A Formação do Professor Licenciado em Enfermagem: um olhar para o Projeto Pedagógico de Curso de uma universidade pública Paula Trindade da Silva Selbach1 Elizabeth Diefenthaeler Krahe2 Na última década, no Brasil, as discussões sobre os desafios da formação para a docência geraram alterações nas leis que regulamentam os cursos de licenciatura no ensino superior. Neste sentido, é interessante entender como um curso de licenciatura em enfermagem de uma universidade pública se apropria destas questões que são discutidas e explicitadas nestes documentos oficiais. A pesquisa foi realizada através da análise documental do Projeto Pedagógico de Curso (PPC) de um Curso de Enfermagem de uma universidade pública para entender como este documento interno recoloca o que é definido oficialmente para a formação dos professores. Os documentos oficiais analisados foram o Parecer CNE/CP-009/2001, a Resolução CNE/CP1 e a Resolução CNE/CP2/2002, que tratam das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para a Formação de Professores em nível superior em curso de licenciatura. A partir da análise do PPC, foi possível depreender que o perfil do Enfermeiro Licenciado e as habilidades e competências concernem com o que diz a lei ao sinalizar para a formação de um profissional comprometido com a transformação social. Porém, a concepção de prática pedagógica explicitada no documento evidencia uma não articulação com as demais disciplinas do curso. Palavras-chave: projeto pedagógico de curso, formação de professores, enfermagem 1. Aprender a ser professor na sociedade do conhecimento: o papel da universidade É consenso entre pesquisadores, estudiosos e professores da área da educação que a dinamicidade do mundo atual exige uma nova postura dos profissionais que atuam nesta área. Esta nova postura refere-se à relação do professor com o conhecimento, pois se anteriormente o professor trabalhava com uma gama de conhecimentos que se alteravam paulatinamente, hoje o professor necessita estar cada vez mais bem formado e informado, estar a par dos novos conhecimentos que são reconfigurados em um dinamismo que, por vezes, torna-se difícil acompanhar. Frente a isto, nos perguntamos: que sociedade é esta que trata o conhecimento de maneira aparentemente volátil? Que tipos de expectativas a mesma deposita neste profissional? Como o docente se vê neste processo e, principalmente, como ele deve lidar com as expectativas nele depositadas? 1 Professora Assistente da Universidade Federal do Pampa - UNIPAMPA. Doutoranda da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS 2 Professora Associada II da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Professora orientadora do Programa de Pós Graduação em Educação da UFRGS Esforçar-se em respaldar, através da sua prática, o que a sociedade dele espera? Ou ir além destas expectativas, no sentido de assumir-se como um intelectual e, assim, questionar, tencionar e problematizar os anseios de seu tempo, desta sociedade? Acreditamos que entender os anseios e expectativas da sociedade com relação aos indivíduos que nela convivem é essencial para saber o tipo de formação que ela espera que sejam oferecidas pelas instituições de ensino. Contudo, de igual forma, interessa tentar desvelar o que ocorreu com esta sociedade para que ela se altere desta forma tratando o conhecimento de maneira volátil e passível de mudanças constantes. Na tentativa de compreender tais questões recorremos aos estudos de Hargreaves (2002). Conforme o autor a supervalorização do conhecimento tem raízes a partir da Revolução Industrial, quando este passa a ser cada vez mais valorizado, principalmente o que é tão criativo a ponto de influenciar as relações econômicas. Na análise de Bell (1976 apud HARGREVES, 2004, p.31) a passagem de uma economia industrial para uma economia pós industrial “traçou o mapa de uma transformação econômica” e deuse em meados do século XX. Neste caso a força de trabalho volta-se para a produção de idéias, serviços em detrimento da produção de coisas. O valor não está nas coisas, mas em como elas foram pensadas, planejadas, o quanto são inovadoras e criativas, nas