UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS I
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS - PPGEL
LUCAS NASCIMENTO SILVA
O ORADOR JESUS CRISTO E SUAS TÉCNICAS ARGUMENTATIVAS: UM
ESTUDO RETÓRICO NO SERMÃO DO MONTE
Salvador
2013
LUCAS NASCIMENTO SILVA
O ORADOR JESUS CRISTO E SUAS TÉCNICAS ARGUMENTATIVAS: UM
ESTUDO RETÓRICO NO SERMÃO DO MONTE
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Estudo de Linguagens
(PPGEL),
Departamento
de
Ciências
Humanas, Campus I, da Universidade do
Estado da Bahia – UNEB, em cumprimento
parcial do requisito para obtenção de grau de
Mestre em Estudo de Linguagens.
Orientador: Prof. Dr. Gilberto N. Telles Sobral
Salvador
2013
FICHA CATALOGRÁFICA
Sistema de Bibliotecas da UNEB
Bibliotecária: Jacira Almeida Mendes – CRB: 5/592
Silva, Lucas Nascimento
O orador Jesus Cristo e suas técnicas argumentativas: um estudo retórico no Sermão
do Monte / Lucas Nascimento Silva . - Salvador, 2013.
128f.
Orientador: Gilberto N. Telles Sobral.
Dissertação (Mestrado) - Universidade do Estado da Bahia. Departamento de
Ciências Humanas. Campus I. 2013.
Contém referência e anexos.
1. Discursos, alocuções, etc. 2. Sermão do Monte. 3. Oratória. 4. Análise do
discurso. I. Sobral, Gilberto N. Telles. II. Universidade do Estado da Bahia,
Departamento de Ciências Humanas.
CDD: 808.5
.
LUCAS NASCIMENTO SILVA
O ORADOR JESUS CRISTO E SUAS TÉCNICAS ARGUMENTATIVAS: UM
ESTUDO RETÓRICO NO SERMÃO DO MONTE
BANCA EXAMINADORA
Profª. Drª. Denise Maria Oliveira Zoghbi
Doutora em Letras e Linguística - UFBA
Profª. Drª. Jaciara Ornélia Nogueira de Oliveira
Doutora em Letras e Linguística - UNEB
Prof. Dr. Gilberto N. Telles Sobral
Doutor em Letras e Linguística - UNEB
Salvador
2013
Aos meus pais, Helena e Luis Carlos, por tudo.
E, em memória, do prof. Dr. Manoel Sarmento pelo apoio oportuno e exato.
AGRADECIMENTOS
Ao bondoso Deus que me proporciona viver consciente de sua presença e orientação.
Aos que me ouviram falar por, aproximadamente, dez meses em dezenas de sextas-feiras
sobre o Sermão do monte, cujo discernimento veio que eu deveria propor uma pesquisa como
essa. Dentre essas pessoas estão os amigos da Aliança Bíblica Universitária - ABU.
Ao meu querido orientador, Gilberto Sobral. Um orientador que orienta, é compreensivo,
amigo, paciente e motivador. Obrigado pelo apoio. Sei que fiz um bom amigo.
À minha família que me apoiou em tudo possível para a realização desse sonho. Sou grato a
Deus por meu pai Luis, minha mãe Helena e meu irmão Luan. Certamente, vocês são parte
dessa realização.
Aos meus colegas do mestrado, em especial, aos mais chegados: Priscila, Patrícia, Taciana,
Lucélia e Vanessa.
À professora e amiga, Drª. Adriana Barbosa pelo apoio e incentivo de sempre. Sei a
importância que você teve, certamente faz parte dessa realização. Grato também pelo apoio
dos colegas do Grupo de Estudos em Teorias do Discurso – GETED. Sei que essa minha
conquista é nossa.
Aos meus muitos amigos pessoais que sempre estiveram ao meu lado durante todo esse
processo. Sou muito agradecido a Deus e a vocês por tão profundas amizades.
Ao estimado companheiro de apartamento, Marcio Barreto, que me apoiou durante o tempo
em que residi em Salvador.
À amiga Glória Barreto, cujo prazer tive de conhecer na ocasião do início do mestrado e fazer
uma boa amizade.
À amiga Celiane que, carinhosamente, fez a revisão desta dissertação. De igual modo,
agradeço à amiga Aliana que se dispôs a ler esse trabalho.
Aos professores, funcionários e amigos do PPGEL. Continuem fazendo um trabalho
comprometido e com muito carinho.
“O coração do sábio é mestre de sua boca e aumenta a persuasão nos seus lábios”
(PROVÉBIOS, 16. 23)
RESUMO
O sermão é um gênero discursivo bastante argumentativo. Por meio deste, o orador intenta,
explicitamente, conquistar a adesão dos espíritos às teses propostas. Não poderia ser diferente
em se tratando do Sermão do Monte, discurso proferido por Jesus Cristo, personagem do
evangelho de Mateus. Assim, esse trabalho adotou como corpus tal discurso jesuânico,
materializado por Mateus (capítulos de 5-7) no livro que leva seu nome. Justifica essa
pesquisa pela importância do sermão e do gênero para a cristandade, por sua vez, para boa
parte do Ocidente, que esteve sob influência dominante do Cristianismo por vários séculos. O
objetivo desse trabalho foi, a partir do aporte teórico do Tratado da Argumentação de
Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005), investigar algumas técnicas argumentativas
utilizadas por Jesus em seu sermão que visam convencer e persuadir seu auditório. Tenta-se
compreender como se dá a relação dessas técnicas, se prevalece o uso de uma sobre a outra,
ou se há uma harmonização no uso de ambas. Busca-se ainda, compreender qual gênero
retórico o sermão poderia ser enquadrado. Assim, nesse texto dissertativo, observou-se que há
tanto o uso abundante de argumentos quase-lógicos quanto o uso de argumentos pertinentes à
estrutura do real com vistas à persuasão de um auditório heterogêneo, e que o orador utiliza-se
dessas técnicas com bastante habilidade.
Palavras-Chave: Argumentação. Sermão do monte. Nova Retórica. Jesus.
ABSTRACT
The sermon is a very argumentative discourse genre. Through this, the speaker intends to gain
the entry of the spirits to these proposals. There could be different in the Sermon on the
Mount case, discourse given by Jesus Christ, the character of Matthew's gospel. Thus, this
study adopted as the corpus such jesuanic speech , materialized by Matthew (chapters 5-7) in
the book that bears his name. The importance of this sermon justifies such research and
gender for the Christianity, and this one for the West, which was under the dominant
influence of Christianity by several centuries. The aim of this work was, from the theoretical
approach of the Treaty of Argumentation by Perelman and Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005),
to investigate some argumentative techniques used by Jesus in his sermon that aims to
convince and persuade his audience, trying to understand how happens the relationship of
these techniques, if there is a dependence on one another, or if there is a harmonization in the
use of both, as well as understanding in what rhetorical genre the sermon could be classified.
Thus, in this dissertative text, it was observed that there is both the abundant use of quasilogical arguments, as well some relevant arguments to the structure of the real with a view to
persuade an heterogeneous audience, and that the speaker uses these techniques with great
skill.
Keywords: Argumentation. Sermon on the mount. New Rhetoric. Jesus.
SUMÁRIO
1
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
11
2
POR UMA ANÁLISE ARGUMENTATIVA DO SERMÃO DO MONTE
15
2.1
O DISCURSO RELIGIOSO
15
2.2
O GÊNERO DO DISCURSO SERMÃO E O SERMÃO DO MONTE
18
2.2.1 O gênero sermão: conceituação
18
2.2.2 O sermão do monte: particularidades e temáticas
19
2.2.3 Considerações sobre a estrutura do sermão
23
2.3
O NOVO TESTAMENTO: CÂNON, MANUSCRITOS E VERSÕES
24
2.4
MATEUS: RELAÇÃO SINÓTICA
31
2.4.1 Relação sinótica
31
2.4.2 Autoria, datação e local de autoria
34
2.5
UM OLHAR SOBRE A PESQUISA EM MATEUS E SEU GÊNERO LITERÁRIO
36
2.5.1 Mateus como biografia: o gênero literário
38
3
ARGUMENTAÇÃO RETÓRICA NO SERMÃO DO MONTE
46
3.1
A RETÓRICA: DEFINIÇÃO E ORIGEM
46
3.1.1 Da origem ao declínio da retórica
47
3.2
OS ÂMBITOS E O PONTO DE PARTIDA DA ARGUMENTAÇÃO NO SERMÃO
DO MONTE
51
3.2.1 O contato do orador com seu auditório
52
3.2.2 Acordos: convencendo e persuadindo auditórios
59
3.2.3 O gênero epidíctico e seus efeitos
75
4
AS TÉCNICAS ARGUMENTATIVAS DO ORADOR JESUS CRISTO
80
4.1
OS ARGUMENTOS QUASE-LÓGICOS
80
4.2
OS ARGUMENTOS BASEADOS NA ESTRUTURA DO REAL
98
4.3
AS LIGAÇÕES QUE FUNDAMENTAM A ESTRUTURA DO REAL
111
5
CONSIDERAÇÕES FINAIS
122
REFERÊNCIAS
125
ANEXO
128
LISTA DE QUADROS E FIGURAS
Quadro 1: Argumentos quase-lógicos
97
Quadro 2: Argumentos baseados na estrutura do real
111
Quadro 3: Argumentos que fundamentam a estrutura do real
121
11
1
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Existem alguns gêneros do discurso que são essencialmente argumentativos, ou seja,
intentam, de forma explícita, conquistar a adesão dos espíritos às teses propostas. Um desses
gêneros é o sermão, que, inegavelmente, tem grande relevância sócio-histórico-cultural no
Ocidente por ser o principal gênero veiculador da mensagem da religião cristã, cuja influência
foi dominante por muitos séculos nas mais diversas sociedades. Portanto, um estudo
argumentativo do Sermão do monte – proferido por Jesus no I século d.C. e tido para muitos
como o discurso fundante do Cristianismo, no qual as bases éticas dessa religião são lançadas
e, por conseguinte, de boa parte do Ocidente - é o que justifica esse trabalho.
O Sermão do monte foi pronunciado por Jesus aproximadamente na primavera do ano 28 d.C.
sobre o monte identificado por alguns estudiosos como o Chifres de Hatin. Seu discurso foi
dirigido aos seus discípulos e para as multidões (Mateus 5. 1, 2) que o seguia. Essas multidões
eram pessoas da região da Galileia, de Jerusalém, de Decápolis e da Judeia, que o
acompanhavam em busca de milagres e de ensinamentos.
Nesse trabalho, faz-se uma análise do Sermão do monte materializado no evangelho de
Mateus (5-7). Esse sermão, que compreende três capítulos do Evangelho de Mateus (5-7), é
considerado o mais importante dos discursos de Jesus; ele é também o maior discurso da obra
mateana, dado que há quatro outros discursos menores proferidos por Jesus Cristo. A
importância desse sermão não se dá simplesmente por ser o primeiro dentro da obra, mas pela
abrangência dos temas abordados e por apresentar uma visão dos valores ou mesmo a ética
jesuânica em contraposição à judaica representada pelos escribas e fariseus da época. Deste
modo, há uma reinterpretação da Lei do Antigo Testamento e são ressaltados alguns
princípios essenciais de relação do homem com Deus, consigo mesmo e com o outro; o que
mostra como funciona a vida no que chama de “Reino dos céus”.
Jesus é a personagem principal do evangelho de Mateus. Portanto, o que possibilita trabalhar
uma abordagem argumentativa nesse texto é o fato de essa obra poder ser tomada como
literária. Vale então ressaltar que, por muito tempo, o texto bíblico foi estudado apenas nos
círculos religiosos, relegando o estudo literário e argumentativo para planos outros. Apesar de
o estudo literário desse não ser antagônico ao teológico, mas complementar, a maioria dos
teólogos não se interessa em estudar o texto enquanto literatura, sendo visto como se não
12
houvesse um estilo, uma estrutura e intencionalidades narrativas e persuasivas. Os literatos,
por sua vez, relegam o livro a um segundo plano por acharem que se trata meramente de um
texto religioso-doutrinário, o que acabou inibindo o estudo argumentativo do mesmo.
