CONGRESO INTERNACIONAL DE HISTORIA DE LAS CAJAS DE AHORROS Murcia 16-18 de octubre 2008 Casa Montepio dos Artistas: pecúlio e auxílio mútuo numa sociedade do Recôncavo da Bahia Luiz Fernando Saraiva Professor Assistente da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia Doutorando em História Social pela Universidade Federal Fluminense [email protected] Universidade Federal do Recôncavo da Bahia Centro de Artes, Humanidades e Letras Praça Ariston Mascarenhas, s/n Cachoeira/BA 44360-000 Rita de Cássia da Silva Almico Professora Assistente da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia Doutoranda em História Social pela Universidade Federal Fluminense [email protected] Universidade Federal do Recôncavo da Bahia Centro de Artes, Humanidades e Letras Praça Ariston Mascarenhas, s/n Cachoeira/BA 44360-000 CONGRESO INTERNACIONAL DE HISTORIA DE LAS CAJAS DE AHORROS Casa Montepio dos Artistas: histórico e papel exercido no século XIX Casa Montepio dos Artistas: pecúlio e auxílio mútuo numa sociedade do Recôncavo da Bahia Luiz Fernando Saraiva Rita de Cássia da Silva Almico 1. Introdução Ao contrário de uma historiografia européia, os estudos sobre caixas econômicas, montes de socorro, de auxílio-mútuo e montepios no Brasil são bastante escassos. Poucos pesquisadores se debruçaram sobre este tema cujo entendimento talvez seja fundamental para compreendermos aspectos sobre a organização social e formas de convivência de uma parcela significativa da população do Brasil ao longo do século XIX. Estamos nos referindo àqueles setores que, nos dizeres de Gilberto Freyre, viveriam entre “senhores e escravos, com uma rala e insignificante lambugem de gente livre sanduichada entre os extremos antagônicos”, ou ainda, segundo Maria Sylvia de Mello Franco, “Os homens livres na ordem escravocrata”.1 Especificamente nestes segmentos destacam-se os artesãos mais ou menos especializados, também chamados de artífices, ou aqueles que exerciam a “arte liberal” – o grupo se constitui de uma miríade de profissões como pedreiros, pintores, escultores, barbeiros, “mestres de carpina” (carpinteiros), gráficos, marinheiros, trabalhadores do comércio, operários de diversos ramos de indústria, maquinistas, trabalhadores das empresas de transportes, marceneiros, e outros. Grupos multi-étnicos e multi-facetados por definição, ocupavam papéis intermediários na sociedade brasileira de difícil identificação, clivagens políticas e de interesses faziam com que tivessem comportamentos fluídos em vários sentidos, ora identificando-se com os interesses dominantes, ora colocando-se próximos a interesses mais populares e dos escravos, mas sempre traduzindo as contradições dessa sociedade em leituras e comportamentos próprios. Se os estudos no campo da História Social que tratam dos setores intermediários da sociedade imperial brasileira avançaram muito nos últimos anos, tal não se deu em relação às formas de organização econômico-social como Instituições auto-geridas de Assistencialismo, Mutualismo, Montepios e Pecúlios que foram formados principalmente por indivíduos destes grupos. A importância que os setores ditos „livres‟ irão adquirir ao longo do século XIX, bem como as suas participações cada vez mais expressivas em diversos aspectos da vida 2 CONGRESO INTERNACIONAL DE HISTORIA DE LAS CAJAS DE AHORROS Casa Montepio dos Artistas: histórico e papel exercido no século XIX econômica das várias regiões do país é assunto relativamente pouco explorado na historiografia pertinente, embora acreditemos que seus alcances sejam bastante consideráveis. Trata-se, entre outras possibilidades, de entender as várias formas de encadeamento que as economias regionais brasileiras promoveram de acordo com a maior ou menor capacidade da produção de artigos primário-exportadores, ou de uma produção voltada para um mercado interno mais ou menos distante, ou ainda, de uma economia que podia operar no nível da subsistência. É possível avaliar, sob esta ótica, os desdobramentos que uma atividade econômica regionalmente localizada pode imprimir à determinada sociedade seja no nível do trabalho especializado, das inovações ou modernizações que se vinculam a processos de urbanização e industrialização de matrizes variadas.2 Neste trabalho, longe de buscarmos preencher esta lacuna na historiografia, pretendemos iniciar uma discussão sobre esta temática utilizando para isto o olhar da História Econômica. Isto significa dizer que, aqui, faremos uma abordagem da composição e papel da Casa Montepio dos Artistas Cachoeiranos, sociedade de pecúlio fundada em 21 de fevereiro de 1874, na cidade de Cachoeira na Bahia, com o objetivo de entendermos alguns destes múltiplos desdobramentos. Pretendemos acompanhar esta associação até a virada do século XIX para o XX, embora o nosso recorte temporal tenha de ser ampliado para buscarmos as origens destas instituições ainda no início do século dezenove. Vamos utilizar ainda para efeitos de comparação o Montepio Geral de Economia dos Servidores do Estado, criado em 1835 no Rio de Janeiro, então capital do Império brasileiro e o Montepio Casa dos Artistas de Salvador criado na capital da província da Bahia em 1852. A comparação nos serve em alguns sentidos fundamentais: o primeiro é a localização destas três associações – uma na Corte, a capital do Império e as outras duas na província da Bahia – uma no rico interior açucareiro e fumageiro e a outra na cidade da Bahia,3 grande centro urbano, comercial e político. Além disto, a „natureza‟ destas sociedades se diferencia, visto ser o Montepio Geral de Economia dos Servidores do Estado aparentemente de cunho „privado‟ embora com relações muito próximas ao Estado; a sociedade Montepio Casa dos Artistas de Salvador surge de um „racha‟ entre uma sociedade anterior conforme se verá e a Casa Montepio dos Artistas Cachoeiranos de uma iniciativa dos vários „artistas‟ do recôncavo baiano. Também é importante percebermos que estas associações terão „dimensões‟ diferentes em termos de número, perfil e contribuição dos associados, além do que suas trajetórias para o período da pesquisa serão igualmente distintas, demonstrando aspectos importantes destas instituições. 3 CONGRESO INTERNACIONAL DE HISTORIA DE LAS CAJAS DE AHORROS Casa Montepio dos Artistas: histórico e papel exercido no século XIX Cabe-nos destacar os vários aspectos assumidos no desenvolvimento destas sociedades no passado, tanto pela ótica da economia, quanto pelas origens da previdência do país, passando pelos direitos trabalhistas – no que diz respeito à organização dos trabalhadores – e reivindicação dos mesmos, entre vários outros aspectos. Essas instituições, seja de cunho público ou privado, ainda têm muito que nos oferecer e contribuir na construção do conhecimento histórico. Para iniciarmos nossa discussão, não é demais localizar o leitor na conjuntura histórica em que esta se insere. O Brasil do século XIX, além de imperial era baseado na escravidão e, portanto, tinha nos negros e particularmente nos africanos sua principal mãode-obra. Isto é significativo por refletir em toda a sociedade – tendo heranças ainda em nossos dias – as características de uma sociedade escravista. Fruto da expansão marítima que os Estados europeus iniciaram ainda no século XV, a colônia portuguesa na América teria sido tomada por portugueses que para cá vieram em busca de riquezas para seus cofres, o que lhes conferia poder de sustentação para o modelo de Estado Nacional desse período. Sua base escravista lhe daria uma das características do que Caio Prado Júnior convencionou nomear de „plantation‟: produção em grande escala de um produto principal em grandes propriedades com mão-de-obra escrava. 4 Durante todo o período colonial esta seria a caracterização mais geral do Brasil e isto não ficaria muito diferente no pósindependência. A manutenção da escravidão lhe conferiu ares de país continental, numa espécie de acordo entre a Coroa e as oligarquias proprietárias de escravos. O século XIX surgia então como uma Monarquia Imperial que também se baseava na escravidão, latifúndios e agroexportação – e nos seus desdobramentos.5 Este novo Estado, erigido no início do século XIX, iria estruturar-se aos poucos, com medidas governamentais que visavam, também paulatinamente, formar o corpo político e econômico desta sociedade – algumas continuidades e outras rupturas com seu passado colonial. No que nos concerne aqui, gostaríamos de chamar a atenção para algumas questões que se ligam mais diretamente à temática dos Montepios. A primeira será a modernização desta sociedade dentro dos padrões de civilização exaradas da Europa; em vários aspectos já bastante estudados, o Estado Imperial brasileiro começou a construção de uma “Civilização nos Trópicos”. A vinda da Família Imperial, ainda em 1808, deflagrou este processo em inúmeras frentes, do ponto de vista das instituições associativas e culturais; várias foram criadas, entre estas, destacam-se a Academia de Belas Artes, fundada a partir da vinda da missão cultural francesa. Também a criação de escolas superiores como as Escolas de Medicina da Bahia (Salvador) e a do Rio 4 CONGRESO INTERNACIONAL DE HISTORIA DE LAS CAJAS DE AHORROS Casa Montepio dos Artistas: histórico e papel exercido no século XIX de Janeiro, as Academias Militares do Exército e da Marinha e a posterior criação das escolas de Direito de São Paulo e do Recife nos servem de ilustração.6 De acordo com este processo de modernização e racionalização da sociedade, iremos encontrar ainda em 1832 os primeiros movimentos de se criar no Brasil “Caixas Econômicas” e Montepios que visassem promover o „bem-estar‟ dos trabalhadores em geral.7 Reflexo deste esforço foi a publicação do opúsculo O Homem Benfazejo ou das Vantagens que Resultam da Fundação da Caixa Econômica dos Povos Civilizados de autoria de Pierre-Edouard Lemontey (1762 – 1826), que havia sido editado na França ainda em 1825. No Brasil a obra foi publicada graças ao esforço do médico da família real, o também francês José Francisco Xavier Siguaud, dentro de uma coleção geral intitulada Biblioteca Constitucional do Cidadão Brasileiro. Siguaud, além de médico, atuou intensamente em atividades editoriais como a publicação a partir de 1827 do Jornal do Commércio, um dos mais importantes periódicos do Império Brasileiro. Participou ainda da fundação da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro e do Instituto dos Cegos na capital do Brasil, o atual Instituto Benjamin Constant.8 Pierre-Edouard Lemontey por sua vez é tido como um dos primeiros a pensar em uma “sociologia do trabalho”, preocupando-se com os efeitos deletérios que a expansão econômica da revolução industrial estava operando na Europa. Tendo participado da Revolução Francesa em suas várias fases, ao final de sua vida (1825) publicou cerca de quatro „histórias exemplares‟ tendo como personagem central Monsieur Bruno com