pesquisas e estudos que possibilitaram os avanços da ciência, da tecnologia. Estamos, nesta perspectiva, na sociedade do conhecimento. Neste contexto emerge uma nova concepção de educação. A sociedade do conhecimento deposita muitas expectativas na escola, pois esta é o lócus de formação de indivíduos atuantes na sociedade, indivíduos que irão lidar com estes novos conhecimentos, indivíduos que precisam produzir e se apropriar de novos saberes. Espera-se da escola que auxilie os alunos a relacionar conhecimentos, ter entendimento amplo de muitos assuntos, facilidade para se adaptar a mudança, entre outras habilidades que a mesma deve ajudar os alunos a desenvolver. Porém, muitas vezes, a educação fica atrelada somente a esses fins, de respaldar as expectativas externas, e, por esta razão, Hargreaves (2008, p.26) escreve que “a sociedade do conhecimento tem dificuldades de fazer do ensino uma verdadeira profissão de aprendizagem”. Preocupados em desenvolver nos alunos as habilidades que esta nova sociedade definiu aliada a velocidade dos acontecimentos, os professores não conseguem preocupar-se em questionar e refletir com os alunos sobre estes conhecimentos, pois nesta “sociedade em constante transformação e autocriação, o conhecimento é um recurso flexível, fluido, em processo de expansão e mudança incessante” (HARGREAVES, 2004, p.32). Outra questão que merece destaque, e aqui nossas pesquisas, diz respeito ao fato de que os professores, em sua grande maioria, ainda não estão sendo formados em cursos cujos currículos já visem o ensinar nesta sociedade do conhecimento. As análises de currículos de licenciaturas que fizemos aqui no Brasil e no Chile indicaram que ainda prevalece a racionalidade técnico instrumental, praxe da escola moderna, em detrimento da perspectiva prático reflexiva, exigência da escola contemporânea (KRAHE, 2009). Evidenciamos que a formação inicial docente oferecida pelas Instituições de Ensino Superior (IES) não consegue sozinha dar conta dos problemas decorrentes desta sociedade frente à complexidade dos contextos. Os problemas se singularizam, ganham nova configuração independentemente do local em que surgem o que, conseqüentemente, interfere no trabalho do professor. Corroborando a idéia, Hargreaves (2004, p.32) afirma que “na economia do conhecimento, as pessoas não apenas evocam e utilizam o conhecimento, ‘especializado’ externo, das universidades e de outras fontes, mas conhecimento, criatividade e inventividade são intrínsecos a tudo o que elas fazem”. Entendemos assim, que a formação universitária não fornecerá por si só os conhecimentos necessários para lidar com as transformações sociais. Sendo assim, as IES não são a instância única de formação deste profissional, pois nunca irão reproduzir as questões intrínsecas da prática, dos meios de atuação deste profissional. Neste caso, nada mais lógico do que trazer estas questões formadoras para dentro da sociedade articulando-as com os diferentes contextos. Preocupados com esta problemática, muitos países, entre eles o nosso – Brasil, têm se esforçado para repensar as políticas para a escola básica, igualmente para a formação do professor que nela irá atuar. Voltemos então a atenção para a formação do professor da educação básica e, neste caso, retomamos a pergunta inicial: como deve ser a formação do docente que irá trabalhar na sociedade do conhecimento? Que tipo de profissional é este, que características lhes são atribuídas? Neste sentido, chamamos a atenção para o fato de que se a escola preocupar-se em ensinar apenas para a economia do conhecimento e para aqueles que prosperam a partir dela, para aqueles que lucram com esta sociedade, estará excluindo aqueles que estão marginalizados destas transformações sociais, aqueles que não se beneficiam desta sociedade do conhecimento, não por opção, mas porque não tiveram a devida oportunidade (HARGREAVES, 2004). Esta concepção traz uma nova perspectiva para a formação do professor que atuará na educação básica, este profissional que passa a preocupar-se em desenvolver estratégias de ensino que possibilitem aos alunos construírem conhecimentos que não