pio X, e em
outubro, nem bem um mês depois, enviou para Tibagi o Pe. Marcos Simoni, o primeiro sacerdote de
sua Congregação a se dedicar aos Índios.
- 78 -
Depois de quinze dias de permanência em Curitiba,
no dia 3 de setembro, embarcou em Paranaguá, e no
dia 10 estava em Porto Alegre. No dia 13, subiu o rio
Taquari e pernoitou em Estrela. Na manhã seguinte, a
cavalo, viajou a Encantado, a primeira paróquia
scalabriniana do Estado.
Sofrendo de hidrocele há muitos anos, a cavalgada
de 7 horas lhe foi um martírio, como reconheceu o
Pe. Domingos Vicentini, pároco da comunidade:
“De manhã, já estavam prontos os cavalos vindos de Encantado, com um numeroso séquito
de colonos para escoltá-lo. O bispo logo
entendeu o difícil caminho que o aguardava e o
tormento que enfrentaria pelo meio de transporte
que lhe era oferecido. Crucificado pelo mal que
o afligia, perguntou várias vezes se não havia
outro meio de locomoção, nem que fosse um
carretão qualquer. Ante a resposta negativa,
exclamou: ‘Pois bem, partamos em nome do
Senhor!’ ”
Ficou oito dias em Encantado. O Pe. Máximo
Rinaldi, coadjutor da paróquia e mais tarde bispo de
Rieti, na Itália, nos assevera que ele “se entregava a
uma atividade incessante, cansativa e desgastante,
tanto pelo clima quanto pelo meio de transporte.
Adaptava-se a tudo. Sempre sorridente e bemhumorado, mesmo à mesa, contentava-se com o que
lhe preparava o cozinheiro, que não era outro senão o
abaixo-assinado ... “
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De Encantado, sempre a cavalo, ou, de vez em
quando, quando as estradas se faziam impossíveis,
ou a dor causada pela hidrocele insuportável, carregado numa espécie de padiola ou puxado num carroção, passou a visitar praticamente todas as comunidades italianas da região: Coronel Pilar, Garibaldi,
Bento Gonçalves, Veranópolis, Nova Prata, Nova
Bassano, Caravaggio e Caxias do Sul. Em toda a parte,
multidões o aguardavam como se fosse o próprio
papa que chegava, e participavam extasiadas da
celebração da missa, que sempre constituía o ponto
alto da visita. Dizer do trabalho sobre-humano que
levou adiante durante o mês e meio que passou em
território gaúcho é-nos impossível! Em Veranópolis
crismou 4.951 pessoas, 2.153 delas num só dia...
Aproximadamente 15.000 jovens receberam de suas
mãos esse sacramento nas diversas comunidades
onde o administrou.
Por contratempos inesperados, só pôde partir de
Porto Alegre no dia 27 de setembro. No dia 29 escrevia
de Rio Grande:
“Em Porto Alegre, fui obrigado a demorar-me
quase oito dias. E aqui, quanto tempo deverei
esperar?! É uma grande pena! Mas paciência!
Vim por Deus, e por seu amor é preciso sofrer
pacientemente tudo, tudo!”
Desembarcou em Buenos Aires em 9 de novembro. Desde 1868 não via seu irmão Pedro, mas
ficou com ele apenas até o dia 11. A viagem de volta
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se prolongou por 24 dias. Chegou em Piacenza em 6
de dezembro, cansado e esgotado, mas feliz. Seis
meses após, porém, a doação com que levara à frente
os cinco meses transcorridos na América do Sul lhe
custaria a vida. Justa, por isso, é a observação do
Pe. Domingos Vicentini:
“Durante a sua viagem tão extenuante e a sua
estada nas colônias italianas, D. Scalabrini
emagrecera e parecera, às vezes, pálido. Na
viagem de volta, porém, parecia ter-se restabelecido por completo. Nem o organismo nem
a conversação demonstravam cansaço ou
esgotamento. Rico de novas experiências e
satisfeito pelos frutos colhidos por sua instituição, sonhava com metas maiores. Quem
teria, então, pensado que depois de aproximadamente seis meses a doença que o
martirizava havia sete anos o levaria ao
sepulcro?! É opinião comum que ele próprio,
pelos sofrimentos daquela viagem, tenha
contribuído para infortúnio tão doloroso. De
minha parte, nada sei. Mas, se assim fosse,
nós teríamos uma razão a mais para saudar
em D. Scalabrini o Apóstolo e Mártir dos
Migrantes.”