alguns conselhos para criação de Caisse d'épargnes et de prévoyance, ou seja, as casas de poupança e providência como forma de se ampliar as formas de mutualismo para além das irmandades e mesmo dos montepios que segundo o personagem criado por Lemontey “O Monte pio é sobre o caminho do Hospital; mas a Caixa Econômica é o caminho que conduz a uma vida sossegada, feliz e honrada”.9 A obra traria ainda uma proposta de estatuto das Caixas Econômicas que será, em parte, utilizado por várias associações fundadas no país no século XIX conforme se verá mais à frente. Cumpre destacar ainda que esta preocupação com as Caixas Econômicas fosse recorrente em vários países da Europa desde o final do século XVIII, sendo que em muitos deles, como na França e na Inglaterra, assistimos à fundação das Caisse d'épargnes et de prévoyance, inclusive com importante papel financiador de atividades econômicas.10 Um segundo ponto seria que, sob a ótica da produção, a construção deste Estado Imperial trará mudanças econômicas que terão conseqüências bastante duradouras. A primeira e de maneira quase involuntária será a queda do exclusivo metropolitano11 com a 5 CONGRESO INTERNACIONAL DE HISTORIA DE LAS CAJAS DE AHORROS Casa Montepio dos Artistas: histórico e papel exercido no século XIX „Abertura dos portos às nações amigas‟, em 1808, e os „Tratados de comércio, aliança e navegação‟, de 1810, que irão, de acordo com João Manoel Cardoso de Mello, interiorizar parcela significativa dos capitais promovidos pelo comércio atlântico e também as decisões de investimentos.12 As „construções‟ empreendidas durante este período inicial buscavam atender às demandas de uma economia de agroexportação que então se baseava em alguns produtos principais na pauta de exportações: o café, o açúcar, o algodão e o tabaco. Também havia o problema de baixa capacidade de arrecadação, o que fazia do Brasil um Estado deficitário na balança entre despesas e receitas. Dessa forma, desde muito cedo o Estado buscava ampliar sua capacidade de arrecadação e manutenção através do incentivo à agroexportação. A luta empreendida pelo Estado e pelos agentes privados pela manutenção do tráfico é talvez o mais visível, mas não o único, fator neste sentido. Também a criação do Horto Imperial – embora sob outra ótica –, ainda no período joanino, propunha-se aclimatar diversas plantas visando buscar variantes aos tradicionais produtos agrícolas também será essencial nesse projeto.13 A queda do exclusivo metropolitano também se fazia sentir no incentivo à diversificação econômica com o apoio às manufaturas e atividades comerciais, além da revogação do „Alvará Régio de 1785,‟ em 1810, que proibia as manufaturas têxteis e de ferro no território da ex-colônia, várias licenças e loterias serão dadas à diversas manufaturas que irão se desenvolver neste período, segundo o estudo do professor Geraldo Beauclair.14 Também a criação de instituições como a Associação dos Assinantes da Praça de Comércio do Rio de Janeiro (que irá posteriormente dar origem à Associação Auxiliadora da Indústria Nacional) desde cedo irá criar canais de financiamento que darão início a uma série de novas atividades, diversificando ainda mais essa sociedade.15 O contexto político conturbado no final da década de 1820 e durante a década de 1830 irá „atrasar‟ mas não inviabilizar essas reformas estruturais para a construção do Estado brasileiro. Talvez mesmo por causa destes conflitos, assistimos nesse período, a partir de iniciativas „privadas‟, à criação das 1ª Associações mutualistas e autogeridas que irão diferir das antigas instituições coloniais como as Santas Casas de Misericórdia e as Irmandades Leigas. Ainda em 1827 surgiu o Montepio do Exército, em 1834 a Caixa Econômica da Cidade da Bahia e, em 1835, o já citado Montepio Geral de Economia dos Servidores do Estado. É importante ressaltar que em pleno período regencial marcado por turbulências e forças que quase levaram à fragmentação do território brasileiro a 6 CONGRESO INTERNACIONAL DE HISTORIA DE LAS CAJAS DE AHORROS Casa Montepio dos Artistas: histórico e papel exercido no século XIX criação destas instituições visavam sempre a “Economia, Perseverança e Socorro nas Dificuldades”.16 O período que se seguiu foi marcado pelas tentativas de conciliação dentre os setores que compunham o Estado brasileiro e pela continuidade dos esforços para a expansão da economia e das rendas públicas. Dentro deste contexto de modernização da economia em 1844, o então Ministro Alves Branco promove uma alteração de cunho fiscal que intencionava aumentar a arrecadação do governo em cima de tarifas de importação. Visto ter o país uma economia pouco complexa, baseada quase que exclusivamente no setor agroexportador, a forma encontrada pelo então Ministro e Chefe do Gabinete Ministerial era tarifar as importações, para atingir maior capacidade de receita para o governo. Longe de querer promover uma política protecionista para a nascente indústria nacional, esta política previa o aumento de impostos, embora esta reforma fosse assumir um papel protecionista de forma não intencional e a „indústria‟ – ainda nascente – bem como as „atividades produtivas‟ irão ser beneficiadas com tal ato.17 Consoante a essa medida, o ano de 1850 também iria ser marcante para a economia nacional. Neste mesmo ano seriam promulgados o Código Comercial Brasileiro, a Lei Eusébio de Queiroz, que reafirmava o fim do tráfico internacional de escravos, e a Lei de Terras.18 Esta última lei será tomada conjuntamente com a proibição do tráfico internacional de escravos africanos, e garantia o acesso à terra somente através da compra o que inicia no país a transição para o trabalho livre sobre o rígido controle do Estado e dos grupos rurais.19 Esta medida acabaria por afastar da propriedade fundiária as camadas da população despossuídas e que, a partir daí, teriam grande dificuldade ao acesso à terra, senão como trabalhadores e/ou posseiros. Essa medida irá indiretamente contribuir para um maior desenvolvimento das atividades urbanas por parte de uma população livre, porém destituída de propriedades e que tentará escapar do controle direto dos grandes fazendeiros. A saída podia ser, para alguns, as cidades e as possibilidades novas que se abriam com o desenvolvimento paulatino destes centros urbanos. A proibição do tráfico internacional de escravos além de anunciar um „horizonte possível‟ para o fim do sistema escravista também „libertava‟ poderosos capitais antes empregados no comércio com a África e que em parte serão utilizados em variados empreendimentos nas principais praças do antigo comércio escravista do país.20 A diminuição gradativa do número de escravos a que iremos assistir a partir de então irá também contribuir para o aumento do número de trabalhadores livres em diversas funções até então quase sempre exercida pelos cativos.21 7 CONGRESO INTERNACIONAL DE HISTORIA DE LAS CAJAS DE AHORROS Casa Montepio dos Artistas: histórico e papel exercido no século XIX A convergência desses fatores foi coroada com o sancionamento da lei no 556, de 25 de junho de 1850, que promulgava o tão esperado Código Comercial Brasileiro. O Decreto que o criaria seria o de número 737, de 25 de novembro de 1850, que determinava a ordem do Juízo no processo Comercial. Ao dar ao país uma legislação mercantil própria, o Código Comercial atuou como a lhe conferir maioridade para a prática comercial, nos dizeres de Bárbara Levy.22 Com o Código Comercial, a criação de sociedades anônimas e o inicial desenvolvimento de empresas de cunho associativas ampliariam ainda mais a necessidade de crédito e maior quantidade de moedas na economia. Para o Rio de Janeiro, Maria Bárbara Levy destaca que já em 1855 eram negociadas na recém-criada Bolsa de Valores (1845): (...) 16 empresas sendo regularmente cotadas pregão: eram quatro bancos, quatro companhias transporte, três de serviços públicos, uma construção naval, uma perfumaria, uma empresa colonização agrícola e mais duas cujo ramo atividade não foi possível identificar.23 no de de de de Dois problemas que enfrentava a economia brasileira naquele momento, que aqui nos parece importante ressaltar, são: a baixa mercantilização desta e a falta de uma prática de crédito institucionalizada e solidificada. Ambas poderiam estar diretamente ligadas à estrutura escravista a que o país estava submetido até fins do XIX. Numa economia de base escravista o meio circulante é escasso pela pouca necessidade de moeda, visto que a maioria dos trabalhadores sendo cativos, não possuíam remuneração pelo seu trabalho. A despeito da escravidão como característica fundante desta economia, o conjunto de reformas e construções que viemos superficialmente acompanhando – junto com a vigorosa expansão da cafeicultura na região centro-sul e o aumento da exportação de gêneros tropicais em outras regiões do Império como se desprende na tabela I – irão promover significativas transformações. Um grande desenvolvimento de atividades terciárias como indústrias, manufaturas, casas comerciais, bancos e outras instituições que irão contribuir para mudanças significativas no perfil de nossa sociedade.24 8 CONGRESO INTERNACIONAL DE HISTORIA DE LAS CAJAS DE AHORROS Casa Montepio dos Artistas: histórico e papel exercido no século XIX Tabela I: Brasil: Pauta das Exportações (Valor - milhões de libras) Datas Café Açúcar Algodão Borracha Couros Fumo Cacau Outros Total e Peles 1821-30 7,4 10,7 8,1 0,0 5,3 1,0 0,2 5,8 38,5 1831-40 23,9 13,3 5,8 0,2 4,3 1,0 0,3 5,8 54,6 1841-50 24,3 15,0 4,2 0,3 4,9 1,1 0,5 6,7 57,0 1851-60 55,4 20,9 6,2 2,5 7,7 2,8 1,1 10,5 107,1 1861-70 67,1 19,3 28,9 5,4 9,0 4,6 1,4 16,0 151,7 1871-80 116,6 24,3 17,3 11,3 10,8 7,0 2,7 15,4 205,4 1881-90 124,0 19,5 8,8 15,6 6,4 5,4 3,3 16,5 199,5 Obs.: * o item „Outros‟ consistia em produtos como erva-mate, diamantes, ouro, castanhas do Pará, madeiras, farinha de mandioca, aguardente e outros produtos, sobre os quais não se dispões de informações estatísticas confiáveis. Fonte: IBGE. Anuário Estatístico 1939/1940. In: NOGUEIRA, Dênio. Raízes de uma Nação. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1988. p. 342. 2. Santas Casas, Irmandades e Montepios: da Caridade ao Assistencialismo e Mutualismo – pertinências do caso brasileiro Na Europa as primeiras instituições associativas entre os homens-livres – que não fossem servos e que exercessem alguma atividade „especializada‟ – foram as Corporações de Ofício e as Confrarias Religiosas que surgiram, de acordo com Henri Pirenne, do fortalecimento do poder comunal ainda no século XI. Estas associações teriam se inspirado nas corporações mercantis e em ordens religiosas e teriam destacada atuação caritativa, além de associarem-se à proteção de determinadas atividades profissionais da concorrência externa. 