apenas respondem as expectativas da sociedade do conhecimento, mas que irão além delas, pois os valores humanos, o compromisso com o bem comum não estão dissociados dos conhecimentos curriculares. Pelo contrário, perpassam todas as áreas do conhecimento e cabe à escola, aos professores restabelecerem e reforçarem estes vínculos. Percebe-se, como coloca Hargreaves (2004, p.67), que “as escolas voltadas basicamente a finalidades da economia do conhecimento não servem automaticamente ao bem público”. Se somente esta concepção permear os processos de formação de professores para a educação básica, não veremos muitos avanços sendo feitos rumo à transformação social. Cabe ressaltar o que coloca Santos (2004, p.68) sobre a responsabilidade que “tem de ser assumida pela universidade, aceitando ser permeável às demandas sociais, sobretudo àquelas oriundas de grupos sociais que não tem poder para se impor”. Assim, a universidade tem responsabilidade de lançar um olhar mais acurado para estes grupos sociais menos favorecidos. Tem a responsabilidade de comprometer-se com as sua condição, mesmo que estes grupos não saibam reivindicar. Este é o desafio atual para a formação dos professores das IES: formar professores que saibam ensinar para além da sociedade do conhecimento. Mas isto não significa ignorar as mudanças correntes que estão acontecendo na economia, no mercado, na crise do modelo atual. Aliar estas duas dimensões tão díspares é um desafio para a formação de professores em diferentes países e as discussões geradas em torno desta problemática fazem com que a formação dos docentes que irão atuar na educação básica seja repensada, o que interfere diretamente nas políticas públicas. Focando o caso do Brasil, já na entrada do século XXI, muitas discussões foram realizadas para reestruturar as Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Licenciatura (DCN). Dentre os documentos, podemos citar o Parecer CNE/CP 009/2001, aprovado em 08 de maio de 2001, no qual se fazem visíveis como algumas destas questões são tratadas e interpretadas no Brasil. O citado documento, ao justificar a necessidade de uma reforma curricular para os cursos de Licenciatura, explica que o fato de o conhecimento ter passado a ser um dos recursos fundamentais tende a criar novas dinâmicas sociais e econômicas, e também novas políticas, o que pressupõe que a formação deva ser complementada ao longo da vida, o que exige formação continuada (Parecer CNE/CP 009/2001, p.9). Marcelo (2009, p.10) indica que tanto os conceitos antigos como os recentes entendem desenvolvimento profissional como um processo que se deve contextualizar no local de trabalho do docente e que concepções atuais entendem este processo como colaborativo. Outra questão importante, apontada pelo mesmo autor, refere-se a novas perspectivas acerca do desenvolvimento profissional, as quais acredita que ocorrem como um processo, a longo prazo, que reconhece que os professores aprendem ao longo do tempo. 2. O Projeto Pedagógico de um Curso de Enfermagem e as leis que deliberam acerca dos cursos de licenciatura O Curso de Enfermagem Bacharelado e Licenciatura forma profissionais que estão aptos a atuar na área da saúde. Em alguns cursos, juntamente com o bacharelado oferece a formação de licenciatura. Desta forma o profissional também estará apto a atuar no Ensino Médio e técnico, na formação do técnico em enfermagem, ou do agente promotor da saúde, no Ensino Fundamental. Destacamos que a formação para em licenciatura costuma ser opcional, uma escolha das IES. Quando a instituição faz a opção por ofertar a licenciatura, esta formação será regulamentada a partir de Pareceres/Resoluções específicos da Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação, como expressam as próprias Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) do Curso de Enfermagem. Como a grande maioria das profissões, a enfermagem também passou por mudanças nesta entrada de século. O enfermeiro, segunda as novas diretrizes específicas deste curso não é mais somente o profissional que trata a doença, mas aquele que trabalha na sua prevenção. Não trata apenas patologias