-1- COLEÇÃO: PASTORAL & MIGRAÇÃO Percepção do Fenômeno Migratório em cidades das Dioceses do Rio Grande do Sul - Jurandir Zamberlam e Giovanni Corso - 2004 O Processo Migratório no Brasil e os desafios da Mobilidade Humana na Globalização - Jurandir Zamberlam - 2004 Pastoral dos Migrantes - Jurandir Zamberlam e Giovanni Corso - 2005 Memória - 1° Congresso Mundial dos Leigos Scalabrinianos Piacenza - Jurandir Zamberlam e Giovanni Corso - 2005 Tendências da Mobilidade humana na três Fronteiras - Jurandir Zamberlam e Giovanni Corso - 2006 Memoria - 1er Congreso Mundial de los Laicos Scalabrinianos en Piacenza - Presencia Sudamericana - Jurandir Zamberlam e Giovanni Corso - 2006 A emigração da Grande Criciúma na ótica de familiares - desafios para a Igreja de origem e de destino - Jurandir Zamberlam, Giovanni Corso, Wladmyr Külkamp, Ludgero Buss - 2006 Emigrantes brasileiros no Paraguai - presença Scalabriniana Jurandir Zamberlam, Giovanni Corso, Joaquim Filippin, Eduardo Bresolin e Eduardo Geremia - 2007 Desafios das Migrações para a Igreja do Rio Grande do Sul Jurandir Zamberlam, Giovanni Corso, Joaquim R. Filippin, Lauro Bocchi, Egídia Muraro, Guilherme Ilarze - 2007 Foz do Iguaçu em contexto de mobilidade - Paróquia Bom Jesus do Migrante - Jurandir Zamberlam, Joel Ferrari, Giovanni Corso, Joaquim R. Filippin - 2007 João Batista Scalabrini - Apóstolo dos MIgrantes - Redovino Rizzardo - 2007 João Batista Scalabrini - Apóstolo dos Migrantes. / Redovino Rizzardo. Porto Alegre : Solidus, 2007. 86 p. 1. História. 2. Biografia. 3. Migração. 4. Religião. - I. Rizzardo, Redovino - Título. CDU 312:325(816.5) Diagramação: Eduardo Geremia -2- - Apoio: CIBAI - Migrações SUMÁRIO Apresentação I .......................................................... 05 Apresentação II ......................................................... 06 Apresentação III ........................................................ 07 A missão do Bispo Scalabrini ................................... 09 Uma paróquia de periferia ......................................... 15 A ambição de um bispo ............................................ 19 Pelos rincões da diocese .......................................... 23 Apóstolo da catequese ............................................. 29 Enviado aos pobres ................................................... 33 Um bispo revolucionário ............................................ 39 Congregar na unidade os filhos de Deus dispersos ......... 45 O apelo na estação ferroviária ................................... 51 Roubar ou emigrar .................................................... 57 A obra scalabriniana ................................................. 63 A terra prometida da Igreja? ...................................... 69 O paraíso terrestre .................................................... 73 Estou pronto, Senhor, partamos! ............................... 83 Referências ............................................................... 88 -3- -4- APRESENTAÇÃO I A experiência da emigração está marcando nossa realidade brasileira. Mais de cinco milhões de pessoas já escolheram outros países para viver. A necessidade de interpretar esta experiência para agir adequadamente nos leva a procurar as pessoas que a viveram como profetas e mestres. O Bem-aventurado João Batista Scalabrini no século XIX percebeu o êxodo migratório em sua diocese e se posicionou profeticamente no campo jurídico, político, social, assistencial, cultural e religioso. Estudou o fenômeno da emigração italiana para chegar ao migrante real, que visitou nos Estados Unidos e no Brasil e acompanhou pelos religiosos e religiosas das Congregações por ele fundadas. Scalabrini é mestre e sua experiência e exemplo podem nos ajudar a entender hoje com inteligência e coragem a sofrida realidade migratória. Nosso agradecimento a Dom Redovino Rizzardo por ter autorizado esta nova edição de sua obra. Amigo leitor, votos que o encontro com o coração de Scalabrini o torne amigo dos migrantes para realizar-se como cidadão e cristão. Porto Alegre, Natal de 2007. Pe. Giovanni Corso - Diretor do CIBAI-Migrações -5- APRESENTAÇÃO II O Bem-aventurado João Batista Scalabrini, homem de olhar atento, coração cheio de compaixão e caridade, foi um bispo que amou seu rebanho para além de sua diocese e de seu país. Ao ver seu povo migrar, partindo para as Américas, quis que sacerdotes, irmãos, irmãs e leigos, acompanhassem a travessia e o destino dos migrantes. Para nós missionários, missionárias e leigos scalabrinianos ele é “Pai dos Migrantes, Apóstolo da Catequese e da Reconciliação”. Não obstante as injustiças e conflitos que acompanham os migrantes, Scalabrini sabia ver na migração um desígnio da Providência Divina. Hoje diante do fenômeno das migrações sempre mais complexo, acompanhado da tentação da xenofobia e de ver o migrante como problema, Scalabrini nos ensina que a reconciliação é o caminho para a construção da cidadania universal. A migração é um convite para a globalização da solidariedade. Na lógica da Palavra de Deus, o migrante nos recorda que estamos de passagem, buscando “uma pátria que não é terrena”, como nos dizia Scalabrini. Pe. Adilson Pedro Busin, cs - Superior Provincial -6- APRESENTAÇÃO III Atendendo ao pedido insistente de vários amigos, no sentido de terem uma biografia de João Batista Scalabrini, o apóstolo dos migrantes, mais simples e popular, a ser difundida em nossas comunidades eclesiais, ofereço esta nova publicação à Igreja do Brasil. Desde logo esclareço que nada de novo traz o presente trabalho. Aliás, justamente pela tentativa de ser simples e popular, é muito incompleto, não passando de um resumo do livro João Batista Scalabrini, publicado por Edições Paulinas, em 1987. Sentir-me-ia muito recompensado se o opúsculo servisse de incentivo e ânimo a quantos se dedicam aos irmãos desvalidos, sobretudo migrantes, o grande ideal de um bispo que tinha por ambição ajoelhar-se diante do mundo para lhe suplicar uma só graça, a de poder fazer-lhe o bem. D. Redovino Rizzardo- Bispo de Dourados - MS -7- “...eram anciãos curvados pela idade e pelas fadigas; homens na flor da idade; senhoras que arrastavam os filhinhos atrás de si, ou os carregavam ao colo; meninos e meninas, todos irmanados por um só pensamento e guiados a uma única meta. Eram emigrantes...” -8- A MISSÃO DO BISPO SCALABRINI No dia 16 de julho de 1904, um dos maiores jornais brasileiros da época, “O Estado de S. Paulo”, sob a manchete acima, trazia um longo e violento artigo de fundo, assinado nem mais nem menos do que por seu diretor, Paulo Rangel Pestana: “Há poucos dias chegou às nossas plagas o bispo de Piacenza, na Itália. Um bispo como os outros, a que costumamos mandar os importunos se queixarem? Não! Este é um tanto diferente! Além de ser personagem muito íntimo do Papa Pio X e fundador da Congregação de São Carlos, consta que trouxe importante incumbência do governo italiano, desse mesmíssimo governo sacrílego que, por ter penetrado em Roma a tiros de canhão e a golpes de baioneta, foi excomungado por um dos sucessores de S. Pedro... A que veio o prelado forasteiro? A converter infiéis à fé que, a cada instante, invoca? A buscar óbolos para as obras pias e para a salvação das almas pagãs? Nada disso, que tais coisas são velharias dos séculos dos denegados e ingênuos Anchietas! Os missionários modernos cuidam de assuntos mais práticos, preo-9- cupando-se com problemas políticos e industriais. Aventuram-se ainda pela Ásia, África e América, mas carregam debaixo do braço a carabina carregada e o caixote de mercadorias, para delimitar “as zonas de influência” das nações colonizadoras, a cujo serviço se votaram.” Segundo o jornal paulistano, se essa era a missão do prelado forasteiro, “à nossa chancelaria compete negociar com a Santa Sé sobre o caso. Com habilidade, não lhe será difícil obter êxito. Se, entretanto, formos desatendidos, retiremos nossa legação do Vaticano e aceitemos a luta franca, declarada, honesta. Não somos quem mais sairá perdendo...” Mas quem era esse bispo perigoso e subversivo que chegara ao Brasil para comprometer “a unidade nacional, deslealmente atacada”, como insistia em afirmar Rangel Pestana? Que viera fazer ou buscar em nossa pátria? E que espécie de organização era a Congregação de São Carlos? Vamos por etapas! Iniciemos... pelo começo! O início é Fino Mornasco, um lindo povoado do norte italiano, perto da cidade e do lago de Como. Aí em 8 de julho de 1839, nascia o menino que tanto preocuparia o diretor do “Estadão”! ... Seus pais, Luís Scalabrini e Colomba Trombetta, constituíam uma família simples e habituada ao trabalho. Como acontece com quase todos, sua maior preocupação, que às vezes os fazia verter lágrimas amargas, era o - 10 - sustento e a educação dos oito filhos que foram chegando, cinco rapazes e três meninas. Para dizer da situação social e econômica da família e da época, é suficiente esclarecer que três deles tiveram de emigrar para a Argentina. (O primogênito, porém, algum tempo depois regressou para cuidar dos velhos pais.) Até os 18 anos, João Batista Scalabrini foi um jovem como qualquer outro. Dedicava-se com afinco ao trabalho e ao estudo. O que o distinguia era uma enorme capacidade intelectual: sempre o primeiro da classe! Mas a característica que mais tocava quem o conhecia era sua grande força de vontade, que o levava a fazer a pé, todas as semanas, os dez quilômetros que o separavam de Como, onde fez o segundo grau. Se, quando adulto, foi conhecido como “o bispo das mãos furadas”, porque tudo o que recebia passava adiante, esse seu espírito altruísta e generoso podia ser percebido já nesses primeiros anos. Quantas vezes, os minguados tostões e a parca merenda que os pais lhe passavam foram endereçados por ele a colegas mais necessitados! Aos 18 anos, o jovem Scalabrini declarou que queria ser padre. Ninguém, porém, se surpreendeu. De fato, se era um rapaz normal e comum, também não eram poucos os que encontravam nele indícios de que seu caminho seria diferente. A abertura às necessidades alheias fazia-o preocupado com a formação cristã dos colegas de estudo e de lazer. - 11 - Superando com decisão o medo e a vergonha próprios dessa idade, transmitia-Ihes com alegria e convicção o que aprendia da Palavra de Deus. Em outubro de 1857, ingressou no seminário diocesano de Como, onde fez os estudos filosóficos e teológicos. E após cinco anos e meio, no dia 30 de maio de 1863, um mês antes de completar 24 anos, já era padre! E agora, que fazer? Na época, a Itália tinha padre sobrando! Havia paróquias de 50, 100 ou 200 pessoas! Por isso, o Pe. João Batista pensou ter chegado o momento de realizar seu sonho juvenil: ser missionário na índia. Partiu para Milão, decidido a integrar o PIME: Pontifício Instituto das Missões Estrangeiras. Ele mesmo nos narra a sua vocação numa homilia que pronunciou em 1884, quando presidiu, como bispo de Piacenza, à celebração do envio de cinco missionários do PIME para o exterior: “Na vida do homem há momentos memoráveis, que não se esquecem jamais. Num deles, que guardo sempre no fundo do coração, vejo-me de joelhos diante de minha querida mãe, pedindo-lhe a bênção, antes de partir e agregarme ao vosso benemérito instituto. Em lágrimas, ela ma concedeu; e eu me apresentei nessa casa com ânimo trepidante. As palavras que vi esculpidas no alto da entrada: Seminário das Missões Estrangeiras, pareciam desvendar todo o futuro de minha atividade apostólica. O - 12 - diálogo que, em seguida, mantive com este homem venerando, que está a meu lado honra insigne do clero lombardo (Mons. José Morinoni, o primeiro superior do PIME) e que jamais