25 Tais associações possuíram diversas outras funções durante todo o longo período, „evoluindo‟ em várias direções e mesmo sendo „exportadas‟ para as colônias espanholas e portuguesas na América. No século XVIII e, particularmente na Espanha, os montes de piedad surgiram como parte da luta contra a usura, protegendo trabalhadores que recorriam a empréstimos ou tinham dificuldades no final de suas vidas.26 Como já visto, em grande parte da Europa estas instituições passaram ainda a se organizar ao final do XVIII e início do XIX como Caixas Econômicas, Cajas de Ahorro, Caisse d'épargnes et de prévoyance. Isso demonstra um forte caráter de racionalização do crédito e das atividades financeiras. No Brasil, de acordo com diversos autores, as corporações de ofício ou confrarias religiosas não irão ter a mesma dimensão que na Europa ou mesmo na América Espanhola. Tal fato se dava principalmente pela manutenção da escravidão, o que acabava por disseminar as atividades dos artífices entre os escravos, tanto que “transformou em maioria de cativos os dito oficiais”.27 Dessa forma os artífices europeus, além de pouco 9 CONGRESO INTERNACIONAL DE HISTORIA DE LAS CAJAS DE AHORROS Casa Montepio dos Artistas: histórico e papel exercido no século XIX numerosos, teriam dificuldades de se associarem aos escravos e grupos étnicos distintos do seu. Assim, as entidades de natureza associativa que surgiram ainda no período colonial foram as Santas Casas de Misericórdia ou as irmandades devocionais leigas. A primeira dessas instituições será Santa Casa de Misericórdia de Santos fundada na capitania de São Vicente, em 1543 e, quarenta anos depois, a Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro (1584), ambas com ênfase assistencial e não mutualista. Durante todo o período colonial e mesmo no Império serão fundadas ao lado das Santas Casas dezenas de irmandades leigas, compostas pelos diferentes extratos sociais. Assim, grosso modo, as ordens terceira do Carmo referiam-se aos grandes proprietários de terras e comerciantes, da mesma forma, as ordens terceiras do Rosário e de São Benedito eram normalmente erigidas por escravos ou negros forros. Os recortes étnicos e pertencimento a grupos sociais eram a tônica dessas associações que possuíam forte caráter devocional além de caritativo. Normalmente a principal preocupação destas irmandades era o bem morrer, ou seja, garantir aos associados funerais e enterros dignos.28 Com a construção do Estado Brasileiro em início do século XIX, a situação dos trabalhadores livres pouco se alterou. Na Constituição Imperial outorgada em 1824 vemos no artigo 179 das Disposições Gerais as únicas referências aos trabalhadores livres em toda a carta Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Políticos dos Cidadãos Brasileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Império. (...) XXV. Ficam abolidas as Corporações dos Ofícios, seus juízes, escrivães e mestres. (...) XXXI. A Constituição também garante os socorros públicos. A alínea XXV encerrava, portanto, as poucas corporações existentes no país apesar dos protestos do Visconde de Cairú, importante político que havia migrado junto com a Corte portuguesa para o Brasil.29 Já a alínea XXXI, apesar de garantir os socorros públicos, nunca foi regulamentada. Desta forma, o auxílio público aos trabalhadores se dava normalmente por leis „excepcionais‟ tomadas de acordo com as circunstâncias urgentes ou graves que assolassem o país, como foi o caso de guerras ou catástrofes naturais como enchentes ou secas. 10 CONGRESO INTERNACIONAL DE HISTORIA DE LAS CAJAS DE AHORROS Casa Montepio dos Artistas: histórico e papel exercido no século XIX Com a promulgação do Código Comercial Brasileiro, em 1850, o seu artigo 79 trazia o seguinte texto: “os acidentes imprevistos e inculpados, que impedirem aos prepostos o exercício de suas funções, não interromperão o vencimento de seu salário, contando que a inabilitação não exceda três meses contínuos”.30 A partir desse período, ou ainda, em caso de falecimento do trabalhador, a família ficaria desamparada e sem ganhos. Uma possível saída para esses eventos adversos seria a filiação a alguma sociedade que trouxesse “Economia, Perseverança e Socorro nas Dificuldades”, ou o que representasse proteção em momentos de dificuldades para o trabalhador e sua família. É fato que, na ausência de proteção estatal ampla, várias categorias de trabalhadores se associaram para juntarem pecúlios que lhes assegurassem ou às suas famílias algum sustento em casos especiais. Tais associações poderiam ter conotação beneficente ou de auxílio mútuo e suas regras eram definidas em Assembléias e constavam em atas de abertura das mesmas. Os montepios já haviam surgido ainda na fase colonial do Brasil e normalmente por ordem régia. Tal se deu, por exemplo, no ano de 1795 quando o Príncipe Regente autorizou a criação do Plano de Beneficência dos Órfãos e Viúvas dos Oficiais da Marinha, o primeiro a ser criado no Brasil. No decorrer do século XIX, outras iniciativas estatais e privadas irão aparecer: o Montepio do Exército (1827) e o Montepio dos Servidores do Estado - civis e militares - (1835), como já visto; a Caixa de Socorro para os trabalhadores das Estradas de Ferro do Estado (Decreto nº 3.397, de 24-11-1888), Montepio para Empregados dos Correios (Decreto nº 9.212, de 26-3-1889) e a Caixa de Pensão dos Operários da Imprensa Nacional (1889) são outros exemplos. Especificamente sobre as Caixas Econômicas, vemos que a penetração das mesmas no Brasil será bastante reduzida, em 1834 era fundada a Caixa Econômica da Cidade da Bahia, no dia 13 de Junho, em Salvador. A iniciativa da criação partiu de 171 cidadãos da „praça‟ e rapidamente esta instituição se transformou em uma referência na oferta de crédito na vida da província.31 Aqui neste trabalho nos interessam particularmente os Montepios, que tinham originalmente o significado de monte santo – que queria dizer que aquela poupança era sagrada e se destinava apenas ao pagamento das pensões. Essas sociedades tinham natureza mutualista e buscavam, além de pecúlio sob a forma de poupança, trazer alguma segurança para o trabalhador ou sua família em casos de necessidade. Como não havia no Brasil uma legislação trabalhista, e, por ser uma sociedade escravista, tanto trabalhadores livres quanto os escravos, buscavam nesse tipo de 11 CONGRESO INTERNACIONAL DE HISTORIA DE LAS CAJAS DE AHORROS Casa Montepio dos Artistas: histórico e papel exercido no século XIX associação uma forma de se resguardar de imprevistos – no caso dos escravos podia servir para juntar em forma de poupança o que era necessário para comprar sua liberdade em forma de alforria; para os demais trabalhadores, funcionava como forma de precaução para mortes e acidentes. Os escravos costumavam se reunir nas Irmandades e, geralmente, eram ligados a alguma paróquia de santos católicos. Os demais trabalhadores usavam os Montepios como forma de casa de poupança, onde a contribuição mensal poderia ser resgatada em momentos de necessidade ou morte. No Código Comercial de 1850 somente uma referência se encontra sobre os Montepios, trata-se de artigo que diz respeito à proteção que gozem alguns ativos contra a penhora e execução em caso de dívidas contraídas. Vejamos a redação. Art. 529. Não podem ser absolutamente penhorados os bens seguintes: § 1.º Os bens inalienáveis. § 2.º Os ordenados e vencimentos dos Magistrados e empregados públicos. § 3.º Os soldos e vencimentos dos militares. § 4.º As soldadas da gente de mar, e salários dos guarda-livros, feitores, caixeiros e operários. § 5.º Os equipamentos dos militares. § 6.º Os utensílios e ferramentas dos mestres e oficiais de ofícios mecânicos, que forem indispensáveis às suas ocupações ordinárias. § 7.º Os materiais necessários para as obras. § 8.º As pensões, tenças e montepios, inclusive o dos Servidores do Estado.32 Percebe-se de acordo com o Código Comercial que os pagamentos mensais realizados pelos montepios seriam protegidos, o que significa o reconhecimento por parte do Estado da importância que tais instituições vinham adquirindo na sociedade brasileira. O próprio crescimento do número de montepios e instituições similares fez com que o governo, em 1860, baixasse um decreto regulamentando o funcionamento dos mesmos. De acordo com as disposições deste decreto imperial de 19 de dezembro, todas as sociedades desse cunho existentes no país, assim como as que viessem a constituir-se a partir de então, deveriam submeter seus estatutos à Seção dos Negócios do Império do Conselho de Estado para que recebessem autorização para funcionamento. Entre as sociedades incluíam-se as associações beneficentes, de auxílio mútuo, de categorias profissionais, os clubes literários e esportivos, os grêmios recreativos e até mesmo as irmandades religiosas. Também estavam sujeitas ao referido decreto as sociedades que estivessem funcionando 12 CONGRESO INTERNACIONAL DE HISTORIA DE LAS CAJAS DE AHORROS Casa Montepio dos Artistas: histórico e papel exercido no século XIX previamente, mediante o envio dos estatutos para apreciação do Conselho, que deveriam obedecer em futuras alterações. Os estatutos deveriam ser enviados à autoridade competente especificando o nome da entidade, a sua sede, os seus fins, a duração prevista, o valor da contribuição mensal, a forma como se pretendiam empregar os fundos sociais, os serviços prestados, as atribuições dos administradores e da assembléia geral, o modo de administração, as condições para admissão e eliminação dos sócios, bem como o número destes.33 Mediante autorização para reunião e obedecendo à ordem, trabalhadores de diversas categorias poderiam se reunir e fundar associações que pudessem lhes servir. A partir da elaboração de estatutos que regeriam tais entidades era possível a fundação das mesmas que deveriam, de acordo com o decreto acima referido, enviar as atas destas sessões ao Conselho de Estado que analisaria os ditos estatutos e, quase sempre, sugeria alterações na redação dos documentos. Se aprovado, o estatuto oficial da associação era disponibilizado para os sócios e, em alguma medida, divulgado para conhecimento do público em geral. Esta regra atingia a todos os trabalhadores, fossem eles escravos, libertos, idosos, comerciantes, empresários, religiosos, artistas, etc.34 Este decreto seria revogado em 1872 dando maior autonomia às associações, principalmente no que diz respeito à escolha de seus diretores; a revogação completa da lei só ocorreria em 1882.35 3. O Montepio Geral dos Servidores do Estado e a Montepio Casa dos Artistas de Salvador, aproximações para um estudo de caso Como já vimos, no Brasil a primeira entidade de cunho „privado‟, sob a forma de montepio, foi o Montepio Geral dos Servidores do Estado (Mongeral) a 10 de Janeiro de 1835. Foi formada por funcionários públicos que através do recebimento de jóias (que era o direito de associar-se aos montepios) e das mensalidades pagaria uma pensão aos sócios remidos, suas viúvas e filhos até