Luís Carlos Lopes Professor Adjunto Universidade Federal Fluminense Brasil A centralidade da TV nas redes intersubjetivas brasileiras --------------------------------- I Colóquio Interamericano de Ciências da Comunicação: Brasil-Canadá A centralidade da TV nas redes intersubjetivas brasileiras Por Luís Carlos Lopes Professor Adjunto IV da Universidade Federal Fluminense – Doutor (USP – 1992) - em regime de dedicação exclusiva, com pós-doutorado na Universidade de Montreal (1997-1998); professor do Departamento de Comunicação Social e do corpo permanente do Programa de Pós-graduação em Comunicação, Imagem e Informação do Instituto de Artes e Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense. [email protected] Endereço: Rua Triunfo, 26 Santa Tereza – Rio de Janeiro Rio de Janeiro – Brasil 20240-320 (21)25091197 1 Abril de 2002 Resumo Parte-se do princípio, neste trabalho, de que a TV aberta tem entre os seus papéis o de receber e enviar informações socioculturais. Também opera na formulação dos argumentos desenvolvidos sobre o entorno social e, sobretudo, na cristalização de modos de compreendê-lo e vivenciá-lo. Sendo, por isso, um elo de ligação que se superpõe à família, às relações de amizade e de vida comunitária, à escola, ao Estado e às religiões. Apesar disso ser um fenômeno universal, existem peculiaridades brasileiras que devem ser consideradas. Acredita-se que a programação televisiva invade consensualmente o conjunto do espaço social, criando uma aparentemente nova simbologia da vida individual e das relações entre os homens e as mulheres de nosso tempo. Nossas utopias seriam as que são possíveis de assistir na TV, fora dela existiria um vazio de possibilidades de compreensão do mundo. Palavras-chave: tv aberta; comunicação televisiva; utopia Abstract The main author’s goal in this paper is to discuss the idea that the open TV plays the role, among other several ones, of receiving and sending sociocultural information. He points out that open TV works for building arguments which are developed by society and, above all, for fixing the patterns of understanding and practicing them. As a result, open TV is able to create a connecting link with the audience that superposes family lives, friendships and any other communitarian way of living like in schools or religion places. Although it is an universal phenomena, the author thinks there are Brazilian features that must be considered. One believes that television shows invade the role society but in a consensual practice by means of settling a kind of new apparent symbology for personal life and for relationships between men and women of these days. It means that men’s utopias should be the ones shown on TV and, at the same time, there would be a lack of possibilities in knowing the real world outside. Key-words: open TV; communication; utopia 2 Introdução Têm razão os que reclamam do uso da palavra TV sem maior controle de seus significados semânticos e conceituais. A televisão, enquanto tecnologia de comunicação, existe há pelo menos setenta anos. Já é um truísmo dizer que ela se universalizou, a partir da década de 1950, transformando-se na mais importante máquina de comunicar, no que se refere ao seu imenso alcance social e à abrangência de usos. O hábito de ver TV está presente em culturas e línguas muito diversas e alcança quase a totalidade dos habitantes da Terra. Este mesmo meio de comunicação tornou-se possível pela disseminação do mais universal, democrático e íntimo dos aparelhos eletrodomésticos. Ter um aparelho de TV é estar incluído no mundo de nosso tempo. Assim como ainda o é ter um aparelho de rádio, hoje bem menos do que em passado recente. Possuir um telefone celular e um microcomputador vem sendo também, com maiores limitações econômico-sociais, um outro modo de inclusão no mundo simbólico do consumo convalidado socialmente. A revolução da eletrônica, tal como explica Patrice Flichy (1997), foi responsável pela possibilidade de existirem estas e outras máquinas que tanto mudaram e continuam a transformar os nossos espaços públicos e privados. Não é mais possível compreender as sociedades contemporâneas sem considerar que, na intimidade e em outros espaços micro-sociais, é possível assistir ao ‘real e à verdade’ reconstruídos por esta mídia, confessar mentalmente seus desejos e ‘pecados’, dentro dos parâmetros morais que nela coexistem, e se ter a sensação de pertencimento ao mundo que nos rodeia ou ao mundo que imaginamos existir. A TV reproduz várias dimensões materiais e simbólicas da vida, aproxima as pessoas e as seduz com o que parece ou se acredita parecer com elas mesmas. Os efeitos psicológicos e sociosimbólicos que hoje são detectáveis na relação entre a TV e seus públicos preexistiam nos rituais grupais e individuais e em outras cerimônias religiosas e de natureza cívico-militar. A TV emociona, sensibiliza, irrita, mobiliza, desmobiliza, assim como alegra e entristece. Participa do modo com que sentimos e concebemos a vida. O mesmo ocorria, e ainda ocorre, nas festas e outras cerimônias religiosas e pagãs, nas relações interpessoais de convivência, amizade e amor, no ato de assistir aos filmes em salas de cinema, ir ao teatro e ao circo, espetáculos musicais e desportivos e de escutar rádio solitariamente ou em grupo. As transmissões contemporâneas da TV misturam um pouco de cada um destes atos e relações arquetípicas entre os homens e mulheres e suas máquinas de comunicar. O resultado consiste em fenômeno único que precisa ter seu véu desnudado. Uma das discussões mais recorrentes