se cancelará de minha mente, parecia-me dizer que este realmente devia ser o meu porvir, de acordo com a vontade divina. Surgiram, todavia, circunstâncias imprevistas, não sei se por castigo dos meus pecados ou por outros desígnios ocultos de Deus. E a cruz de lenho do missionário se transformou nesta de ouro, que trago no peito, e que freqüentemente me leva a queixar-me com meu Deus porque me deu esta, e não a primeira! Mas, depois, devo dizer: “Cumpra-se em tudo a vontade de Deus!” De minha parte, porém, não deixarei nunca, como jamais o deixei até hoje, de considerar-me vosso co-irmão espiritual, ou, pelo menos, um agregado! E é com inveja, amados jovens e filhos, que vos vejo partir para terras longínquas!” Quem não lhe permitiu deixar a Itália foi seu bispo, que lhe disse: “Eu preciso de você; suas Indias são a Itália!” Certamente, não lhe foi fácil ver desmoronar um ideal que vinha acalentando! ... Mas, abandonando-se confiante nos braços de Deus, voltou ao seminário diocesano, por mais sete anos, primeiramente como professor e, em seguida, nos últimos dois anos, como reitor. Mesmo assumindo com empenho suas funções no seminário, o padre procurava permanecer ligado ao povo, - 13 - a quem dedicava seu tempo livre e suas energias. Assim, por exemplo, em 1867, quando também sua terra natal, Fino Mornasco, e outras localidades vizinhas foram assoladas por uma epidemia de cólera, ele julgou “uma graça extraordinária de Deus”, como então escreveu a um amigo, poder dedicar-se aos irmãos doentes. E neste serviço prodigalizou-se tanto que o próprio governo lhe conferiu, em maio de 1869, uma medalha de bronze, “como testemunho de admiração e de reconhecimento” ...entre meus paroquianos alguns milhares de operários da seda; tecelãos, fiandeiros e tintureiros... (Scalabrini, 1870) Imgrantes bolivianos em São Paulo (2007) - 14 - UMA PARÓQUIADE PERIFERIA Em julho de 1870, o Pe. Scalabrini assumiu a direção da paróquia de São Bartolomeu, uma das maiores e mais importantes da cidade de Como, com uma população que ultrapassava seis mil habitantes. Em sua maior parte, a comunidade era constituída por operários da indústria têxtil, que trabalhavam a seda. Com a força e o entusiasmo de sua juventude apenas completara 31 anos -, e sobretudo de seu amor ao povo, ao qual se doava sem meias medidas, o novo pároco escolheu como meta e prioridade a formação cristã das crianças e da juventude, o cuidado dos doentes e a evangelização e promoção da classe trabalhadora. A catequese será sempre um dos pilares de sua atividade pastoral, inclusive e principalmente quando bispo de Piacenza. Ele, que percebia renovar-se constantemente em seu coração a vocação missionária, assim se dirigia aos catequistas: “Muitas vezes, talvez, ficais invejando aqueles que, menosprezando a voz da carne e do sangue, atravessam os mares e se dirigem a terras longínquas, a fim de levar a fé aos povos ‘que jazem nas trevas e na sombra da morte’ (Lc 1,79)! Mas por que pensar assim?! - 15 - Ensinando o catecismo às crianças, fazeis coisa que iguala em merecimento a obra de conversão dos pagãos, e o vosso nome ficará escrito no livro da vida, ao lado dos maiores heróis!” Se é verdade que montou, enquanto o permitiam as condições eclesiais da época, uma eficiente e vasta estrutura catequética paroquial, escrevendo, em 1875, a primeira de uma longa série de publicações a respeito: o Pequeno catecismo para os jardins de infância, contudo, estava convencido de que os primeiros responsáveis pela formação cristã dos filhos eram justamente os pais: “Vós, pais, sois os primeiros mestres do catecismo. Com o vínculo conjugal, assumistes obrigação muito grave: sois pais na carne para serdes seus pais no espírito!” O ensino religioso de nada serviria se faltasse o testemunho da caridade, sobretudo junto aos doentes e aos pobres. Eis por que, num período histórico de profunda crise social, fruto dos desmandos do liberalismo econômico e da revolta das classes populares, insufladas pelo socialismo marxista, o Pe. João Batista caminhou lado a lado com seus irmãos trabalhadores, como ele mesmo o lembrará em 1899, no opúsculo O socialismo e a ação do clero: “Durante vários anos, fui pároco de um bairro da minha cidade de Como. Contava entre meus paroquianos alguns milhares de operários da seda; tecelãos, fiandeiros e tintureiros. Naqueles anos, pude verificar de perto a dolorosa situação - 16 - dos trabalhadores, dolorosa por si mesma e pelas conseqüências a que pode andar sujeita. Como repercutia neles qualquer crise política ou financeira, mesmo se distante, que reduzisse ou paralisasse o movimento industrial! Como sentiam qualquer infortúnio da vida, por menor que fosse, como uma doença ou uma desgraça acidental, que diminuísse a sua produção diária! A essas breves interrupções, que arrancavam, contudo, uma a uma, um pedaço de pão ao pobre do operário, sucedia, de vez em quando as grandes crises industriais, que suspendiam qualquer atividade. Nestes casos, sobrevinham a miséria e a fome, no sentido mais estrito da palavra, só camufladas, durante certo tempo, pelo crédito do comerciante ou por uma antecipação do salário industrial. Assistia-se, então, a um corre-corre angustioso de homens em busca de trabalho, e de mulheres em busca de socorros! Oh! tristes dias aqueles em que eu, visitando os doentes, subia pelas míseras escadas e não ouvia o toque seco e ritmado do tear! Tristes em todos os sentidos, porque, junto com a miséria, entravam freqüentemente nas famílias a imoralidade e a desonra!” O padre tinha razão de se preocupar e afligir pela situação. As leis trabalhistas não existiam, ou, se existiam, eram sempre a favor dos patrões. Normalmente, o horário de trabalho começava às 6 horas - 17 - da manhã e se prolongava até as 18, sem intervalo algum, nem mesmo para o almoço. Vigorava a lei do mais forte, sem exceção nenhuma, inclusive para as mulheres e crianças. Mas ele não se limitou a constatar e a denunciar; sua caridade pastoral nada desdenhava de quanto o ajudasse a aproximar-se dos pobres, nem que fosse apenas para procurar-Ihes emprego junto às indústrias. Poucos foram os anos em que o Pe. Scalabrini esteve à testa da comunidade de São Bartolomeu; mas foram suficientes para granjear a estima e a admiração de todos e despontar como líder natural. A obra que tornou seu nome conhecido na Lombardia e em grande parte da Itália, porém, foram as onze conferências que pronunciou na catedral de Como em 1872, sobre o Concílio Vaticano I, inaugurado em 8 de dezembro de 1869, e encerrado em julho de 1879, em face dos acontecimentos bélicos que terminaram com a ocupação de Roma, em 20 de setembro seguinte. Parece não haver dúvida de que a publicação das palestras num opúsculo, que chegou a alcançar quatro edições, uma delas de 12 mil exemplares, tenha sido o último cartucho a levar a Santa Sé a nomeá-Io bispo de Piacenza. - 18 - AAMBIÇÃO DE UM BISPO O primeiro jornal de Piacenza a noticiar, no dia 16 de dezembro de 1875, que a diocese tinha novo pastor, deixou ver, nas entrelinhas, que o ambiente cultural e social da alta sociedade local não se comovera muito com o fato: “Temos pontífice! Foi nomeado bispo de Piacenza o Pe. João Batista Scalabrini, pároco de São Bartolomeu, em Como. Dizem que é homem de muita ciência e de muito coração. Tanto melhor!” De fato, a característica dominante em vários setores da população parecia ser um acentuado anticlericalismo, conseqüência provável do domínio que a Igreja exerceu na Itália, sobretudo nos Estados Pontifícios, anexados ao recém-constituído Reino Italiano, pelo rei Vítor Manuel lI. O novo prelado, que passará à história como “um bispo para cujo amor não era suficiente uma diocese”, como o definiu o Papa Bento XV, ou ainda como “um homem cuja pátria foi o mundo”, quis ser sagrado em Roma, a capital do catolicismo. E a igreja escolhida para a celebração do evento foi a capela da Congregação para a Evangelização dos Povos - novo sinal de seu espírito missionário e universalista. Era o dia 30 de janeiro de 1876. - 19 - No mesmo dia, enviou a seu povo uma longa carta, lida em todas as igrejas da diocese, onde traçava seu programa de serviço eclesial: “Enviado em primeiro lugar aos pobres e aos infelizes que carregam a vida na dor e na desolação, com eles sofrerei, esforçandome sobretudo em auxiliar e evangelizar os pobres que, ricos de fé, foram escolhidos pelo Redentor como primeiros e herdeiros do Reino prometido por Deus àqueles que o amam. Não recusarei fadiga alguma, no intuito de chegar a ser pai dos abandonados, mestre dos simples, guia dos sacerdotes e pastor de todos, a fim de que, fazendo-me tudo para todos, consiga ganhar todos a Cristo!” Mais tarde, em 1896, discursando numa festa em homenagem ao grande amigo que era o bispo de Cremona, Jeremias Bonomelli, D. Scalabrini explicitava melhor seu pensamento sobre a missão episcopal na Igreja: “Na sua tarefa de superintendente, sempre difícil e freqüentemente perigosa, o bispo não pode esquecer as dificuldades que oprimem o povo, ocultando-se no crime do silêncio, ultrajando, assim, a justiça de Deus. Sacrificar-se incessantemente para a dilatação do Reino de Cristo nas almas; expor, se for preciso, a vida pela salvação do rebanho amado; colocar-se de joelhos, por assim dizer, diante do mundo e implorar, como uma graça, a permissão de lhe fazer o bem: eis o espírito, a identidade e a única ambição do bispo!” - 20 - O ingresso oficial na diocese aconteceu em 13 de fevereiro, para coincidir com o início dos festejos comemorativos do sexto centenário de morte do bemaventurado Gregório X, papa originário de Piacenza, que governou a Igreja de 1271 a 1276; fora eleito no conclave de Viterbo, célebre porque os habitantes da cidade se sentiram na contingência de destelhar o teto do palácio papal para obrigar os cardeais a apressar a eleição, que já ia para mais de ano. Bons tempos aqueles! Para uma diocese relativamente pequena - 241.259 habitantes -, havia nada menos do que 364 paróquias, com uma média de 663 pessoas para cada uma... Os padres, por sua vez, eram 735, sem contar os 60 religiosos! Durante os 29 anos de seu episcopado, o bispo terá a alegria de ordenar 442 sacerdotes diocesanos, numa média de mais de 15 por ano! ... Pode-se dizer que a formação sacerdotal foi sempre a primeira de suas preocupações. Dizia ao povo: “Mesmo se a maior parte dos jovens dos nossos seminários os abandonam e poucos alcançam a meta, contudo, esses poucos valem muito, e se tornam a alegria do céu e da terra. Dentre cem gotas de chuva que caem sobre a terra, noventa e oito viram lama; das outras duas, porém, uma umedece a fronte da criança na pia batismal, e entrega um filho à Igreja; e a outra se verte no cálice do sacerdote, identifica-se com o sangue de Cristo, e entrega Deus aos homens”. Dirigindo-se aos sacerdotes, continuava: “Esforçai- 21 - vos para preparar desde agora outros vós mesmos, que possam pastorear a diocese mais tarde, quando ela tiver a dor de vos perder. Por isso, verificai se em vossas paróquias não haja meninos de inteligência aberta, índole sincera, caráter vivaz e, ao mesmo tempo, dóceis, estudiosos, modestos, de costumes ilibados e levados ao serviço dos altares. Encontrandoos, tomai-os sob vossos cuidados com desvelo todo particular! Recomendo-o insistentemente!” E terminava categórico: “Não espereis santificar os outros se antes não sois santos vós mesmos, pois só a santidade produz obras santas! Lembrai-vos que não foram os sábios da sinagoga que iluminaram o mundo, mas os doze humildes pescadores da Galiléia!” “...o bispo não pode esquecer as dificuldades que oprimem o povo, ocultando-se no crime do