especializadas, todavia possui uma visão generalista da sua atuação. No caso brasileiro, nem sempre irá trabalhar em hospitais equipados, uma vez que a demanda na formação deste profissional é justamente responder à política vigente de democratização da saúde e da presença deste enfermeiro em Unidade de Saúde, distribuídas pelos bairros das cidades. Conforme estabelecem as diretrizes, dentre as competências deste profissional está reconhecer a saúde como direito e condições dignas de vida e atuar de forma a garantir a integralidade da assistência, [...] (DCN para o Curso de Enfermagem CNE/CES 1.133/2001 aprovado em 07/08/2001). Um profissional com esta concepção de saúde deve estar intimamente comprometido com uma prática que não apenas respalde a sociedade do conhecimento. Na legislação encontramos a proposta do respeito ao outro, a idéia de que todos têm direito a saúde, independentemente de poder ou não pagar por estes serviços, e mesmo assim se beneficiar das novas descobertas da ciência para esta área; evidenciamos que a lógica da sociedade do conhecimento está presente em outras instâncias que não somente a escola. Assim, vislumbramos um profissional que tem de estar tão convicto desta nova concepção de saúde a ponto de conseguir ensinar e, neste sentido, a articulação dos conhecimentos pedagógicos com os conhecimentos específicos são importantes. Por esta razão interessa-nos entender como um curso de licenciatura em enfermagem de uma Universidade pública se apropria destas questões que são discutidas e explicitadas nestes documentos oficiais. Apesar das IES responderem à legislação vigente para repensar os cursos de formação de professores, tem autonomia para repensar os seus currículos, decidir os critérios de que irão orientá-los vinculados às regiões e localidades específicas. Nas Universidades, o documento que reorganiza o que está disposto nos documentos oficias, reelaborando-os para um contexto específico, é o Projeto Pedagógico de Curso (PPC). Escreve Veiga (2004, p.16) “o projeto é uma totalidade articulada decorrente da reflexão e do posicionamento a respeito da sociedade, da educação e do homem”. Hoje entendemos que o projeto só existe a partir do “protagonismo” dos professores e da comunidade universitária, sendo a participação elemento essencial para a elaboração deste documento. Nas palavras da autora, “é a universidade construindo sua identidade institucional”. Através destas reflexões coletivas inerentes a elaboração deste documento é possível repensar o currículo dos cursos, promover ruptura com velhos paradigmas e pensar em uma organização curricular que prime pela articulação da teoria com a prática superando o currículo 3+1 para a formação dos professores, como lemos em Krahe (2009) e, assim, formando futuros professores preparados para enfrentar e trabalhar para além da sociedade do conhecimento. Por esta razão interessa-nos procurar compreender como a legislação atual que regulamenta os Cursos de Licenciatura influenciaram na formulação do Projeto Pedagógico de Curso do Curso de Enfermagem – Bacharelado/ Licenciatura de uma universidade pública. Este estudo está sendo realizado através da análise documental do Projeto Pedagógico de Curso (PPC) de um Curso de Enfermagem Bacharelado – Licenciatura em uma Universidade pública do Brasil. Para a análise deste PPC foram considerados os documentos deliberativos acerca das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica em nível superior, curso de licenciatura de graduação plena. Os documentos são o Parecer CNE/CP1 – 009/2001, aprovado em 08 de maio de 2001; a Resolução CNE/CP1, aprovado em 18 de fevereiro de 2002; e a Resolução CNE/CP2 aprovado em 19 de fevereiro de 2002. 