sobre a TV é se ela faz bem ou mal ao seu público. Os parâmetros normativos deste veículo, quando analisados por vários autores, oscilam entre os extremos da diabolização e da deificação. O casal Mattelart (1998) fez importante relato cêntrico sobre as diversas abordagens teóricas dos significados da televisão. É bom considerar que há quem a entenda como um “perigo para democracia” (Popper) e quem a veja como uma expressão dos “vínculos sociais” contemporâneos, critique o desprezo da TV por parte dos intelectuais e elogie o grande público televisivo (Wolton). Esta polêmica revela em si mesma a imensa influência da TV e a necessidade 3 de discuti-la pelos mais diversos ângulos, inclusive o da sua contribuição na formação dos parâmetros morais, como parte das crenças sociais de nosso tempo. Em um espaço de algumas décadas, os antigos laços sociais e culturais passaram a ser permeados pela TV, convalidados por meio da referência midiática, que povoa as relações interpessoais e a atual comunicação intrapsíquica. A TV funciona como um espelho translúcido que pode, no plano do simbólico, servir de transporte entre o material e o simbólico, o público e o privado, a mente dos indivíduos e as crenças coletivas etc. Em suma, o que somos e o que pensamos ser. Não é necessário que a TV seja interativa. Nossas mentes, por meio de nossas percepções, e nosso convívio social, através da comunicação interpessoal, constroem as pontes, mesmo antes da atual possibilidade da interatividade. Mesmo onde não há luz elétrica, os aparelhos eletrônicos podem funcionar com auxílio de pilhas e baterias, dentro de seus limites. Há muito tempo, eles não concorrem entre si, apesar da origem eletrônica comum e de algumas similaridades. Adquiriram personalidades próprias e finalidades sociais específicas. A possibilidade de recepção dos sinais de áudio e vídeo ampliou-se enormemente nas últimas décadas com o uso de transmissores e antenas poderosas, redes de microondas, satélites etc. Apesar dos seus limites tecnológicos de transmissão, o acesso à TV chegou a bilhões de seres humanos, superando em interesse social às redes, um pouco mais antigas, de comunicação via rádio. As melhorias recentes na qualidade técnica da transmissão, a existência de grandes redes nacionais e internacionais e os expressivos investimentos feitos na indústria televisiva aumentaram as possibilidades desta mídia e fizeram crescer sua influência. A tecnologia da TV alcançou ao mesmo tempo sociedades com diversas culturas, vivendo contextos históricos diferentes que passaram a ter o mesmo meio de comunicação e, parcialmente, as mesmas mensagens. A diferenciação nacional ficou por conta da capacidade econômica dos países de produzirem programas televisivos, da existência de culturas e situações políticas mais ou menos permeáveis ao que vem de fora e, por fim, da recepção e releituras do público telespectador. Na maior parte dos casos, a TV aberta – por oposição à TV por assinatura – mistura programas nacionais e estrangeiros. De modo geral, as nações mais ricas tendem a ter esta dosagem diferenciada para menos. Mesmo nestas, as redes nacionais de TV aberta combinam, com variações, uma programação ampla com programas destinados aos públicos regionais, setores étnicos específicos ou a amplos contingentes de imigrantes. Ao contrário do que inicialmente se imaginava, a TV ‘fechada’ está cada vez mais parecida com a aberta, simulando-a, substituindo-a e concorrendo com ela. Conforme o seu público cresce, mais se parecem. No caso brasileiro, a TV por assinatura é o veículo básico da globalização televisiva contemporânea, isto é, tem no mais forte de sua programação e audiência os programas que vêm dos centros imperiais. A TV aberta e a por assinatura têm vários olhos e públicos, criando estilos e, ao mesmo tempo, atendendo a necessidades diversas. Trabalha nas direções da unificação e da diferenciação tentando, como sempre, combinar seus interesses e características técnicas, políticas e econômicas com sua necessidade de ser assistida e cultuada pelos telespectadores de diversos extratos sociais. A primeira é, hoje, mais voltada para os mais pobres. A segunda atinge, principalmente, as classes médias mais abonadas e os mais ricos. Existe uma simbiose entre ambas e a tentativa comercial de ampliação da 4 segunda., mudando o parâmetro da “TV gratuita”. Em países com elevados níveis de concentração de renda, é difícil imaginar que seja possível um crescimento muito grande da segunda. No Brasil atual, teríamos chegado a um impasse com elevados níveis de inadimplência e desistência. Apesar do acesso à transmissão da TV aberta ser gratuito por toda parte, ela só pode funcionar por meio dos investimentos estatais, empresariais e pela adesão dos anunciantes. O antigo modelo inglês e francês de TV estatal, parcialmente copiado pela América Latina, está em crise. De modo geral, as TVs, inclusive as públicas, são hoje negócios do capital, associado aos interesses da publicidade. Se esta se retrai, a TV entra em crise e busca em vários países o socorro do Estado que, em doses diferentes, participa dos investimentos. A TV existe em função do status quo político e econômico dos países onde está instalada, assimilando suas características e funcionando como um dos negócios do mundo contemporâneo. O mundo objetivo da TV não explica, isoladamente, a veiculação de uma programação que é capaz de interferir nas culturas preexistentes e ajudar na recriação dos padrões culturais contemporâneos. A compreensão deste problema é possível, se associamos a objetividade da TV