silêncio, ultrajando, assim, a justiça de Deus...” - 22 - PELOS RINCÕES DA DIOCESE É um princípio tão antigo que já se tornou sabedoria popular: “Ninguém ama o que não conhece!” Dom Scalabrini não quis ser bispo de gabinete e de escritório, esperando visitas, resolvendo problemas e ditando normas. “0 bom pastor conhece as suas ovelhas” (Jo 10,14). Por isso, durante os 29 anos de episcopado, visitou por bem cinco vezes a quase totalidade de suas comunidades paroquiais, pequenas ou grandes, próximas ou distantes, com o objetivo de fazer seus os sofrimentos e as alegrias, as esperanças e as decepções, as vitórias e os fracassos do povo que recebera por herança do Senhor: “A mais bela consolação que um bispo pode receber é conhecer de perto os seus amados filhos e por eles ser conhecido! Viremos até vós para vos incentivar à prática das virtudes cristãs: a piedade, a concórdia e a paz; para levantar nossa voz na defesa dos oprimidos; para ser o amparo dos pobres e o consolador dos aflitos; para acolher os transviados e unir as lágrimas da consolação às do arrependimento, decidido a sacrificar por vós não só a nossa comodidade, o nosso sossego e o nosso descanso, mas também a nossa própria vida!” - 23 - Um padre daqueles tempos nos descreve alguns pormenores dessas visitas: “No período em que D. Scalabrini iniciou a primeira visita pastoral, não é exagero afirmar que em mais de duzentas paróquias não era possível chegar senão em lombo de burro ou de cavalo. Deve-se também acrescentar que então, na zona montanhosa, a maior parte das casas paroquiais não estavam em condições de hospedar o bispo e o seu reduzido séquito por uma noite sequer, nem mesmo precariamente. Assim, não lhe era possível passar diretamente de uma paróquia a outra, como fará mais tarde, mas devia estabelecer, como se diz, o quartel-general na sede do vicariato; de lá partia quase cada manhã e regressava à noite. Por isso, fazia diariamente várias horas de cavalgada. Se alguém conhece as nossas montanhas e pensa nos atalhos mais próprios para cabras que formavam, muitas vezes, o único meio de comunicação; nas subidas a pique em que só conseguia ficar na sela quem se agarrasse ao pescoço do cavalo; nas descidas em declive que a prudência mais elementar aconselhava fazer com as próprias pernas; nos rios que, para atravessar, era preciso dar longas voltas até encontrar o local menos perigoso, deverá convir que se tratava de bem outras viagens do que de lazer!” - 24 - Como nas biografias dos antigos santos, também o roteiro dessas visitas não dispensava os fioretti que embelezam a vida dos que não medem sua doação a Deus e aos irmãos. Escutemos um pároco que o acolheu em sua casa: “Certa vez, o bispo se encontrava em visita pastoral na paróquia de Pradovera. Na tarde daquele dia, devia dirigir-se à paróquia de Cogno San Bassano, distante aproximadamente cinco quilômetros, por estrada de montanha. No momento em que estava partindo, desabou furioso temporal, acompanhado por chuva torrencial. Nós, sacerdotes, suplicávamos que adiasse a viagem para a manhã seguinte, ou pelo menos que aguardasse o aguaceiro parar. Ele, porém, nada quis ouvir, e partiu sob chuva que descia a cântaros, dominado pelo pensamento de que naquela localidade havia um povo a esperá-lo.” Outro sacerdote nos narra um fato pitoresco, mas que nos deixa entrever a pobreza da maioria das paróquias das montanhas, tão pobres que alguns padres chegavam a passar fome: “Jamais se queixava da alimentação, da cama ou de qualquer contratempo. A esse respeito, ele mesmo lembrava, todo sorridente, que, certa vez, numa casa paroquial de Valnure, havia dormido numa cafua que tinha todos os vestígios de ter sido usada como galinheiro. - 25 - Pode-se, então, imaginar que espécie de companhia o manteve acordado a noite inteira! E como se isso não bastasse, foi deliciado até o amanhecer pelo canto dos galos e pelo cacarejar das galinhas, dele separados por frágil parede.” Até mesmo um jornalista ateu, presente à chegada do bispo em uma localidade do interior, viu-se obrigado a reconhecer em 1879: “Enquanto escrevo, uma inteira população comovida, exultante e febricitante se prostra, se inclina e se arrasta aos pés de D. Scalabrini! Ouço o disparo dos mortaretes e de outras armas de fogo a pipocar incessantemente, confundindo-se com os gritos de um povo delirante. Percebo as lágrimas, os gritos sufocados, os gemidos convulsos de jovens e de velhos, de homens e de mulheres, de senhores e de pobres, que vêem em D. Scalabrini um Deus descido novamente sobre a terra! Esta população representa a ignorância, estamos de acordo; mas representa também o número: são 18 milhões contra 8! É a força material, é o fanatismo!” (Como se conclui, em 1879, a Itália Contava com uma população de 26 milhões de habitantes: 8 milhões de esclarecidos, e 18 de ignorantes ... ) Para dizer dos frutos de renovação espiritual e social trazidos por suas visitas pastorais, expomos o exemplo de Fierenzuola. Quando de sua chegada à - 26 - cidade, no início de 1878, teve que se assessorar de outros dezoito padres para atender as confissões da comunidade, até altas horas da noite. Na manhã seguinte, por três horas seguidas continuou dando a comunhão ao povo. Praticamente ninguém se excluía da participação aos sacramentos, senão os seis ou sete anticlericais presentes em qualquer lugarejo. A visita convertia-se em autêntica renovação popular. Confirma-o o Pe. Francisco Gregori, um dos primeiros biógrafos de João Batista Scalabrini: “Os frutos colhidos desse impulso moral dado por ele à diocese pela sagrada visita realizada numa forma verdadeiramente apostólica, especialmente na primeira vez, quando, à ação do apostolado, deve-se acrescentar a peculiaridade da novidade, foram realmente extraordinários. Gente endurecida no mal que regressava a Deus; escândalos que se extirpavam; uniões irregulares que se acertavam; ódios inveterados que se extinguiam, ou, pelo menos, amainavam; em suma, por toda a parte, o reflorescimento da piedade religiosa e da vida cristã.” - 27 - “...embora jovem, a alma quando bem instruída no catecismo, experimenta em si mesma seu Deus, atira-se a Ele com ardor, ama-O, adora-O, através de belezas que adornam o universo. Quem faz alguma experiência a respeito, não tem necessidade de palavras para se convencer. Falai de Deus a uma criança, no modo que convém à sua idade e capacidade e ela vos mostrará que não falais de um Ser estranho à sua natureza. No fundo de sua alma o Ser Supremo fez sentir sua existência, desde os primórdios da vida e desenvolvendo-se gradualmente pelo catecismo, na criança este germe precioso, conforme a idade, far-lhe-á brilhar na mente, a parte mais bela e sublime de sua vida...”. - 28 - APÓSTOLO DA CATEQUESE Pelo fato de João Batista Scalabrini ter passado à história como apóstolo dos migrantes, ficou em segundo plano outro aspecto marcante de sua influência na Igreja, pioneiro que foi da renovação catequética italiana. Mas o próprio papa Pio IX, numa audiência que lhe concedeu em 7 de junho de 1877, ou seja, logo no início de seu episcopado, reconheceulhe publicamente os méritos nesse campo, afirmando: “Hoje tem-se muita preocupação com o segundo andar das residências, e pouca com o primeiro, que é o mais importante. A catequese é precisamente a base onde se deve fundamentar toda a pregação e toda a ação pastoral. Salvamos a sociedade mediante uma boa catequese. Assim, como atestado de nossa identidade de vistas, oferecemos a D. Scalabrini uma cruz peitoral, e o apresentamos como apóstolo da catequese!” Desde quando pároco em Como, o Pe. Scalabrini demonstrara tanto interesse pelo assunto, que seu bispo o tinha encarregado de programar um novo esquema de organização catequética para toda a diocese. E mal ingressou em Piacenza, passou a pôr em prática o plano que vinha esboçando há tempo. - 29 - Sua atuação nesse campo foi vasta e duradoura: fundou a primeira revista catequética italiana, organizou o primeiro congresso catequético nacional, publicou vários livros sobre a formação cristã da juventude, de tal forma que, em 1880, após apenas quatro anos de atividade episcopal, as crianças que aos sábados e domingos freqüentavam as lições de catecismo eram 34.430, e quase 5.000 os catequistas que as acompanhavam! Com muito acerto, escreve uma testemunha ocular: “O mais belo era ver o jovem prelado fazer-se pequeno com os pequenos, entrar em cada sala de aula, sentar-se entre as crianças, interrogá-las e congratular-se com elas pelos progressos que faziam com sua diligência na aprendizagem da doutrina cristã”. Uma pessoa amiga, que morava em Gênova, descreve uma visita que fez ao bispo de Piacenza: “Tendo ido visitar D. Scalabrini, encontrei todas as salas do vasto palácio episcopal cheias de jovens. O próprio bispo, auxiliado pelo vigário geral e pelo professor de teologia do seminário, ensinava o catecismo aos alunos das escolas públicas. Uns vinham às quintas-feiras, e outros, aos domingos. Ministrava-lhes uma verdadeira aula de religião, iniciando dos primeiros rudimentos. Permitia-lhes levantar qualquer objeção, e quando não respondia na hora, reservava a solução para quando o permitisse a seqüência das lições.” - 30 - Ele mesmo se esforçava para praticar o que pedia aos catequistas: “Os vossos pequenos alunos devem perceber que vós os amais. Mais do que de qualquer outra coisa, eles precisam da ternura que nasce da piedade. Fazei-vos pequenos com eles; não repareis em suas leviandades ou na sua indocilidade; compadecei-vos de suas grosserias e de sua dificuldade em aprender o que ensinais. Jamais vos mostreis cansados ou enfastiados com eles!” A catequese devia preparar para a vida concreta, em todos os seus níveis: social e econômico, cultural e político, familiar e individual. Dizia, com efeito: “Educar a criança é fazer com que sua alma palpite às palavras: Deus, pátria, liberdade, igualdade e fraternidade, como as consagra o Evangelho! “ E noutra ocasião: “Muitos afirmam: ‘A civilização atual pede uma coisa ao homem religioso, e outra ao homem político’. Não! Dividir o homem em dois é loucura, sofrimento, hipocrisia e covardia! Na vida política e social, o homem não pode refletir no exterior senão o que vive dentro. Jesus Cristo não ensinou dois tipos de moral, uma pública e outra particular, uma para o homem de família e outra para o homem de negócios. Algum dia, aliás, ele nos pedirá contas de acordo com o seu Evangelho, que é o seu código único, imutável e eterno, de todos os nossos pensamentos, palavras e atividades particulares e públicas, religiosas e civis!” Fazemos nossa, por isso, a opinião do Pe. Sílvio - 31 - Riva, reconhecida autoridade na catequese italiana atual: “Entre os apóstolos da educação, deve ser lembrado com particular reconhecimento o bispo Scalabrini. Eu o chamaria Doutor da Catequese, no sentido eclesiástico que o termo costuma significar. A história da catequese na Itália está lhe reivindicando o título de pioneiro das melhores propostas catequéticas atuais. Seu nome e sua obra se juntam aos de S. Pio X, enquanto ofereceu ao grande pontífice, no momento de se codificar a legislação catequética, um patrimônio de experiências, de normas pastorais e de precisas conclusões que se alastraram, mais tarde, por toda a Igreja católica.” “...a mais bela consolação que um bispo pode receber é conhecer de perto os seus amados filhos e por eles ser conhecido! Viremos até vós para vos incentivar à prática das virtudes cristãs: a piedade, a concórdia e a paz; para levantar nossa voz na defesa dos oprimidos; para ser o amparo dos pobres e o consolador dos aflitos; para acolhe r os tra nsviados e u nir as lá grim as d a