certa idade. Este montepio será um dos mais antigos e significativos do Império brasileiro, a análise de sua trajetória é importante para qualificar a trajetória dos demais montepios destacando principalmente suas diferenças. Grande parte das informações que iremos destacar vem da obra de Montepio Geral de Economia dos Servidores do Estado – Ligeiro Resumo do seu 1º Centenário 1835 – 1935 organizado 13 CONGRESO INTERNACIONAL DE HISTORIA DE LAS CAJAS DE AHORROS Casa Montepio dos Artistas: histórico e papel exercido no século XIX pelo secretário do montepio Alfredo Leal de Sá Pereira e de alguns relatórios que tivemos acesso como o do biênio 1887 a 1889 feito pelo presidente à época o Visconde de Paranaguá. De acordo com o regimento do Montepio – bastante semelhante na forma ao proposto pelo livro O homem benfazejo – a 1ª assembléia seria realizada assim que o montepio tivesse 100 sócios, e nessa ocasião seria eleito por voto secreto a diretoria com 1 presidente, 1 tesoureiro, 1 secretário e dois diretores; seriam sorteados ainda 12 diretoresadjuntos para acompanharem à diretoria nas necessidades e reuniões extraordinárias. Esta 1ª assembléia geral ocorreu em 14 de junho de 1835.36 A primeira diretoria além de organizar os estatutos e tomar as primeiras providências para a consolidação do Montepio, conseguiu do governo que as repartições da fazenda nas províncias funcionassem como representantes do montepio (tanto no recolhimento das contribuições, quanto no pagamento das pensões), além do direito de quatro loterias anuais para compor o patrimônio da Instituição. Estes fatos, conforme ficará mais claro, demonstram que, apesar de sua natureza privada, a associação sempre irá contar com o auxílio do governo ao longo de sua trajetória. Este auxílio se dará de várias formas: loterias, isenções de impostos e taxas, empréstimos, doação de imóvel, empréstimos e perdão de dívidas. Este grande poder que o Montepio irá gozar junto ao Estado Imperial Brasileiro esteve obviamente ligado ao „público‟ da associação e também à escolha estratégica de seus presidentes e diretores. Em uma lista dos presidentes da instituição de 1835 até 1900 encontramos cinco Conselheiros do Estado; um Senador, um Desembargador, um Marquês, três Viscondes e um Barão. Também a maioria dos diretores e secretários será composta de Conselheiros, Desembargadores, Juízes, ou dito de uma outra forma, a „elite‟ dos funcionários públicos e da própria sociedade imperial.37 Esta escolha de presidentes com importantes trajetórias políticas iria inclusive trazer problemas de administração ao Montepio, tanto que em 1859 ocorrerá uma reforma em seus estatutos criando o cargo de Vice-presidente “pois sendo frequentemente Ministro de Estado o ocupante da presidência do montepio, via-se este bastante prejudicado com as ausências constantes do seu presidente” .38 Embora não seja possível identificar exatamente as categorias sociais dos membros deste montepio, fica claro que a maioria era formada por funcionários públicos mais elevados o que o diferencia bastante das congêneres criadas no século XIX. Vemos, por exemplo, no relatório do Marquês de Paranaguá para o biênio 1887 – 1889 a adesão de 14 CONGRESO INTERNACIONAL DE HISTORIA DE LAS CAJAS DE AHORROS Casa Montepio dos Artistas: histórico e papel exercido no século XIX novos sócios ao montepio como o Coronel Antônio José Maria Pego Junior, dos Capitães Agrícola Ewerton Pinto e Alexandre Carlos Barreto, do Alferes Antônio José Lino da Costa, além do Barão de Aguiar de Andrade ou Francisco Xavier da Costa Aguiar de Andrada, que além de ter sido Juiz de Direito foi ainda embaixador brasileiro em várias missões diplomáticas. 39 As jóias, mensalidades e taxas de inscrição pagas pelos funcionários eram obviamente bem maiores do que as cobradas pelos outros montepios do país, bem como as pensões também eram significativamente maiores do que as das outras associações. Para efeitos de comparação, vemos que os Montepios das Casas dos Artistas de Salvador e de Cachoeira cobravam como jóias e diploma (que servia como inscrição) a quantia de 22$000 (vinte e dois mil réis) e mensalidades no valor de 1$000 (mil réis), normalmente estes valores eram fixos. Já no Montepio Geral dos Servidores do Estado, a inscrição, jóias e mensalidades variavam de acordo com a idade e as „faixas‟ de pensão pretendida pelos „candidatos‟; para o biênio de 1887 – 1889 as inscrições custavam entre 200$000 a 2:400$000 (duzentos mil réis e dois contos e quatrocentos mil réis, respectivamente); já as jóias ficavam entre 282$000 e 4:608$000 (duzentos e oitenta e dois mil réis e quatro contos e seiscentos e oito mil réis, respectivamente). As mensalidades por sua vez variavam entre 2$500 e 118$000 (dois mil e quinhentos réis e cento e dezoito mil réis, respectivamente).40 Um outro aspecto que chama atenção vai ser o grande número de membros do Montepio Geral. Não temos os dados exatos, porém coligindo as informações de vários relatórios temos que os números de sócios do Montepio seriam de acordo com o gráfico I, bem superiores às demais instituições. Isto é obviamente bem fácil de entender, o Montepio Geral dos Servidores do Estado era uma instituição „nacional‟ além do que o número de funcionários públicos era de longe uma das maiores „categorias profissionais‟ do período. 15 CONGRESO INTERNACIONAL DE HISTORIA DE LAS CAJAS DE AHORROS Casa Montepio dos Artistas: histórico e papel exercido no século XIX Gráfico 1: Número de Membros do Montepio Geral dos Servidores do Estado (anos selecionados) 1200 1000 no de sócios 800 600 400 200 0 1836 1847 1853 1859 1901 anos Fonte: PEREIRA, Alfredo Leal de Sá. Montepio Geral de Economia dos Servidores do Estado – Ligeiro Resumo do seu 1º Centenário 1835 – 1935. Rio de Janeiro: (reeditado) Jornal do Comércio, 1952, p. 04. 06, 07, 09, 10 Ao longo do século XIX várias reformas foram feitas nos estatutos, como a admissão de sócios com mais de 60 anos em 1837 e depois, em 1844, se tomará a idéia de proporcionalidade das contribuições de acordo com a idade dos sócios. Inicialmente o Montepio utilizava prédios de repartições públicas como sua sede e, em 1841, aluga a sua sede na travessa das belas artes no 09. Esta sede será doada ao Montepio pelo Estado em 1854 o que demonstra os sucessivos benefícios que o governo dava a essa instituição.41 Quanto ao patrimônio dessas instituições, é comum encontrar uma variada gama de ativos, como hipotecas, penhores, prédios, títulos da dívida pública entre outros; tal não era o caso do Montepio dos Servidores do Estado. A instituição possuía, por exemplo, em 1847, 1.689 títulos da dívida pública como componente de seu patrimônio, já em 1889 o número de apólices de títulos da dívida pública geral e provincial era 7.580. Esta „opção‟ por títulos da dívida pública é outra influência direta que percebemos da obra de Lemontey / Siguaud, pois lemos na proposta de estatuto do referido O homem benfazejo em seu artigo 6º que: “O capital depositado em Caixa será empregado logo que se possa em Apólices da Dívida Pública”.42 Tal fato demonstra ainda que a associação apesar de sua 16 CONGRESO INTERNACIONAL DE HISTORIA DE LAS CAJAS DE AHORROS Casa Montepio dos Artistas: histórico e papel exercido no século XIX grande quantidade de investimentos, „canalizava‟ todos os seus recursos em ativos „seguros‟ pouco contribuindo dessa forma com os empreendimentos que cresciam no país nesse momento. Também eram variadas as formas de contribuição. Por ter uma natureza de agregar trabalhadores que serviam ao Estado e por ser este Estado presente nas mais variadas repartições distribuídas pelo país e, ainda, por ser este país de proporções continentais visto sua extensão territorial, alguns casos, além de curiosos, demonstram a preocupação em poupar através da contribuição e dos arranjos feitos para não faltar com esse pagamento. Um sócio residente no Pará, receoso de perder a inscrição por falta de pagamentos, devido a dificuldades de comunicação com esta longínqua Província, enviou à Diretoria em depósito, uma apólice da Dívida Pública, cujos juros anuais representavam justamente a contribuição à que era obrigado.43 As dificuldades encontradas por estas associações, via de regra, são da ordem da inadimplência de seus sócios, no caso do Montepio Geral dos Servidores do Estado as dificuldades aparentemente se darão mais pela gestão, grande número de pensões pagas, fraudes diversas e extravio de recursos da instituição. A partir de 1864 assiste-se a constantes reclamações da diretoria da crise que estaria por desabar por sobre a associação, algumas medidas serão tomadas para contornar estas dificuldades financeiras: diminuir salário dos funcionários; desconto de 10% das pensões pagas; instalação de várias Comissões Médicas para avaliar os ingressantes – no intuito de averiguar o estado de saúde dos mesmos; pedir ao governo que as loterias passassem a ser mensais (12 por ano) e não apenas 04 – fato conseguido pelo decreto de 22 de agosto de 1866. Em 1867 – 1869 a diretoria aumentou o desconto de 10% para 20% das pensões pagas. Quando da 3ª presidência do Conselheiro José Maria da Silva Paranhos, o Visconde do Rio Branco (1869 – 1871) outras reformas foram empreendidas: continuação das loterias mensais; fim do pagamento dos impostos relativos a estas mesmas loterias; maior fiscalização da real situação de saúde e idade dos sócios; organização de „tabela de vida média‟; e, diminuição das pensões para viúvas de „novas núpcias‟.44 A crise irá continuar e em 1885 vemos mais alguns dos favores que o governo e a Câmara dos Deputados davam ao montepio quando 17 CONGRESO INTERNACIONAL DE HISTORIA DE LAS CAJAS DE AHORROS Casa Montepio dos Artistas: histórico e papel exercido no século XIX Apelando a Diretoria do Montepio para o Governo Imperial conseguiu que a assembléia geral legislativa extinguisse o pernicioso sistema das loterias provinciais serem organizadas e vendidas na corte. Estas loterias faziam grave concorrência às loterias gerais, principalmente as concedidas ao Montepio45 Esta prática irá prejudicar os interesses de outros montepios que se valiam de favores de seus governos provinciais para aumentarem as suas rendas, tal será o caso do Montepio Casa dos Artistas de Salvador que recebia da província da Bahia o direito a algumas dessas loterias. Neste mesmo ano a sede do Montepio Geral sofre um atentado via incêndio criminoso em 03 de setembro, com envolvimento do escrivão nas fraudes, conforme se apurou. O Incêndio, além dos prejuízos materiais, irá destruir para significativa da documentação da instituição, essas constantes fraudes não ocorriam apenas na sede, tanto que em 1887 – 1889 o Visconde de Paranaguá irá abolir a prática de recibos avulsos porque, segundo este, a prática permitia todo tipo de abusos por parte daqueles que recebiam as mensalidades. Também instituiu o exame obrigatório para todos os ingressantes no montepio, denotando as constantes fraudes que ocorriam com o pagamento de pensões bastante expressivas a sócios que pouco ou nada contribuíram com a instituição. Pela análise dos dados gerais da contabilidade do Montepio, podemos perceber que a crise pela qual a instituição passava estava diretamente ligada também ao número insuficiente de sócios em relação às despesas, principalmente com o pagamento das pensões. No gráfico II podemos perceber que o pagamento das jóias, inscrições e anuidades eram muito aquém dos gastos necessários. As contas somente fechavam com os juros pagos pelas apólices e pelas rendas consideráveis dadas pelas loterias. 