3. Fragmentos do Projeto Pedagógico do Curso de Enfermagem e a articulação com a legislação Para entender como se deu a apropriação da legislação que regulamenta os cursos de licenciatura pelo Projeto Pedagógico de Curso analisado, elegemos algumas categorias encontradas a partir da leitura destes documentos. As categorias que originaram as discussões deste texto são: dimensões do currículo; perfil do aluno egresso; prática; eixo articulador; estágio supervisionado. Inicialmente, é interessante apontar o que está expresso no histórico do projeto. Considerando a necessidade de formar Enfermeiros capazes de atender as demandas sociais em âmbito local, regional e nacional em consonância com as resoluções CNE/CES nº 3/2001 e CNP/CP1, de 18/02/2002 e CNE/CP2 de 19/02/2002, o Curso de Graduação em Enfermagem da [...] propõe a atualização do processo de formação partindo da construção do Projeto Político Pedagógico. O parágrafo evidencia que para construir um novo PPC em enfermagem considerou as orientações e diretrizes para os cursos de licenciatura em geral. A primeira categoria refere-se a dimensões do currículo. Dentre estas encontrase a dimensão psicoeducativa que promove o questionamento do processo ensinoaprendizagem, tendo como base as teorias da aprendizagem, da comunicação e da motivação, objetivando definir estratégias, dinâmicas de trabalhos aplicáveis ao processo de ensino. A partir do que está expresso nesta dimensão depreende-se que o currículo deste curso preocupa-se também em formar um educador que consiga pensar estratégias e metodologias de ensino otimizando a aprendizagem do aluno. Um professor que questiona o processo de ensino e aprendizagem não irá se conformar em aplicar metodologias prontas com aprendizagens padronizadas. Esta dimensão do currículo poderá contribuir na formação de docentes questionadores das políticas que estabelecem padrões a serem seguidos para a educação básica sem se preocupar com processo do ensino e aprendizagem, deixando-os a critério do professor. Políticas que não compreendem que a formação contínua dos docentes também ocorre na leitura individual ou coletiva destes resultados e da elaboração de estratégias que podem gerar aprendizagens muito além dos resultados e padrões estabelecidos (HARGREAVES, 2002). Como ressalta o Parecer CNE/CP – 009/2001 (p.29) atuar com profissionalismo exige do professor, não só o domínio dos conhecimentos específicos em torno dos quais deverá agir, mas, também, compreensão das questões envolvidas em seu trabalho, sua identificação e resolução autonomia para tomar decisões, responsabilidades pelas opções feitas. É interessante observar neste documento como o projeto concebe o perfil do aluno egresso, e como estas questões se articulam com o parecer e a resolução. Desta forma, segundo o projeto do curso, o profissional Enfermeiro deve ser dotado de uma formação generalista, humanista, crítica e reflexiva, com competência técnico-científica pautada em princípios éticos e legais. O PPC ainda aponta, dentre outras atribuições, que este profissional deve ser capaz de desenvolver pesquisa de cunho científico e intelectual; atuar na formação continuada de recursos humanos e gerenciamento dos serviços de saúde. Igualmente enfatiza que um dos aspectos desejados para o perfil profissional do licenciado é que ele desenvolva processo ensino-aprendizagem como docente na formação de profissionais nas áreas de Enfermagem na Educação Básica (Ensino Fundamental e Médio) e Profissional, dotado de qualidades humanas, intelectuais e afetivas relacionadas com as perspectivas de compreensão da realidade social e sua transformação. Nota-se que tanto a ênfase do perfil para o bacharel em enfermagem quanto para o licenciado referem-se à formação humanista. O enfermeiro, ao olhar o paciente como um ser humano e não se preocupar apenas em tratar a doença, , quando estiver formando outros profissionais, quando estiver exercendo a docência, certamente saberá construir estas noções humanitárias com os alunos, denunciando qualquer prática de saúde contrária e, deste modo, ensinando os jovens a primar pela ética na profissão, pelo tratamento igualitário a todos, pois “ensinar para além da sociedade do conhecimento significa, portanto, servir-lhe de contraponto corajoso, com vistas a estimular os valores de comunidade, democracia, humanitarismo e identidade cosmopolita” (HARGREAVES, 2004, p.76). Um aspecto para nos atermos e analisar refere-se à qualidade de compreensão da realidade social e sua transformação. Por melhor que seja o profissional, ele não poderá