a um negócio empresarial, com a subjetividade do tecido social onde ela atua. São os interesses econômicos que a movem, como qualquer outra empresa, mas estes são uma das suas faces. A outra está na sociedade onde opera, situada principalmente no plano do seu espaço simbólico, mas com imensas implicações materiais. A indústria cultural televisiva, no sentido adorniano do termo, produz produtos simbólicos que só podem ser ‘vendidos’ em um mercado diverso dos convencionais. Por isso, a economia política da TV conduz a um outro tipo de economia, a dos símbolos e signos, no sentido de Bourdieu. A TV vale pelo que ela é em termos materiais e simbólicos e nem sempre estas duas faces caminham juntas ou são compreendidas como algo que corre nos mesmos trilhos. A TV no Brasil A TV está comemorando no Brasil cinqüenta anos de idade. Alguns livros vêm sendo lançados em homenagem ou crítica à efeméride. Predominam a tônica de depoimentos coletivos ou pessoais e a publicação de livros, contendo artigos já publicados na imprensa escrita ou antes originais. É consenso entre os pesquisadores do assunto que a bibliografia é escassa, pouco analítica e marcada pelo poder gerado pelo manejo do veículo. A TV no Brasil passou por várias fases, evoluindo na direção de um negócio milionário, potente, capaz de inibir, mas não impedir, o contraditório. Este exame foi desenvolvido há mais tempo por vários autores, destacando-se os trabalhos de: Miceli, feito, pioneiramente, nos nossos ‘anos de chumbo’, analisando o problema pelo ângulo da sociologia; Pignatari, que fez o mesmo, sob o ponto de vista da semiótica; Sodré que vem nos brindando com vários títulos, onde a questão é revisitada pelo campo transdisciplinar dos estudos comunicacionais. 5 Possivelmente, os dois mais importantes livros recentes sobre o assunto da evolução da TV e seus significados são: o 50 anos de TV no Brasil, organizado por ‘Boni’ (OLIVEIRA SOBRINHO - 2000), onde se misturam depoimentos de executivos, diretores, jornalistas, atores, técnicos, roteiristas etc celebrando a vitória empresarial do padrão televisivo ‘global’, apesar de serem citados os demais empreendimentos e fatos da TV; o A TV aos 50, organizado por Bucci (2000), onde se alternam jornalistas e pesquisadores que tentam recuperar o passado e entender o presente da TV brasileira pelo viés da crítica e da busca de modelos explicativos que dêem conta da compreensão do problema. Parte do que está escrito neste trabalho teve estas duas obras como fontes. O aparelho receptor do sinal televisivo, segundo as estatísticas oficiais, estaria hoje em 98% das casas brasileiras. A TV é vista por todas as classes sociais, inclusive pelos mais pobres. A atual existência da TV por assinatura mudou pouco esta realidade. As classes mais ricas passaram a dispor de uma outra opção que atinge menos do que 5% da audiência. A TV aberta está presente nos lares e nas mentes de pessoas das mais diversas origens, situações econômicas, idades, sexos, religiões e outras crenças. É vista em todo território nacional. A TV brasileira invadiu o edifício simbólico da(s) cultura(s) do Brasil. Está presente no modo como imaginamos, o que somos, queremos, amamos, detestamos e para onde vamos. Apropriou-se de nosso passado, presente e futuro. Sua programação tornou-se um referencial obrigatório, cotidiano que convalida nossas crenças e dialoga com nossas certezas e dúvidas. As representações das coisas do mundo, que nela se podem ver diariamente, confundem-se com as representações externadas e interiorizadas que podem perceber em uma simples investigação ou observação participativa das relações sociais. As grandes redes reproduzem seus programas por todo o país, assim como as repetidoras e associadas locais encaixam seus parcos programas regionais. Estes tendem, com algumas exceções, a caricaturar a programação feita para as redes nacionais, preparando e aproximando o público para o que virá das matrizes. No telejornalismo, por exemplo, isto é bem claro. Os jornais locais funcionam como antepasto das versões em rede nacional. Mesmo nos programas especificamente regionais, busca-se seguir um certo padrão de ‘qualidade’ fiel ao menu principal. De modo geral, nos horários de pico de audiência, são transmitidos os mesmos programas para todo o país. Eles são na grande maioria dos casos produzidos no eixo Rio-São Paulo que controla a produção: das telenovelas de grande apelo de audiência; dos grandes programas de auditório (variedades) com menções ao apelo sexual, o grotesco explícito, entrevistas e shows musicais ou todas estas coisas juntas, lembrando algo próximo aos circos mambembes e ao teatro-vaudeville; dos programas humorísticos de grande apelo popular, gravados em vídeo, recheados de preconceitos, estigmas e senso comum de grande apelo popular; dos inúmeros talk shows, uma verdadeira mania dos últimos anos de trazer a público a intimidade dos semideuses televisivos (personas midiáticas) ou de aproximar mortais da condição olímpica; do noticiário local, nacional e internacional abundante, preenchendo várias tendências políticas e sociais, estimuladas pelas linhas editoriais de cada emissora e pelo uso das agências de notícias internacionais; da recente febre popular dos reality shows, em um polêmico exercício de voyeurismo sociomoral. 