18 CONGRESO INTERNACIONAL DE HISTORIA DE LAS CAJAS DE AHORROS Casa Montepio dos Artistas: histórico e papel exercido no século XIX Gráfico 2: Receitas Totais, Jóias Anuidades e Inscrições e Despesas do Montepio Geral dos Servidores do Estado 2500000000 2000000000 réis 1500000000 1000000000 500000000 -0 1 -9 7 18 99 -9 3 18 95 -8 9 18 91 -8 5 18 87 -8 1 18 83 -7 7 18 79 -7 3 18 75 -6 9 18 71 -6 5 18 67 -6 1 18 63 -5 7 18 59 -5 3 18 55 -4 9 18 51 -4 5 18 47 -4 1 18 43 18 39 18 35 -3 7 0 biênios despesas receitas Jóias, Anuidades e Inscrições Fonte: Movimento financeiro do Montepio Geral de Economia dos Servidores do Estado desde Janeiro de 1835 a Dezembro de 1934, In: PEREIRA, op. cit p. Anexo. Dentro das fontes de renda do Montepio ao longo do período estudado (1835 até 1900), a menor parte foi aquela ligada aos pagamentos efetuados pelos sócios, cerca de 24% do total; as loterias dadas pelo governo e os juros das apólices correspondiam respectivamente a 35% e 41% da renda conforme fica claro no gráfico 3. Essa situação demonstrava a fragilidade do Montepio e o alto grau de dependência para com o Governo o que justifica tantas ingerências políticas por parte dos presidentes e da diretoria da instituição. Dez anos após a fundação do Montepio, as mensalidades e jóias não eram mais suficientes para o pagamento das pensões dos sócios - o que nos mostra a falta de um planejamento mais racional ou „abusos‟ por parte da concessão dos benefícios. 19 CONGRESO INTERNACIONAL DE HISTORIA DE LAS CAJAS DE AHORROS Casa Montepio dos Artistas: histórico e papel exercido no século XIX Gráfico 3: Percentual de Jóias e Anuidades; Juros de Apólices e Loterias nas rendas do Montepio Geral dos Servidores do Estado 24% 35% 41% Jóias, anuidades, etc Juros de apólices Loterias Fonte: Idem. Essas receitas variaram ao longo do tempo, entretanto desde a sua origem o Montepio dos Servidores do Estado foi dependente das rendas das apólices e loterias conforme se verifica no gráfico a seguir. A partir da década de 1870 podemos perceber que a renda dada pelos pagamentos dos sócios será declinante até o período final por nós analisado. Podemos notar ainda que quando da concessão de 12 loterias para o montepio em vez das quatro anteriores em 1864, conforme visto, crescerá substancialmente a participação dessa fonte de renda para a instituição. Já no biênio 1867 – 1869 as loterias ultrapassam o pagamento das mensalidades e jóias como forma de arrecadação, sendo que no biênio de 1883 – 1885 houve uma queda significativa nesta renda e isso justificou o pedido de intervenção do governo nas loterias provinciais. Fica também patente como os juros gerados pelos títulos da dívida pública foram importantes e as mais constantes fontes de receita. As apólices da dívida pública tiveram também um crescimento espetacular durante todo o período do montepio, passando de 297$600$000 (duzentos e noventa e sete contos de réis) no biênio 1835 – 1837 para 7:554:700$000 (sete mil, quinhentos e cinqüenta e quatro conto e setecentos mil réis) ou um crescimento da ordem de 2.538,54 % para um período de 65 anos. Este patrimônio era superior ao de vários bancos existentes no período, assim, percebe-se que, quando o governo imperial reduzia os juros pagos pelos títulos, a depreciação do patrimônio e rendimento do montepio era considerável, 20 CONGRESO INTERNACIONAL DE HISTORIA DE LAS CAJAS DE AHORROS Casa Montepio dos Artistas: histórico e papel exercido no século XIX provocando queixas constantes da diretoria, como foi o caso em 1885 quando o governo passou a pagar 5% e não mais 6% de juros das apólices da dívida pública. Gráfico 4: Evolução das Jóias e Anuidades; Juros de Apólices e Loterias nas rendas do Montepio Geral dos Servidores do Estado 1200000000 1000000000 em réis 800000000 600000000 400000000 200000000 -6 5 18 67 18 69 71 -7 3 18 75 -7 7 18 79 -8 1 18 83 -8 5 18 87 -8 9 18 91 -9 3 18 95 -9 7 18 99 -0 1 -6 1 18 63 -5 7 18 59 -5 3 18 55 -4 9 18 51 -4 5 18 47 -4 1 18 43 18 39 18 35 -3 7 0 anos Jóias, anuidades, etc Juros de apólices Loterias Fonte: Idem. A diminuição do número de sócios que se percebe nos relatórios no final do Império irá agravar a crise da Instituição o que levará a mais reformas como as que em 1884 eliminaram “o gozo da pensão em vida” pelos associados e regras mais rígidas para concessão de pensão a parentes. Implicará também mais socorros públicos como o perdão de dívidas de empréstimos contraídos ao governo ou o parcelamento dos mesmos. Desta análise sumária do Montepio dos Servidores do Estado, vemos que o conceito de „privado‟ era bastante relativo em uma sociedade como a do Brasil Império. Suas finanças demonstram ainda que a capacidade deste montepio em desdobrar seus investimentos em outros setores da economia foi bastante reduzido, para não dizer inexistente. Para termos um padrão de comparação mais aceitável com os demais montepios do país, vamos passar neste ponto a analisar o Montepio Casa dos Artistas de Salvador. As origens deste Montepio é anterior à sua fundação, segundo Maria Conceição Barbosa da 21 CONGRESO INTERNACIONAL DE HISTORIA DE LAS CAJAS DE AHORROS Casa Montepio dos Artistas: histórico e papel exercido no século XIX Costa e Silva em cuja obra nos baseamos nessa parte do trabalho. Em 1832 foi criada a Sociedade dos Artífices da cidade de Salvador, instituição que atuava como um montepio, embora tivesse uma estrutura semelhante à das irmandades da época, pois tinha como padroeira Nossa Senhora de Sant‟Anna. Aparentemente a cisão de alguns associados nos anos de 1851 e 1852 se deu em relação ao destino das economias da instituição, pois alguns dos membros queriam retirar os depósitos investidos em penhores para colocarem na Caixa de Comércio recém-fundada na cidade (1849). Vários sócios, liderados por João Isidoro Pereira, reagiram a essa ação denunciando-a como favorecimento pessoal de um grupo ligado à referida caixa.46 Estes „dissidentes‟ fundaram formalmente em 02 de fevereiro de 1853 a nova instituição que contava com 19 membros na ata de fundação, Na ata dessa fundação declara-se patrono do montepio Sua Majestade Imperial D. Pedro II e a instituição teria como objetivo investir os recursos captados para serem “empregados nos benefícios e justos fins de socorrer os Associados”.47 Em 1859 o estatuto será modificado e sua função melhor explicitada. Socorrer a aquele de seus sócios que por moléstia, ou alguma outra circunstância prescrita neste Estatuto se acharem impossibilitados de proverem os meios de subsistência; assim como às viúvas e órfãos e às mães e irmãs dos sócios que falecerem sem deixar filhos.48 As funções do Montepio seriam então: 1º) o pagamento de remédios e as consultas médicas, além de um pagamento semanal ao associado enquanto durasse a doença; 2º) uma pensão para as viúvas, filhos, ou mães e irmãs após o falecimento do associado; 3º) todas as despesas de um funeral digno; e, 4º) dotes a serem pagos para as filhas ou irmãs do associado conforme se depreende para além dos estatutos, da leitura das atas da instituição. As fontes de arrecadação do Montepio seriam as jóias, mensalidades, bolsas de caridade (eram passadas em todas as reuniões e os sócios deviam voluntariamente doar), donativos e subvenções auferidas pelo poder público.49 As jóias sofreram reajustes de preço, entre 1852 e 1854 eram no valor de 5$000 (cinco mil réis) em 1856 passaram para 8$000 (oito mil réis), em 1860 20$000 (vinte mil réis) e no final do XIX passaram custar 22$000 (vinte e dois mil réis); o diploma da sociedade valia 1$000 (mil réis) que era o mesmo preço da anuidade. O sócio seria remido após 20 anos de pagamento ou então, quando morresse em dia com o Montepio, havia ainda a possibilidade de se quitar de uma vez todas as despesas, pagando-se a quantia de 22 CONGRESO INTERNACIONAL DE HISTORIA DE LAS CAJAS DE AHORROS Casa Montepio dos Artistas: histórico e papel exercido no século XIX 200$000 (duzentos mil réis) o que aparentemente somente ocorreu duas vezes para todo o período estudado. No início se cobrava multa pelo atraso nas mensalidades, mas já em 1857 esta prática foi abolida. Também se permitia ao sócio quitar mais de uma mensalidade, sendo que as formas de pagamentos eram extremamente variadas dificultando uma análise da contabilidade mais geral. Também havia um número significativo de sócios que abandonavam o Montepio porque não pagavam mais as mensalidades, embora não tenhamos os números exatos.50 O dinheiro recolhido das Bolsas de Caridade e das contribuições dos sócios honorários era colocado em contas à parte e dados como dotes das órfãs dos associados. O restante do dinheiro recolhido era investido em várias casas bancárias existentes em Salvador nesse período como na Sociedade de Comércio, no Banco da Bahia, na Caixa Reserva Mercantil e na Caixa União Comercial, aparentemente a prática de investimento em penhor foi posta de lado pelos associados após a quebra da Caixa Comercial em 1868, que investia também nesta atividade. Em 1858 o presidente da província da Bahia cedeu ao Montepio autorização para realizar 20 loterias (5 por ano) isentas dos impostos provinciais. A partir de 1865 o Montepio passou a receber 666$660 (seiscentos e sessenta e seis mil e seiscentos e sessenta réis) por ano do governo provincial; em1869 o subsídio passa a ser de 1:000$000 (um conto de réis) até 1884, quando será interrompido. Aparentemente a partir de 1890 com a proclamação da República voltam os subsídios do Governo Estadual. Entre outras formas de arrecadação temos doações realizadas pelos sócios honorários, hipoteca de imóveis, amortizações de letras, aluguéis de cômodos sublocados e importância arrecadadas em festivais beneficentes. Em 1893 a associação comprou a sua sede que custou cerca de 10:000$000 (dez contos de réis) além de ter adquirido uma quadra no cemitério da Quinta dos Lázaros para o enterro dos sócios que se dispusessem a comprar uma sepultura. Entre as várias despesas as maiores eram o auxílio doença e o pagamento de pensões aos parentes dos associados. Inicialmente pagava-se 4$200 (quatro mil e duzentos réis) por semana para um doente, a partir de 1860 esse valor passa a ser de 8$000 (oito mil réis por mês) – segundo a autora, tal fato se deu por causa da