Entretanto, compreende-se que o valor teológico e sagrado não precisam ser negados.
Sendo assim, na análise aqui trabalhada, toma-se o evangelho de Mateus como tendo
características que se enquadram no gênero biográfico greco-latino. Tal posição é tomada por
Ferreira (2006) em sua tese de doutoramento em Teoria e Crítica Literária, defendida na
Universidade Estadual de Campinas, em que estuda o narrador no evangelho de Mateus e sua
relação com o protagonista, Jesus Cristo.
O presente estudo traz para discussão o Sermão do monte, não mais necessariamente sob o
viés teológico, mas sob o ponto de vista da teoria da argumentação de Perelman e OlbrechtsTyteca desenvolvida no Tratado da argumentação ([1958] 2005). Ao que se objetiva, de
maneira geral, investigar algumas técnicas argumentativas utilizadas por Jesus em seu sermão
que visam convencer e persuadir seu auditório, tentando compreender como se dá a relação
dessas técnicas, se prevalece o uso de uma sobre a outra, ou se há uma harmonização no uso
de ambas. Especificamente, primeiro, objetiva-se entender a que tipo de auditório o discurso
de Jesus é dirigido e como se dá a comunhão do orador com esse auditório. Desse modo,
busca-se entender como se dá o estabelecimento dos acordos do orador com seu auditório,
bem como definir o gênero retórico do sermão; segundo, objetiva-se analisar quais são os
argumentos quase-lógicos utilizados pelo orador; por último, tenta-se compreender quais são
as técnicas argumentativas baseadas na estrutura do real e as que fundamentam a estrutura do
real utilizadas pelo orador no Sermão do monte.
Nesse trabalho, discute-se teoricamente os conceitos de argumentação, mostrando como se
dão as técnicas ligadas ao convencimento e à persuasão no discurso do orador Jesus Cristo.
Sendo que quem busca convencer trabalha no campo das ideias, da razão; conceito este que se
relaciona, de alguma maneira, com o lógos e associa-se, no Tratado da argumentação ([1958]
2005), aos argumentos quase-lógicos. Quem busca persuadir trabalha no campo da emoção,
conceito que se vincula ao pathos e em Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005) está
associado mais diretamente aos argumentos baseados na estrutura do real e aos argumentos
que fundamentam a estrutura do real.
13
Nesse trabalho, é utilizada uma versão revisada e atualizada da Bíblia Sagrada, em Português,
de João Ferreira de Almeida (2011), por ser a tradução feita a partir do texto crítico, texto este
mais aceito para pesquisas acadêmicas por ter passado por um estudo a partir dos manuscritos
bíblicos mais antigos disponíveis em grego. No entanto, em alguns momentos, para efeito de
verificação e esclarecimento, recorre-se a consulta ao texto na língua original, em grego,
sendo, para tanto, utilizados os textos do Novum Testamentum Graece1 Nestle-Aland, 4ª.
edição publicado no Brasil no Novo Testamento Trilíngue (1998). O suporte à interpretação
do evangelho se dá a partir de leituras de obras de estudiosos bíblicos, portanto de
comentários consistentes para compreensão do objeto analisado: autoria, estrutura, filiações
literárias, estilísticas e simbólicas, o que auxilia na aplicação da teoria supramencionada para
responder às questões levantadas nesse trabalho.
Para alcançar os objetivos propostos, a dissertação está dividida, além das considerações
iniciais (seção I) e finais (seção V), em três seções. Na seção II, Por uma Análise
Argumentativa do Sermão do monte, faz-se uma abordagem sobre o discurso religioso,
ressaltando sua importância sócio-histórica e a necessidade de estudá-lo argumentativamente.
Após isso, procede-se a conceituação do sermão como gênero do discurso e, para melhor
compreensão do Sermão do monte, são apresentadas algumas particularidades temáticas e
estruturais. Em seguida, são apresentados dados históricos relacionados, de alguma maneira,
ao texto em estudo; posteriormente, discute-se a possibilidade de estudo do texto bíblico
enquanto literatura, por sua vez, mostrando por que o Evangelho de Mateus está na categoria
de gênero literário biográfico greco-latino e o que isso contribui para a justificativa do estudo
do Sermão do monte argumentativamente.
Na seção III, Argumentação Retórica no Sermão do monte, é feita uma breve abordagem
histórica da Retórica para melhor situar a teoria da argumentação de Perelman e OlbrechtsTyteca ([1948] 2005) nesse trabalho. Só então, discute-se os âmbitos e o ponto de partida da
argumentação que compreendem alguns conceitos basilares da Nova Retórica, como os
conceitos de auditório e as noções de convencer e persuadir. Tenta-se ainda compreender
quais acordos o orador estabelece com seu auditório, busca-se também a caracterização do
sermão como gênero retórico.
Já, na seção IV, As Técnicas Argumentativas do Orador Jesus Cristo, tenta-se verificar
quais são os principais argumentos quase-lógicos utilizados pelo orador Jesus em seu sermão
1
Novo Testamento Grego (tradução nossa).
14
com a finalidade de convencer seu auditório. De igual modo, busca-se identificar quais os
argumentos baseados na estrutura do real e os argumentos que fundamentam a estrutura do
real que são utilizados com a finalidade de persuadir seus ouvintes.
Nas Considerações Finais, chega-se a algumas constatações quanto à constituição do corpus
e ao exame analítico, mostrando os resultados das técnicas argumentativas no Sermão do
monte, a partir do Tratado da argumentação de Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005).
15
2
POR UMA ANÁLISE ARGUMENTATIVA DO SERMÃO DO MONTE
2.1 O DISCURSO RELIGIOSO
O texto bíblico encontra-se no domínio do discurso religioso. Dessa maneira, faz-se
necessário salientar a importância do estudo argumentativo do mesmo relegado por muito
tempo ao desprezo, em especial pela academia brasileira. Isso advém de questões ideológicas
dos pesquisadores e também é preciso considerar que, como assegura Maingueneau (2010, p.
100), “[...] nas sociedades ocidentais, a cultura religiosa é cada vez menos divulgada entre os
pesquisadores em ciências humanas e sociais”.
Por outro lado, os que estudam o discurso religioso fazem-no para compreender como ele
interfere em outros domínios e não para compreendê-lo como tal, não o fazem com o objetivo
de desencantar o maravilhoso, assegura Maingueneau (2010, p. 101), ou seja, para
compreender sua constituição, seus mecanismos internos a partir de seus diferentes gêneros de
discursos.
Os textos do domínio discursivo religioso, juntamente com a filosofia e a literatura, têm em
sua história de estudo as técnicas de comentário e crítica das mais antigas, abundantes e
sofisticadas (MAINGUENEAU, 2010, p. 100). No entanto, muitas vezes, os especialistas
desse domínio eram reticentes aos estudos que fugiam para uma análise mais discursiva de
tais textos, ao que, nos anos 1960, com o desenvolvimento de novas abordagens das
produções verbais, os pesquisadores concentraram-se em corpora que não eram contemplados
pelas abordagens mais antigas, ou seja, concentraram-se em analisar textos fora do domínio
discursivo religioso.
De fato, os “grandes textos” não deixaram de interessar às correntes
inovadoras. Para os textos literários, sabe-se como foi importante o papel
exercido pela semiótica inspirada em Greimas. A influência dessa
abordagem foi igualmente forte nos estudos de textos religiosos. Mas, se
nestes últimos fala-se frequentemente de “discurso religioso”, estamos longe
das problemáticas que, nas ciências humanas e sociais, atualmente se
consideram ligadas ao discurso. (MAINGUENEAU, 2010, p. 100, grifo do
autor).
Hoje, o número de pesquisadores que têm se ocupado com o discurso religioso é crescente,
eles estão fazendo análises argumentativas, discursivas, semióticas e literárias de textos
religiosos. Tal feito se dá por se compreender a importância desse gênero na formação e
16
interação social, ou por compreender que a dimensão religiosa é essencial em um grande
número de conflitos que vêm aumentando desde o final do século XX.
Maingueneau (2010, p. 101) assegura que o discurso religioso enquadra-se no que chama de
discurso constituinte, por isso faz parte dos discursos que são bem heterogêneos, “que
associam gêneros de discurso muito fechados, produzidos por e para especialistas, que
pretendem enunciar em nome da Fonte que os funda, e gêneros mais próximas da vida
cotidiana” (MAINGUENEAU, 2010, p. 101).
Uma característica peculiar desse discurso é, por certo, a persuasão (CITELLI, 2004), ainda
mais no caso do gênero discursivo sermão. Entende-se que tal discurso seja bastante
autoritário e não há espaço para se questionar o eu enunciador, que não pode ser visto ou
analisado. Desse modo, todas as vozes, inclusive a que fala, são plasmadas pela voz de Deus.
O discurso religioso realiza a tarefa sui generis enquanto mecanismo de
comunicação, pois, se os demais discursos autoritários-persuasivos podem
vir a revelar a voz do sujeito falante, nele resta apenas a noção de dogma.
Não deixa de ser uma situação curiosa estar diante da mais visível forma de
persuasão e do mais invisível eu persuasivo. Deus não fala, dado ser uma
realidade imaterial; quem fala em seu nome não é dono do discurso: o agente
é apenas veículo, porta-voz, no máximo “interpretador” da palavra do
Senhor (CITELLI, 2004, p. 61).
De acordo com Orlandi (2006), há nesse discurso um desvelamento fundamental na relação
entre locutor e ouvinte. Dá-se isso porque estes são de esferas totalmente diferentes: o locutor
é do plano espiritual (Deus), e o ouvinte é do plano temporal (os homens). Logo, dá-se o
domínio do mundo espiritual sobre o temporal. “Na desigualdade, Deus domina os homens”
(ORLANDI, 2006, p. 243).
Orlandi (2006) assegura que o discurso religioso é sustentado pela “ilusão de reversibilidade”,
ilusão não necessariamente como engano, mas como sentimento, o que se dá na tentativa de
que a reversibilidade não seja zero, mesmo que o discurso autoritário tenda a aproximar-se de
zero. Caso chegue a zero, o contato se rompe, desfaz-se a relação, comprometendo assim o
domínio (o escopo) do discurso. Ou seja, não há reversão no processo comunicativo como há
no discurso dos homens. Por isso a necessidade de se manter o desejo de tornar tal discurso
reversível. Eis a ilusão.
Então, como assegura Citelli (2004, p. 62), “ficamos com a ‘ilusão’ do reversível, dado que os
representantes de Deus na Terra parecem falar por ele”. Isso serve para se compreender que,
no discurso religioso, o orador não fala em seu próprio nome, contudo, nesse trabalho, o que
17
se analisa é o locutor que predica o sermão - enquanto produtor de seu discurso - e suas
estratégias argumentativas. Entende-se, portanto, como discurso a produção verbal que o
locutor enuncia, podendo ser escrita ou oral. Por assim dizer, não se trabalha nessa dissertação
com a noção de sujeito, mas com a de orador como sendo aquele que escreve um texto e/ou
pronuncia um discurso, sendo o mesmo inteiramente responsável pelo que diz. Quanto à
noção de discurso, adota-se a apontada por Reboul (2004, p. XIV):
Por discurso entendemos toda produção verbal, escrita ou oral, constituída
por uma frase ou por uma sequência de frases, que tenha começo e fim e
apresente certa unidade de sentido. De fato, um discurso incoerente, feito por
um bêbado ou um louco, são vários discursos tomados por um só (grifo do
autor).