6 Os gêneros acima citados são atualmente os mais vistos da produção televisiva e os mais apreciados pela grande audiência. É onde se concentra a TV cotidiana e se fatura alto com os anúncios. Também é onde se decide a política cultural básica das emissoras e o lugar fundamental de encontro do público com a TV. Nos domingos e nos dias da semana no horário entre as 18 e 24 horas, concentram-se os programas mais vistos no país, que são, por quantidade de tempo de exibição e índices de audiência, os de variedades, informação jornalística e as telenovelas. Hoje, o programa de TV de maior audiência brasileira é o Jornal Nacional da Rede Globo de Televisão. O eixo Rio-São Paulo também decide qual deverá ser a programação filmográfica - em sua maioria filmes hollywodianos de sucesso que já passaram nos cinemas brasileiros, desenhos animados norte-americanos e japoneses ou películas trash compradas a baixo preço no mercado internacional - que são disponibilizadas nacionalmente ou em substituição de outros eventos televisivos. Em menor escala, são exibidos filmes nacionais. A programação relativa aos desportos também é decidida no mesmo eixo que hoje, inclusive, influencia nos calendários dos eventos, de acordo com as conveniências televisivas. O futebol – velha paixão nacional – conta com inúmeros programas de análise, feitos no mesmo eixo e exibidos em quase todo país, assim como a privilegiada exibição de inúmeras partidas e de takes de outras consideradas menos significativas. Os documentários jornalísticos sobre questões tais como criminalidade, ecologia, medicina, ciências etc. têm as mesmas características de produção. Não é diferente a situação de produção e transmissão da pequena produção de programas educativos, que são compartilhadas entre as redes públicas e privadas da TV aberta. ‘ Os anúncios publicitários das grandes empresas que vendem para todo o país – os de cerveja, por exemplo – são repassados para o conjunto das retransmissoras das redes, com uma exceção ou outra. A publicidade local, secundária em importância econômica sob o ponto de vista das grandes empresas, fica a cargo de cada emissora regional. De modo similar, os programas de propaganda política pagos e os gratuitos por força de lei obedecem ao mesmo esquema nacional e local. Os programas religiosos, apesar de em alguns casos terem grande abrangência, normalmente, são transmitidos em escala local. Se bem que o ‘local’ é, por vezes, o eixo Rio-São Paulo, as duas cidades mais povoadas do Brasil. De qualquer modo, estes programas, em sua maioria bem novos e voltados para o movimento pentecostal, são peças diferenciais do conjunto da programação televisiva brasileira. As transmissões brasileiras dos mega-eventos ‘cerimoniais’ - no sentido que Dayan e Katz (1996) dão a este termo - tais como a agonia e morte de um político, a transmissão da Copa do Mundo, do carnaval, das eleições majoritárias etc - dependem do cacife econômico do capital fixo investido, do manejo político interno e externo, da capacidade técnica e ‘artística’ de seu pessoal e do esforço publicitário das empresas envolvidas no contexto específico destes fatos. 7 Os brasileiros vêm a si próprios e suas utopias a partir do enfoque televisivo cariocapaulistano. O caráter uniformizador desta transmissão não anula radicalmente as origens locais de nossa cultura que são reaproveitadas a partir deste eixo urbano. É bom lembrar que, apesar de ser um país continental, nessas duas cidades concentramse, por efeito da intensa imigração interna do último meio século, milhões de pessoas que vieram das outras regiões do país. Mais da metade das pessoas que formam a população da Grande São Paulo e do Grande Rio, somadas, nasceram em outras regiões brasileiras ou são filhos de quem lá nasceu. Trata-se de cidades de culturas híbridas no sentido que Canclini deu a esta expressão, com enorme influência de culturas importadas dentro do próprio país e vindas do exterior. A origem do nosso modelo de TV é privada, ao contrário do modelo europeu e, ressalvando-se as diferenças, mais próximo do modelo dos EUA. Nasceu e deu seus primeiros passos a partir de um grande conglomerado de empresas jornalísticas. Continuou o seu crescimento e processo de modernização mudando um pouco de mãos, consolidando-se como um grande investimento altamente lucrativo e capaz de se multiplicar dentro e fora do sistema midiático brasileiro. Por aqui, jamais a TV foi primordialmente estatal, mesmo sendo uma concessão do poder público. Este fato, ambíguo por natureza, é fundamental para compreender os problemas da TV no Brasil, um empreendimento privado, concedido pelo Estado. Os direitos de intervenção, monitoramento e direcionamento sempre estiveram presentes. Em função disto, o direito à censura e o exercício da mesma se estabeleceram sem maiores problemas nos tempos dos governos militares (1964-1984). Sendo uma concessão do Estado, as emissoras têm razões de sobra para temerem a cassação, mesmo que jamais ela tenha ocorrido por discordância com as políticas de governo; assim como, o fundamental da história da TV aberta no país é a colaboração implícita e explícita com o poder estabelecido em cada contexto ou a preparação e auxílio na substituição do poder existente. A seleção de quem pode ou não pode manejar canais de TV é, atualmente, feita pelos poderes executivo e legislativo. Em contextos mais recentes, tais como as últimas eleições presidenciais e outros dos principais fatos políticos do período pós-militar, a participação da TV foi decisiva. Não seria possível imaginar o atual cenário político sem sua dimensão televisiva. O caráter de concessão tem sido sempre lembrado nas crises que envolveram discordâncias entre o Estado, a sociedade civil e as mídias televisivas. Permanece a ambigüidade da topografia simbólica das redes televisivas, que é outra de suas faces. Apontamentos sobre a centralidade da TV A TV é, sob o ponto de vista material, um artefato técnico, fruto da engenharia eletroeletrônica do século passado, que evoluiu como parte integrante da última revolução industrial, a da microeletrônica e das máquinas digitais, tal como explica Flichy. 