Guerra do Paraguai – entretanto da análise das receitas e despesas da instituição percebe-se que os gastos estavam chegando a um limite „perigoso‟ e, portanto, seriam necessários cortes e ajustes. De qualquer maneira as duas hipóteses não são excludentes, tanto que em 1869 pede-se ao 23 CONGRESO INTERNACIONAL DE HISTORIA DE LAS CAJAS DE AHORROS Casa Montepio dos Artistas: histórico e papel exercido no século XIX presidente de província autorização para se reduzir os valores pagos às viúvas e demais pensionistas. O atendimento aos doentes normalmente era feito por médicos que ofereciam gratuitamente atendimento aos associados e recebiam o título de sócios honorários. Vários outros cidadãos „de bem‟ irão ser convidados para serem sócios honorários, normalmente eram escolhidos pela capacidade de fazerem doações à instituição ou por serem políticos influentes que acabariam por beneficiá-la de alguma forma. Somente em um caso houve a recusa de alguém em aceitar ser sócio honorário, foi o caso do Barão de Palma ou Antônio de Freitas Paranhos alegando não pertencer a „mesma linhagem dos associados‟. Ainda segundo Silva, a prática do montepio de ajudar os sócios em momentos de moléstias aumentou consideravelmente com o tempo, o que junto com as despesas das pensões agravaram as contas da associação. A partir de 1890 a associação deixa de prestar este tipo de apoio por começar a ter problemas sérios de caixa. Demonstrando ainda características bem marcantes do século XIX, algo que nunca se alterou no montepio foi o valor e o próprio pagamento dos enterros – o bem morrer seria fundamental nessa sociedade e o grande orgulho de seus membros, tanto que era uma obrigação de todos os sócios acompanharem os funerais dos associados. Entre outras despesas do montepio, a conservação na quadra do cemitério, as reformas no prédio e na capela particular da irmandade e o pagamento dos ordenados dos funcionários também se tornaram significativas ao longo do período. A análise dos dados está incompleta, pois faltam os registros contábeis para o período de 1871 até 1889, sendo que haverá um equilíbrio financeiro nas duas primeiras décadas da instituição (1853 – 1870). O saldo do montepio nesse período seria de 16:178$052 (dezesseis contos, cento e setenta e oito mil e cinqüenta e dois réis), fora os juros, caso das aplicações financeiras – o que não foi anotado na contabilidade. 24 CONGRESO INTERNACIONAL DE HISTORIA DE LAS CAJAS DE AHORROS Casa Montepio dos Artistas: histórico e papel exercido no século XIX Gráfico 5: Receitas e Despesas do Montepio Casa dos Artistas de Salvador (1852 – 1879 / 1890 – 1900) 25000000 20000000 em réis 15000000 10000000 5000000 1900 1898 1896 1894 1892 1890 1888 1886 1884 1882 1880 1878 1876 1874 1872 1870 1868 1866 1864 1862 1860 1858 1856 1854 1852 0 anos receita despesa Fonte: Tabelas 1 e 2 Receita e Despesa Sociedade Montepio dos Artistas, Silva, op. cit. pp 75 – 88. Como faltam os dados entre 1871 e 1889, percebemos que o período seguinte (de 1890 até 1900) é marcado por um descompasso entre receita e despesas, sendo que neste período o déficit do montepio será de menos 3:323$030 (três contos, trezentos e vinte e três mil e trinta réis). Embora a compra da sede em 1893 tenha sido um investimento considerável, irá „fragilizar‟ as já combalidas finanças da instituição. Percebe-se ainda que a maior parte das rendas do Montepio eram de fato o pagamento das jóias e mensalidades, tanto que os anos em que se terá uma „folga considerável em suas receitas comparadas com as despesas serão os anos de 1859 e 1895 quando respectivamente se associaram ao montepio 106 e 87 novos sócios as maiores adesões registradas na trajetória da associação. No final do século a sociedade irá lutar contra o esvaziamento pois o número de sócios cai bastante e esta crise dará o tom melancólico com que os diretores irão se dirigir aos associados e também ao poder público pedindo auxílio para a instituição. 25 CONGRESO INTERNACIONAL DE HISTORIA DE LAS CAJAS DE AHORROS Casa Montepio dos Artistas: histórico e papel exercido no século XIX Gráfico 6: Receitas e Despesas do Montepio Casa dos Artistas de Salvador (1852 – 1879 / 1890 – 1900) 120 no de inscritos 100 80 60 40 20 18 52 18 54 18 56 18 58 18 60 18 62 18 64 18 66 18 68 18 70 18 72 18 74 18 76 18 78 18 80 18 82 18 84 18 86 18 88 18 90 18 92 18 94 18 96 18 98 19 00 0 anos CMA Salvador Fonte: Idem, ibidem Em uma rápida análise comparativa, apontando ainda os limites das fontes pesquisadas, podemos entender que os dois Montepios aqui abordados seriam marcados muito mais por diferenças do que por semelhanças. Embora mais racional do ponto de vista da estrutura e objetivos, visto que não prestava auxílio para os doentes e também não contribuíam com funerais, o Montepio Geral dos Servidores do Estado terá uma administração marcada pelos favores públicos e pelo descontrole de suas contas. As altas pensões pagas aos funcionários ainda em vida ou aos seus parentes, bem como os desvios de verba que ocorreram mas que não podem ser identificados na contabilidade geral certamente contribuíram para essa situação, embora o auxílio do governo tenha sido diversas vezes socorrido a Instituição. O perfil social dos membros desse montepio também será bastante diferenciado dos demais montepios abordados, formado por parte significativa dos setores dominantes do país, a experiência de seus membros será, como tantas vezes na história do Brasil, marcada pela estatização das perdas e privatização dos lucros. Por sua vez, o Montepio Casa dos Artistas de Salvador irá ter um perfil distinto, composto pela população ensanduichada de Salvador, se diferenciou das irmandades e 26 CONGRESO INTERNACIONAL DE HISTORIA DE LAS CAJAS DE AHORROS Casa Montepio dos Artistas: histórico e papel exercido no século XIX demais associações devocionais pela questão da profissão e de não possuir recortes étnicos expressamente delimitados – embora na realidade a clivagem racial fosse existente, sendo a maioria de seus membros negros, mulatos, mestiços. Diferenciou-se ainda do Montepio dos servidores do Estado pelo seu perfil muito mais popular e por uma contabilidade com um peso muito „menor‟. Embora recebendo ocasionalmente apoio do Estado e dos setores dominantes, essa associação irá manter suas contas na „fronteira‟ possível, até porque a própria lógica do montepio era a do auxílio entre os pares, e os membros Montepio dos Artistas de Salvador não encontrava estes pares no Estado. A manutenção da “morte oitocentista” será também indicativo das permanências culturais dessa sociedade e os limites de seus investimentos também são indicativos dos limites dessa economia. 4. Economia e sociedade do Recôncavo da Bahia Para analisarmos a importância e a dimensão que irá ter o Montepio Casa dos Artistas de Cachoeira, faz-se necessário, mesmo que sucintamente, uma análise da economia da região do Recôncavo na qual a associação se inseria. Uma das províncias mais importantes do Império no século XIX, a província da Bahia era marcada pela agricultura de exportação baseada na escravidão. Vários produtos saíam pelo porto principal da província, o de Salvador, em direção aos países europeus, principalmente, desde o período colonial. O Recôncavo além do principal „centro‟ produtor da província tinha um aspecto, abordado por Barickman, de possuir três grandes artigos comerciais produzidos na mesma região: a cana-de-açúcar, o fumo e os produtos de subsistência – estes últimos voltados para o mercado interno. 51 No período colonial, principalmente nos séculos XVII e XVIII, parte do Recôncavo Sul, mais precisamente o trecho navegável do baixo Rio Paraguaçu e o povoado (Vila) de Cachoeira, jogou um papel especial nas rotas de comércio em direção ao hinterland (Sertão do São Francisco e Minas Gerais) de um lado, e em direção aos mercados consumidores da Europa e África de outro, constituindo-se em um entreposto do que se produzia para exportar e do que se importava do império português. Como a região era pródiga em termos de recursos naturais, inclusive pastagens, foram desenvolvidas, neste local, várias atividades produtivo-primárias e também produtivo-secundárias, como a fabricação de açúcar e de charutos. 27 CONGRESO INTERNACIONAL DE HISTORIA DE LAS CAJAS DE AHORROS Casa Montepio dos Artistas: histórico e papel exercido no século XIX O território da colônia foi incorporado ao circuito internacional de comércio devido a atividades extrativistas dos vegetais, particularmente da madeira denominada pau-brasil. Estas atividades desenvolveram-se principalmente na Mata Atlântica ao sul de Salvador, mas no Recôncavo, entretanto, não foram as únicas, pois além da extração de produtos vegetais houve também a minerais e animais Ao extrativismo, segue-se ainda no século XVI a produção de açúcar, atividade que combinava a agricultura com o processamento industrial da cana, constituindo o denominado complexo açucareiro. As demais atividades econômicas nesta fase colonial da história nacional eram subsidiárias à produção açucareira, entre elas a criação extensiva de bovino, que se estendia pela zona de transição para o semi-árido, a mata fina ou agreste e entrava no semi-árido. A produção de raízes e tubérculos, como a mandioca, frutas, poucos cereais e posteriormente fumo e algodão, estes últimos também se constituindo mercadorias do comércio internacional, integravam o elenco de atividades conduzidas no período pelo mesmo tipo de agente que teve origem no extrativismo e por pequenos produtores independentes a ele anteriormente articulado. Estas outras atividades não chegaram, contudo, a ter o peso da cana de açúcar, que, pela sua hegemonia, moldou no Nordeste relações de produção e uma sociedade que viria a ser a marca do Brasil, influenciando a construção do conjunto de instituições, de mentalidades e de valores. Com exceção de uma atividade agrícola atomizada de poucos homens livres, a produção extrativa e não extrativa no Brasil se organizava utilizando como força de trabalho a mão-de-obra escrava dos índios e, posteriormente, das populações africanas. Esta fase colonial da história nacional é conceituada por alguns historiadores como pré-capitalista, estando associada à grande propriedade da terra, outorgada pelo poder colonial a senhores da nobreza, e, por outros, como plenamente capitalista, por estar vinculada ao capital mercantil e aos circuitos internacionais de acumulação. Não obstante, ser pré ou plenamente capitalista, a principal atividade desta economia, a açucareira, entra em uma profunda crise cujo início é datado por alguns como 1830, quando o açúcar perde a liderança de exportações da recém nação brasileira. As origens desta crise, em geral associada com a concorrência do açúcar produzido nas Antilhas, estariam, na incapacidade da classe de senhores de engenho de se adaptar às leis de 1850 (Fim do Tráfico) e 1871 (Lei do Ventre Livre) e também na mentalidade estritamente escravista, que não concebia alterações nas relações de produção e nem nas forças produtivas, mantendo a rotina nas técnicas agrícolas e agroindustriais e não introduzindo inovações tecnológicas. 