Quanto a isso, cumpre deixar evidente algumas noções adotadas nesse trabalho. Como se
analisa o discurso da personagem Jesus Cristo, crucial assegurar que Mateus é o autor do
texto, ou seja, aquele que narra, que dá voz à personagem, constituindo-se esta como locutor
responsável pela enunciação. Maingueneau (1996, p. 88) assegura que “o autor não é o único
a poder dizer ‘eu’ num texto. As narrações apresentam continuamente personagens que se
expressam por discurso direto, colocando-se como responsáveis por sua enunciação, como
‘locutores’”. O locutor, nesse caso, é um ser do discurso, contudo não impossibilita de esse
locutor condizer com o indivíduo enquanto ser no mundo, ser histórico, ou se referir a ele.
Porquanto, o estudo aqui é a partir da enunciação do locutor Jesus Cristo enquanto
personagem da narrativa mateana.
Além de lidar com a disputa entre a filologia, concebedora dos textos religiosos como fatos
históricos, e as hermenêuticas feitas pelos crentes, o trabalho com textos religiosos requer a
interpretação dos mesmos, “seja para descobrir conteúdos espirituais ocultos, seja para
considerar os textos como documentos históricos que permitem compreender um autor ou
uma época” (MAINGUENEAU, 2010, p. 102). Quanto a isso, Maingueneau (2010, p. 102)
afirma que
É uma linha divisória que nem sempre é tão clara quanto se poderia pensar.
O ensinamento transmitido em uma faculdade de teologia não se reduz a um
comentário dos textos fundadores; ele se interessa também pela arqueologia,
pela codicologia etc., mesmo que tais saberes desempenhem um papel
subalterno; a verdade propriamente religiosa é considerada de uma outra
ordem.
Na sequência desse trabalho, discute-se o gênero discursivo em questão e algumas de suas
especialidades, logo após apresenta-se questões breves, porém, relevantes a respeito do Novo
18
Testamento e dos seus processos de constituição, bem como questões essenciais do evangelho
de Mateus e a definição do gênero literário da obra em questão.
2.2 O GÊNERO DO DISCURSO SERMÃO E O SERMÃO DO MONTE
2.2.1 O GÊNERO SERMÃO : CONCEITUAÇÃO
O sermão é um gênero do discurso bastante conhecido e praticado no Ocidente. De acordo
com Bakhtin (1997, p. 179), “[...] cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos
relativamente estáveis de enunciado”, sendo isso o que ele denomina gêneros do discurso.
Marcuschi (2003) retoma essa noção preferindo chamá-la de gêneros textuais e assegura que
esses são os textos encontrados no dia a dia e que apresentam padrões sociocomunicativos
característicos definidos por composições funcionais, objetivos enunciativos e estilos
concretamente realizados na interação de forças históricas, institucionais e técnicas. São
fenômenos históricos, profundamente vinculados à vida sociocultural, servindo para ordenar e
estabilizar as atividades comunicativas do cotidiano. Os gêneros são o reflexo das estruturas
sociais recorrentes e típicas de cada cultura, por conta disso a variação cultural traz
consequências significativas para a variação de gêneros.
Como a sociedade muda, os gêneros também mudam, assim pregar um sermão hoje não se dá
da mesma forma como era a prática na Idade Média, nem muito menos na Palestina do
primeiro século d.C. Porquanto, isso remete ao que Bakhtin (1997) discute sobre a
possibilidade da transmutação genérica, em que um gênero assimila outro, gerando novos
gêneros.
Maingueneau (2010) analisa a historicidade de um gênero de discurso: o sermão, e mostra que
há muitas diferenças do gênero nos séculos XVII e XVIII para o início do século XXI. Por
sua vez, quanto à atualização desse gênero, Patriota e Almeida (2006, p. 68) afirmam que “os
sermões continuam sermões, entretanto [atualmente] assumem formatos próprios que
emergem das características inerentes ao discurso midiático”.
“O sermão entra na categoria das enunciações monologais orais” (MAINGUENEAU, 2010, p.
105). Ele é, por certo, eminentemente persuasivo, pois existem toda uma técnica, instrumentos
19
e sistematização envolvidos em sua elaboração para um mesmo fim: a persuasão dos fiéis, em
alguns casos, de não fiéis. “Poder-se-ia dizer que se trata de um gênero ‘irradiador’, isto é,
que tem a capacidade de ativar a produção verbal de outros gêneros, de fazer falar dele”,
assegura Maingueneau (2010, p. 105) ao falar do sermão mais tradicional, não do sermão que
surge como fenômeno midiático.
O termo sermão implica certa assimetria entre uma posição superior, “a do ‘sermonneur’
[aquele que passa/faz um sermão], e uma posição inferior, a do ‘sermonné’ [aquele a quem o
sermão é dirigido]” (MAINGUENEAU, 2010, p. 114). Existem aqueles que fazem a
diferenciação entre sermão e homilia: “A homilia é antes de tudo consagrada a um texto,
enquanto o sermão é antes de tudo consagrado a um tema moral ou espiritual” (RÉGENTSUSINI, 2009, 17 apud MAINGUENEAU, 2010, p. 113, grifo autor). Contudo, essas
diferenças não são importantes para essa análise, dado que esses termos servem apenas como
designação de um gênero que ao longo dos séculos vem se transmutando.
Aquele que prega um sermão, além de preocupar-se com o conteúdo, preocupa-se com a
cadência da voz, a postura, as palavras utilizadas e a adequação desses elementos de acordo
com o ambiente e o nível sócio cultural, ou seja, preocupa-se com o auditório a quem a
mensagem está sendo direcionada. Vale salientar que, por auditório compreende-se como
sendo todos aqueles que o orador deseja influenciar com seu discurso (PERELMAN;
OLBRESCHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 22). Considerando-se isso, pode-se dizer que esse
gênero tem sua temática, suas formas composicionais e estilísticas próprias, cujo objetivo é a
persuasão religiosa.
2.2.2 O SERMÃO DO MONTE: PARTICULARIDADES E TEMÁTICAS
O discurso de Jesus chamado de Sermão do monte ou de Sermão da montanha2 é o primeiro e
mais extenso dos cinco discursos proferidos por Jesus Cristo no evangelho de Mateus. Como
o título alude, foi proferido em um monte (Mt 5.1) situado nas vizinhanças de Cafarnaum.
Hendriksen (2001, p. 362) defende que, pelo fato de o texto usar o artigo definido - o monte,
“[...] subiu ao monte [...]” (Mt 5.1) -, esse monte pode ter sido bastante conhecido na época,
2
Diferenças decorrentes da escolha dos tradutores.
20
por sua vez, sugere ser o Chifres de Hatin3, tal designação por conta de seus picos se
assemelharem a dois chifres ao serem vistos de longe.
A questão da localização do sermão traz uma problemática, pois Lucas (6. 17) fala de um
sermão de Jesus Cristo, Sermão da planície, com características semelhantes ao Sermão do
monte, contudo menor, descrito como se fosse pronunciado num lugar plano. No entanto,
alguns estudiosos acreditam que há apenas uma aparente contradição, porquanto Hendriksen
(2001, p. 362) assegura que pode se admitir que Jesus pronunciou seu discurso em um
planalto, “ou que tendo escolhido seus discípulos no cume do monte, desceu com eles para a
planície onde curou os enfermos e, em seguida, com os discípulos, voltou para o cume do
monte (ver Mc 3.13; Lc 6.17; e Mt 5.1, nessa ordem)”. Se se adotar o segundo ponto de vista,
“tudo indica que na planície ele parou para curar os enfermos; no alto do monte ele se sentou,
segundo o costume da época (Mc 4.1; 9.35; 13.3; Lc 4.20), para pronunciar seu sermão”
(HENDRIKSEN, 2001, p. 362, grifos do autor). Porquanto, para esse estudioso, qualquer um
dos pontos de vista adotados pode ser aceito já que não se pode comprovar que haja conflito
entre a narrativa de Mateus e Lucas.
Uma questão bastante discutida é se o Sermão do monte foi proferido de uma só vez ou se é
uma coleção de ensinos ou ditos de Jesus agrupados de forma temática. Os estudiosos que
propõem a teoria de que eles provêm de uma coleção de ensinos apresentam os seguintes
argumentos: primeiro, o material é extenso demais para ser dito de uma só vez; segundo, não
há unidade e continuidade temática ou relação lógica entre as seções; terceiro, há duas versões
entre as quais há muitas discrepâncias4. Quanto a isso se contra argumenta:
El argumento de “demasiado material para una ocasión” está basado en la
costumbre de cultos contemporáneos donde el predicador está limitado a
aproximadamente una hora. En cambio, Jesús seguramente se extendió en su
discurso durante varias horas, quizá un día entero, o aun más (comp. 15:32).
La presentación de Mateo parece ser un breve resumen de las principales
enseñanzas de una serie de temas distintos, siendo el tema unificador “el
reino de los cielos”. Si es que Jesús presentó una serie de temas a lo largo de
un día de conferencias, no habría necesariamente una continuidade lógica
entre éstos. Por otro lado, algunos versículos del Sermón presentado por
Mateo, esparcidos en Lucas, probablemente son evidencia de la práctica de
3
Segundo Hendriksen (2001, p. 361) essa elevação fica cerca de seis quilômetros e meio a oeste do Mar da
Galileia e cerca de treze quilômetros a sudeste de Cafarnaum. Fazendo referência a um estudo de Howard La
Fay, (“Where Jesus Walked”, National Geographic, vol. 132, no 6 (dezembro de 1967), p. 763) o monte pode ter
sido uma verdejante colina que fica ao ocidente de Tabgha.
4
Por exemplo: o discurso de Mateus contém 111 versículos dos quais 29 aparecem em Lucas em um lugar (Lc
6:20 – 49), 35 estão espalhados em todo livro de Lucas e 47 versículos não se encontram no evangelho
(COMENTARIO BIBLICO MUNDO HISPANO, v.14, 1993, p. 87).
21
repetir las mismas verdades en distintas ocasiones, como es común entre
maestros en todos los tiempos. (COMENTARIO BÍBLICO MUNDO
HISPANO, v. 14, 1993, p. 87)5.
Quanto à questão da suposta falta de lógica entre as seções do sermão e seus itens, Hendriksen
(2001, p. 366) discute: “O sermão tem também suas divisões ou ‘itens’ bem definidos. Estes
são rígidos ou formais – ‘os ossos não chamam atenção’ -, porém orgânicos, de modo que
uma subdivisão gradualmente avança ou se combina com outra”.
Por outro lado, os que defendem a teoria que o sermão foi proferido de uma só vez
apresentam os seguintes argumentos: primeiro, o sermão é descrito com início e conclusão:
“subiu ao monte” (Mt 5.1) e “desceu do monte” (Mt 8.1); segundo, se dirigiu a um grupo
definido: “seus discípulos aproximaram-se dele [...] e passou a ensina-los dizendo” ( Mt 5.1);
terceiro, é mencionada a reação das multidões, ao finalizar o sermão: “todos estavam
maravilhados com seus ensinos” (Mt 7.29). Ao que parecem ser esses argumentos mais
convincentes, porquanto Mateus e Lucas apresentam duas versões do mesmo sermão.
A Teoria das Duas Fontes, que é abordada em detalhes mais à frente6, mostra que Mateus e
Lucas se utilizaram de Marcos e de uma fonte Q7 para construir seus evangelhos. Isso,
portanto, é um argumento a favor de que o Sermão da Planície é uma versão mais curta do
Sermão do Monte, ou melhor, os dois são versões de um mesmo discurso adaptados a partir
de uma fonte Q.
Esse discurso provavelmente foi pronunciado na primavera do ano de 28 d.C., assegura
Hendriksen (2001, p. 31), após Jesus ter passado uma noite em oração, como descreve Lucas
(Lc 6.12). A oração foi seguida da escolha de seus doze discípulos (Marcos (Mc) 3. 13-19; Lc
6. 13-16) e a escolha precedeu a cura de vários enfermos (Lc 6. 17-19; Mt 4. 23-25), vindo em
posteriormente o sermão (Lc 6. 19, 20; Mt 5. 1,2).