8 Este artefato possibilitou a construção de um novo negócio do capital, de um sistema de produção diverso dos da primeira revolução industrial, caracterizado pela oferta em um mercado especial, de um novo tipo de mercadoria, vendável de modo indireto: os bens simbólicos de massa. Diferente de outras mercadorias, o que é ‘vendido’ pela TV são imagens e sons, representações da sociedade e da natureza, agora vistas de modo indireto, tal como propugnava Debord. Na época dos folhetins, era necessário que se comprasse o jornal ou libreto. No tempo das telenovelas, basta assistir em sua própria casa, pagando pelo aparelho, luz e pelo consumo de outras mercadorias induzido por meio da publicidade. Isto se repete nos demais gêneros. O seu maior significado não tem natureza técnica, dá-se no plano do social e do simbólico, sendo assim um problema da cultura e de relações sociopolíticas. O problema também reside no fato de que as mercadorias televisivas construíram em seu próprio umbigo, o seu próprio mercado: a audiência. Um dos raros casos onde mercadorias e mercado fundem-se em um só amálgama. A significação da TV e de sua programação como ‘objetos sociais’, nos dizeres de Lochard e Soulages (1998), vem, desde a década de 1960, sendo abordada por inúmeros autores, com imensas variações de enfoques e argumentação. No campo das teorias da comunicação, o debate desenvolveu-se, principalmente, entre os adeptos da emissão e os da recepção. As teorias emissionistas clássicas, sobretudo norte-americanas, que consideraram o público como passivo ou algo próximo a isto, vêm entrando, pouco a pouco, em descrédito. Infelizmente, em muitos dos manuais acadêmicos de comunicação, são elas que ainda dominam o modo que se entende o problema. McLuhan, o mais midiático teórico emissionista, entendeu a televisão como um meio de comunicação único e principal extensão maquínica do sistema nervoso humano (1968; 1993 – p.473-517). Viu esta mídia de modo orwelliniano, acreditando em sua capacidade quase irrestrita de sedução e condução comportamental de sua audiência. As várias teorias da recepção, que por vezes exageram o poder da audiência sobre o meio, são hoje, quanto a sua aceitação entre os pesquisadores, hegemônicas, sobretudo na Europa e na América Latina. Nasceram dos chamados estudos culturais e vêm se estabelecendo como vetor de análise preferencial do processo comunicacional. Estas teorias tentam, nem sempre com sucesso, explicar como o público recebe e dialoga com os emissores televisivos. Daniel Dayan em En Busca do Público (1993) organizou a publicação de coletânea de artigos de diversos autores, quase todos europeus, defendendo a importância de se pesquisarem os efeitos e as reações da audiência à mídia televisiva. Na América Latina, o autor mais conhecido e citado é Jesus Martin-Barbero. Inúmeros trabalhos invocam suas concepções e metodologia. No Brasil, vários pesquisadores têm feito esforços admiráveis de compreensão do fenômeno. O problema do negro nas telenovelas, dentre exemplos citáveis, foi abordado com proficiência por Joel Zito Araújo (2000). Na origem, a teoria da recepção foi uma das derivações da chamada ‘cultura dos vencidos’, dos ‘testemunhos dos sem voz’ etc. Esteve também vinculada à idéia da coleta de depoimentos – história oral – e a uma nova visão do problema da exclusão social. O problema desta abordagem é que, se radicalizada, termina por fazer crer que 9 na cultura popular não coexistiriam os elementos da dominação com os da resistência. Entretanto, na justa dosagem, consistiu em um passo adiante na observação crítica das sociedades e de seus processos comunicacionais, por deixar de entender o público como absolutamente ou relativamente passivo. Sob o ponto de vista da cultura, pode-se afirmar que, no caso brasileiro, a centralidade da TV é evidente. Ela só é possível pela aceitação social, isto é, pela recepção consensual da programação. Certamente, isto se repete com especificidades em alguns países, em outros, talvez não. A centralidade sucedeu a pequena e depois poderosa influência desta mídia na vida social. Ela implica a legitimação do veículo e a crença de sua naturalidade. Foi preciso que, progressivamente, a programação televisiva conquistasse as pessoas de qualquer sexo, raça, classe social e idade, como interlocutora de suas vidas. Está na TV o principal referencial cultural de milhões de pessoas. A exclusão de outras possibilidades, a diminuição de acesso às ações culturais tradicionais ou à vivência social em torno da TV são fatos insofismáveis. Estes atravessam o tecido social, criando um novo paradigma de autoreconhecimento e de identificação. O processo das mediações sociais, no sentido de Martin-Barbero, fez com que a antiga cultura popular se transfigurasse em cultura de massas. A midiatização da cultura tem no senso comum e nas tradições suas principais origens. A cultura midiática é o resultado da leitura das demais culturas, embaladas e reduzidas ao formato de imagens e sons compreensíveis e aceitáveis pelas multidões; que as recebem de acordo com suas características de classe e grupo sociocultural. Acredita-se, em nosso caso, na importância de se considerar a existência no conjunto da TV dos sentidos esfíngicos e oraculares, como nas religiões