consolação às do arrependimento, decidido a sacrificar por vós não só a nossa comodidade, o nosso sossego e o nosso descanso, mas também a nossa própria vida!...” - 32 - ENVIADO AOS POBRES Pode ser que D. Scalabrini não tenha conseguido descobrir e desvendar, pelo menos tanto como faz hoje a teologia da libertação, o ponto de discernimento que separa os filhos do Reino dos adeptos do antiReino, o mundo de Deus do mundo pelo qual Cristo não quis rezar (Jo 17,9). Para Deus, essa linha divisória é o encontro, ou desencontro, com o pobre, o desvalido, o menor, o último: “Cada vez que o fizestes (ou deixastes de fazer) a um desses meus irmãos mais pequeninos, foi a mim que (não) fizestes!” (Mt 5,40.45). Na prática, porém, cada página de sua existência, desde a juventude, está aberta para o outro. Não separava o amor a Deus do amor ao homem. Uma norma de vida era: “Fazer feliz uma só pessoa é mais importante do que ser feliz!” Repetia convicto: “Que maior alegria pode haver do que ir ao encontro dos pobres, orientar os simples, libertar os oprimidos, enxugar as lágrimas dos aflitos, salvar as almas, fazer, enfim, um pouco de bem?!” Para ele, as necessidades convertiam-se em apelos, que não o deixavam ficar de braços cruzados. Ficou famosa na história de Piacenza a estiagem de - 33 - 1879, durante os meses de junho, julho e agosto, seguida por um longo e terrível inverno. O que uma não conseguiu arruinar, o outro se encarregou de o fazer. Sua generosidade não conheceu limites. Ele, que gostava de afirmar: “Quem dá a Deus dez, recebe de volta cem”, tocou com as mãos os frutos da caridade e da Providência divina. Com o exemplo de sua renúncia pessoal e com o auxílio de muita gente boa, a partir de dezembro de 1879, conseguiu distribuir aos milhares de agricultores empobrecidos que corriam para a cidade em busca de comida, mil refeições diárias, que foram crescendo até chegar a quatro mil, em fevereiro seguinte. Quando nada mais tinha para dar, vendeu os cavalos da carruagem e um precioso cálice que recebera do papa Pio IX. A quem o criticava dizendo que estava exagerando, retrucava: “À casa dos pobres o bispo pode ir a pé, como Jesus, que andava a pé por entre as míseras populações da Galiléia e da Judéia. E quando o povo sofre a fome, na celebração da missa, Deus prefere cálice de latão a cálice de ouro ou de prata...” Houve até um deputado, esquerdista, que não teve vergonha de dizer em pleno Parlamento romano: “Não podemos permitir que o bispo de Piacenza tenha mais coração do que nós! Este bispo distribui diariamente mil sopas aos pobres. Eu não sou muito réu de clericalismo, mas confesso que admiro esse padre; aliás, se todos os padres se assemelhassem a ele, até eu me faria clérigo!...” - 34 - Para João Batista, os bens pertencem a Deus, e só têm valor se colocados a serviço da caridade. Dizia: “A verdadeira fraternidade não pode suportar que, enquanto uns sofrem desconsolados, outros se acomodem e assistam indiferentes”. Tudo o que recebia passava adiante. Julgava melhor desfazer-se de tudo agora, por amor, do que mais tarde, na hora da morte, por obrigação... De fato, em 1883, quando um pavoroso terremoto destruiu vasta região no sul da Itália, doou até mesmo a cruz peitoral de ouro, recebida do papa Pio IX, explicando: “De minha parte, dou o que de mais precioso me resta, a cruz peitoral de ouro que me presenteou Pio IX. Estou convencido de não poder interpretar melhor o coração do santo Pontífice do que empregá-la no alívio de tão grande número de pessoas!” Sempre os fatos falam mais do que as palavras; por isso, trazemos vários deles, que nos delineiam a estrutura humana, moral e espiritual do santo bispo. Narra um sacerdote que com ele convivia: “O ecônomo da casa vivia seriamente preocupado. Certo dia, encontrei-o todo abatido na sala de espera do bispo. Levando-me a um canto, sussurrou-me: ‘Sabe, ontem entreguei ao bispo o dinheiro do semestre e hoje - hoje, compreende?! - ele não tem mais nada!’ Noutra ocasião, o padre tomou coragem e lhe falou: ‘Se Vossa Excelência continuar desse jeito, acabará morrendo sobre a palha!’ E o bispo, sorrindo com bondade: ‘Caro padre, não seria nada extraordinário - 35 - um bispo morrer sobre a palha quando se sabe que Jesus a escolheu como berço!’ “ Entre os prediletos de seu coração, estavam os presos, os doentes e os surdos-mudos. Escrevia, certa ocasião: “A situação comovedora desses jovens surdos-mudos me vinha freqüentemente à mente, desde 1879. Naquele inverno extremamente rigoroso, descobriu-se um deles quase morto de frio, perdido em meio aos campos e à neve de Carpaneto. Levado à cidade, depois de se lhe ter tratado os pés e as mãos cobertos de frieiras, as autoridades, não sabendo onde deixá-lo, puseram-no na cadeia, onde ficou por vários meses. Certo magistrado de então, após ler a minha carta pastoral sobre os surdosmudos, veio conversar comigo para ver o que eu podia fazer por ele. Respondi: ‘Tragam-no aqui, e ficará comigo, em minha casa!’ “ Em se tratando da Igreja, tinha a sua opinião formada sobre o uso dos bens: “Dos bens terrenos, a Igreja apenas precisa do que é necessário, ou útil, para promover com liberdade e independência a difusão dos bens eternos!” Esse radicalismo ia mais longe quando se referia aos religiosos. “Numa casa religiosa de Piacenza não se observava muito o voto de Pobreza. D. Scalabrini sofria diante de Deus, e não se cansava de dirigir exortações paternas a respeito. O mal, porém, não cessava. Certo dia, pedem-lhe para dirigir-se a essa casa, onde encontra toda a comunidade em prantos: ‘Veja, Excelência, a que nos - 36 - reduziu o incêndio desta noite!’ A resposta não se fez esperar: ‘Acendam logo as velas na igreja; vamos louvar o Senhor! Não há motivos para lágrimas, mas para bendizer a Deus que, com este incêndio, sanou a casa de vocês ... ‘ “ Logo após fundar a Congregação dos Missionários de São Carlos, um monsenhor pediu para nela ingressar. Mas não se esqueceu de perguntar pelas garantias que o novo instituto lhe ofereceria... O Fundador respondeu imediatamente: “Quem tem verdadeira vocação, ingressa sem preocupações com o futuro, bem sabendo que está nas mãos de Deus. Entregar-se a ele com toda a simplicidade é muito mais importante do que buscar quaisquer garantias de estabilidade moral e econômica do Instituto!...” Grupo de leigos, padres, irmãs, formandos(as) em missão com brasileiros no Paraguay - 37 - - 38 - UM BISPO REVOLUCIONÁRIO O verdadeiro cristianismo é sempre revolucionário. E se não o fosse, nem seria cristianismo! A época de D. Scalabrini é uma época de grandes transformações sociais e culturais. E a Igreja, anticonformista por natureza, é simultaneamente fonte e vítima das tensões que acompanham a humanidade. Sua missão, de acordo com o bispo de Piacenza, não se esgota na sacristia: “É erro acreditar que a religião não imponha deveres que ultrapassem o pequeno círculo da vida privada, e que nada tenha a ver com as relações do indivíduo com a sociedade. O catolicismo não é apenas a verdade religiosa; é a verdade completa, ou seja, a verdade econômica, política e social”. Uma das principais crises do momento era a questão social. No dia 4 de maio de 1886, o mundo se comoveu com o massacre de Chicago, ocasião em que foram mortos pela polícia 80 operários, apenas por se manterem fiéis à proclamação publicada no dia 19: “A partir de hoje ninguém deve trabalhar mais de oito horas por dia: oito horas para o trabalho; oito horas para o descanso; e oito horas para a educação!” - 39 - Não se pode negar: a Igreja oficial tinha uma visão do problema bastante conservadora e paternalista. Mais do que apresentar ou buscar uma terceira via ao capitalismo e ao marxismo, parecia contentar-se em combater seus erros... Finalmente, em 1891, o papa Leão XIII publicou a encíclica Rerum Novarum, que recebeu o apoio incondicional de João Batista: “Leão XIII não se limitou a pregar a caridade aos ricos e a resignação aos pobres. É uma obra de justiça que se deve iniciar, se se quer restituir a confiança à classe operária, e, com a confiança, a tranqüilidade. Se os trabalhadores têm deveres, têm também direitos, e esses direitos precisam ser tutelados pela sociedade, se não quisermos que eles próprios tenham que defendê-los com a violência! Justiça e caridade: justiça para todos e caridade com todos, este o programa de Leão XIII!” Aliás, o bispo, que só se sentia compromissado com a justiça e o bem do povo, não tinha medo de continuar: “O nosso objetivo não é fazer política, no sentido que querem dar a entender os nossos adversários. Queremos, isso sim, nos dedicar antes de tudo à renovação moral, sem contudo esquecer as necessidades de ordem econômica que responderam às legitimas aspirações, sobretudo da classe operária! Até hoje, os aproveitadores do povo humilde não - 40 - fizeram senão magníficas promessas, que nunca passaram de letra morta! Prometeram pão e justiça, e o povo continua sem pão e sem justiça!” Para melhor entender seu pensamento social e político e como queria a atuação da Igreja no contexto histórico em que se insere, trazemos uma página bastante longa de seu escrito de 1891: O Centenário de S. Luís Gonzaga, que, em grande parte, não passa de uma reflexão sobre a encíclica Rerum Novarum: “Avante, pois, com as máquinas, as indústrias, as descobertas e as conquistas da ciência! Que a preço de longas fadigas o homem progrida e tente melhorar em toda a parte e sob todas as formas a condição da existência humana! Tudo bem! Eu me alegro de todo o coração, porque tudo isso não é senão glorificar a obra de Deus. O que pedimos nós, homens da igreja, porém é que o Evangelho seja chamado a dirigir as transformações econômicas e indutriais , e que a prática sincera de sua lei purifique e enobreça o progresso material, de sorte que não fomentem nas várias classes os instintos brutais, origens de discórdias e de lutas fratricidas! Compete precisamente a nós, homens da Igreja, esta missão de paz e de regeneração social; mais do que aos outros, a nós que recebemos de Deus os meios e o mandato para tanto. Eu quisera que o entendessem todos os membros - 41 - do meu clero! Em nossos dias é quase impossível reconduzir a classe operária à Igreja se não mantivermos com ela um relacionamento constante fora da Igreja! Devemos sair do templo se quisermos exercer uma ação salutar no templo! Precisamos ser homens de nosso tempo, vivendo a vida do povo, aproximando-nos dele com a imprensa, as associações, as equipes, os círculos operários, os patronatos para crianças, enfim, com toda a espécie de beneficência privada e pública! Meus amigos, o mundo caminha, e nós não podemos ficar para trás por certas dificuldades formalísticas ou por ditames de uma prudência malentendida! Se não se fizer conosco, se fará sem nós e contra nós!” Uma Igreja viva e participativa, era o que ele sonhava e desejava. Em 1896, numa carta pastoral sobre o que se deve entender por ação católica na sociedade, repisava e completava os conceitos de sempre: “Não nos iludamos: se não agirmos nós, agirão os outros, sem nós e contra nós! Talvez nos possam acusar de agirmos por objetivos escusos e por finalidades interesseiras; antes de a nós, porém, essa acusação foi dirigida contra Jesus Cristo, que, apesar de ensinar que se desse a César o que é de César, foi condenado como agitador do povo. Fazer o próprio - 42 - dever e ficar em paz com todos é simplesmente impossível! Precisamos nos convencer cada vez mais que hoje já não é suficiente o que era antigamente. Para tempos novos, técnicas novas; para chagas novas, remédios novos; para novas artes de guerra, novos sistemas de defesa! Hoje em dia, como já vos disse noutra ocasião, é preciso que o sacerdote, principalmente o pároco, saia do templo se quiser exercer uma ação salutar no templo! Contudo, devemos nos entender bem: saia do templo depois de ter buscado luzes e forças na piedade e na oração; saia do templo, mas conserve o olhar sempre voltado para o templo; saia do templo como o sol de seu pavilhão: esplêndido da luz de Deus e do fogo da caridade que ilumina, aquece e fecunda!” - 43 - Audiências Públicas sobre o fenômeno migratório em Porto Alegre - RS - 44 - CONGREGAR NA UNIDADE OS FILHOS DE DEUS DISPERSOS Todos os santos, que são os únicos verdadeiros cristãos, têm como ideal de vida a comunhão. João Batista Scalabrini não fez exceção à regra. Foi o que compreendeu outro santo, Luís Orione, que assim sintetizou a atuação do amigo de Piacenza: “D. Scalabrini era um homem que procurava entrar no campo adversário salvando o essencial e cedendo tudo quanto podia, no intuito de ganhar os ânimos e realizar o máximo bem possível. Eu explicaria sua atuação com estas palavras: ‘Entrar com a deles para sair com a nossa!’ Era uma pessoa que não perdia ocasião de fazer de si mesmo uma ponte, com o santo objetivo de conciliar e unir firmemente os filhos do Pai comum dos fiéis. Ao invés de se fixar nas aparências, mirava a alma das coisas, lutando para extirpar quanto de sectário afligia os seus tempos.” Não era fácil para ninguém acertar o caminho a seguir quando se tratava de conciliar o que parecia inconciliável. A Igreja fora colocada no escanteio! Depois de uma série de desencontros e de lutas, em - 45 - 20 de setembro de 1870, perdera o pouco que ainda sobrava dos antigos Estados Pontifícios. Ressentida, fechara-se em si mesma, e passou a ver adversários em todos quantos não sintonizassem com suas opiniões políticas, culturais e sociais. O fosso que a separava da sociedade leiga parecia aumentar indefinidamente. De um lado o governo, manipulado pela maçonaria, dilapidava seus bens e perseguia seus membros; de outro, a autoridade pontifícia condenava e excomungava. Já não se podia ser, simultaneamente, católico e italiano! A oposição mútua chegou a tanto que, já em 1861, o episcopado italiano tinha adotado como norma e prática política o princípio: “Nem eleitos nem eleitores!” Já que o governo mandava e desmandava a seu bel-prazer, roubando, caluniando e prendendo quem lhe fazia oposição, os católicos foram proibidos de votar e de ser votados!... Em 1871, logo após a tomada de Roma, a Santa Sé fez sua a proibição, com o famoso decreto: “Non expedit: não é conveniente”, que em 1886, passou a significar: ”Non licet: não é permitido!” Não é que D. Scalabrini tentasse servir a dois senhores ou acender uma vela a Deus e outra ao diabo... Mas jamais aceitou a dicotomia, a oposição sistemática e a luta que muitos, inclusive eclesiásticos, achando-a natural, chegavam a incentivar! A solução era participar. A omissão não leva a nada! Era o que dizia em 1887 ao amigo Jeremias Bonomelli, - 46 - bispo de Cremona, comentando um abaixo-assinado que organizações católicas pretendiam endereçar ao Parlamento italiano pedindo uma aproximação com o Vaticano: “É algo deveras curioso: primeiro, os católicos devem ficar fora do Parlamento; depois, promovem-se e apóiam-se abaixo-assinados a esse mesmo Parlamento! Se isso é coerência, então eu não entendo mais nada!” Sua filosofia política está sintetizada numa carta pastoral que enviou ao povo de Piacenza, em 1882: “Hoje não é mais possível ficarmos acomodados em nossas casas, suspirando ou chorando, quando o fogo da descrença se dilata e ameaça destruir a fé de nossa terra. Saiamos de nossas tendas, mas lembrados de que não temos outras armas senão a fé e a caridade! Com estas armas, ingressemos na vida pública, de acordo com o que as leis civis e a consciência de católicos nos consentem, sem olharmos para facções políticas, dispostos a morrer antes de pactuar com a falsidade e a injustiça! Ingressemos na vida pública, não como inimigos do poder constituído, mas como incansáveis adversários do mal, onde quer que se encontre! Ingressemos como homens da ordem, que sabem, a exemplo de Cristo e da Igreja, tolerar o mal, se for preciso, sem jamais aprová-lo ou praticá-lo! É preciso participar da vida pública, servindo-se de todos os meios - 47 - lícitos, para o triunfo da verdade e da justiça!” O fato de ter assumido uma posição clara, firme e totalmente aberta ao diálogo com o mundo lhe criou muitas dificuldades com lideranças da Igreja e da sociedade italiana, inclusive com o próprio papa Leão XIII, do qual dizia a Jeremias Bonomelli em 1886: “Escrevi-lhe mais vezes, e sempre forte e alto, talvez até demais! Cheguei a dizer-lhe que em breve terá que apresentar-se diante de Deus, ao qual deverá prestar contas da multidão de almas que se vão perdendo; falei-lhe também dos danos imensos que está causando aos bispos, que já não têm liberdade nem de palavra nem de ação...” Com muita razão, em 1968, recebendo em audiência um grupo de missionários scalabrinianos, o papa Paulo VI reconheceu em João Batista Scalabrini o apóstolo da conciliação, afirmando: “Vocês me oferecem uma ocasião propícia de render homenagem à memória de seu Fundador. Célebre por algumas posições que, podemos dizer, anteciparam os acontecimentos da história dos católicos na Itália, teve pontos de vista particulares, então muito discutidos, mas de longo alcance, quanto à posição do papado no Estado italiano, e à participação, na época proibida, dos católicos na vida pública da nação. Jamais aprovou a fórmula em vigor: “Nem eleitos, nem eleitores!” Se isso lhe valeu grandes discussões, também lhe valeu o mérito de - 48 - ter intuído qual devia ser a posição dos católicos em nosso país!” Outro santo que reconheceu os méritos de João Batista nesse campo foi Luís Guanella, seu colega no seminário de Como. Deixou escrito mais tarde: “A Igreja é como um exército; se uns pertencem à vanguarda, outros estão na retaguarda! João Batista Scalabrini ficou na vanguarda - mas sempre com o papa!” “Sempre com o papa”, pois, para ele, a unidade eclesial estava acima de tudo. Era ela que lhe fazia repetir: “Precisamos fazer conhecer ao papa o verdadeiro estado das coisas!” De fato, jamais a identificou com a omissão, o silêncio e o passivismo. Como bispo, sentia-se responsável por todas as Igrejas. Em todo o caso, vendo no papa o centro e o sinal da unidade da Igreja, não media suas palavras, que, aliás, brotavam do fundo do coração, quando reafirmava sua adesão ao Pontífice romano: “Será sempre nosso orgulho pensar em tudo e sempre como o papa, julgar como ele, sentir como ele, agir como ele, sofrer com ele, combater com ele e por ele! Considerar-nos-emos felizes se pudermos dar o sangue e a vida pela sua causa, que é a causa de Deus!” - 49 - - 50 - O APELO NA ESTAÇÃO FERROVIÁRIA Desde pequeno, João Batista conviveu com o grave problema que afetava a maior parte dos países europeus de seu tempo: a emigração em massa de milhões de trabalhadores que buscavam melhores condições de vida na América. Só da Itália e apenas durante o seu episcopado (1876-1904), saíram 7.861.000 pessoas, sem contar os clandestinos. Através de seus vários escritos sobre o problema, um dos mais graves da atualidade, segundo ele próprio reconhecia, teremos a ocasião de conhecer de perto alguns de seus aspectos mais dolorosos. Comecemos com o que se poderia denominar a sua vocação ao novo serviço na Igreja. “Há vários anos, assisti em Milão a uma cena que me deixou na alma um sentimento de profunda tristeza. Passando pela estação, vi o salão, os pórticos laterais e a praça vizinha tomados por trezentas ou quatrocentas pessoas mal vestidas, divididas em diversos grupos. Sobre suas faces bronzeadas pelo sol e sulcadas pelas rugas precoces que a penúria sói imprimir, transparecia a agitação dos sentimentos - 51 - que invadiam seus corações naquele momento. Eram anciãos curvados pela idade e pelas fadigas; homens na flor da idade; senhoras que arrastavam os filhinhos atrás de si, ou os carregavam ao colo; meninos e meninas, todos irmanados por um só pensamento e guiados a uma única meta. Eram emigrantes. Pertenciam às várias províncias da Alta Itália, e com trepidação esperavam o trem que os levaria às praias do Mediterrâneo, donde zarpariam para a longínqua América, com a esperança de terem menos hostil a fortuna e menos ingrata a seus suores a terra. Partiam, os pobrezinhos: uns chamados pelos parentes que os haviam precedido no êxodo voluntário; e outros, sem saber para onde, levados pelo poderoso instinto que faz migrar as aves. Iam para a América, onde tantas vezes o ouviram dizer, - havia trabalho bem remunerado para qualquer pessoa de braços fortes e de boa vontade. Com lágrimas nos olhos, tinham-se despedido do torrão natal, que os ligava a si por numerosas e doces lembranças. Mas sem remorso abandonavam a pátria, que apenas lhes era conhecida sob duas formas odiosas: o recrutamento e a cobrança dos impostos! Pois, para o deserdado, a pátria é a terra que lhe garante o pão; e lá, bem longe, esperavam consegui-la menos parcimonioso e menos custoso. - 52 - Parti comovido. Uma onda de sentimentos tristes me invadia o coração. Quem sabe quantas desgraças e privações - pensava comigo mesmo - tiveram de suportar para lhes afigurar leve um passo tão doloroso! E quantas ilusões, quantos novos sofrimentos lhes reservava o futuro incerto! Quantos deles, na luta pela vida, sairiam vitoriosos?! Quantos não sucumbiriam no burburinho das cidades ou no silêncio das planícies desertas? E para quantos, mesmo achando o pão do corpo, não faltaria o pão da alma, não menos necessário do que o primeiro, e perderiam, numa vida totalmente materialista, a fé de seus pais?! Desse dia em diante, surpreendi-me muitas vezes com o pensamento voltado para esses infelizes, e aquela cena me traz à mente outra não menos dolorosa, não vista mas entrevista pelas cartas dos amigos e pelos relatórios dos viajantes. Eu os vejo desembarcarem numa terra estranha, em meio a um povo que lhes fala uma língua incompreensível, vítimas fáceis de explorações desumanas; vejo-os banhar com seu suor e com suas lágrimas um sulco ingrato e uma terra que exala miasmas pestíferos; alquebrados pelas fadigas e consumidos pela febre, suspiram inutilmente pelo céu da pátria distante e pela antiga pobreza da casa paterna; e, finalmente, sucumbem sem a amizade dos entes queridos que os consolem - 53 - e sem a palavra da fé que lhes aponte o prêmio prometido por Deus aos bons e aos oprimidos. E aqueles que triunfam na rude batalha da vida, ei-los no isolamento, esquecidos totalmente de qualquer princípio sobrenatural e de qualquer preceito da moral cristã, e, perdendo dia após dia o sentimento religioso, que já não é sustentado pelas práticas de piedade, acabam permitindo que os instintos brutais substituam as aspirações mais elevadas! Ante tão deplorável estado de coisas, pergunteime freqüentemente: que solução se deve buscar? Quando leio nos jornais, circulares do governo alertando as autoridades e o público contra as artimanhas de certos agenciadores que recrutam verdadeiras caravanas de escravos brancos para levá-las longe da terra natal, como instrumentos cegos de uma cobiça desregrada, com a miragem de lucros fáceis e abundantes; quando constato, pelas cartas dos amigos e pelos relatórios de viagem, que os párias dos emigrantes são os italianos; que as tarefas mais vis - se é que pode haver vileza no trabalho! são executadas por eles; que os mais abandonados e, por isso mesmo, os menos respeitados, são os nossos compatriotas; que milhares e milhares de nossos irmãos vivem quase desprotegidos pela mãe-pátria, objeto de