transformar àquilo que não conhece. Por esta razão quando compreende a realidade social é que poderá traçar metas para a sua transformação e assim motivar os seus alunos. Este aspecto consta da mesma forma nos documentos oficiais, pois ali está escrito que uma das competências referentes ao comprometimento com valores é reconhecer e respeitar a diversidade manifestada por seus alunos, em seus aspectos sociais, culturais e físicos, detectando e combatendo todas as formas de discriminação. (Parecer, CNE/CP – 009/2001, p.41) As práticas são denominadas no PPC como “Práticas Pedagógicas” e não aparecem diluídas nas diferentes disciplinas pedagógicas ou específicas do Curso, porém sob forma de uma disciplina, um componente curricular e as atividades da prática desenvolvidas referem-se ao eixo integrador do semestre que são oferecidas, a partir do 3º até o 8º período/ semestre. Estas práticas pedagógicas têm atividades prédeterminadas e produção a ser avaliada. No quadro de disciplinas ofertadas pelo curso, as Práticas Pedagógicas aparecem com 420 horas a serem cumpridas. Observa-se também que a esta atividade de prática são atribuídos créditos que possuem carga horária semanal. A Resolução CNE/CP2 de 19/02/2002 é clara ao mostrar a exigência de 400 (quatrocentos) horas de prática como componente curricular, vivenciadas ao longo do curso. O PPC está em consonância com a Resolução, mas o entendimento do que seja a atividade prática pode ser repensado ao analisarmos o que traz este documento específico do curso em contraponto ao que está exposto no Parecer (CNE/CP – 009/2001, p.57) ao apresentar o entendimento de que todas as disciplinas que constituem o currículo de formação e não apenas as disciplinas pedagógicas têm sua dimensão prática. É essa dimensão prática que deve estar sendo permanentemente trabalhada tanto na perspectiva da sua aplicação no mundo social e natural quanto na perspectiva da sua didática. Percebe-se que a explicação do parecer esclarece que as práticas podem ser trabalhadas durante as disciplinas articulando, desta forma, teoria e prática. Da maneira como a prática é concebida no projeto do curso analisado permite inferir que a mesma pode estar se desenvolvendo de forma desvinculada das disciplinas, pois é restrita a um momento de observação, de análise de bibliografia, e, ao final, uma produção que será avaliada. Porém não mostra em que disciplinas as observações, críticas, análises e dúvidas oriundas desta atividade serão discutidas e trabalhadas. Vale parafrasear o Parecer CNE/CP – 009/2001 (p.57) novamente, quando descreve que esse contato com a prática profissional, não depende apenas da observação direta: a prática contextualizada pode “vir”até a escola de formação pode meio das tecnologias de informação [...] das narrativas orais e escritas de professores, de produções dos alunos, de situações simuladas e estudos de casos. Também segundo a Resolução CNE/CP1, decorrente do parecer citado, a prática deve estar presente desde o começo do curso permeando, assim, toda a formação do professor. As atividades práticas pensadas para este PPC são relacionadas ao eixo integrador definido pela matriz curricular deste curso. O eixo articulador ou eixo integrador é composição dos critérios de organização que completem as orientações para desenhar uma matriz curricular coerente. Os eixos articulam as dimensões que precisam ser contempladas na formação profissional docente sinalizam o tipo de atividades de ensino e aprendizagem que materializam o planejamento e a ação dos formadores de formadores (Parecer, CNE/CP – 009/2001, p.52). Vale frisar que a Resolução CNE/CP1, 18/02/2002, no Art. 14 explicita que cada instituição formadora construa projetos inovadores e próprios, integrando os eixos articuladores nelas mencionados. Esta perspectiva interdisciplinar descrita no Parecer e também encontrada nas Resoluções sinaliza para uma mudança na forma de pensar o currículo. O currículo integrado é tencionado por muitas discussões, algumas vezes divergentes. Como lembra Hargreaves (2002, p.85) muitas vezes estas discussões expressam posições totalmente favoráveis ou totalmente