ancestrais. O poder de sedução e de verdade do veículo é muito forte. No velho mito da esfinge egípcia, diziase: Decifra-me ou te devoro! Era preciso saber para ver e conhecer. Havia um critério de verdade na imagem e uma implicação de passado e de futuro. No oráculo de Delfos, as respostas das pitonisas eram incompreensíveis, precisavam ser traduzidas e reproduzidas por sacerdotes, resultavam em algo ambíguo, vinculado à possibilidade da própria pergunta. Era preciso ir aos oráculos e perguntar. Aceitar as respostas enigmáticas e tentar decifrá-las. Hoje, as esfinges e os oráculos, transfigurados em máquinas onde se pode ver e ouvir, estão na intimidade das casas, nas salas e quartos de dormir. Inúmeros programas de televisão lembram este diálogo surdo, incompleto, enigmático e sem qualquer preocupação maior de racionalidade. O sentido mágico da TV não seria hiperreal como pensa Baudrillard, ou melhor, repensaríamos o conceito de hiperrealidade, trocando-o pelo o do real simbólico, em contraposição ao do real material. Acredita-se que a TV trabalha no domínio do simbólico, atinge as crenças de seu público, auxiliando o processo, a formatação e a manutenção do sistema social de crenças de nosso tempo. A programação televisiva, em muitos casos, é recebida e produzida a partir da idéia dos papéis arquetípicos de conselheira e confidente, que também podem significar os de pai, mãe, irmão, padre, amigo, amante, colegas, professores etc. Na TV aberta do Brasil atual, as perguntas são na maioria dos casos silenciosas, existem na atividade mental do público. As respostas as precedem e ajudam a formular 10 perguntas e, assim, sucessivamente. As mensagens televisivas estão no domínio dos sonhos de felicidade, sucessos e insucessos das relações afetivas e das possibilidades e impossibilidades que a vida material e simbólica oferecem. Isto se repete nos programas que despertam maior interesse, tais como as telenovelas, lidas pelo grande público como simulações oníricas da vida social. Nos talk shows surgem de modo nítido por meio das entrevistas com semideuses – personas midiáticas e pessoas comuns. Na representação da vida operada nos reality shows e nos programas que exploram com maior evidência o grotesco e as chagas sociais, o mesmo problema aparece de modo caótico, pela celebração das neuroses e frustrações geradas no contexto do consumo contemporâneo. O mesmo ocorre nas menções telejornalísticas e na propaganda da política oficial e nas possibilidades de futuro do país e de seus habitantes. Em todos os casos, o apelo presente é para que conheçamos a nós mesmos, a partir do espelho oracular da vida alheia. Suportemo-nos, porque há quem viva ou seja pior. Acreditemos no futuro, em nossas utopias, e vejamos o passado pelas lentes míopes da cultura midiática. A TV transformou-se no verificador dos critérios de verdade, justiça, bondade e amor. Para isto, precisa falar e mostrar o belo e o feio, o bem e o mal e a riqueza e a pobreza. Convive e interfere junto a outros mecanismos sociopolíticos e culturais tradicionais de referência, tais como, as igrejas, famílias, vidas comunitárias e outras instituições. Ela também gerou em torno de si um novo culto que inclui identificações simbólicas, diálogos audíveis e silentes, objetivos e subjetivos; o lugar onde se procura saber sobre o passado – memória – e o futuro – sonhos – e onde está o epicentro contemporâneo da comunicação interpessoal e intrapsíquica. Não é mais possível conversar sem nos referirmos ao que passa na TV. Não é preciso vê-la para enxergá-la. Os laços sociais tradicionais, quando ainda presentes, a incorporaram e a naturalizaram. Ela é onipresente na onisciência de nossas redes intersubjetivas. Da emissão à recepção passase pela menção consciente ou não do que a TV mostrou. A distribuição de mensagens dos mais variados gêneros à sociedade brasileira dá-se de modo universal, porém a apropriação das mesmas é desenvolvida de acordo com as redes intersubjetivas de cada grupo sociocultural. Todos recebem a mesma mensagem, mas as reinterpretam de acordo com seus sistemas de valores específicos, que incluem posição e situação de classe, nível de escolaridade, crenças e informações científicas e religiosas. Os grupos, visíveis, reagem às emissões propondo suas próprias interpretações e fazendo o sucesso ou o fracasso das mesmas, através do fantasma da audiência. O livro de Dayan e Katz (1996) contém argumentos convincentes sobre a cerimonialidade de algumas das coberturas televisivas. Fala sobre os acontecimentos únicos e em série, expostos como celebrações consensuais entre a TV e seus públicos. Estes fatos midiáticos teriam características de conquistas, confrontações e coroamentos. No primeiro cenário, o público seria conquistado pelo inusitado, algo como a chegada à Lua ou a clonagem relativa à ovelha Dolly. Eventos capazes de mobilizar consciências e chamar a atenção do grande público. No segundo, chamar-seia atenção para a confrontação, como em um grande campeonato desportivo, eleições presidenciais ou um seqüestro de alguma personalidade. A sedução dar-se-ia no 11 acompanhamento do evento, na curiosidade com o seu desfecho. No terceiro, celebrarse-ia o fim de determinado regime político, os 500 anos de descobrimento do Brasil etc. Cerimônias acompanhadas pelo público telespectador interessado no desenrolar dos fatos, nas imagens e sons produzidos. Os autores advertem que confrontações podem se transformar em coroamentos, tal como ocorre no Brasil nos casos da celebração da vitória ou o opróbrio de um fracasso em uma Copa do