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ESTOU PRONTO, SENHOR,
PARTAMOS!
No dia 21 de janeiro de 1901, poucos dias antes de
celebrar suas bodas de prata de serviço episcopal na
diocese de Piacenza, João Batista Scalabrini escreveu
uma carta ao papa Leão XIII, resumindo o ideal de
vida que se esforçara para levar adiante até então:
“Sinto-me contente em abrir meu ânimo aos pés
de Vossa Santidade, principalmente nessa ocasião. Se olho para as obras realizadas por entre
não poucas dificuldades, tenho grandes motivos
de me alegrar no Senhor; mas se, com o
pensamento, penetro na profundidade do meu
espírito, não vejo senão matéria de remorso pelo
muito que não fiz, ou que não fiz bem. De uma
só coisa, porém, posso assegurar-vos,
Beatíssimo Padre: em todas as circunstâncias
jamais tive em mira senão a glória de Deus e a
salvação das almas a mim confiadas.”
Certamente, podemos acreditar na sinceridade e
na verdade das palavras do santo bispo que, consumido pelas fadigas e pelo amor, via aproximar-se
rapidamente o fim de sua peregrinação terrena. Tal
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convicção ajudava-o a imergir cada vez mais no
essencial, relativizando qualquer ambição humana que
ainda pudesse aninhar-se em seu coração. Assim,
por exemplo, aconteceu durante os festejos de seus
25 anos de episcopado. Por toda a Itália, circularam
insistentes rumores de que seria elevado a cardeal
arcebispo de Ravena. A carta que então lhe enviou
Jeremias Bonomelli expressa também o que dele se
pensava em muitos setores da Igreja italiana:
“São três ou quatro dias que acompanho as notícias dos jornais que lhe dizem respeito. Desejo ardentemente conhecer a realidade das
coisas. Se lhe foram oferecidas a sé de Ravena e a dignidade cardinalícia, por que não aceita? Respeito o seu modo de pensar; mas há
momentos em que devemos aceitar também
as honras, que, na verdade, não passam de fardos! Para você - estou certo disso - ser hoje
cardeal equivale a ser papa amanhã! Para você
seria um sacrifício imenso, mas para a Igreja e
para a nossa pátria... , não digo mais nada! Ah!
se a noticia for verdadeira - e eu a creio
verdadeira -, e se ainda há tempo, aceite, eu
lhe peço! Faça o grande sacrifício! Você entrar
no Sagrado Colégio, subir à cátedra de Pedro e
começar uma nova era, seria tudo a mesma
coisa! Que Deus o inspire! Rogo a Deus que
faça com que finalmente desponte a aurora de
um dia mais sereno!”
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A resposta de João Batista é fruto da serenidade
de quem nada mais tem a ganhar e a perder, por
encarar a vida com outros critérios:
“Trocar de diocese aos 62 anos, com tantos
compromissos que aqui tenho, e enquanto meu
bom clero e meu querido povo estão se
preparando com tanto amor para as festas do
meu jubileu, não, não, não é possível! Viver, santificar-me - pois já estaria na hora! - e morrer
em Piacenza; este é o propósito que renovo a
cada ano nos exercícios espirituais! E Deus
sempre acolhe semelhantes pedidos! ...”