28 CONGRESO INTERNACIONAL DE HISTORIA DE LAS CAJAS DE AHORROS Casa Montepio dos Artistas: histórico e papel exercido no século XIX O que nos cabe ressaltar é que, inserido numa sociedade de tradição escravista agrícola exportadora, a cidade de Cachoeira teria papel fundamental na distribuição desses produtos, tanto para o interior baiano, como para o porto que levaria tais produtos para o mercado internacional; faria também o papel inverso, ou seja, de distribuir os produtos chegados pelo porto via importação. Dessa forma, a cidade assumiria ares de encontro e, por isso, caráter mercantil e de passagem de várias tropas e embarcações que faziam a distribuição aludida acima. Como característica desse tipo de cidade, a gama de serviços oferecidos seria diversificado e, portanto, aglutinaria em seu espaço trabalhadores com várias funções, algumas bastante especializadas. 5. O Montepio Casa dos Artistas de Cachoeira Uma das formas de associação dos trabalhadores especializados, residentes na cidade de Cachoeira e adjacências, aos quais nos referimos na parte anterior deste trabalho seria a Montepio Casa dos Artistas de Cachoeira52. Esta instituição53 será fundada em 19 de fevereiro de 1874 “com o fim de instalarem uma associação beneficente de socorros”.54 Na Assembléia de abertura, nas dependências da Irmandade do Senhor São Benedito na cidade de Cachoeira. Foi escolhido ainda como protetor da entidade o “Divino Mestre Nosso Senhor Jesus Christo” e o „artista‟ José Clarião Lopes, um dos sócios fundadores, tomando a palavra fez um pequeno discurso, demonstrando a utilidade e importância de tal instituição, em que o artista tinha “um arrimo para as vicissitudes da sorte, e a viuvez e orfandade um abrigo seguro”.55 Uma parte significativa da documentação da instituição se perdeu nas constantes enchentes que assolaram as cidades de Cachoeira e São Félix banhadas pelo Rio Paraguaçu no século XX. Assim, grande parte das análises por nós empreendidas se dará pela descrição das atas e dos poucos documentos fiscais e seriais encontrados. Desses dados chama atenção a “Relação de Sócios do Montepio Casa dos Artistas Cachoeiranos” de 1902 onde encontramos a escrituração dos sócios, sua situação na instituição (remidos, eliminados, benfeitores e pagantes). Tais dados foram agregados nos gráfico 7 e 8 que seguem abaixo 29 CONGRESO INTERNACIONAL DE HISTORIA DE LAS CAJAS DE AHORROS Casa Montepio dos Artistas: histórico e papel exercido no século XIX Gráfico 7: Número de Associados da Casa Montepio dos Artistas (1874 – 1900) 80 70 No de Inscrições 60 50 40 30 20 10 1900 1899 1898 1897 1896 1895 1894 1893 1892 1891 1890 1889 1888 1887 1886 1885 1884 1883 1882 1881 1880 1879 1878 1877 1876 1875 1874 0 anos Fonte: Relatórios da Casa Montepio dos Artistas Ao todo entre 1874, quando foi criada a sociedade, até a virada do século em 1900 o Montepio Casa dos Artistas de Cachoeira teve 519 associados. Pela análise dos dados podemos perceber que o Montepio iniciou suas atividades com cerca de 18 sócios e no ano seguinte conseguiu a expressiva adesão de novos 42 membros. Nos dois anos seguintes cerca de 47 novos membros se associaram; 15 em 1876 e 32 em 1877. Assim, quatro anos depois de fundada o Montepio já possuía 107 membros, número significativo para a população da cidade e se compararmos com o Montepio dos artistas de Salvador que nos quatro primeiros anos conseguiu a adesão de 255 membros. Nos anos que se seguiram vemos uma queda no número de novas adesões que se prolongará pelos primeiros anos da década seguinte, sendo que em 1881 será um dos únicos anos que não registramos nenhuma novo sócio. Mesmo sendo a associação uma instituição com pendores abolicionistas, conforme se verá, a expectativa da abolição e as mudanças por ela geradas podem ter sido um dos motivos que levou busca de formas de se garantir algum patrimônio. Assim vemos uma tendência crescente de novos associados a partir de 1885 sendo que o ano de 1893 será aquele com o maior número de novas inscrições – cerca de 70 no total. A nova legislação que passou a regulamentar os montepios no país pode explicar este aumento, ao mesmo tempo, acreditamos que as transformações com o final do Império e a passagem para a 30 CONGRESO INTERNACIONAL DE HISTORIA DE LAS CAJAS DE AHORROS Casa Montepio dos Artistas: histórico e papel exercido no século XIX República tenham também aumentado a insegurança da população de artesãos do Recôncavo que passou a buscar investimentos mais „seguros‟ em uma época de grande turbulência e mudanças econômicas. Cumpre assinalar que também no Montepio de Salvador os anos seguintes à proclamação da república foram de inscrições maciças, indicando a possibilidade de um padrão nas adesões à sociedades do mesmo tipo. Por volta de 1900, a situação do montepio seria a seguinte: dos 519 associados que passaram pelo montepio, cerca de 135 já haviam falecido e seus parentes recebiam apoio da associação; havia ainda 202 sócios contribuintes como se percebe abaixo: Gráfico 8: Situação do Montepio Casa dos Artistas em 1900 99 / 19% 202 / 39% 78 / 15% 5 / 1% 135 / 26% eliminados remidos falecidos beneméritos pagantes Fonte: Relatórios da Casa Montepio dos Artistas Nota: o 1º número refere-se aos valores absolutos e o 2º número à percentagem (Ex: 202/39%) Chama atenção no caso do montepio o número de pessoas que saíram da sociedade, pois, dos 519 associados, 99 ou 19,05% não conseguiram pagar as mensalidades ou pediram para sair sendo normalmente definidos como „eliminados‟. Na documentação estudada não aparece a data em que tais sócios saíram, sendo que então somente podemos assinalar o número final e não percebermos a evolução dos mesmos. De qualquer maneira é interessante notar uma média relativamente baixa de sócios eliminados o que pode ser indicativo de fortes laços de solidariedade para os membros da instituição. Da mesma forma é bastante expressivo o número de pessoas que conseguiram „empatar‟ uma soma considerável quitando suas contribuições – 78 ou 15,02% do total de 31 CONGRESO INTERNACIONAL DE HISTORIA DE LAS CAJAS DE AHORROS Casa Montepio dos Artistas: histórico e papel exercido no século XIX associados conseguiram tal proeza –, tendo se tornado „remidos‟. O fato do valor para se quitar o montepio ser de 200$000 (duzentos mil réis) tanto para Cachoeira como para Salvador mostra um fato peculiar do Montepio de Cachoeira se comparado ao da capital da província, onde Silva aponta somente dois sócios em situação idêntica. No limite dado pelas fontes, podemos pensar em „estratégias‟ distintas dos associados das duas cidades, além de demonstrarem formas de acumulação em paralelo ao Montepio. Cabe assinalar aqui os sócios honorários ou beneméritos, para o período estudado tivemos um total de cinco, sendo três deles expressivos líderes políticos da região, e mesmo além da província, como o Barão Homem de Melo associado em 1878. O barão foi Francisco Ignácio Marcondes Homem de Melo, político e magistrado brasileiro originário de São Paulo tendo sido presidente de diversas províncias e da Bahia em 1874, além de inspetor da Instrução Pública do Município da Corte (Rio de Janeiro) durante o período de 1874 a 1878. Outro foi o 2º Barão do Iguape ou Ignácio Rodrigues Pereira Dutra associado em 1883 e que ainda era comandante da Guarda Nacional na região. Já o Barão de Lacerda Paim ou Honorato Antonio de Lacerda Paim era, por sua vez, médico, tendo sido deputado na constituinte baiana em 1891 se associou ao montepio em 1900. O médico Francisco Romano de Souza, herói da Guerra do Paraguai, tornou-se sócio benemérito em 1886 e, a exemplo do Montepio de Salvador, também prestava atendimento voluntário aos sócios enfermos. Como também parece ter sido o caso do Farmacêutico Helvécio H. Sapucaia associado como benfeitor desde 1876.56 Estas estratégias eram, portanto, bastante semelhante para as duas associações, somente que no caso do Montepio dos Artistas de Cachoeira não encontramos na análise da documentação concessões públicas como subvenções ou loterias, indicando tratar-se no caso mais de uma questão de status e reconhecimento social pelos setores dominantes e benefícios diretos (como exames e remédios) do que favores políticos. Quanto à composição social dos membros do montepio, não existe uma lista completa das profissões, mas da leitura de algumas atas confirma-se o perfil de artífices de profissões variadas como no caso de Salvador. Eram carpinteiros, mestres pedreiros, pintores, operários da ferrovia, ou genericamente chamados “aqueles vivem da arte liberal”. A localização geográfica dos sócios correspondia grosso modo às vilas e distritos do recôncavo, eram moradores de Cachoeira, São Félix, Maragogipe, Muritiba e regiões vizinhas, demonstrando ainda o alcance significativo que a vila de Cachoeira possuía ainda no final do século XIX. De perfil bastante variado, alguns eram proprietários de escravos pelo que se vê da documentação quando em 1881 em uma sessão solene um sócio “liberta 32 CONGRESO INTERNACIONAL DE HISTORIA DE LAS CAJAS DE AHORROS Casa Montepio dos Artistas: histórico e papel exercido no século XIX um seu escravo” tendo em vista a homenagem de 10 anos da morte do poeta abolicionista baiano Castro Alves. Aparentemente as inclinações abolicionistas da associação irão conviver em harmonia com a propriedade de cativos, no caso aludido, denota uma diferenciação social entre os perfis de riqueza dos membros do montepio. Pela análise das atas do Montepio, podemos indicar como alguns dos eventos mais importantes da associação. Assim, em 18 de outubro de 1874, foram aprovados os estatutos pelo governo e, então, foi feito depósito de jóias, estipuladas em 20$000 (vinte mil réis) pelos sócios instaladores e os subseqüentes. O total arrecadado foi de 462$000 (quatrocentos e sessenta e dois mil réis), além de ter-se iniciado o pagamento de mensalidades em primeiro de novembro do mesmo ano.57 No biênio de 1876-1877, a nova diretoria tomou posse e lhe foram entregues pela anterior os bens que a sociedade possuía: três cautelas do Banco Mercantil da Bahia no valor de 233$000 (duzentos e trinta e três mil réis), 218$780 (duzentos e dezoito mil, setecentos e oitenta réis) em moeda corrente, 60 recibos de mensalidades referentes a 60$000 (sessenta mil réis), um arquivo, duas cadeiras de braço, uma escrivaninha com caneta e pena aparelhadas de ouro, uma bolsa e sete livros que têm a escrituração da sociedade. Como a Casa Montepio dos Artistas de Cachoeira ainda funcionasse na Irmandade de São Benedito, em 28 de maio de 1876 houve uma discussão inicial sobre a necessidade de uma sede própria, visto que a sociedade funcionava desde a fundação na dita Irmandade. Chegou-se ao consenso dessa necessidade e, também, de uma contribuição por parte dos sócios para arrecadar quantia que pudesse ampliar os fundos da sociedade e então pudesse adquirir um prédio para funcionamento em sede própria. Houve doações por parte dos sócios presentes para iniciar tal processo.58 Também há a preocupação sobre a capacidade de ampliação da renda e posse do Montepio. Em três de setembro de 1876 há um pedido, por parte do Tesoureiro, de retirada do dinheiro do Montepio depositado no Banco Mercantil da Bahia por ter rendimentos muito pequenos (somente 3% ao ano) e que estes sejam cambiados em apólices da dívida pública geral, com rendimento melhor e, portanto, melhoria da arrecadação para a instituição.59 A real possibilidade de adquirir sede própria surge em 29 de novembro do mesmo ano. Aparece nesta ata a intenção e o pedido de autorização para comprar um sobrado de dois andares que irá à leilão público, o que foi decidido positivamente por unanimidade dos presentes.60 Este prédio próximo à Câmara Municipal e em uma das ruas mais importantes da cidade é, ainda hoje, a sede da sociedade. 