Mundo. Não diferentemente, pode ocorrer com as conquistas, quando são rememoradas enquanto símbolos de poder. Os fracassos, símbolos da dominação são esquecidos na cova rasa e comum da memória. O que caracterizaria a cerimonialidade seria a natureza do evento, a forma pela qual é exibido pela mídia televisiva e a grande participação da audiência. A TV seria portadora do cadinho das vontades, representando, ao mesmo tempo, o poder e os contra-poderes, mediando os desejos do público e fornecendo a ele novos objetos de culto. A tese da cerimonialidade seria possível de se ver, tal como os mesmos autores admitem, mesmo em alguns pequenos atos transmitidos pela TV. Esta seria uma das dimensões do culto contemporâneo à programação televisiva. As cerimônias maiores e menores concelebradas pela TV brasileira seriam uma das suas dimensões. Há diferenças entre o último dia do Big Brother Brasil e os 63 anteriores. A idéia geral que norteou o programa foi a da confrontação, a do estímulo ao individualismo e à competição interpessoal. No último dia, entretanto, concelebrouse o coroamento bem-sucedido deste empreendimento televisivo. Na sala de estar imaginária sentaram-se, para celebrar, o público telespectador, o auditório presente, os representantes do poder emissor-televisivo-publicitário e os ‘atores-figurantes-cobaias’, os brothers, na luta pela audiência. O ritual lembrou uma missa festiva, simulou as arquetípicas comemorações comunitárias. Um simulacro, no sentido de Baudrillard, onde a emoção é um recurso sublimador da razão, revelando o modo de se mimetizar e naturalizar os ali muito presentes problemas brasileiros. A cotidianidade do espetáculo, assim como o de uma telenovela, escapa do esquema cerimonial. Está-se referindo aos aspectos miméticos dos programas e comportamentais de seus públicos. Pensa-se que a tese da prevalência do sentido esfíngico e oracular dá conta de explicar a relação entre as partes – emissores e receptores – que constituem os atos da mídia televisiva. Se assim não fosse, nada prenderia a audiência. É preciso que o espetáculo seduza e que a platéia queira ou precise ser seduzida, dentro de um contexto que seja favorável a esta operação. Acredita-se que os programas têm maior ou menor interesse quando a possibilidade de identificação do público é maior ou menor. O diálogo audível e silente entre as partes, mesmo que as reinterpretações difiram da intenção dos responsáveis pela emissão, devem ser considerados. Telenovelas são canceladas ou têm seus capítulos aumentados por efeito do desinteresse ou interesse despertados. Programas de auditório e de humor duram anos e anos, repetindo esquemas de representação ad nausea, porque são aceitos e incorporados às redes intersubjetivas do público. Outros terminam por terem envelhecido e não terem conseguido se adequar ao interesse majoritário da audiência. A TV está interessada na quantidade de espectadores, nivela a partir de seu objetivo maior. Por isso, é ingênuo querer dela um papel educativo, no sentido clássico-iluminista do termo. 12 A interpretação deste diálogo deve considerar o contexto sociohistórico em que a programação se insere. A evolução dos gêneros televisivos acompanha as mudanças na economia, política e interações simbólicas da(s) cultura(s) do país. Há uma clara sincronia entre o espetáculo televisivo e o que se passa em volta, mesmo que isto raramente seja assumido pela programação ou bem compreendido pelo público. Quando existem mudanças substantivas no mundo objetivo e subjetivo, a programação precisa ser ajustada, sob pena da perda de audiência. A mídia televisiva tradicional, talvez um pouco mais do que as demais mídias, é extremamente sensível ao contexto de que faz parte. Tem de ser rápida na adoção de novos padrões ou na revisão e adaptação dos existentes. O esforço de interpretação das mensagens veiculadas pela TV parte do isolamento dos ‘discursos’, das representações simbólicas feitas por todos os gêneros e reafirmadas como cerne da cultura midiática. A chave da interpretação destas representações não está somente no exame crítico da mídia televisiva e sim, também, na compreensão dos problemas que a geram, a partir da materialidade do social e do acúmulo simbólicocultural operado fora e dentro das mídias. Interpretar a TV consiste em discutir os parâmetros da sociedade em que ela é criada, mantida e desenvolvida. Por isso, a proposição recorrente da análise moral condenatória da programação da mídia esbarra em um círculo sem saída. Os padrões morais adotados pela TV são encontráveis na vida social e nas relações de poder imanentes. É verdade que por vezes os valores morais exibidos na TV vão além dos limites da audiência. Isto porque a audiência é um termo genérico que indica uma infinidade de grupos socioculturais que têm os seus próprios limites e crenças morais. Entretanto, o que é exibido nas telas da TV é encontrável na vida social, mesmo que a representação seja um simulacro e precise algum esforço para que se entenda a que está se referindo na materialidade da vida. Acredita-se que a TV do cotidiano, olhando-se para o caso brasileiro, é cêntrica, enquanto veículo portador e disseminador de cultura. Não o era antes da década de 1970. Nem mesmo nesta época, tinha o poder de hoje. A centralidade foi se estabelecendo passo a passo, combinando o desenvolvimento técnico cada vez maior deste meio de comunicação com os problemas de natureza econômica, política, social e cultural do país. Não há uma data exata do aparecimento deste fenômeno, mas certamente ele está esboçado da década de 1980 