De fato, Deus o atendeu! Mas, em 1903, quando
José Sarto se tornou o papa Pio X, novamente, entre
os nomes mais cotados para sucedê-lo no patriarcado
de Veneza, apareceu o do bispo de Piacenza. No dia
9 de janeiro de 1904, D. Scalabrini recebeu uma carta
de Antonieta Giacomelli, líder do catolicismo
progressista da época:
“Estava para tomar a caneta para lhe exprimir,
em nome de todos nós, a imensa alegria experimentada ao ouvir de sua próxima nomeação a patriarca de Veneza, quando me chegou
em mãos um jornal que me faz supor que o
senhor não está disposto a aceitar! Em nome
de Deus, Excelência, não renuncie! O senhor
certamente não sabe, nem poderia por ora
avaliar, quão grande seja o bem que Deus lhe
destinou fazer entre nós, e a extrema ne- 85 -
cessidade que Veneza tem de um pastor como
Vossa Excelência - e com Veneza, todo o Vêneto!”
As respostas do bispo, porém, batiam sempre na
mesma tecla: “Eu não penso no cardinalato, mas na
morte! O que sinto é grande necessidade de me
preparar para a morte. Quanto ao resto, sou totalmente
indiferente. E é uma graça de Deus também essa!”
A morte veio muito cedo, quando ninguém a
esperava, exceto o virtuoso bispo, que há tempo a
pressentia. No dia 21 de maio de 1905, após a visita
pastoral à paróquia de Borghetto, as dores causadas
pela hidrocele foram tão agudas, que foi preciso
chamar o médico. O resultado da consulta foi uma
inadiável intervenção cirúrgica, que não durou mais
de meia hora, mas foi suficiente para enfraquecer de
tal maneira seu coração, que no dia 31 recebeu os
últimos sacramentos.
Logo em seguida, olhando para os que o cercavam,
disse pausadamente:
“Prestes a comparecer diante do Cristo Juiz,
peço perdão a todos e a todos abençôo!”
Depois abraçou um por um os sacerdotes,
dizendo:
“Rezem por mim; saúdem os professores e os
seminaristas do seminário, e os meus
missionários! Adeus, adeus!”
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A noite foi uma agonia. Nos momentos de lucidez,
repetia:
“Seja feita a vontade de Deus!”
E nos intervalos de delírio, exclamava:
“Os meus sacerdotes! Onde estão os meus
sacerdotes? Deixem-nos entrar, não os façam
esperar tanto!”
A morte chegou às 5h50min da quinta-feira, dia 1°
de junho, que naquele ano coincidiu com a festa da
Ascensão do Senhor ao céu. De acordo com sua irmã
Luísa, as últimas palavras que proferiu foram:
“Estou pronto, Senhor! Partamos!”
Assim, qual peregrino que termina e inicia uma
etapa diferente da caminhada, o apóstolo dos migrantes sintetizou o carisma que, por seu intermédio, Deus doara à Igreja, carisma que atualiza o apelo
dirigido a Abraão: “Sai de tua terra e vai!” (Gn 12,1), e se
orienta para “os novos céus e a nova terra onde
habitará a justiça” (2Pd 3,13).
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As referências constantes no texto foram extraídas de cartas, homílias, documentos do Beato João
Batista Scalabrini e testemunhos de pessoas próximas a ele. Encontram-se nos livros:
CONGREGAÇÕES SCALABRINIANAS. Scalabrini, uma
voz Atual. São Paulo, Edições Loyola, 1989.
FRANCESCONI, Mario. João Batista Scalabrini, Bispo de
Piacenza e dos Migrantes. Roma, Cidade Nova, 1985.
RIZZARDO, Redovino. João Batista Scalabrini. São Paulo, Edições Paulinas, 1987.
João Batista Scalabrini foi Beatificado, pelo Papa
João Paulo II, em 09 de novembro de 1997.
O autor Redovino Rizzardo, religioso scalabriniano,
escreveu inúmeras publicações sobre o carisma
scalabriniano, atualmente é Bispo de Dourados - MS.
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João Batista Scalabrini Ápostolo dos Migrantes