33 CONGRESO INTERNACIONAL DE HISTORIA DE LAS CAJAS DE AHORROS Casa Montepio dos Artistas: histórico e papel exercido no século XIX Diversas datas assumirão ares de solenidade para o montepio, além da já citada homenagem ao poeta Castro Alves, também a sessão de 13 de maio de 1888 por ocasião da abolição da escravidão no país tomou ares de acontecimento social, visto ter a Sociedade nítida e explícita intenção de louvar a publicação da lei áurea. Nos dizeres de um dos sócios “esta lei que torna este grandioso Brasil realmente livre”. É importante perceber que, além das atividades fundamentais deste tipo de associação de trabalhadores, também havia uma função social do encontro, de espaço para as manifestações dos acontecimentos, de cunho regional ou nacional, mais relevantes. 61 Quanto ao patrimônio da sociedade Montepio Casa dos Artistas de Cachoeira, é possível perceber por suas atas sua capacidade de acumulação e de diversificação de bens. O patrimônio pode ser conhecido pelas suas atas, onde o tesoureiro presta contas trimestralmente do estado das finanças que cabe a ele cuidar. Entre esses bens, podemos vislumbrar, além do prédio que serve de sede para a sociedade, mobília – algumas importadas; jóias – provenientes de penhores que serviam de garantias para empréstimos concedidos pelo Montepio; imóveis hipotecados – que compõem hoje um número de casas distribuídas pela cidade e que são alugadas desde o século XIX, além de material para funcionamento das reuniões. As formas de renda da sociedade também eram variadas: aluguéis dos imóveis pertencentes ao Montepio, doações dos sócios, caixa de beneficência (também eram doações) e juros das hipotecas e penhores. As hipotecas, importante ativo das fortunas, tanto de indivíduos quanto de empresas e sociedade de variadas naturezas, foi, durante o século XIX e início do XX, além de uma forma de garantia de dívida, mecanismo de acumulação de bens assegurado pela lei de execuções presente no Código Comercial de 1850.62 Era possível, desta forma, emprestar e, no caso de não pagamento da dívida no prazo estipulado – no caso das hipotecas, geralmente prazos mais longos –, executar a hipoteca judicialmente, o que certamente contribuía para aumento de patrimônio, principalmente de imóveis para o credor. No caso do Montepio, houve um acréscimo de imóveis bastante substancial para o acervo da sociedade em questão. Embora seja limitada a documentação que nos possibilite ver estes imóveis sendo adquiridos – seja por compra, ou por execução de hipotecas de dívidas – não é incomum ver em suas atas a discussão acerca da decisão de executar algum devedor, ou ainda, de cobrar aluguéis de imóveis que vão surgindo e constituindo este patrimônio à medida que avançamos na documentação pesquisada. Diferentemente das duas associações estudadas, o montepio de Cachoeira não irá apresentar sinais de crise no período final do século XIX, para tanto, além de sua fundação 34 CONGRESO INTERNACIONAL DE HISTORIA DE LAS CAJAS DE AHORROS Casa Montepio dos Artistas: histórico e papel exercido no século XIX ter se dado em período posterior as outras aqui abordadas, o que significou que os custos com pensões, auxílio aos doentes e funerais foram „menores‟, aparentemente também contribuiu a „estratégia‟ dos associados em capitalizarem o patrimônio da instituição em hipotecas, imóveis empréstimos e penhores levados a cabo pelo próprio montepio. Uma análise mais acurada dos investimentos do montepio encontra-se prejudicada pela falta da documentação contábil, porém a capacidade de adquirir imóveis como forma de expansão do patrimônio chama a atenção por se diferenciar dos outros montepios estudados que somente possuíam a própria sede e, aparentemente também não investiram em empréstimos e hipotecas. O caráter limitado de uma cidade no interior – embora fosse uma animada praça comercial – parece ter tido um efeito mais positivo no caso do Montepio de Cachoeira, concentrando ainda os sócios que se dispersariam em outras associações como parece ter sido o caso do Montepio dos Servidores do Estado e dos Artistas de Salvador. A diversificação das atividades econômicas, como no caso dos empréstimos sobre penhora e hipotecas, parece cumprir ainda certas funções creditícias que na Corte e na Capital da Província eram realizadas por instituições especializadas, diminuindo os „espaços‟ de atuação destes montepios. Seria interessante a análise das razões dos empréstimos realizados pelo Montepio, bem como do perfil dos tomadores de empréstimos (se eram ou não sócios) e dos juros praticados em tais operações. No limite assinalado pelas fontes percebe-se, entretanto, que, além de um investimento possível, os empréstimos serviam como financiamento de setores da população excluídos do sistema financeiro „oficial‟ e que também teriam dificuldades em contrair empréstimos com os capitalistas locais. Dessa forma, o Montepio cumpria uma importante função social em uma economia com forte movimento de transformação. O Montepio Casa dos Artistas de Cachoeira terá uma trajetória singular dentro de vários montepios no país. Enquanto a maiorias das instituições desse tipo entrarão em crise nos anos 1930, o Montepio de Cachoeira continuará desenvolvendo suas atividades, mesmo que de outras naturezas, embora no que diz respeito ao serviço de amparo aos sócios tenha tido seu último ato em 1994, com o pagamento do funeral do então sócio que ocupava o cargo de tesoureiro da sociedade. Hoje em dia, suas atividades resumem-se principalmente na administração do patrimônio, sem que haja contribuição mensal dos sócios. *** 35 CONGRESO INTERNACIONAL DE HISTORIA DE LAS CAJAS DE AHORROS Casa Montepio dos Artistas: histórico e papel exercido no século XIX Notas de referência: 1 FREYRE (1983), p. IX; e, FRANCO (1969). PIRES (2004). 3 Cidade da Bahia é a forma como Salvador aparece frequentemente citada na documentação do período, o que de denota o seu papel central na formação cultural da província. Para entender a importância da cidade de Salvador cf. principalmente. MATOSO (1992), pp 39 – 43. 4 PRADO JÚNIOR (2000). 5 MALERBA (2003). 6 CARVALHO (1980). 7 PEREIRA (2001). 8 FERREIRA (1998). 9 LEMONTEY (1832). 10 MARTÍNEZ SOTO (2005), p. 06. 11 O conceito de exclusivo metropolitano vem de NOVAIS (1995). 12 CARDOSO DE MELLO (1985). 13 CARVALHO (1980). E também, MOTA (1986). 14 OLIVEIRA (1992). 15 PIÑEIRO (2002). 16 Esse era o lema da Caixa Econômica da Cidade da Bahia cf. SOUZA (2003), p. 48. 17 LEVY (1994). 18 Idem, ibidem. 19 MARTINS (1979). 20 Cf. além de LEVY, op. cit. 21 Sobre a extensa discussão acerca dos escravos e as funções desempenhadas por estes na sociedade colonial e imperial brasileira cf. SCHWARTZ (2001), particularmente o capítulo A historiografia recente da escravidão brasileira. 22 LEVY, op. cit 23 LEVY, op. cit. 24 GUIMARÃES (1997). 25 PIRENNE (1963). 26 MARTÍNEZ SOTO, op. cit, p. 06. 27 SILVA (1998), p. 21. 28 REIS (1991). 29 SILVA, op. cit. p. 22. 30 Código Comercial Brasileiro de 25 de novembro de 1850. Disponível em: www.planalto.gov.br . 31 SOUZA (2003), p. 48. 32 Ver o código comercial disponível em: www.planalto.gov.br Título III, capítulo II: Da penhora, grifo nosso. 33 Decreto Imperial no. 2711, de 19 de dezembro de 1860, § 5o do art. 32. 34 PEREIRA, op cit. 35 SILVA JÚNIOR (2003). 36 PEREIRA (1952), p. 04. A referência ao estatuto proposto vem da obra de LEMONTEY, op. cit. pp 32 – 39. 37 Sobre a discussão da estrutura ocupacional do Estado Imperial Brasileiro cf. CARVALHO, op cit. 38 PEREIRA, op. cit., p. 10. 39 Relatório Montepio Geral dos Servidores do Estado biênio 1887 – 1889, Anexo, tabela III. 40 Idem, ibem 41 Idem, ibidem. p. 09. 42 LEMONTEY, op. cit, p. 33. 43 Idem, ibidem, p. 09. 44 Idem, ibidem. p. 12 45 Idem, ibidem. p. 12. 46 SILVA (1998). 47 Ata de Fundação do Montepio Casa dos Artistas de Salvador apud: SILVA, op. cit, p. 37 48 SILVA, op cit. 49 Idem, p. 53. 50 Idem, p. 54. 51 BARICKMAN (2003). 52 Também chamado na documentação como Montepio Casa dos Artistas Cachoeiranos. 2 36 CONGRESO INTERNACIONAL DE HISTORIA DE LAS CAJAS DE AHORROS Casa Montepio dos Artistas: histórico e papel exercido no século XIX 53 Toda a documentação consultada para a confecção deste trabalho foi gentilmente cedida para consulta pelo atual Presidente da Sociedade Montepio Casa dos Artistas Cachoeiranos, senhor Carlos Aragão, a quem agradecemos publicamente a atenção e disponibilidade em nos atender e dar acesso às informações acerca desta sociedade. 54 Atas de Assembléia da Sociedade Montepio Casados Artistas de Cachoeira doravante (19/02/1874). 55 Idem, ibidem. 56 AASMCAC (15/03/1876) 57 AASMCAC (10/02/1874) 58 AASMCAC (28/05/1876) 59 AASMCAC (03/09/1876) 60 AASMCAC (29/11/1876). 61 AASMCAC (13/05/1888). 62 Cf. ALMICO (2007). Bibliografia: Leis: Código Comercial Brasileiro de 25 de novembro de 1850. Disponível em: www.planalto.gov.br . Decreto Imperial no. 2711, de 19 de dezembro de 1860, § 5o do art. 32. Livros e artigos: ALMICO, Rita de Cássia da Silva., (2007), <<O Crédito hipotecário entre homens comuns: Juiz de Fora na segunda metade do XIX>>, Montevidéo, Congresso Latino Americano de História Econômica. BARICKMAN, Bert Jude, (2003), Um contraponto baiano: açúcar, fumo, mandioca e escravidão no recôncavo. 1780-1860, Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira. CARDOSO DE MELLO, João Manuel, (1985), O capitalismo Tardio, São Paulo, Brasiliense. CARVALHO, José Murilo de, (1980), A construção da ordem: a elite política imperial, Rio de Janeiro, Ed. Campus Ltda. FERREIRA, Luiz Otávio, (1998), <<José Francisco Xavier Sigaud: um personagem esquecido, uma obra reveladora>>, História, ciência, saude-Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 1. 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