5
“O argumento de “demasiado material para uma ocasião” está baseado no costume dos cultos contemporâneos
onde o pregador está limitado à aproximadamente uma hora. Contudo, Jesus seguramente se estendeu em seu
discurso durante várias horas, quiçá um dia inteiro, ou mesmo mais (comp. 15:32). A apresentação de Mateus
parece ser um breve resumo dos principais ensinos de uma série de temas distintos, sendo o tema unificador “o
reino dos céus”. Se é que Jesus apresentou uma série de temas ao longo de um dia de conferências, não havia
necessariamente uma continuidade lógica entre eles. Por outro lado, alguns versículos apresentados por Mateus,
espalhados em Lucas, provavelmente são evidências da prática de repetir as mesmas verdades em distintas
ocasiões, como é comum entre os mestres de todos os tempos” (COMENTARIO BÍBLICO MUNDO
HISPANO, v. 14, 1993, p. 87, tradução nossa).
6
Na seção 2.4 MATEUS: RELAÇÃO SINÓTICA.
Acredita-se derivar da primeira letra da palavra alemã Quelle, que significa fonte – que se diz ser um
documento hipotético que pode ter contido ditos (aforismos) de Jesus sem, necessariamente, descrição narrativa.
7
22
Santo Agostinho (COMENTÁRIO BÍBLICO MUNDO HISPANO, v.14. 1993, p. 86) bispo de
Hipona, século IV d.C, foi quem deu o título Sermão do Monte ao primeiro dos cinco
discursos de Jesus no evangelho de Mateus. Sendo assim, os muitos títulos dados a esse
famoso discurso indicam os variados enfoques que ele vem recebendo ao longo dos tempos:
O manifesto antifaraisáico; Os ensinos na colina; Um projeto para a vida; A carta magna do
reino; A ética do reino; O discurso de ordenação dos apóstolos; O compêndio da doutrina
cristã; A constituição do reino de Deus; O puro evangelho e a A lei do reino
(COMENTÁRIO BÍBLICO MUNDO HISPANO, 1993).
Vê-se então que o Sermão do monte, ao longo de dois milênios, tem recebido diversas
interpretações, aplicações pessoais e comunitárias, contudo como o objetivo desse trabalho
não é uma análise teológica, não se faz necessário discutir as várias interpretações 8 dadas a tal
discurso. Entretanto, é preciso entender ao que ele se refere, ou seja, qual é o seu tema central,
até porque há quem defenda que a unidade do sermão se dá por abordar um tema central, no
caso, o evangelho do reino dos céus (BROOKS, 1992). Conforme essa abordagem, o ponto de
vista aqui adotado é o que permite um olhar argumentativo sobre o texto, sendo apenas uma
possibilidade interpretativa dentre algumas outras.
Mateus mostra Jesus, antes de subir ao monte para discursar o sermão, ensinando e pregando
“o evangelho do reino dos céus” (Mt 4. 17, 23) às multidões, ao que são estas mesmas que
ouvem o discurso desse orador no monte sob o mesmo tema central. Deste modo, no Sermão
do monte a expressão reino dos céus aparece seis vezes (Mt 5. 3, 10, 19 [duas vezes], 20; 7,
21), e o termo reino três vezes (Mt 6. 10, 13, 33) em lugares estratégicos. Por seu turno,
alguns importantes teólogos concluem que “The sermon is therefore a description of the
virtues which should characterize those who belong to the kingdom of heaven.”9 (BROOKS,
1992, p. 25), ou melhor, a justiça do reino (Mt 5.20). Vale ressaltar que estudiosos do Novo
8
Na busca de um tema ou proposito para o sermão, muitas teorias sugiram para tentar explica-lo: estudiosos
luteranos entendem o sermão como uma exposição da Lei judaica com o objetivo de mostrar a necessidade da
graça às pessoas; O liberalismo clássico compreende o sermão como uma ética para todas as pessoas; os liberais
contemporâneos veem no sermão padrões éticos de Mateus; a tradição anabatista-menonita tende querer que se
aplique o sermão a todas as pessoas de todas as idades, de modo a justificar o pacifismo etc.; os existencialistas
interpretam-no como apelo à autêntica existência; Albert Schweitzer, teólogo e filósofo alemão, descreveu o
sermão como uma ética interina entre a sua proclamação e a expectativa do fim do mundo. Como o mundo não
acabou, como supostamente Jesus esperava, então, na acepção de Schweitzer, o sermão tem pouca validade hoje;
alguns evangélicos entendem o sermão como uma intensificação da lei judaica; o dispensacionalismo clássico
compreende o sermão como uma ética para o reino milenar, portanto, tem pouca relevância para a igreja atual.
(BROOKS, J. A. The unity and structure of sermon on the mount. Criswell Theological Review 6.1, Dallas,
Texas: 1992, p. 15-28).
9
“o sermão é, portanto, uma descrição das virtudes que devem caracterizar os que pertencem ao reino dos céus”
(tradução nossa).
23
Testamento como J. Jeremias (1961, p. 32)10, professor de Novo Testamento da Universidade
de Göttingen, na Alemanha, defende que o sermão não é Lei, comparada à Lei judaica, e que
suas exigências não devem ser interpretadas, mesmo que já o foi por muitos, como se fossem
uma espécie de uma moral cristã ou mesmo ética cristã, pois obedece a outra lógica, o que ele
chama de fé viva.
2.2.3
CONSIDERAÇÕES SOBRE A ESTRUTURA DO SERMÃO
Assim como existem muitas teorias a respeito do significado do sermão, não é diferente em
relação à determinação da estrutura do mesmo, isso se diz porque já se buscou bastante uma
chave para compreender a organização estrutural do referido discurso. Contudo, adota-se aqui
a estrutura natural do texto, ou seja, a que segue a ordem estabelecida por quem compilou o
sermão proferido por Jesus.
Apesar de não se entrar aqui em muitos detalhes em relação às teorias que tratam da estrutura
do sermão, vale chamar atenção para o trabalho de Dale e Alisson (1987), tido como um dos
mais importantes trabalhos de análise do sermão, havendo elementos importantes em tal
trabalho a serem considerados. Sendo assim, eles fazem críticas a estudos anteriores que,
segundo esses estudiosos, tentam determinar a estrutura do sermão de forma equivocada, ao
que eles propõem suas concepções a respeito da estrutura desse discurso.
Do que se pode aproveitar do trabalho de Dale e Allison (1987, p. 467) referente à estrutura
do Sermão do monte para esse trabalho, é que eles mostram como há claramente uma
introdução (Mt 4. 23-5.2) e uma conclusão (Mt 7.28 – 8.1) correspondentes que antecedem e
procedem, respectivamente, ao sermão, havendo a menção de elementos que apontam a
10
J. Jeremias no artigo The Sermon on the mount, publicado em 1961, faz algumas críticas a basicamente três
das mais conhecidas concepções (já mencionadas anteriormente) que tentam responder à pergunta: qual é o
significado do sermão do monte?. Essas concepções são chamadas por ele de: Concepção Perfeccionista; Teoria
da Impossibilidade ideal; Ética Interina. O teólogo faz as refutações a essas concepções e conclui dando uma
resposta ao questionamento: “
The result to which we have come is that the Sermon on the Mount is not Law, but Gospel. For this is indeed the
difference between Law and Gospel: the Law leaves man to rely upon his own strength and challenges him to do
his utmost. The Gospel, on the other hand, brings man before the gift of God and challenges him really to make
the inexpressible gift of God the basis for his life.” [O resultado a que chegamos é que o Sermão do Monte não é
Lei, mas Evangelho. Por isso é de fato a diferença entre Lei e Evangelho: a Lei deixa o homem a confiar em sua
própria força e desafia-o a fazer o seu melhor. O Evangelho, por outro lado, traz o homem diante do dom de
Deus e desafia-o realmente para fazer o dom inefável de Deus a base para sua vida”] (JEREMIAS, Joachim. The
Sermon On The Mount. The Athlone Press, London: 1961, p. 32, tradução nossa).
24
correspondência de início e finalização do discurso. Observe as correspondências: “numerosas
multidões o seguiam” (Mt 4.25 e 8.1), tanto no início quanto no final do discurso; “multidões
ouviram o discurso” (Mt 5.1 e 7.28); situa o lugar, “o monte” (Mt 5.1 e 8.1); “subiu” (Mt 5.1)
e “descendo” (Mt 8.1); “passou a ensiná-los” (Mt 5.2) e “quando Jesus acabou de proferir
estas palavras” (Mt 7. 28) (BROOKS, 1992). Vê-se que há elementos que apontam uma
introdução e uma conclusão do sermão, por conseguinte, o núcleo do sermão compreende os
textos do 5. 3 ao 7.27 do evangelho de Mateus. Portanto, o sermão tem um esboço simples:
introdução (Mt 4.23-5.2); discurso (Mt 5.3-7.27); conclusão (Mt 7.28-8.1).
Quanto à questão de certa estrutura rígida do sermão, é pertinente o questionamento e a
constatação de Brooks (1992, p. 27): “[...] if Matthew himself employed a rigid structure. If
he did, it still has not been discovered even after 19 centuries of searching”11. Esse
pesquisador defende que diante do impasse histórico na busca de uma chave interpretativa
para se determinar a estrutura de tal discurso, e como o próprio autor, Mateus, não impôs
estrutura rígida ao sermão, então o pesquisador conclui que “[…] modern readers therefore
may adopt any outline which is helpful, as long as it is realized that it is not the only possible
one.”12 (BROOKS, 1992, p. 28). Sendo assim, usa-se a ordem natural do sermão, como
disposta no texto, para efeito de análise argumentativa.
Como o sermão pertence ao evangelho de Mateus, que é do Novo Testamento (NT), é preciso
que se trate de algumas questões pertinentes relacionadas a esse evangelho: os manuscritos do
NT, o cânon; a relação sinótica: a autoria de Mateus, a datação, o local de composição; bem
como situar, de forma breve, a pesquisa nesse evangelho até chegar à questão do gênero
literário biográfico greco-latino que dá ancoragem à análise do Sermão do Monte, discurso de
Jesus Cristo, personagem principal da obra mateana.
2.3 O NOVO TESTAMENTO: CÂNON, MANUSCRITOS E VERSÕES
O Novo Testamento (NT) estava completo por volta do ano 100 d.C.. A maior parte dos livros
já tinha sido escrito de vinte a quarenta anos antes dessa data, sendo que a datação específica
11
“[...] se o próprio Mateus empregou uma estrutura rígida. Se ele o fez, ela ainda não foi descoberta mesmo
depois de 19 séculos de busca” (tradução nossa).
12
“[...] os leitores modernos, portanto, podem adotar qualquer esboço que é útil, enquanto se percebe que não é a
única possível” (tradução nossa).
25
de cada um dos quatro evangelhos não é tão simples de ser determinada; o que se discute mais
à frente.
O cânon do NT é constituído por vinte e sete livros, escritos por nove escritores diferentes. A
sua formação deu-se por alguns critérios não tão simples, como é, de modo geral, a
canonização de uma obra. Isso porque o cânone de um autor é formado por obras que são
genuinamente de sua autoria. Contudo, o cânone do NT não pode ser resolvido à base dessa
questão apenas. E nem simplesmente pela escolha da Igreja.
Boa parte dos teólogos defende que, o verdadeiro critério para escolha desses livros como
canônicos é a inspiração, até porque foi com base nesse critério que tradicionalmente se
aceitam os livros do NT como canônicos. Dessa forma, Tenney (1995, p. 429), estudioso do
NT, assegura que, se esse critério for adotado como definitivo, é necessário responder a
seguinte pergunta: “Como se demonstra a inspiração?”. Diante disso, ele argumenta que como
a maioria dos livros não começa com a afirmação que demonstre ser inspirados por Deus, ele
apresenta argumentos em favor da inspiração que deu suporte à aceitação dos mesmos como
canônicos.