contrárias presas a uma “batalha entre o essencialismo das disciplinas e o relativismo de todo o conhecimento”. Certamente que idéias e posicionamentos céticos não irão auxiliar para uma discussão ampla e contextualizada das disciplinas, que independente da manutenção ou não da grade curricular, facilitam na reorganização curricular para estabelecer maiores vínculos com a prática. Independente da preferência por uma ou outra proposta de estrutura curricular, o objetivo comum dos que elaboram o currículo de um Curso é fazer com os conteúdos não sejam apenas reproduções de conhecimentos abstratos que pouco se relacionam com a prática de uma profissão, caso aqui da docência. Em nenhuma hipótese o conhecimento construído historicamente deve ser desconsiderado, até porque a especialização de algumas áreas proporcionou avanços imprescindíveis para a ciência. O próprio parecer aponta que isso não significa renunciar a todo o conhecimento estruturado e nem relevar a importância das disciplinas na formação, mas considerá-las como recurso que ganham sentido em relação aos âmbitos profissionais visados Contudo, estes conhecimentos precisam, utilizando a expressão de Santos (2002), sensocomunicar-se, estabelecendo vínculos e relações com a comunidade. Para Hargreaves (2002, p.84) “os defensores da integração curricular alegam que ela permite aos professores abordarem questões importantes que nem sempre podem ser agrupadas de modo claro em disciplinas”. Neste sentido o PPC do Curso em análise revela que para garantir a formação integrada e interdisciplinar do profissional, os conteúdos curriculares estão articulados ao ensino, à pesquisa, à extensão e à assistência, permeando por todo processo de ensino-aprendizagem, assegurando a sistematização das atividades teóricas e práticas em um Eixo Integrador. Apesar desta concepção expressa no projeto deste curso, entendemos que os eixos analisados, quando organizados na matriz, podem apresentar problemas na articulação da teoria com a prática. A necessidade de mostrar no projeto como as atividades da prática se articulam com os eixos podem estar mascarando a dificuldade de pensar o currículo de forma mais integrada e a necessidade de manter delimitados os espaços das disciplinas. Além disto, neste currículo cada eixo é trabalhado em um período/semestre e recebe ementa própria. Quanto à última categoria, estágio curricular supervisionado, a Resolução CNE/CP1, 18/02/2002 no Art. 13, Inciso 3, explica que o estágio definido por lei, a ser realizado em escola de educação básica [...] deve ser desenvolvido a partir do início da segunda metade do curso e ser avaliado conjuntamente pela escola formadora e a escola campo de estágio. Por sua vez, a Resolução CNE/ CP2, 19/02/2002 no Art. 1, Inciso 2, estabelece que o estágio curricular será composto por 400 horas [...] a partir do início da segunda metade do curso. Em consonância com a legislação, para o PPC analisado, esta vivência constituirá em momentos de atuação dinâmica e contínua do formando enfermeiro licenciado nas Escolas com carga horária de 405 horas, onde este demonstrará, desenvolverá e aprimorará competências e habilidades próprias da atuação do enfermeiro docente, isto é, atuação de um profissional competente e autônomo. Ainda no PPC em questão consta que estágio será desdobrado entre três períodos, no caso deste Curso, nos três últimos períodos do curso que são o 8º, 9º e 10º. O documento explica que o estágio está distribuído nestes três períodos para atender a exigência de desconcentração da carga horária e promovendo assim um amadurecimento profissional antes que este obtenha a responsabilidade de regência de sala de aula. O estágio se respondesse diretamente à sugestão legal, poderia ser antecipado para o 5º semestre e assim se desenvolver a partir do início da segunda metade do Curso. Esta orientação da resolução aprimora a relação teórico-prática. Porém, muitos centros de formação têm receio em iniciar o estágio antes de o aluno ter concluído todas as disciplinas pedagógicas, o que denota uma visão aplicacionista da teoria como considera o próprio parecer. Corroboramos a proposta de