prepotências quase sempre impunes, sem o conforto de uma palavra amiga, então, confesso- 54 - o, sinto o rubor da vergonha aquecer-me a face, sinto-me humilhado na minha condição de sacerdote e de italiano, e me pergunto novamente: que fazer para socorrê-las?! Não faz muitos dias que um nobre e jovem viajante me trazia a saudação de várias famílias naturais das montanhas de Piacenza, residentes nas margens do Orenoco: “Diga ao nosso bispo que sempre lembramos dos seus conselhos, que reze por nós e que nos mande um sacerdote, porque aqui vivemos e morremos como bichos!” Essa saudação de filhos distantes me soou como admoestação, e a pergunta que me fiz seguidamente concretizou-se nestas considerações que agora passo ao público, e que fui escrevendo à medida que nasciam do coração. Chamo sobre elas a atenção do clero italiano, do laicato católico e de todos os homens de boa vontade, já que a caridade, verdadeira trégua de Deus, não conhece partidos, e o sangue de Jesus Cristo a todos nos irmana numa só fé e numa única esperança, e de todos nos torna devedores!” - 55 - - 56 - ROUBAR OU EMIGRAR! A revolução industrial, junto com o enriquecimento da elite social, também trouxe a miséria para vastas parcelas da sociedade. Os campos começaram a se esvaziar. A máquina passou a substituir o homem, que se sentia cada vez mais instrumentalizado e oprimido. Valia pelo que produzia. Para muita gente, a emigração se apresentava como a única alternativa. Escutemos novamente a palavra do apóstolo dos migrantes: “É de todos conhecido o provérbio: “A fome é má conselheira!” Quem poderia conter um povo que freme sob as convulsões do estômago, se não houvesse a esperança de encontrar alhures o pão cotidiano? Ê fácil, portanto, responder aos que, impressionados com os males causados pela emigração, perguntam ingenuamente: “Por que tanta gente emigra?” A emigração, na quase totalidade dos casos, não é um prazer, mas uma necessidade inevitável. Sem dúvida, há entre os emigrantes também maus elementos, vagabundos e viciados; constituem, contudo, a minoria. A imensa maioria, para não dizer a totalidade dos que deixam a pátria para dirigir-se à longínqua América, não - 57 - pertencem a essa espécie; não fogem da Itália por desprezarem o trabalho, mas porque é este que lhes falta, e não sabem como viver e manter a família. Um homem excelente e cristão exemplar de um lugarejo das montanhas, onde eu me encontrava há vários anos em visita pastoral, apresentou-se a mim pedindo a bênção e uma piedosa lembrança para si e para os seus, de partida para a América. Às minhas observações, ele retrucou com este dilema, tão simples quanto doloroso: ‘Ou roubar ou emigrar! Roubar, não devo nem quero, porque Deus e a lei o proíbem; ganhar o pão para mim e para os filhos aqui é impossível. Que fazer, então? Emigrar é a única saída que me resta!’ Nada pude acrescentar...” A emigração reflete os erros de uma humanidade que teima caminhar à margem da fé e do amor. Ao invés da partilha, da justiça e da comunhão, que caracterizam o plano divino, o progresso sem Deus leva o homem ao abismo do consumismo, do individualismo e da ambição. E nesse jogo sujo de interesses mesquinhos, a corda sempre arrebenta do lado mais fraco! É o que, com outras palavras, já escrevia o bispo de Piacenza em 1898: “Tudo conspira contra o migrante. Freqüentemente, suas desgraças começam ainda antes de deixar sua humilde habitação, sob as vestes do agente de emigração que o força a partir, - 58 - fazendo resplandecer diante dele uma conquista fácil de riqueza, envia-o para onde lhe agrada e convém, e não aonde o interesse do emigrante exigiria. [...Muitas companhias de navegação contratavam agentes de emigração, pagando-os de acordo com o número de emigrantes arregimentados. Na maioria das viagens de navio transoceânica, eram dezenas ou até centenas os mortos devido às péssimas condições de higiene, é preciso lembrar que os navios transportavam também os animais para o abate...]. Tais desventuras o acompanham durante a viagem, muitas vezes desastrosa, e continuam à sua chegada em regiões assoladas por doenças terríveis, em atividades inadequadas às suas capacidades, sob patrões que se tornaram desumanos pela fome insaciável do ouro ou pelo hábito de considerar o trabalhador como um ser inferior. Assim, os males recrudescem sob as mil ciladas que a maldade lhes arma em países estrangeiros, seja porque ignoram a língua e os costumes, seja porque vivem num isolamento que, muitas vezes, equivale à morte do corpo e da alma. Poderia citar inúmeros fatos que demonstram de quantas lágrimas é banhado e de quanta amargura é repassado o pão dos emigrantes que, levados para lá por vãs esperanças ou por falsas promessas, foram ao encontro de uma odisséia de infortúnios, do abandono, da fome, - 59 - e não raramente, da morte, quando esperavam um paraíso; colorido pela miragem da necessidade, pensavam ver o Eldorado, sem lembrar que o simum violento da realidade rompe num instante com as cidades encantadas dos sonhos. Infortunados! Abatidos pelas fadigas, pelo clima e pelos insetos, caem exaustos sobre a gleba fecundada por seus suores, à margem das florestas virgens, que souberam desbravar não para si nem para os filhos, atingidos por essa doença fatal e gentil que é a saudade, sonhando, talvez, com a pátria que não foi capaz de lhes dar nem mesmo o pão, e invocando inutilmente o ministro da sagrada religião de seus pais, para lhes suavizar os terrores da agonia com as imortais esperanças da fé!” Apesar de reconhecer todas as facetas dolorosas da emigração, principalmente quando forçada e sem proteção nenhuma, D. Scalabrini percebia nela também seus aspectos positivos, como o enriquecimento recíproco dentre os diversos povos e culturas, e inclusive a propagação da fé: “A emigração abre caminhos novos ao comércio, facilita a difusão das descobertas científicas e industriais, funde e aperfeiçoa as civilizações, e alarga o conceito de pátria para além dos confins materiais, dando ao homem como pátria o mundo. E há ainda outra razão, que é a - 60 - principal: assim como a antiga grandeza do império romano foi preparada pelo Céu para tornar mais fácil e rápida a difusão do cristianismo, da mesma forma a emigração se presta admiravelmente à propagação, em toda a parte, do conhecimento de Deus e de Jesus Cristo.” Mas, para tanto, não era suficiente ver, julgar e denunciar! D. Scalabrini sempre se caracterizou como homem de ação. Se tinha em mente um vasto projeto de promoção e evangelização dos migrantes, importava começar a agir. Foi o que fez. “Anualmente milhares de trabalhadores nordestinos deslocam-se para São Paulo para o corte de cana-de-açúcar...” - 61 - - 62 - A OBRA SCALABRINIANA Se quisermos pensar numa data que assinale o início da atividade do bispo de Piacenza em favor dos emigrantes, poderemos colocar 1887. De fato, foi precisamente nesse ano que publicou o primeiro, e talvez o mais importante, de seus sete escritos destinados, cinco deles, a conscientizar a opinião pública italiana sobre as proporções do novo êxodo, e dois, a propor algumas pistas concretas de evangelização e de pastoral migratória, endereçados respectivamente à sua congregação religiosa e à Igreja. Nesse mesmo ano, lançou as sementes de duas organizações, uma religiosa e leiga a outra, que concretizassem e perpetuassem o seu amor pela nova causa. Eis como ele próprio as apresentará, poucos anos depois, numa conferência que pronunciará em Roma: “Sendo que os males da nossa emigração, além dos já enumerados e inerentes a toda emigração, derivam do descaso em que é abandonada, e se resumem na perda da fé, por falta de instrução religiosa; no esquecimento da nacionalidade, por falta de estímulos que a con- 63 - servem viva; e na ruína econômica, pela facilidade com que cai nas malhas da especulação, fundei duas sociedades que tivessem em mira diminuir e destruir, se fosse possível, tais males. Duas sociedades compostas uma de sacerdotes e outra de leigos; uma religiosa e outra civil; duas sociedades que se auxiliassem e se completassem mutuamente. A primeira é uma congregação de missionários que busca principalmente o bem-estar espiritual dos nossos emigrantes; a segunda, sobretudo o seu bem-estar material. A primeira alcança seu objetivo fundando igrejas, escolas, orfanatos e hospitais através de sacerdotes unidos como uma família mediante os votos religiosos de castidade, obediência e pobreza, prontos a voar para qualquer lugar aonde são enviados: como apóstolos, mestres, médicos e enfermeiros, de acordo com as necessidades. A segunda dissuade a emigração quando a percebe prejudicial e, se nada mais pode fazer, vigia para que a atuação dos agentes não ultrapasse os limites da legalidade; por fim, orienta e encaminha os emigrantes a um destino melhor.” Como se percebe, a estrutura e os objetivos das duas organizações, sobretudo da segunda, precisam ser vistos à luz do século passado, quando, na Igreja, tudo girava em torno do sacerdote, e os leigos não - 64 - tinham ainda alcançado a sua autonomia... Com o passar dos anos, porém, tanto a Congregação dos Missionários de São Carlos como a Sociedade São Rafael - estes os nomes com que serão batizadas definirão melhor suas metas, assumindo um campo de ação mais adulto e eficaz. A Congregação dos Missionários de São Carlos nasceu no dia 28 de novembro de 1887. Naquele dia, na Igreja de Santo Antonino, em Piacenza, o Fundador recebeu o compromisso religioso dos padres José Molinari e Domingos Mantese, que formaram a primeira comunidade da nova congregação. No dia 12 de julho do ano seguinte, por ocasião da primeira profissão religiosa, seus membros já chegavam a doze. Nesse mesmo dia, dez deles foram enviados ao Brasil e aos Estados Unidos como missionários dos migrantes. Desta forma, o bispo via realizada, numa forma talvez nunca antes imaginada, a antiga vocação missionária. A razão do nome dado à congregação foi explicada pelo bispo em 1892, numa carta-aberta a seus missionários: “São Carlos, como já foi dito muito bem, era um daqueles homens de ação que não hesitam, não se dividem e não recuam jamais; que em tudo o que fazem colocam toda a energia da própria vontade, toda a integridade de seu caráter, tudo o que são! E vencem!” - 65 - Por sua vez, a Sociedade São Rafael nasceu na Alemanha, em 1868, e, dentro de poucos anos, estava ramificada em vários países europeus. Composta de advogados, professores, médicos e outros voluntários, tinha como objetivo a defesa e a promoção dos interesses dos migrantes, principalmente nos portos de embarque e desembarque, e nos países de destino. Na Itália, chegou em 1887, quando João Batista fundou em Piacenza uma espécie de filial, com o nome de Associação de Patronato. Em 1891, já estava instalada no porto de Nova lorque. Para uma assistência mais completa aos migrantes, cujas necessidades se descortinavam cada vez mais urgentes, já não eram suficientes uma congregação masculina e uma sociedade leiga. O próprio bispo o reconheceu em 1889, falando com um grupo de irmãs: “A ação dos sacerdotes não seria completa sem a de vocês. Há coisas que somente vocês podem conseguir. Deus infundiu no coração da mulher uma força toda particular, que a leva a exercer uma influência misteriosa nas mentes e nos corações”. Foi por isso que em 25 de outubro de 1895, por sugestão do Pe. José Marchetti, diretor do Orfanato Cristóvão Colombo, de São Paulo, completou a sua obra fundando a Congregação das Irmãs Missionárias de São Carlos Borromeu. - 66 - Tais fundações, porém, constituem apenas um aspecto de sua ação desenvolvida na Igreja e na sociedade italiana. Simultaneamente, levou à frente, junto