Como o objetivo desse trabalho não é discutir em profundidade tais questões, cumpre apenas
apresentar resumidamente alguns argumentos, como os de Tenney (1995). O primeiro
argumento é o que ele chama de testemunho interno. Deste, diz-se que há uma centralidade
nos livros canônicos quanto à abordagem a respeito da pessoa de Jesus Cristo. Ele e outros
estudiosos asseguram que a mensagem desses livros era única e inovadora aos
contemporâneos. Esse autor usa, assim, o argumento da centralidade de Cristo nessas obras
para afirmar isso como sendo uma das fortes razões para os vinte e sete livros
neotestamentários terem sido considerados canônicos, mostrando, por outro lado, o porquê de
muitos outros livros terem ficado de fora do cânon, ou seja, por não apresentar tal
centralidade. Portanto, apresenta isso como um dos motivos de os apócrifos não terem sido
canonizados.
Na segundo resposta, Tenney (1995) apresenta o argumento do testemunho externo. Neste,
ele assegura que a distinção entre os livros canônicos e não canônicos não foi feita por uma
pessoa, ou por um só grupo local, como alguns equivocadamente falam. Contudo, pelo
processo de consciência espiritual que foi se desenvolvendo ao longo do tempo, trançando-se
26
linhas de discriminação. “Nem foram estas tão pouco mera[me]nte o resultado de preferências
ou preconceitos pessoais alheios a um espírito crítico” (TENNEY, 1995, p. 432).
Outrossim, o estudioso argumenta que “a Igreja não determinou o cânon; reconheceu o
cânon” (TENNEY, 1995, p. 432). Portanto, diz-se que nenhum concílio poderia criar um
cânon, já que a qualidade essencial da canonicidade é o que se chama de inspiração, e nenhum
concílio poderia soprar inspiração em obras que já existiam. Desta forma, “tudo quanto os
concílios podiam fazer era dar a sua opinião acerca dos livros que eram canônicos e dos que o
não eram e, depois, deixar que a história justificasse ou invalidasse o veredito”, assegura
Tenney (1995, p. 432).
Para fundamentar seu argumento, Tenney (1995) mostra que o testemunho externo é, ao
mesmo tempo, informal e formal. Diz-se do informal o uso frequente que os Pais da Igreja13
fizeram do NT. As suas citações atestam tanto a existência quanto a autoridade de tais livros,
sendo que elas foram feitas de maneira direta e indireta. Por conseguinte, a obra mais antiga
contendo citações do NT é datada do ano 95 d.C. feita por Clemente 14 (I [Epístola] de
Clemente aos Coríntios), obra deste também considerada como canônica por alguns cristãos.
Ela se encontra, juntamente com os livros do NT, no Códice Alexandrino. A mesma faz
menção explícita a Hebreus, I Epístola aos Coríntios, Romanos e ao evangelho de Mateus.
Muitos exemplos reforçam o testemunho externo informal do reconhecimento da maioria
dos livros do NT pelos Pais da Igreja: Inácio15 de Antioquia na Síria (aproximadamente 116
[?] d. C.). Assim também, Policarpo16 de Esmirna (em cerca de 150 d.C.); o Didaquê17 nessa
mesma época; a Epístola de Barnabé18(cerca de 130 d.C.) faz o mesmo. E notáveis citações
13
Denominação carinhosa dada aos bispos ou líderes, teólogos, professores e mestres da igreja aproximadamente
a partir do início do II século até o VII século d.C., seus trabalhos foram usados como precedentes doutrinários
para os séculos que se seguiram. Alguns deles são Clemente de Roma, Inácio de Antioquia, Policarpo de
Esmirna etc.
14
Conhecido como São Clemente ou Clemente Romano é também considerado pela tradição católica como o
quarto papa romano.
15
Bispo da igreja de Antioquia da Síria, discípulo do apóstolo João.
16
Foi bispo e superintendente de Esmirna, atualmente onde é localizada a Turquia. É considerado santo pela
Igreja Católica Romana e pelas Igrejas Ortodoxas Orientais.
17
Ou Didache é uma obra do primeiro século d.C. que trata de questões doutrinárias, apesar de pequeno,
dezesseis capítulos, tem grande relevância teológica para a Igreja.
18
É uma epístola grega que contém vinte e um capítulos presente no Codex Sinaiticus após o NT. Atribuída por
muitos a Barnabé mencionado em Atos dos Apóstolos, contudo alguns defendem ser outro Barnabé de
Alexandria, um Pai Apostólico.
27
dos evangelhos são feitas por Justino Mártir19 (cerca de 100 a 165 d.C.), filósofo grego-sírio,
e afirma que as memórias dos apóstolos, ou seja, os evangelhos, eram lidos todos os
domingos na Igreja juntamente com o Antigo Testamente. Ademais, Taciano, aluno de
Justino, compôs a primeira harmonização dos evangelhos, Diatessaron20, utilizada pela Igreja
por muito tempo. Os estudiosos asseguram que, aproximadamente em 170 d.C., quando se
inicia o que os teólogos chamam de a era de Irineu21, não havia mais dúvidas da autoridade
dos livros do NT.
A primeira lista formal que tentou estabelecer um cânon conscientemente foi feita por
Márcio22, cerca de 140 d.C.. Outra lista importante é o Cânon Muratoriano23, nome que vem
do historiador e bibliotecário italiano que o encontrou na Biblioteca Ambrosiana, em Milão. O
manuscrito com a lista tem um conteúdo que remete ao final do segundo século d.C. e faz
menção aos principais livros canônicos. Assim, há ainda outras listas: a africana do IV século
(cerca de 360 d.C) 24; a Carta Festal de Atanásio25 (cerca de 367 d.C.), que faz distinção entre
os escritos inspirados e transmitidos aos pais da igreja, dos chamados escritos secretos dos
hereges.
19
Também conhecido como Justino Mártir ou Justino de Nablus, viveu entre 100 a 165 d.C., foi um filósofo e
teólogo do século II d.C. O mesmo faz em seus escritos referências aos livros bíblicos: Mateus, Marcos, Lucas,
João e muitas epístolas paulinas.
20
Taciano buscou fazer um relato único dos acontecimentos e palavras vida de Jesus eliminando as supostas
repetições dos evangelhos. Essa obra combina frases e perícopas dos quatro evangelhos (Mateus, Marcos, Lucas
e João) a partir de uma ordem inspirada em Mateus. Só se tem apenas fragmentos do Diatessaron em diversas
obras pelas quais tem-se tentado reconstruí-lo.
21
Irineu foi um influente apologista cristão, foi Bispo de Lyon, na Gália, atual Sul da França, onde ficou
conhecido como Polemista Anti-Gnóstico, por defender a igreja da filosofia e heresias do Gnosticismo. Em suas
apologias citou os quatro evangelhos, Atos, as epistolas de Paulo, outras tantas epístolas e Apocalipse.
(TENNEY, 1995, p. 434). Sua era foi certo período que sua influência intelectual se estendeu.
22
Estudioso cristão do II século d.C., nascido em Sinope, no Ponto, onde seu pai era bispo. Ele ao rejeitar
qualquer influência judaica, escolheu Lucas como seu evangelho preferido, mesmo rejeitando os dois primeiros
capítulos que contém os dois primeiros capítulos do nascimento virginal; utilizou-se de dez epístolas de Paulo
abolindo as pastorais e Hebreus (TENNEY, 1995, p.435).
23
Esse manuscrito não está completo, portanto pertence a uma obra maior. Inicia-se no meio de uma frase, e o
primeiro livro mencionado é Lucas, chamado de o terceiro evangelho, ao que se deduz que antes deva ter vindo
Mateus e Marcos. Ademais são mencionados: I Epístola de João, Atos, I e II epístolas aos Coríntios, Efésios,
Filipenses, I e II Epístolas de Tessalonicenses, Romanos, Filemon, Tito, I e II epístolas a Timóteo, Judas, I e III
epístolas de João e Apocalipse. Essa lista rejeitava as epístolas de Paulo aos Laodicenses e aos Alexandrinos;
aceitava o Apocalipse de Pedro; não menciona nem a epístola de Tiago nem Hebreus (TENNEY, 1995, p.436).
24
Não se conhece seu compilador. Nela estava inclusa os quatro evangelhos, treze epístolas de Paulo, Atos,
Apocalipse, três epístolas de João e duas de Pedro (TENNEY, 1995, p.436, 437).
25
Nascido na Alexandria em 295, participou do Concílio de Nicéia. Ele é considerado Santo pela Igreja Católica
Romana.
28
Os concílios só começaram a acontecer a partir de 363 da era cristã. O primeiro foi o de
Laodicéia26 (Sínodo de Laodicéia), sobre o qual não se tem certeza da lista oficial, não
havendo a presença de todas as principais igrejas. Foi no Concílio de Hippo, em 393 d.C., que
se apresentou uma lista formal de 27 livros do Novo Testamento, repetida no Concílio de
Cartago, 397 d.C., nos quais se emitiu um decreto sobre quais livros ler nos cultos.
Com isso, boa parte dos estudiosos desses documentos e do NT afirma que os livros
neotestamentários eram conhecidos ou aceitos por todas as igrejas do Oriente e do Ocidente
durante os primeiros quatro séculos. Mesmo que Hebreus não fosse aceito por todos de início,
pela incógnita da autoria, bem como a II epístola de Pedro e a II e a III epístolas de João pelo
pequeno conteúdo e relevância doutrinária. Dessa maneira, o argumento é que nenhum dos
livros do cânone foi imposto ou aceito pela Igreja como compulsão eclesiástica, sendo que,
como visto rapidamente acima, os concílios só tiveram lugar no quarto século d.C., quando o
NT, de modo geral, já se tornara o cânone, ou seja, as Escrituras da Igreja.
Os escritos neotestamentários vêm sendo estudados há muito tempo em busca de evidências
que atestem sua autenticidade. Tanto é que muitos peritos afirmam que a evidência em favor
desses escritos avulta e torna-se cada vez mais superior a de autores clássicos, cuja
autenticidade não é posta em dúvida.
Diante disso, Bruce (2003, p. 22), catedrático das universidades de Sheffield e Manchester na
Inglaterra, em Merece confiança o novo testamento, assegura:
Fôsse o Novo Testamento mera antologia de escritos seculares, a
autenticidade desses documentos seria geralmente havida como além de toda
a dúvida. Fato curioso é que historiadores frequentemente se têm mostrado
mais predispostos a confiar na fidedignidade dos escritos néo-testamentários
que muitos teólogos. Desta ou daquela forma, o fato é que há quem
considere ipso facto suspeito um “livro sagrado” e exija muito mais
evidência corroborativa em favor de obra que tal do que em referência a
documentos seculares ou pagãos em geral. Do ponto de vista do historiador,
os mesmos critérios e normas se deveriam de aplicar a ambos os tipos de
documentos.
Atualmente, existem quase 5.000 manuscritos gregos que contêm o NT, alguns apenas
fragmentos, outros integrais. Os mais importantes e conservados datam aproximadamente de
meados do quarto século d.C, sendo o Códex Vaticano (Vaticanus), um tesouro da Biblioteca
do Vaticano em Roma, e o famoso Códex Sináitico (Sinaiticus), o principal tesouro do Museu
26
Nesse Concílio que se decretou no artigo 59º que só se deveria ler os livros canônicos do Novo Testamento.
Mas ainda se tem dúvida sobre a verdadeira lista desse concílio.
29
Britânico, adquirido pelo Governo Britânico das mãos do Poder Soviético, em 1933. Há ainda
outros dois importantes manuscritos na Inglaterra: o Códex Alexandrino (Alexandrinus),
datado do quinto século, e o Códex Beza (Bezae), da Biblioteca da Universidade de
Cambridge, escrito no quinto ou sexto século. Vale notar que há fragmentos menores, como o
do evangelho de João (capítulo 10.31-33; 37-38), que foi escrito durante o primeiro quartel do
segundo século d.C. (HALE, 1983, p. 28), além de muitos outros. Ressalta-se que nenhum
manuscrito em grego é totalmente idêntico, havendo algumas variantes.