e perfeitamente delineado na de 1990. Relaciona-se ao que ocorreu no país nos últimos vinte anos, no modo como passamos a encarar o que somos e o que queremos ser. No choro de Romário, na arrogância do ‘Felipão’, no lamento da torcida e nos interesses midiático-publicitários-industriais confirmados e contrariados neste episódio estão algumas das chaves de compreensão de nossas desditas televisivo-sociais, de nossas capacidades e incapacidades de viver, amar e sofrer por este e neste imenso país continental que chamamos de Brasil, trocando o “l” final por um “u”. Compreender a centralidade da TV em nosso processo comunicacional implica mudar paradigmas dos estudos dos significados de nossa vida social. Para estudá-los, é necessário ter em conta a imensa influência da televisão entre nós. Precisa-se, igualmente, que se reafirme o fato de que a comunicação midiática é um poderoso 13 mecanismo estruturador da vida social, tal como se depreende do debate entre Habermas e Luhmann. Considerações finais Escapa aos limites de tamanho e de fontes deste texto analisar as várias fases da TV no mundo e no Brasil. Foi feito o inventário de alguns fatos e processos que se consideram como fundamentais. Obviamente, há muito mais a dizer e nossa interpretação é mais dirigida à compreensão de alguns aspectos do atual momento da TV no Brasil. Um dos nossos objetivos foi o de fugir das interpretações críticas, moralistas ou laudatórias, comuns no fazer jornalístico escrito, na direção de chegar a um modelo compreensivo da imensa influência sociopolítica e cultural da TV e da recepção de seu público. O que aqui se desenvolveu consistiu em uma análise da centralidade da TV em nossas redes intersubjetivas, no sentido que Habermas dá a esta última expressão. Acredita-se que uma visão mais arejada da análise das culturas humanas deve considerar os seus objetos mentais compartilhados, mais do que seus produtos sociopatrimoniais. As culturas valem pela sua mobilidade e sua relação com o agir social, que entendemos como um agir comunicativo. Este se movimenta por meio das redes imateriais de comunicação, mantidas dentro e fora dos grupos socioculturais, e mediadas entre homens, mulheres e máquinas de comunicar. Estas também funcionam como redes, só que físicas, empresariais, voltadas para o negócio da produção de mercadorias simbólicas. Trata-se dos novos bens culturais midiáticos, da nova cultura midiática e, por fim, de novas formas de consumo e representação da vida humana e da natureza. Discorda-se de Habermas, quando ele pressupõe que o agir comunicativo tem necessariamente bases racionais. Pensa-se que ele pode ser também irracional e haver o entendimento mútuo nestas bases, tal como ocorrem nas relações entre a atual TV brasileira e seus públicos. Possivelmente, isto se repete em muitos países, com maior força nos que a referência à cultura oral é essencial. Nestes, ‘com certeza’, ‘faz parte’ a confusão entre o modo de ver e o ponto de vista. Os sentidos esfíngicos e oraculares são para nós uma das chaves de interpretação do contexto contemporâneo da comunicação midiático-televisiva. Não é casual a sua ambigüidade. Ela revela parte de sua natureza e especificidade. A TV evoluiu de algo entre o cinema, rádio e teatro para um emissor com linguagem e formatação com características específicas. Esta nova forma de comunicação foi alcançada nas relações entre o público – recepção – e o meio emissor. Sendo ela um problema novo, que extrapola a tecnicidade da existência da televisão, e que tem a ver com o atual contexto político, econômico e cultural que forja uma sociedade midiática. Nesta nova forma de organizar a sociedade, a TV é a principal referência. 14 Os sentidos esfíngicos e oraculares citados referem-se à adoção de novos paradigmas de transcendência do ser, em sociedades que se apartaram das religiões mais tradicionais e também não se aproximaram da razão científica. Trata-se de uma nova sacralização, travestida em máquinas de comunicar e em um modo social específico de seu uso. Vincula-se ao retorno modificado aos arquétipos de antigas civilizações, onde os homens e mulheres encontravam suas razões de ser e viver em referências míticas a semideuses, práticas divinatórias e na iconização da vida cotidiana. Isso ocorre, apesar de se viver ou porque assim se vive em um contexto simbólico materialista pragmático, voltado para os desejos de consumo, fama, dinheiro e diferenciação. Estas novas crenças religiosas são centradas no indivíduo e repartidas com equanimidade. É uma nova forma de ser individualista, mantendo-se dentro dos grupos do quais fazemos parte. Pensa-se que isto atravessa todo o conjunto social, tendo expressões diversas, em classes e grupos socioculturais distintos. Está-se falando das novas culturas pós-modernas que, também, se retroalimentam do passado, agora mais longínquo e mais difícil de ser compreendido. O modo que projetamos o nosso futuro e o modo que vemos o nosso passado - porque o presente midiático é sempre muito fugaz - em suma, nossas utopias, passam nos canais de TV. Assim como passam e repassam os nossos preconceitos e estigmas sociais. Verificamos e convalidamos na programação televisiva de maior audiência nossas certezas e incertezas, vontades e desejos, felicidades e tristezas. Afinal, processos que não têm nada a ver com a natureza. São construídos pelos e para os homens e mulheres. Nascem das relações de poder entre as partes – emissores e receptores – e das várias formas midiáticas de apropriação da cultura. 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