às autoridades civis, toda uma gama de iniciativas visando uma legislação mais humana e eficaz em favor dos emigrantes, sobretudo em 1888 e em 1901, quando o Parlamento foi chamado a legislar sobre o assunto. Durante os anos de 1891 e 1892, D. Scalabrini visitou as maiores cidades da Itália, no intuito de implantar em cada uma delas equipes locais da Sociedade São Rafael. Por fim, em maio de 1905, um mês apenas antes de falecer, enviou à Santa Sé um longo documento propondo a criação de um organismo do Vaticano, encarregado de promover a pastoral migratória em âmbito de Igreja universal, organismo ainda hoje existente sob a denominação de Pontifícia Comissão de Migrações e Turismo. Para sermos um pouco mais completos, só nos cabe acrescentar que, em 1962, a herança espiritual do apóstolo dos migrantes se concretizou numa nova fundação, a das Missionárias Seculares Scalabrinianas. Complementando a presença religiosa das Congregações de São Carlos e atualizando a ação da Sociedade São Rafael, revivem o aspecto leigo da obra scalabriniana, tão insistentemente recomendado por João Batista Scalabrini. - 67 - “São Carlos, como já foi dito muito bem, era um daqueles homens de ação que não hesitam, não se dividem e não recuam jamais; que em tudo o que fazem colocam toda a energia da própria vontade, toda a integridade de seu caráter, tudo o que são! E vencem!” - 68 - A TERRA PROMETIDA DA IGREJA? Desde 1892 João Batista tencionava visitar seus missionários e os emigrados italianos nos Estados Unidos e no Brasil. Contudo, a cada ano que passava, os obstáculos mais diversos impediam, ou retardavam, a efetivação desse anseio. Finalmente, em 1901, conseguiu o tempo suficiente para dirigirse aos Estados Unidos. Partiu do porto de Gênova no sábado, dia 20 de julho, junto com outros 1.200 emigrantes. No dia seguinte iniciava sua atividade pastoral, que se estenderá até o dia 3 de agosto, data de seu desembarque em Nova lorque. Escrevia então: “Celebro a santa missa sobre a tolda, à vista do mar muito tranqüilo. Assistem a ela recolhidos todos os passageiros. É domingo. Não consigo exprimir-lhes o que sinto! São impressões celestiais, divinas! No momento da elevação da hóstia, todos se comovem até às lágrimas!” Diariamente, pelo espaço de uma hora, dava catecismo a um grupo de jovens. No dia 28 de julho, ministrou-lhes o sacramento da crisma e a primeira eucaristia. Sua permanência nos Estados Unidos se pro- 69 - longou até 12 de novembro, inteiramente preenchida por uma programação intensa e cansativa, mas rica em frutos e bênçãos. De 19 a 24 de agosto, pregou um retiro a sessenta sacerdotes italianos, no seminário diocesano de Dunwoodie. Escrevia no último dia: “O Pe. Teodoro Paroli havia viajado duas noites e dois dias, desde Nova Orleans; outros viajaram quarenta e duas horas. Provinham de quase todos os Estados, e representavam as várias regiões da Itália. Falei sempre com profunda emoção, e os bons padres estavam mais comovidos do que eu! Vi vários chorarem copiosamente. O fato é novo: um bispo italiano que prega a sacerdotes italianos a 8.000 quilômetros da Itália! Eu exultava, e os padres vibravam!” Em 10 de outubro, teve uma audiência particular com o presidente Teodoro Roosevelt. No dia 15, recebeu uma homenagem da comunidade italiana de Nova lorque no Catholic Club, onde pronunciou uma conferência sobre a missão da América no mundo, missão que, se aplicada a toda a América - do Norte, Central e do Sul -, não deixa de ter atualidade também hoje, sobretudo se se pensa no incremento do catolicismo que os imigrantes europeus trouxeram aos Estados Unidos, e no novo estilo de Igreja incentivado pelas comunidades eclesiais de base da América Latina: - 70 - “Mais de uma vez e com uma alegria que me entusiasmava, admirei os grandes desígnios de Deus sobre a América, a Terra Prometida da Igreja católica! Dia virá em que nesta terra, se a inércia, a ignorância dos caminhos de Deus, o descanso sobre os louros conquistados, ou o confronto de santas aspirações não desviarem os povos do plano divino, todas as nações terão gerações numerosas, ricas, felizes, sadias e religiosas, as quais, mesmo conservando cada uma as riquezas da própria nacionalidade, viverão profundamente unidas! Desta terra abençoada, surgirão ideais, amadurecerão princípios, desabrocharão forças novas e misteriosas, que regenerarão o Velho Mundo e lhe darão o verdadeiro significado da liberdade, da fraternidade e da igualdade; demonstrar-lhe-ão que povos diferentes pela origem podem conservar sua língua e suas características nacionais, unidos política e religiosamente, sem barreiras que os dividam e sem armamentos que os destruam uns aos outros! Assim, com a América e pela América, realizar-se-á o grande ideal do Evangelho: ‘Um só rebanho e um só pastor!’ “ (Jo 10,16). O Pe. Orestes Alussi, numa carta que escreveu a um amigo no dia da despedida de seu Fundador, em 12 de novembro, assim descreve a permanência do Bispo na América do Norte: - 71 - “Ele se deteve nos Estados Unidos três meses e dez dias, e em tão breve espaço de tempo pronunciou 340 discursos, crismou milhares de crianças, viajou dia e noite por milhares de quilômetros, dormindo nos trens e mudando constantemente de leito, de alimento, de clima e de hábitos. Contudo, entre tanta atividade, era visto sempre contente e sempre gozando, graças a Deus, de boa saúde, sinal evidente de que Deus o queria na América para fazer o bem aos italianos aqui radicados. E o conseguiu! Precisamos agradecer a Deus de todo o coração, porque a curta estada de D. Scalabrini na América reergueu de muito o moral dos emigrados, e todos, sem distinção nenhuma, reconheceram nele um verdadeiro apóstolo e um santo inteiramente dedicado à salvação das almas!” - 72 - O PARAÍSO TERRESTRE Os Estados Unidos eram apenas a primeira etapa de outra viagem, bem mais difícil e aventurosa, que seus missionários exigiam: a visita ao Brasil. Apesar da idade que avançava e da atividade febril que levou adiante nos anos de 1902 e 1903, para recuperar o “tempo perdido” - como definia os três meses passados na América do Norte -, em 1904, o bispo dos migrantes julgou chegado o momento de conhecer o Brasil e de, na Argentina, rever Pedro, o irmão que não via há 36 anos. Os amigos e familiares recorreram a todo tipo de expediente para dissuadi-lo, bem sabendo das dificuldades de locomoção que o esperavam em nosso país. Mas foi tudo inútil. Começou a estudar a língua portuguesa e preparou uma homilia em honra de Nossa Senhora, que pronunciará no santuário de Nossa Senhora de Caravaggio, no Rio Grande do Sul. Desta vez, partiu de Nápoles, em 17 de junho, após ter sido recebido pelo papa Pio X, que o encarregou de representá-lo junto aos migrantes, e lhe prometeu que todos os dias, às 7 horas da manhã, faria um momento de oração em seu favor. Em sua companhia viajava um grupo de padres e de irmãs de sua - 73 - Congregação, destinados às missões do Brasil. Como fizera na primeira viagem, passou a se dedicar inteiramente aos quinhentos emigrantes que viajavam com ele, cem deles naturais da Turquia. Escrevia no dia 19: “É domingo. Pode-se dizer que hoje começou a nossa missão. O navio parece transformado num mosteiro. Celebro a missa e falo comovido, comovendo os quinhentos passageiros. Como o Evangelho se presta bem: o Mestre divino instruindo, da barca, as multidões, e eu, sobre a tolda, no meio do mar!... As palavras de Jesus Cristo: “Faze-te ao largo!” (Lc 5,4) me inspiram bons pensamentos. Mesmo sem o ser, tornamo-nos eloqüentes! Muitas são as pessoas que se aproximam da mesa sagrada. É uma cena de paraíso!” Após uma viagem de 20 dias, em 7 de julho chegava ao Rio de Janeiro, acolhido pelo Arcebispo Joaquim Arcoverde Albuquerque Cavalcanti. Escrevia em seu diário de viagem: “Deixei o navio para admirar a belíssima cidade do Rio de Janeiro e seu porto grandioso, único no mundo. Imaginem um braço do mar cheio de ilhotas e cercado, por três lados, de montes mais ou menos altos e, agora, no coração do inverno, totalmente verdejantes e tomados por casas e palácios e terão uma pálida idéia da realidade! O arcebispo do Rio de Janeiro - 74 - recebeu-me com a cordialidade de um velho amigo. No regresso, acompanhou-me até o navio. Pareceu-me um homem inteligente e equilibrado. Aqui no Rio de Janeiro é estimado e amado por todos; ele, porém, lembra ainda São Paulo, onde foi bispo durante muitos anos e realizou um bem extraordinário.” No dia 8, celebrou seu último aniversário na terra durante a viagem para Santos, onde chegou ao entardecer. No dia 9 de manhã subiu para São Paulo, num trem especial, colocado à sua disposição pelo governo paulista. Na capital, dezenas de amigos e de autoridades civis e eclesiásticas estavam à sua espera, tendo à frente o bispo local, José de Camargo Barros. Entre eles, naturalmente, os primeiros eram os seus missionários e missionárias, bem como os orfãozinhos, garbosos por abrilhantarem a recepção com uma poderosa banda. Como residência, ele preferiu ficar no Instituto Cristóvão Colombo, ao lado de seus filhos e filhas, declinando gentilmente da oferta que lhe fizeram tanto o bispo paulistano como o abade de São Bento. Com o primeiro, encontrou-se poucos dias depois e, como fizeram com D. Joaquim, tratou da assistência prestada - ou a ser prestada aos imigrantes italianos. As primeiras impressões, como quase sempre acontece, foram ótimas: “Trata-se de um lugar maravilhoso! Dir-se-ia que o paraíso terrestre devia, ou podia, ser esse!...“ O que mais lhe interessava, porém, - 75 - eram as pessoas. Escrevia em 11 de julho: “Os nossos bons missionários gozam de estima e veneração em todas as camadas sociais, tanto no clero como no laicato. Os dois orfanatos merecem realmente admiração. Seus 260 orfãozinhos edificam pela bondade, piedade e educação. Destas duas casas, já saíram 810 jovens, formados e encaminhados a uma profissão. Os missionários seguem o regulamento da casa-mãe. Tudo está bem e me dá grande consolo. Hoje conferi as despesas: 980.000 liras, sem sequer um centavo de dívida! É um milagre da Providência divina! De fato, sustentar trezentas pessoas, incluindo missionários, irmãs, mestres de oficinas e de artes, sem afundar em dívidas, só pode ser obra de Deus!” Passou todo o mês de julho fazendo visitas a autoridades, colégios e seminários, mas principalmente a comunidades e fazendas onde estavam os seus migrantes, pelos quais tinha vindo ao Brasil. No dia 30 escrevia de Rio Claro: “Encontro-me cerca de 250 milhas ao norte de São Paulo, visitando os nossos italianos que trabalham nas fazendas. Esta, onde me hospedo, é uma das melhores. Seu proprietário é o conde Prates, um bom católico. No centro da colônia construiu uma capela, onde os italianos se - 76 - reúnem para a reza; a cada dois anos recebem os sacramentos, por ocasião da visita de nossos missionários. Agora que vejo como são as coisas, devo reconhecer que eles são verdadeiros heróis! Nestes dias estão quase todos fora de casa, pregando e confessando, e durante meses a fio passam de fazenda em fazenda, com grandes sacrifícios. Se pudesse dispor de uma centena de autênticos sacerdotes, quanta glória se daria a Deus e quanto bem se faria a essas pobres almas abandonadas, que quase alcançam a casa de um milhão!” No dia 5 de agosto, após pregar um retiro a seus missionários e missionárias, inaugurou a seção feminina do Instituto Cristóvão Colombo, na Vila Prudente, SP. No dia 9, partiu para o Rio de Janeiro, com destino a Niterói, onde foi hóspede dos salesianos, que haviam recebido ordens de seu superior, Pe. Miguel Rua, de o acolher e tratar com toda a fidalguia. No mês que transcorreu em São Paulo, além