Penélope mantinha-se fiel. Ulisses, seu esposo, desaparecera fazia mais de dez anos. Partira com seus homens para a guerra com Troia e, desde então, nunca mais dele se soube. Andava triunfante por terras distantes a inventar ardilosos cavalos de madeira que o infiltrassem dentro de muralhas alheias. Penélope mantinha-se fiel. Não importava se estava Ulisses morto ou desaparecido, a combater na guerra ou a procurar os escritores do amanhã. Sabia que casara com destemido guerreiro, respeitado pelos homens e agraciado pelos deuses, escolhido na terra e nos céus para completar as mais difíceis missões. Num dia combatia, no outro carregaria os livros do conhecimento. Podiam vir príncipes e reis, mercadores e magnatas. Penélope mantinha-se fiel e assim continuaria. O RELÓGIO 1 Exemplar n º : Samuel Pimenta O RELÓGIO Título: O relógio Autor: Samuel Pimenta Revisão: João Batista * Livros de Ontem Capa e paginação: Nádia Amante * Livros de Ontem ©2014, Livros de Ontem Reservados todos os direitos de acordo com a legislação em vigor 2ª edição: Julho 2014 Tiragem: 150 exemplares Depósito Legal: ISBN: 978-989-8762-05-4 Livros de Ontem Rua João Ortigão Ramos, 34, 6ºF 1500 - 364 Lisboa • Portugal www.livrosdeontem.pt Samuel Pimenta O RELÓGIO 2º Edição REVISTA E AUMENTADA Nota do editor Na primeira edição de “O relógio”, por um erro de diagramação, o número de versos do poema não corresponde ao número de versos do texto original. Nesta segunda edição, respeitamos integralmente o número de versos do poema original. O RELÓGIO 7 Nota Introdutória Enquanto seres, nós, humanos, somos multidimensionais. Regem-nos as dimensões física, mental, emocional e espiritual, além de outras que estão, ainda, por definir. Somos, por isso, detentores de identidades múltiplas. De Eus. No plural. “O relógio” surgiu desse caminho que percorro em busca da minha identidade que, sendo múltipla, é uma só. A dado momento, cruzei-me com Elise, ou Lise para as pessoas mais íntimas, a quem dedico este poema. Um delírio, segundo alguns. Um Eu, para os mais místicos. Para mim, uma das muitas identidades que me definem o ser. “O relógio” foi escrito por ela. Começou a ser escrito pelo seu punho, pela sua efervescência de querer romper com a realidade que a aprisiona. Isto até ao momento em que a fronteira entre mim e ela se diluiu; “O relógio” foi escrito por nós. As nossas mãos fundiram-se e a voz de Lise tornou-se a minha voz. A voz de Lise é a minha voz. Num outro registo, O RELÓGIO 9 identidade ou vibração energética. Como queiram. Sei que ela também sou eu e que a minha escrita mudou desde que a descobri. Só isso importa. Partilhei com alguns amigos escritores esta questão dos Eus. Receoso, numa primeira fase. O assunto ainda é tabu e visto como propriedade de uns poucos. Surpreendi-me ao perceber que não sou o único a sentir assim. É, aliás, comum entre quem escreve. No entanto, ainda há medo de o revelar. Não pode haver medo! A multiplicidade do ser não é propriedade de ninguém e são muitos os que a vivem diária e intensamente. São muitos os que criam com base na experiência dos Eus. Podem não ter nomes para lhes atribuir, mas reconhecem-lhes as identidades. Confesso que tenho mais Eus, mas só a Lise se revelou com a personalidade vincada o suficiente para lhe descobrir o nome e a história. No momento de decidir quem assinava o poema, percebi que Lise era apenas e só um Eu do Samuel multidimensional. E que se fosse Lise a assinar, seria a Lise a imperar sobre o Samuel. Permitir isso seria negar-me, seria afirmar que um dos Eus que me define impera sobre o EU que eu sou. Por isso, integrei a experiência de viver como Lise e deixei que partisse ao cumprir a 10 SAMUEL PIMENTA sua missão. Por vezes, volta, mas já não tão presente. Ainda assim, não podia deixar de dedicar este poema à identidade que me ajudou a criar “O relógio”. Tudo fica mais fácil quando assim é. Samuel Pimenta, Lisboa, 10 de Setembro de 2013 – 17h17m O RELÓGIO 11 Prefácio Depois de ter tido o prazer de ser convidada, como actriz, para interpretar este texto, sou agraciada pelo poeta Samuel Pimenta, muito querido amigo, com a tarefa de escrever o prefácio deste livro. Mais uma honra. Não há muito a dizer sobre o que eu