legislação brasileira, pois acreditamos que a concomitância das disciplinas pedagógicas com as atividades de estágio podem inclusive aprofundar a percepção dos alunos de que a formação do professor é um contínuo, um processo que não se finda com a conclusão de um curso de graduação. Assim este aluno passa a compreender sua formação como um permanente desenvolvimento profissional, dependente do local de atuação como fonte de saber, não limitado apenas ao estudo das teorias, vistas agora como uma das dimensões da formação. Sendo assim, nos valemos uma vez mais dos estudos, quando citamos Hargreaves (2004, p.41) que afirma: “os professores de hoje, portanto, precisam estar comprometidos e permanentemente engajados na busca, no aprimoramento, no autoacompanhamento e análise de sua própria aprendizagem profissional”. Aprender continuamente a analisar a sua própria aprendizagem profissional- esta talvez seja uma das qualidades mais importantes do professor formado no século XXI, pois a sociedade avança e a escola não apenas respalda a sociedade mas serve como contraponto, devendo primar pelos valores humanos. 4. O que aprendemos com o estudo Ao final parcial deste estudo, é possível fazermos algumas considerações acerca do PPC do curso de Enfermagem de universidade pública federal em questão. Serão considerações não taxativas que procuram entender este documento como fruto de discussão e elaboração de professores formadores os quais estão enfrentando as mudanças para a formação de licenciados, típicas destes tempos incertos e, neste sentido, também passando por um processo de formação. Entendemos que a construção e concretização de um projeto pedagógico também é um momento privilegiado de formação do professor universitário. Além disso, o projeto caracteriza-se por ser visto como processo. No que se refere à parte legal as principais orientações da Resolução CNE/ CP1 e da Resolução CNE/CP2/2002 foram consideradas para a elaboração deste documento do Curso. Uma das questões que o estudo evidencia é que, embora o projeto não faça referência expressa ao Parecer CNE/CP 009/2001, percebe-se que muitas discussões e reflexões contidas nele se alinham com reflexões do Parecer. Por outro lado, quando o documento analisado trata da prática e do eixo integrador, notamos que um estudo mais aprofundado do parecer poderia auxiliar na reestruturação destes itens no PPC, fortalecendo, assim, a articulação entre teoria e prática. Desvelamos da mesma forma que outras questões indicadas no Parecer 09/2001, como a utilização das novas tecnologias, não foram contempladas nas disciplinas do Curso. Fato que evidencia que as leituras mais acuradas para a elaboração do projeto foram as Resoluções 01 e 02/2002, as quais não aprofundam a questão tecnológica contemporânea;e aqui afirmamos que o Parecer completa o entendimento das Resoluções sob este tema. O PPC analisado assume a licenciatura como uma faceta na formação do enfermeiro, procurando articular os conhecimentos específicos com os pedagógicos e assim apresenta potencialidades para formar para além da sociedade do conhecimento. Vemos este fato como uma característica importante deste documento considerando que, “a sociedade do conhecimento pertence a todos” e todos “deveriam ter a oportunidade de atingir seus níveis mais elevados e criativos” HARGREAVES, 2004, p.220). 5. Referências Bibliográficas BRASIL, Parecer CNE/CP1 – 009/2001, aprovado em 08 de maio de 2001 BRASIL, Resolução CNE/CP1, aprovado em 18 de fevereiro de 2002. BRASIL, Resolução CNE/CP2 aprovado em 19 de fevereiro de 2002. HARGREAVES, Andy. (2002) Aprendendo a mudar - o ensino para além dos conteúdos e da padronização. Porto Alegre: Artmed. HARGREAVES, Andy. (2004) O Ensino na sociedade do conhecimento – educação na era da insegurança. Porto Alegre: Artmed. KRAHE, Elizabeth Diefenthaeler. (2009) Reforma curricular de licenciaturas: UFRGS (Brasil) – UMCE (Chile); Década de 1990. Porto Alegre: Editora da UFRGS. MARCELO, Carlos (2009). Desenvolvimento Profissional Docente: passado e futuro. Revista de Ciências da Educação, 08, p.7 a p.22. 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