de festas e aplausos, recebeu também dois violentos ataques do jornal “O Estado de S. Paulo”, como vimos desde o início. A resposta do bispo foi serena: “Não tenho missão política de governo algum. Minha missão é essencialmente religiosa. Uma missão, digamos, política teria comprometido a minha ação e dado margem a ressentimentos. Aliás, detesto decididamente a política. Tenho - 77 - muitas outras coisas a fazer! Meu programa se resume nestas exatas palavras: fazer todo o bem que se pode sem causar transtornos a ninguém! ...” No dia 11 de agosto, João Batista deixou o Rio de Janeiro, e precisou de seis dias para chegar a Curitiba, numa viagem bonita, mas cansativa, primeiramente de navio, até Paranaguá, e em seguida de trem. Acolhido com alegria pelos missionários, montou seu quartel-general em Santa Felicidade, donde visitava diariamente as comunidades italianas vizinhas ou distantes, inclusive até Ponta Grossa, na região do Tibagi, onde conheceu os Índios. Eis como uma testemunha ocular lembra o fato: “O bispo limitou-se a visitar os primeiros povoados, apesar de desejar ir mais adiante. Lembro que, na ocasião, ele recebeu do cacique como presente duas galhetas de metal para a missa, que haviam pertencido aos missionários jesuítas, expulsos da região pelo governo português, galhetas que o Servo de Deus ofereceu ao Santo Padre, Pio X. A visita alegrou a tribo, e o cacique suplicou que intercedesse junto ao Grande Sacerdote, o papa, para lhes conseguir um missionário.” O bispo escreveu imediatamente a Pio X, e em outubro, nem bem um mês depois, enviou para Tibagi o Pe. Marcos Simoni, o primeiro sacerdote de sua Congregação a se dedicar aos Índios. - 78 - Depois de quinze dias de permanência em Curitiba, no dia 3 de setembro, embarcou em Paranaguá, e no dia 10 estava em Porto Alegre. No dia 13, subiu o rio Taquari e pernoitou em Estrela. Na manhã seguinte, a cavalo, viajou a Encantado, a primeira paróquia scalabriniana do Estado. Sofrendo de hidrocele há muitos anos, a cavalgada de 7 horas lhe foi um martírio, como reconheceu o Pe. Domingos Vicentini, pároco da comunidade: “De manhã, já estavam prontos os cavalos vindos de Encantado, com um numeroso séquito de colonos para escoltá-lo. O bispo logo entendeu o difícil caminho que o aguardava e o tormento que enfrentaria pelo meio de transporte que lhe era oferecido. Crucificado pelo mal que o afligia, perguntou várias vezes se não havia outro meio de locomoção, nem que fosse um carretão qualquer. Ante a resposta negativa, exclamou: ‘Pois bem, partamos em nome do Senhor!’ ” Ficou oito dias em Encantado. O Pe. Máximo Rinaldi, coadjutor da paróquia e mais tarde bispo de Rieti, na Itália, nos assevera que ele “se entregava a uma atividade incessante, cansativa e desgastante, tanto pelo clima quanto pelo meio de transporte. Adaptava-se a tudo. Sempre sorridente e bemhumorado, mesmo à mesa, contentava-se com o que lhe preparava o cozinheiro, que não era outro senão o abaixo-assinado ... “ - 79 - De Encantado, sempre a cavalo, ou, de vez em quando, quando as estradas se faziam impossíveis, ou a dor causada pela hidrocele insuportável, carregado numa espécie de padiola ou puxado num carroção, passou a visitar praticamente todas as comunidades italianas da região: Coronel Pilar, Garibaldi, Bento Gonçalves, Veranópolis, Nova Prata, Nova Bassano, Caravaggio e Caxias do Sul. Em toda a parte, multidões o aguardavam como se fosse o próprio papa que chegava, e participavam extasiadas da celebração da missa, que sempre constituía o ponto alto da visita. Dizer do trabalho sobre-humano que levou adiante durante o mês e meio que passou em território gaúcho é-nos impossível! Em Veranópolis crismou 4.951 pessoas, 2.153 delas num só dia... Aproximadamente 15.000 jovens receberam de suas mãos esse sacramento nas diversas comunidades onde o administrou. Por contratempos inesperados, só pôde partir de Porto Alegre no dia 27 de setembro. No dia 29 escrevia de Rio Grande: “Em Porto Alegre, fui obrigado a demorar-me quase oito dias. E aqui, quanto tempo deverei esperar?! É uma grande pena! Mas paciência! Vim por Deus, e por seu amor é preciso sofrer pacientemente tudo, tudo!” Desembarcou em Buenos Aires em 9 de novembro. Desde 1868 não via seu irmão Pedro, mas ficou com ele apenas até o dia 11. A viagem de volta - 80 - se prolongou por 24 dias. Chegou em Piacenza em 6 de dezembro, cansado e esgotado, mas feliz. Seis meses após, porém, a doação com que levara à frente os cinco meses transcorridos na América do Sul lhe custaria a vida. Justa, por isso, é a observação do Pe. Domingos Vicentini: “Durante a sua viagem tão extenuante e a sua estada nas colônias italianas, D. Scalabrini emagrecera e parecera, às vezes, pálido. Na viagem de volta, porém, parecia ter-se restabelecido por completo. Nem o organismo nem a conversação demonstravam cansaço ou esgotamento. Rico de novas experiências e satisfeito pelos frutos colhidos por sua instituição, sonhava com metas maiores. Quem teria, então, pensado que depois de aproximadamente seis meses a doença que o martirizava havia sete anos o levaria ao sepulcro?! É opinião comum que ele próprio, pelos sofrimentos daquela viagem, tenha contribuído para infortúnio tão doloroso. De minha parte, nada sei. Mas, se assim fosse, nós teríamos uma razão a mais para saudar em D. Scalabrini o Apóstolo e Mártir dos Migrantes.” - 81 - - 82 - ESTOU PRONTO, SENHOR, PARTAMOS! No dia 21 de janeiro de 1901, poucos dias antes de celebrar suas bodas de prata de serviço episcopal na diocese de Piacenza, João Batista Scalabrini escreveu uma carta ao papa Leão XIII, resumindo o ideal de vida que se esforçara para levar adiante até então: “Sinto-me contente em abrir meu ânimo aos pés de Vossa Santidade, principalmente nessa ocasião. Se olho para as obras realizadas por entre não poucas dificuldades, tenho grandes motivos de me alegrar no Senhor; mas se, com o pensamento, penetro na profundidade do meu espírito, não vejo senão matéria de remorso pelo muito que não fiz, ou que não fiz bem. De uma só coisa, porém, posso assegurar-vos, Beatíssimo Padre: em todas as circunstâncias jamais tive em mira senão a glória de Deus e a salvação das almas a mim confiadas.” Certamente, podemos acreditar na sinceridade e na verdade das palavras do santo bispo que, consumido pelas fadigas e pelo amor, via aproximar-se rapidamente o fim de sua peregrinação terrena. Tal - 83 - convicção ajudava-o a imergir cada vez mais no essencial, relativizando qualquer ambição humana que ainda pudesse aninhar-se em seu coração. Assim, por exemplo, aconteceu durante os festejos de seus 25 anos de episcopado. Por toda a Itália, circularam insistentes rumores de que seria elevado a cardeal arcebispo de Ravena. A carta que então lhe enviou Jeremias Bonomelli expressa também o que dele se pensava em muitos setores da Igreja italiana: “São três ou quatro dias que acompanho as notícias dos jornais que lhe dizem respeito. Desejo ardentemente conhecer a realidade das coisas. Se lhe foram oferecidas a sé de Ravena e a dignidade cardinalícia, por que não aceita? Respeito o seu modo de pensar; mas há momentos em que devemos aceitar também as honras, que, na verdade, não passam de fardos! Para você - estou certo disso - ser hoje cardeal equivale a ser papa amanhã! Para você seria um sacrifício imenso, mas para a Igreja e para a nossa pátria... , não digo mais nada! Ah! se a noticia for verdadeira - e eu a creio verdadeira -, e se ainda há tempo, aceite, eu lhe peço! Faça o grande sacrifício! Você entrar no Sagrado Colégio, subir à cátedra de Pedro e começar uma nova era, seria tudo a mesma coisa! Que Deus o inspire! Rogo a Deus que faça com que finalmente desponte a aurora de um dia mais sereno!” - 84 - A resposta de João Batista é fruto da serenidade de quem nada mais tem a ganhar e a perder, por encarar a vida com outros critérios: “Trocar de diocese aos 62 anos, com tantos compromissos que aqui tenho, e enquanto meu bom clero e meu querido povo estão se preparando com tanto amor para as festas do meu jubileu, não, não, não é possível! Viver, santificar-me - pois já estaria na hora! - e morrer em Piacenza; este é o propósito que renovo a cada ano nos exercícios espirituais! E Deus sempre acolhe semelhantes pedidos! ...” De fato, Deus o atendeu! Mas, em 1903, quando José Sarto se tornou o papa Pio X, novamente, entre os nomes mais cotados para sucedê-lo no patriarcado de Veneza, apareceu o do bispo de Piacenza. No dia 9 de janeiro de 1904, D. Scalabrini recebeu uma carta de Antonieta Giacomelli, líder do catolicismo progressista da época: “Estava para tomar a caneta para lhe exprimir, em nome de todos nós, a imensa alegria experimentada ao ouvir de sua próxima nomeação a patriarca de Veneza, quando me chegou em mãos um jornal que me faz supor que o senhor não está disposto a aceitar! Em nome de Deus, Excelência, não renuncie! O senhor certamente não sabe, nem poderia por ora avaliar, quão grande seja o bem que Deus lhe destinou fazer entre nós, e a extrema ne- 85 - cessidade que Veneza tem de um pastor como Vossa Excelência - e com Veneza, todo o Vêneto!” As respostas do bispo, porém, batiam sempre na mesma tecla: “Eu não penso no cardinalato, mas na morte! O que sinto é grande necessidade de me preparar para a morte. Quanto ao resto, sou totalmente indiferente. E é uma graça de Deus também essa!” A morte veio muito cedo, quando ninguém a esperava, exceto o virtuoso bispo, que há tempo a pressentia. No dia 21 de maio de 1905, após a visita pastoral à paróquia de Borghetto, as dores causadas pela hidrocele foram tão agudas, que foi preciso chamar o médico. O resultado da consulta foi uma inadiável intervenção cirúrgica, que não durou mais de meia hora, mas foi suficiente para enfraquecer de tal maneira seu coração, que no dia 31 recebeu os últimos sacramentos. Logo em seguida, olhando para os que o cercavam, disse pausadamente: “Prestes a comparecer diante do Cristo Juiz, peço perdão a todos e a todos abençôo!” Depois abraçou um por um os sacerdotes, dizendo: “Rezem por mim; saúdem os professores e os seminaristas do seminário, e os meus missionários! Adeus, adeus!” - 86 - A noite foi uma agonia. Nos momentos de lucidez, repetia: “Seja feita a vontade de Deus!” E nos intervalos de delírio, exclamava: “Os meus sacerdotes! Onde estão os meus sacerdotes? Deixem-nos entrar, não os façam esperar tanto!” A morte chegou às 5h50min da quinta-feira, dia 1° de junho, que naquele ano coincidiu com a festa da Ascensão do Senhor ao céu. De acordo com sua irmã Luísa, as últimas palavras que proferiu foram: “Estou pronto, Senhor! Partamos!” Assim, qual peregrino que termina e inicia uma etapa diferente da caminhada, o apóstolo dos migrantes sintetizou o carisma que, por seu intermédio, Deus doara à Igreja, carisma que atualiza o apelo dirigido a Abraão: “Sai de tua terra e vai!” (Gn 12,1), e se orienta para “os novos céus e a nova terra onde habitará a justiça” (2Pd 3,13). - 87 - As referências constantes no texto foram extraídas de cartas, homílias, documentos do Beato João Batista Scalabrini e testemunhos de pessoas próximas a ele. Encontram-se nos livros: CONGREGAÇÕES SCALABRINIANAS. Scalabrini, uma voz Atual. São Paulo, Edições Loyola, 1989. FRANCESCONI, Mario. João Batista Scalabrini, Bispo de Piacenza e dos Migrantes. Roma, Cidade Nova, 1985. RIZZARDO, Redovino. João Batista Scalabrini. São Paulo, Edições Paulinas, 1987. João Batista Scalabrini foi Beatificado, pelo Papa João Paulo II, em 09 de novembro de 1997. O autor Redovino Rizzardo, religioso scalabriniano, escreveu inúmeras publicações sobre o carisma scalabriniano, atualmente é Bispo de Dourados - MS. - 88 -