Além dos manuscritos gregos, existem ainda muitos outros em outras línguas, pois, apesar do
grego ter sido a língua do comércio, do governo, da comunicação e da religião na época,
existiam comunidades que estavam fora do caminho comercial etc. e não entendiam
prontamente o idioma grego. Por isso os primeiros cristãos, nos meados do segundo século
d.C., traduziram muitos desses textos considerados sagrados para o idioma das comunidades
de fé. Os textos mais importantes são: o siríaco, língua da Mesopotâmia e Síria; o cóptico, são
os vários dialetos do vernáculo egípcio; e o latim antigo.
Divide-se a história do texto grego impresso do Novo Testamento em três períodos: o
primeiro é o período não-crítico, em que se dá o estabelecimento e a padronização do texto
encontrado na maioria dos manuscritos usados pela Igreja Antiga e Medieval. São chamados
de bizantino, sírio, tradicional, eclesiástico, ou majoritário. Tradicionalmente ele veio a ficar
conhecido como Textus Receptus, sendo sua primeira impressão feita por Ximenes em 1514 e
foi usada por muito tempo sem haver muitas diferenças em suas edições, por ter aceitação
incondicional por parte da Igreja (ANGLADA, 1996, p. 02).
O segundo período é denominado de pré-crítico, com o início atribuído à data da edição de
John Fell, em 1675, estendendo-se até 1831, época em que Lachmann publica um texto que se
afasta consideravelmente do Textus Receptus. Esse período é caracterizado pela soma de
evidências por parte dos críticos e de teorias que seriam melhor elaboradas posteriormente
repudiando o texto grego majoritário do NT. Mas, apesar disso, a Igreja aceitara largamente e
usara o Textus Receptus (texto recebido), já que as evidências textuais aplicados a ele não
tinham sido ainda aplicadas ao texto de forma a convencer o consenso da Igreja.
O último período é chamado de período crítico, que começa com Lachmann, em 1831, e
estende-se até os dias atuais, cuja tendência foi se afastar bastante do Texto Majoritário.
Dessa maneira, se caracteriza pelo aparecimento de um texto eclético, que se baseia em um
30
número bastante reduzido de manuscritos, considerados os mais antigos, porém com leituras
variantes entre si, bem como leitura variante da do Texto Majoritário.
O texto eclético teve seu início com Lachmann, mas foi Westcott e Hort seus maiores
defensores e divulgadores, sendo as principais edições desse texto a de Nestle-Aland e da
United Bible Societies (UBS). Atualmente, é versão mais acessível do Novo Testamento em
grego, utilizada pela maioria dos pesquisadores, exegetas, estudantes e tradutores do NT
(ANGLADA. 1996, p. 03).
Em relação à quantidade de manuscritos, o Texto Majoritário tem cerca de 95 (90?)% dos
manuscritos, que são cópias de manuscritos antigos, contudo a maioria são datados a partir do
século VI a IX d.C. Enquanto os manuscritos - que são minoritários - possuem 5 (3? 4?)%,
estes últimos são os mais antigos, sendo datados a partir do segundo ou terceiro século d.C.,
ao que, a partir de laborioso estudo, elaborou-se o Texto Crítico ou Eclético.
O termo ‘eclético’ refere-se ao fato de que o texto de Westcott-Hort é o
resultado de várias escolhas feitas entre variantes disponíveis, seguindo
critérios de evidências internas (como a leitura que melhor se encaixa no
contexto, e a leitura que melhor explica o surgimento de outras variantes),
sem maiores considerações para com evidências externas, tais como a
história da transmissão do texto (ANGLADA, 1996, p. 01).
Ainda assim, existem alguns eruditos que advogam a favor do Texto Majoritário como é o
caso de Wilbur Pickering em sua obra The Identity of the New Testament Text (em português
traduzido como: Qual o texto original do Novo Testamento) publicada em 1980, sendo que o
mesmo apresenta bons argumentos baseados em evidências históricas, ou seja, evidências
externas da história da transmissão do texto em favor do Texto Majoritário.
Apesar da polêmica existente, muitos estudiosos ressaltam que não há grandes diferenças
entre o Texto Crítico e o Textus Receptus concernente às questões básicas da fé cristã, pois as
variantes são muito poucas para afetar tanto (nem para o texto objeto de estudo). As
diferenças mais significativas encontram-se no final de Marcos (16. 9-20) e em João (7. 538.11).
Em língua portuguesa, as versões utilizadas a partir do Texto Eclético ou Texto Crítico são a
Nova Versão Internacional (NVI), a Bíblia na Linguagem de Hoje e a famosa versão de
31
Almeida Revista e Atualizada (2ª ed., 2011)27. Sendo esta a mais utilizada atualmente para
pesquisas formais e acadêmicas no Novo Testamento e Antigo Testamento, versão esta
adotada para efeito de análise nesse trabalho por corresponder à tradução do Texto Crítico.
Vale ressaltar que, em alguns casos, faz-se a verificação do texto na língua original, no grego,
para possível esclarecimento da tradução, para tanto, usam-se os textos do Novum
Testamentum Graece28 Nestle-Aland (1998), sendo tal texto em grego o correspondente ao
Texto Crítico.
2.4 MATEUS: RELAÇÃO SINÓTICA
2.4.1 RELAÇÃO SINÓTICA
O evangelho de Mateus tem sido, dentre os quatro evangelhos, o mais estudado e discutido na
tradição cristã. Por certo, é a obra que mais notadamente ajudou a formatar o movimento
cristão desde o início. Ferreira (2006, p. 36) apresenta algumas razões para o destaque desse
evangelho: a primeira delas é que ele leva o nome de um dos apóstolos de Jesus juntamente
com o evangelho de João. Dado que, como já se mencionou acima, era fator importante para
fazer parte do cânon do NT, corroborado pela ideia de que Mateus teria sido testemunha
ocular dos feitos de Jesus.
A outra razão para destaque do evangelho de Mateus é o fato de esse evangelho ter uma
estrutura bastante didática - a presença dos cinco grandes discursos (Mt 5-7; 10; 13; 18; 2425) confirma isso - portanto, útil para o ensino dos iniciantes na fé. E a terceira razão é que,
por conta de suas características judaicas, grupos judeu-cristãos foram estimulados a utilizálo, assim como as passagens pró-gentílicas facilitaram a sua aceitação pelas igrejas gentílicas.
Na determinação de alguns elementos básicos desse evangelho, como autoria, datação e local
de escrita, tem-se grandes dificuldades, pois não há praticamente nenhum elemento interno e
pouquíssimos elementos externos relacionados ao evangelho de Mateus. Para tanto, toma-se
27
As versões anteriores de Almeida são baseadas nos textos que o tradutor tinha disponível na época, ou seja, o
Textus Receptus. Porquanto, essa versão Almeida Revista e Atualizada é fruto do trabalho de cerca de trinta
revisores em treze anos que se baseou no Texto Crítico dos originais grego e hebraico.
28
Novo Testamento Grego (tradução nossa).
32
como ponto de partida a comparação entre os três evangelhos sinóticos para melhor
determinar tais elementos.
A relação sinótica advém da possibilidade de sinopse, termo do grego synopsis, que significa
ver em conjunto, designação que, segundo Carson, Moo e Morris (1997, p. 19), foi utilizada
pela primeira vez por Griesbach, estudioso da bíblia de nacionalidade alemã, ao perceber que
Mateus, Marcos e Lucas poderiam ser colocados em três colunas, uma ao lado da outra, e
compará-los num só olhar. Por não ser possível esse mesmo olhar sinótico para o Evangelho
de João, por ter uma narrativa diferente da dos demais, ele não se enquadra nesse grupo.
As semelhanças entre os três evangelhos envolvem estrutura, conteúdo e enfoque. Apesar de
ser possível a comparação entre eles, não significa que um seja a mera cópia do outro; a
questão é muito mais complexa. Porquanto, diz-se que tem como característica a relação de
proximidade e distância. Quanto ao ângulo da proximidade, Ferreira (2006, p. 28) discorre em
linhas gerais:
[...] eles fazem uma apresentação muito semelhante do ministério de Jesus.
Em linhas gerais pode-se visualizar a seguinte organização: surgimento de
João Batista anunciando a vinda do Cristo; batismo e tentação de Jesus,
marcando o início de seu ministério; este se desenvolve na Palestina
setentrional, na região denominada Galileia; ao final, Jesus dirige-se para
Jerusalém, onde passa seus últimos momentos, sendo preso, julgado e morto.
Ao terceiro dia ressuscita.
Cada uma dessas obras tem o que lhe é peculiar, ao que Mateus e Lucas têm um volume
maior de material29. Quanto à distância, há consideráveis diferenças entre Mateus e Lucas,
bem como entre Marcos e os outros dois. Portanto, por conta da relação de semelhanças e
diferenças entre esses evangelhos, os estudiosos buscaram respostas para o que se
convencionou chamar de questão sinótica.
Os estudiosos dos evangelhos, nos últimos duzentos anos, vêm buscando muitas repostas para
essa questão. Atualmente, a que tem tido maior adesão, e se impõe por sua razoabilidade no
campo da pesquisa bíblica, é a chamada Teoria das Duas Fontes. Ancorado nesta teoria que a
maioria dos pesquisadores tem desenvolvido seus estudos aplicados a essas obras. Vale
ressaltar que, outras teorias se propuseram a responder à questão ou às questões30 sinóticas.
29
30
Mateus contém vinte e oito capítulos, Lucas vinte e quatro, enquanto Marcos apenas dezesseis capítulos.
Cason, Moo e Morris (1997, p. 31 - 43) faz uma sucinta abordagem sobre “as principais soluções”.
33
Apesar de já no segundo século d.C. Taciano ter combinado os quatro evangelhos no que
chamou de Diatessaron, e Agostinho, cerca de 400 d.C., ter escrito um tratado chamado de A
Harmonia dos Evangelhos (De Consensu Evangelistarum) - no qual afirma que Mateus foi o
primeiro evangelho -, na ordem que aparece no cânon, Marcos é apenas um resumo de
Mateus. No entanto, há algum tempo, os estudiosos vêm discordando dessas ideias
dominantes nos estudos neotestamentários até o século XIX. Esses debruçaram
profundamente nessa relação entre os evangelhos para ter a determinação desses e de outros
elementos supracitados.
O rompimento com a tradição de Agostinho dá-se, formalmente, com a publicação do artigo
de Karl Lachmann, em 1835, intitulado A Ordem da narração nos evangelhos sinóticos (De
Ordine Narrationum in Evangeliis Synopticis) (apud FERREIRA 2006, p. 30), que assegura
ser impossível concordar com a opinião vigente de que Marcos fizera uso de Mateus e Lucas.
Do contrário, ao fazer a comparação minuciosa em relação à ordem dos acontecimentos dos
três evangelhos, ele observou que Mateus e Lucas usaram o mesmo material presente em
Marcos. A ordem seguida por ambos é muito semelhante, contudo, ao se distanciar deste, a
descrição feita por eles não é correspondente. A partir disso, Lachmann concluiu que os três
utilizaram uma fonte anterior a eles, oral ou escrita, e que Marcos foi bem mais fiel a tal fonte.
Diante disso, ele percebeu que Marcos é detentor de uma tradição mais antiga que a dos dois
outros; o que mudou o rumo das pesquisas nesse campo, tendo-se Marcos como o foco.
C.H. Weisse e C.G. Wilke, em 1838, ampliaram as conclusões de Lachmann e asseguraram
que Mateus e Lucas têm uma fonte em comum, Marcos. Weisse foi mais além e afirmou que,
dadas as diferenças entre Mateus e Lucas em relação a Marcos e, por outro lado, das
semelhanças entre aqueles dois, Mateus e Lucas podem ter usado uma fonte em comum,
chamada de fonte Q, - acredita-se derivar da primeira letra da palavra alemã Quelle, que
significa fonte – que se diz ser um documento hipotético que pode ter contido ditos
(aforismos) de Jesus sem, necessariamente, descrição narrativa (HENDRIKSEN, 2001).