sinto deste escrito e sobre quem é Samuel Pimenta, quando a sua transparência deixa passar a luz. Digo, deste “Relógio”, a súmula do desgaste do nosso “tempo”, genialmente retratado pelo autor. Tempo inventado por nós, contado em dias, horas, minutos, anos, repetido, sensaborão, em tique-taques intermináveis e iguais. À prisão circular e obsessiva do tiquetaquear dos seus ponteiros, que soam enfadonhamente em eco redondo, triste e infindo, cinzento e nauseante, cola-se “o blá-blá-blá das gentes redondas que nada mais sabem dizer além de dizerem nada”, e “que nada O RELÓGIO 13 mais vêem além do umbigo que trazem na barriga, redonda também”. Daqui salta, como géiser, o perfil de Samuel Pimenta. Lúcido, atrevidamente verdadeiro, claro e preciso na palavra e na forma, opondo-se à “vertigem de que ser-se igual é ser-se perfeito”. Cansado desse mundo de gentes redondas, a sua voz solta-se em grito: “A vida é liberdade! Liberdade de blás. Liberdade de tiques. Liberdade de taques. Liberdade!”. E nessa liberdade, a forma que dá à beleza e que aponta, com mestria, as cores do lixo humano, é a mesma com que pinta os seus sentimentos. Verdadeiros. A que mostra, claramente, quem é. A que desenha a leveza e a força do que é simples. A da ausência absoluta de conceitos velhos e caducos. A mesma simplicidade com que nos brindou o nosso Fernando Pessoa. Simples. E o que posso dizer do que transborda de si? Simplesmente, que o leiam, que o mastiguem, quando os olhos passarem pelos seus ditares. Que «sintam» o que de lá vem. E que isso sirva de alavanca para se aprender, ou reaprender a olhar para as «coisas». 14 SAMUEL PIMENTA Samuel Pimenta é um Guerreiro de Luz! E as suas palavras ecoam em onda. Que a sua escrita cruze os mares, assim como a liberdade da sua alma o faz. Que ele se deixe navegar nessa música que não se repete, porque é desigual a cada segundo. E que nos deixe ir com ele! Em alegria, pelo gosto que pratica na partilha. Por último, só um OBRIGADA, meu querido Samuel. Romi Soares, Porto, Agosto de 2013 O RELÓGIO 15 Para Lise Van Heiken Telles, o delírio que fez nascer a obra. Bem sei que não há nada novo embaixo do céu; que antes outros pensaram as cousas que ora eu penso. E bem, para que escrevo? E bem, porque assim semos, reló’s que repetimos eternamente o mesmo. Rosália de Castro, Folhas Novas O RELÓGIO Odeio o meu relógio. Enjoa-me a prisão circular e obsessiva dos ponteiros, músicos farsantes que apenas tocam um interminável insuportável incontrolável tiquetaque tiquetaque tiquetaque que se repete e se repete e se repete e se repete novamente sempre horrível e nauseante até que tenha corda o relógio ou tenha eu paciência para o não O RELÓGIO 21 partir contra a parede. Ah! odeio o meu relógio! Ah! Ah! Ah! Os ponteiros giram giram e giram sempre redondos e iguais, coitados. Nem sei porque uso eu relógio, que redondo não sou e o igual é coisa que me aborrece. O igual é igual e não passa disso mesmo. É enfadonho. É como a rocha na praia. Quieta, muda, morta. Igual. E até a rocha na praia deixa de ser igual quando a erosão dita o fim da era de ser rocha e ordena o começo da era de ser pedra. Areia. 22 SAMUEL PIMENTA Pó. Se até as rochas têm fim, porque insistem em fazer relógios sem tempo contando o tempo de forma sempre igual? Ah! odeio o meu relógio! Grrrrrrrrr! Talvez hoje o atire contra a parede ou o lance ao rio, da ponte. Não quero em mim a rotina macambúzia de um objecto cujo discurso atrofiado se reduz a duas palavras com duas sílabas cada. Ora tique. Ora taque. Tique. Taque. Ti-que. Ta-que. O tique e o taque são ainda mais embrutecidos que a fala de quem só fala por grunhidos. E se juntarmos as duas palavras O RELÓGIO 23 com duas sílabas cada ficamos com uma palavra de quatro sílabas e o urro é ainda mais aberrante. Tiquetaque. Tiquetaque. Tiquetaque. Ti-que-ta-que. Ti-que-ta-que. Ti que ta que. O urro prolonga-se e repete-se sem fim como se o eco produzisse outro eco e o outro eco produzisse um outro eco e o um outro eco produzisse ainda mais um eco e o ainda mais um eco produzisse um ainda outro eco e o um ainda outro eco produzisse ainda mais outro Se gostou e quer continuar a ler compre o seu exemplar na nossa LOJA ONLINE. 24 SAMUEL PIMENTA