Ademais, B. H. Streeter fez uma contribuição complementar importante a essa teoria, afirmou
haver mais duas outras fontes, uma M, usada apenas por Mateus; e outra L, usada apenas por
Lucas. Ou seja, desenvolveu-se a partir da Teoria das Duas Fontes, transmutando-se para a
hipótese das Quatro Fontes, uma tentativa de explicar a origem dos evangelhos por meio do
que ficou conhecida como Crítica das Fontes, “que focaliza a maneira como unidades
34
literárias diferentes foram reunidas para constituir os evangelhos” (CARSON; MOO;
MORRIS, 1997, p. 21).
A Teoria das Duas Fontes vem somar ao argumentar que o Sermão do monte de Mateus (5-7),
guardadas as adaptações, é o mesmo chamado de Sermão da planície de Lucas (6, 20 – 7, 1),
sendo que Mateus e Lucas utilizaram uma mesma fonte chamada Q, da qual fez suas
adaptações para a redação dos sermões (BROOKS, 1992).
2.4.2 AUTORIA, DATAÇÃO E LOCAL DE AUTORIA
A autoria do Evangelho de Mateus não tem sido simples de se determinar, pois a tradição
cristã, os pais da Igreja, historicamente, defende que Mateus, apóstolo, é o autor da obra que
leva seu nome, o que foi questionado bastante nos últimos séculos. Boa parte dos estudiosos
que questiona a autoria acredita que essa obra teve circulação anônima e que o título
Evangelho Segundo Mateus não faz parte do autógrafo. Portanto, assegura-se que o mesmo
foi afixado em algum momento do segundo século (125 d.C.).
Contudo, o consenso dos estudiosos a respeito de esse evangelho ter sido anônimo foi atacado
por Martin Hengel em sua obra Studies in the Gospel Mark (apud CARSON; MOO;
MORRIS, 1997, p. 73). Ele fez uma pesquisa com a finalidade de saber como as obras
circulavam no mundo antigo, percebendo, portanto, que os títulos eram necessários para se
identificar uma obra cuja referência era feita. Somado a esses argumentos, existem muitos
outros de importantes estudiosos, girando em torno de vários outros pormenores, inclusive da
afirmação das polêmicas palavras31 de Papias (EUSEBIO, 2002) a respeito da autoria ter sido
de Mateus.
Prefere-se adotar nesse trabalho a postura que, em relação à questão da autoria, não se pode
chegar a uma conclusão definitiva, porque os dois lados têm muitos argumentos razoáveis, o
que divide muitos especialistas em várias questões. A maioria dos estudiosos considera que o
31
“Mateus ordenou as sentenças em língua hebraica, mas cada um as traduziu como melhor podia” (EUSÉBIO,
2002, III, 39, 16, p. 72). “O que diz respeito diretamente a Mateus é reconhecidamente difícil de traduzir,
conforme mostrado aqui. “Mateus [...] (synetaxeto, ‘compôs?’, ‘compilou?’, ‘dispôs [de forma organizada]’?)
[...] (ta logia, ‘as declarações’?, ‘o evangelho’?) em [...] (Hebraïde dialektõ, na ‘língua hebraica [aramaica]’?, ‘o
estilo hebraico [aramaico]’?), e cada um os [...] (hermeneusen, ‘interpretou’?, ‘traduziu’?, ‘transmitiu’?) da
melhor forma que pôde” (CARSON; MOO; MORRIS, 1997, p. 75).
35
que se pode afirmar de forma mais contundente é apenas que quem deve ter escrito o
evangelho fora um judeu (FERREIRA, 2006, p. 34), sendo que, para boa parte desses
eruditos, é possível não ter sido Mateus discípulo, mas talvez outro Mateus. Sendo assim, não
se tem grande problema em chamar de Mateus o autor do evangelho.
Quanto à datação do evangelho de Mateus, ela não é menos complexa, quiçá, mais complexa,
do que a questão da autoria. Isso porque a determinação da data de escrita do mesmo depende,
em muito, do ponto de vista assumido quanto à autoria. Por outro lado, a grande maioria dos
pesquisadores aponta que o evangelho de Mateus foi escrito por volta de 80 a 100 d.C. e não
menos que isso (Ferreira, 2006, p. 36). Porém, vale ressaltar que, alguns estudiosos como
Carson, Moo e Morris (1997) apresentam argumentos razoáveis que, de certa maneira,
mudam atualmente um pouco o quadro do consenso em relação a essa questão e argumentam
em favor de uma data anterior a 70 d.C. Por seu turno, como boa parte dos estudiosos
assegura que nenhum dos argumentos é conclusivo, é pertinente adotar a posição da maioria,
portanto, de 80 a 100 d.C.
Quanto ao local de autoria, Ulrich Luz (1993, v. I, p. 105) apresenta algumas razões em favor
de ter sido Antioquia a cidade onde o Evangelho de Mateus fora escrito. Ele mostra que esse
evangelho teria de proceder de uma grande cidade com facilidade de comunicação para
melhor difusão do mesmo, como o foi; o fato de nessa cidade ter havido muitos judeus,
homens bem letrados, é outro argumento; bem como as tradições petrinas32 (Mt 16. 17-19)
que podem apontar para Antioquia. Ainda assim, ele mesmo assegura que não é conclusivo o
local da autoria ser em Antioquia.
A Galileia tem sido também apontada por influentes pesquisadores como Anthony J.
Saldarine (1992, p. 26 apud FEREIRA, 2006, p. 39) e J. Andrew Overman (1999, p. 27-29
apud FERREIRA, 2006, p. 39) como um possível local.
As duas propostas mais razoáveis para o local em que evangelho de Mateus foi escrito se situa
entre a Galileia e a Antioquia. Quanto a isso, Ferreira (2006) assegura que essa obra tem a
favor dela boas razões para ter sido escrita em algum ponto entre a Galileia e a Antioquia,
sem necessariamente ter a necessidade de determinar um local preciso.
Isso se justifica dada à natureza itinerante dos discípulos comissionados por Jesus (Mt 10 e
28) para a proclamação do evangelho. “Esses discípulos estavam viajando constantemente [...]
32
Referente ao apóstolo Pedro.
36
Galileia e Antioquia eram somente dois pontos fixos dentro de um grupo de congregações,
unidas por missionários que estavam em constante movimento” (SEGAL, 1991, p. 27, apud
FERREIRA, 2006, p. 40). Portanto, aceita-se aqui que o evangelho foi escrito num ponto
entre as duas regiões.
2.5 UM OLHAR SOBRE A PESQUISA EM MATEUS E SEU GÊNERO LITERÁRIO
Ferreira (2006) faz um panorama da pesquisa acadêmica no evangelho de Mateus focando a
Europa e os Estados Unidos, lugares onde os trabalhos mais importantes no campo bíblico
foram desenvolvidos para então situar seu trabalho que, por sua vez, busca, também, uma
definição do gênero literário de Mateus.
Ferreira (2006) mostra como as pesquisas foram sendo desenvolvidas ao longo dos séculos
desde a proposta do método Histórico-Literário33, que tem sua ancoragem no método
chamado Histórico-Gramatical, proposto pelo reformador João Calvino, no século XVII, cujo
objetivo era estudar o texto bíblico levando em consideração o contexto histórico descrito
pelo texto e sua organização gramatical.
Junto com os novos conceitos de ciências naturais, advindas da influência do rompimento da
filosofia metafísica por meio de Emmanuel Kant, que passa a influenciar os métodos de
pesquisas históricas, surgiu, então, uma nova forma de investigar o passado por meio de uma
análise crítica e criteriosa das fontes, ou seja, dos documentos históricos (FERREIRA, 2006),
influenciando, dessa maneira, a pesquisa no campo bíblico que passa a considerar a bíblia
como outro livro qualquer, tendo a razão humana como critério de avaliação. Assim, passouse a questionar a visão ortodoxa a respeito das Escrituras, introduzindo o termo crítica ao
estudo da bíblia, vindo a surgir o método Histórico-Crítico.
33
Centra-se em descrever o momento histórico em que o texto foi composto ou mesmo em que viveram os
primeiros cristãos.
37
É a partir do método Histórico-Crítico34, desenvolvido inicialmente na Alemanha, e de sua
metodologia que vão surgir os outros métodos, sempre com o objetivo de reconstrução
histórica: Crítica das Fontes, Crítica das Formas35 e Crítica da Redação36.
A teoria literária com objetivo especificamente literário surgiu bem posterior às abordagens
literárias dos textos bíblicos já mencionados. A aplicação da teoria literária de forma
específica ao texto bíblico deu-se a partir da publicação e influência do livro: Mimeses: a
representação da realidade na literatura ocidental, de Erich Auerbach, publicado na
Alemanha, em 1946 (apud FERREIRA, 2006). Essa obra, em dois de seus capítulos, faz uma
comparação das narrativas do Antigo Testamento com as de Homero e descreve de forma
realista, em oposição ao estilo retórico clássico, figuras dos evangelhos provindas do
cotidiano. Por conseguinte, houve a interação do the new criticism com os estudos
escriturísticos a partir da ênfase de Auerbach dada às estratégias pelas quais o texto constrói
seu sentido.
Assim sendo, o enquadre de Mateus como Gênero Literário biográfico greco-latino está
situado no âmbito da Teoria Literária, conforme apresenta Ferreira (2006). A noção de
biografia greco-latina não se refere à descrição da vida de alguém de seu nascimento à morte
como se faz na biografia moderna. Mas refere-se basicamente ao fato de um autor selecionar
determinadas ações e falas de uma pessoa importante para certo grupo e época e reuni-las em
uma obra, cujo protagonista seja o biografado. Sendo assim, constrói-se uma narrativa em que
tudo gire em torno da personagem principal, objetivando a exaltação de sua vida.
Compreende-se que se faz necessário apresentar as razões pelas quais se pode analisar o
Sermão do monte como objeto literário - trabalho este que oferece fundamento mais sólido
para futuros trabalhos - bem como tentar romper com um velado preconceito em relação ao
34
A palavra alemã recai a ênfase sobre a história, chama-se Geschichte. Contudo na Inglaterra e nos Estudos
Unidos, buscando uma ênfase científica para análise, usa-se o termo crítica em lugar de história apenas
(FERREIRA, 2006, p. 44)
35
Não se abordou em detalhes a Crítica das Formas por não ser uma teoria relevante para o estudo de Mateus.
Assim afirma Bauer apud Ferreira (2006, p. 47): “A crítica da forma, com seu foco na estrutura de perícope
individuais e no contexto de vida nos quais essas perícopes surgiram, apresenta apenas uma pequena
contribuição ao estudo do evangelho de Mateus em sua composição final”.
36
Foi o método mais utilizado e prestigiado no século XX nos estudos dos evangelhos. Esse tem por objetivo
mostrar a posição teológica de cada um dos evangelhos sinóticos; tenta entender por quais critérios o escritor
selecionou e organizou seu material, bem como, compreender como ele trabalhou os fragmentos da tradição
enquadrando-os no contexto de seu evangelho e entender qual é a tendência teológica e intenção estrutura tal
evangelho de modo geral.
38
texto bíblico dentro da academia brasileira, o que justifica a necessidade de explicar
determinadas questões referentes ao texto em estudo.
2.5.1 MATEUS COMO BIOGRAFIA : O GÊNERO LITERÁRIO
As teorias apresentadas anteriormente influenciaram na busca da definição do gênero literário
de Mateus, ainda mais quando se diz respeito ao gênero biográfico greco-romano. Um dos
principais defensores no Brasil do evangelho de Mateus como gênero biográfico grecoromano é Ferreira (2006). Assim, esse trabalho se orienta - no que se refere ao gênero literário
- a partir do trabalho desse pesquisador.
No entanto, é preciso lembrar que historicamente algumas são as propostas de gênero
aventadas para Mateus. A primeira delas intenta compreendê-lo como gênero próprio do
cristianismo, surgido a partir de afirmações de fé das comunidades primitivas cristãs, não
apontando qualquer relação com gêneros da Antiguidade; outra concebe como coletânea de
leituras litúrgicas semelhantes às praticadas nas sinagogas; por fim, há os que defendem o
gênero desse evangelho como biografia greco-romano e suas variantes.
Por ser julgada improvável pelas pesquisas contemporâneas, a segunda proposição não é
digna de ser considerada nesse momento. Por ora, a primeira, que concebe os evangelhos
como gênero inédito do cristianismo, tem os defensores de Mateus como Livro da origem
[genealogia] de Jesus ou como Evangelho, no que se refere ao gênero.
A identificação de Mateus como genealogia de Jesus é natural, pois, ao se procurar identificar
o tipo de literatura a que pertence o evangelho, é lógico que se comece pelas indicações
iniciais do texto: “Livro da genealogia de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abraão” (Mt
1.1). Por conta disso, alguns intentaram mostrar que a primeira frase (livro da genealogia
[ge,nesij] de Jesus Cristo) representa o título do livro todo que narraria a história de Jesus ou
apresentaria sua origem. O argumento é que há a correlação com o Gênesis, que, na versão da
Septuaginta, em grego, é traduzido como ge,nesij, assim como este narra a criação de tudo, o
evangelho apresentaria a nova criação por meio de Jesus.
39
Esse e outros argumentos interessantes são apresentados, contudo Ferreira (2006, p. 95)
argumenta:
É mais lógico e menos problemático aceitar que o primeiro versículo de
Mateus se estende até 1.17, apresentando unicamente seus ascendentes, ou a
1.25, incluindo o relato de como sua mãe ficou grávida sendo virgem e da
reação de José, esposo de Maria, diante de tal situação. Sendo assim, as
primeiras palavras do livro não fornecem indicações a respeito do gênero
literário.
Há também os que consideram o gênero de Mateus como Evangelho. Vale ressaltar que esse
termo (evangelho, euvagge,lion) tem uso no meio cristão, inicialmente, para designar o
conteúdo da pregação dos cristãos primitivos37. Depois de algum tempo, com o objetivo de
fazer vivos os ensinos de Jesus, alguns livros vieram a ser escritos e designados como
evangelhos (Marcos, Mateus, Lucas e João)38. Portanto, houve uma ampliação do sentido
primeiro dessa palavra.
Como já se viu anteriormente, não são todos os manuscritos que têm o título evangelho
segundo Mateus, ou apenas segundo Mateus, que pode ter sido afixado no segundo século
d.C. Contudo, pelo fato de o livro de Marcos trazer no primeiro versículo a frase: “Princípio
do evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus” (1.1), isso contribuiu para se designar os
escritos a respeito da vida de Jesus sob o título de evangelhos. Assim, por os quatro
evangelhos neotestamentários testemunharem um mesmo evangelho (de Jesus Cristo), no
sentido específico da palavra, e em virtude de seu conteúdo, foram todos designados como
evangelho, no que se refere ao gênero. Quanto a isso, Ferreira (2006, p. 98) discorre:
A partir desse momento, atribuiu-se o designativo “evangelho” a um grupo
de livros. O que isso significava? Que tais obras eram entendidas como
compartilhando de uma mesma forma e de um mesmo conteúdo, o que as
levava a pertencerem a um “gênero literário”, ao qual, mesmo que não
fizessem parte do cânon, somaram-se os chamados evangelhos apócrifos39
(grifo do autor).
37
Exemplo: “Irmãos, venho lembrar-vos o evangelho que vos anunciei [...]” (1 Coríntios 15.1). A designação
evangelho era corrente nas cartas do apóstolo Paulo entre os anos 50 a 70 d.C.
38
Estes e outros que não foram incorporados aos canônicos do NT.
39
“A distinção genérica, suficiente para os propósitos deste trabalho, entre o grupo dos quatro evangelhos que
constam no Novo Testamento e os apócrifos tem como critério a canonicidade ou não do texto. John Dominic
Crossan apresenta uma tipologia mais específica ao falar de “Evangelhos de sentenças”, “Evangelhos
biográficos” (representados pelos quatro evangelhos canônicos), “Evangelhos discursivos” e “Evangelhos
biográfico-discursivos” (2004, p. 70-75)” (FERREIRA, 2006, p. 98).
40
Como não se intenciona dar pormenores desta corrente, é preciso que se diga que a
designação de Mateus como evangelho traz as problemáticas apresentadas por Ferreira (2006,
p. 101):
A definição dos evangelhos como literatura própria do cristianismo nascente
sem conexões com outras formas literárias parece ser uma conseqüência
lógica do diminuto papel atribuído nesse processo aos escritores, segundo os
proponentes de tais métodos. Para eles, as discrepâncias, os problemas
históricos e outras dificuldades com os textos são atribuídos à inabilidade
dos evangelistas que, como coletores de tradições, foram incapazes de
compor um texto coeso. Tal abordagem concebia os evangelhos como uma
colcha de retalhos composta por diversos fragmentos textuais de
procedências as mais variadas. Na realidade, eles eram tidos como baixa
literatura, longe de qualquer comparação com os escritos da cultura literária
da época.
Ou seja, existem alguns acontecimentos narrados nos evangelhos que não se explicam de
forma satisfatória como simples representação da realidade, ou como um amontoado de
fragmentos que rementem à forma de vida comunitária dos primeiros cristãos. Apesar de não
se negar que os evangelhos apresentam dados da realidade social, Ferreira (2006, p. 109) é
contundente em afirmar que “seu objetivo também é descrever o mundo ideologicamente com
a intenção de levar os leitores a aceitarem os valores ali expressos em oposição àqueles da
sociedade”. Portanto,
[...] atribuir a Mateus o designativo “evangelho”, tido como literatura própria
do cristianismo que propõe manifestar o querigma de Jesus Cristo, entendido
como a proclamação da vida e experiências das comunidades cristãs
nascentes com o ressurreto, expressas em um texto formado por fragmentos
com frágeis conexões, é insuficiente para definir os propósitos do gênero
literário utilizado pelo escritor do evangelho.
Sendo segmentos de fragmentos, esses compõem um todo com unidade de sentido.
Dessa maneira, a alternativa de Mateus como biografia greco-romana tem fortes argumentos
para sustentar tal tomada de posição. Vale ressaltar que não somente Mateus pode ser
enquadrado nessa categoria, mas também os outros três evangelhos canônicos.
Com um olhar atento aos evangelhos, pode-se perceber que Jesus Cristo sobressalta como
personagem principal, tendo em vista que o foco é centrado nele durante toda a narrativa.
Cenários, indicações cronológicas e personagens giram em torno da personagem que é o
centro da história. Os locais aparecem como espaço onde Jesus atua; de igual modo, as
indicações de tempo fazem com que os leitores percebam a dinâmica de seu ministério, e,
somente, em relação ao protagonista que as demais personagens ganham consistência.
41
Observações generalistas como essas levaram vários estudiosos, no século XIX e no início do
XX, a começar a pensar os evangelhos como biografias de Jesus Cristo. Esses estudiosos, por
estarem influenciados por uma visão positivista da história, acreditavam ser possível a
reconstrução factual de acontecimentos passados, por sua vez, trabalhavam com a ideia de
biografia como descrição histórica da vida de um indivíduo. A partir disso surge então a
tentativa da reconstrução da vida do Jesus histórico.
Uma das objeções a qual surgiu foi quanto ao gênero biografia empregado a Mateus. Isso
porque os elementos que permitem identificar uma obra como sendo uma biografia não são
explícitos no livro de Mateus. Os elementos colocados em questão, e que são escassos nesse
evangelho, são: a indicação do ano do nascimento de Jesus, a localização exata de sua
sepultura, bem como a falta de indícios que permitam identificar a duração de seu ministério.
Além dessas, há ainda pouca informação sobre sua vida pessoal. Não se tem explicação em
relação ao lapso de tempo que há entre as narrativas da infância até seu batismo, acontecido
na idade adulta (Mt 3. 13-17). Não há referência específica sobre sua formação educacional e
intelectual, semelhantemente, não se descreve seus hábitos e costumes. Levando-se em
consideração também de que dados cronológicos e geográficos40 dificultariam que se
enquadrassem o evangelho como biografia moderna com preocupações históricas. E algumas
outras questões referentes a isso ficam sem respostas.
Porquanto, essas questões não respondidas dificultaram que se aceitassem Mateus como
biografia conforme proposta no século XIX e no início do XX. Contudo, Ferreira (2006, p.
114) argumenta que “as dificuldades para o recebimento de Mateus como biografia derivam
mais das ferramentas e dos objetivos com os quais se abordam o texto do que da própria
categoria”. Consequentemente, torna-se inconcebível Mateus como biografia moderna.
Diante desse impasse, U. Luz (1993, v. I, p. 46) afirma:
Hay que distinguir una noción general de ‘biografía’, entendida como
descripción de la vida de una persona que empieza con el nacimiento y
ternima con la muerte, de lo que se entendía en la antiguedad por el género
‘biografía’ (Bíos)41.
40
Os vários cenários são colocados sem maiores detalhes: Mt. 3. 13; 4.1; 5.1; 4.18; 12.9; 9.10, 28; 13.2; 20.17;
9.9, 9.27; 12. 15; 13.53; 19.15.
41
“Há que distinguir uma noção geral de ‘biografia’, entendida como descrição da vida de uma pessoa que
começa com o nascimento e termina com a morte, do que se entendia na antiguidade por gênero ‘biografia’ (=
Bios)” (Tradução nossa).
42
Desse modo, o questionamento que deve ser feito, assegura Ferreira (2006, p. 115), é se, de
fato, o gênero está sendo entendido de maneira correta. Sendo assim, qual o significado de
biografia para os escritores e leitores do primeiro século? Por certo, a pergunta é consistente
já que se deve buscar compreender um gênero literário em seu contexto sócio-culturalliterário.
Os contextos cultural e social influenciam o artista na composição de sua obra, bem como seu
leitor. Assim, saber qual o tempo e local em que um texto surgiu, mesmo que não se saibam
com exatidão, é importante. Ou seja, surgiu por volta do ano 85 [?] d.C., destinado às
comunidades cristãs distribuídas em uma região que tem como ponto de referência o Sul da
Galileia, alargando-se até a Antioquia da Síria. O texto foi escrito em grego Koiné, ou seja, o
grego comum da época, “para leitores da parte oriental do Império Romano, os elementos
contidos no texto indicam as influências e expectativas do autor e dos leitores desse período e
região” (FERREIRA, 2006, p. 117).
Apesar de Roma dominar social e politicamente, a cultura grega estendeu-se por todo o
Império Romano. Tanto é que os evangelhos foram escritos em grego e assim lidos na região.
Assim Ferreira (2006, p. 117) lembra que
[...] a Palestina, bem como a Província da Síria, cuja capital nos tempos
neotestamentários era Antioquia, faziam parte do Império Romano não
apenas territorialmente, mas participavam, em maior ou menor grau, de suas
leis, política e cultura. A helenização dessas áreas era um fato.
Até mesmo as sinagogas, onde eram estudados os textos sagrados em hebraico, sofreram
influência da língua grega. Tanto é que Jerusalém possuía Sinagoga de helenistas, na qual o
texto veterotestamentário era lido na versão grega, a Septuaginta.
A cultura helenística foi utilizada como elemento unificador do império. Ao que a
educação/cultura helenista, ou seja, a Paidéia estava ligada à construção de ginásios que
serviam como escolas espalhadas por diversas cidades do Império.
[tinha-se na época] a clara intenção de promover uma educação padrão que
colocasse os membros do império em um mesmo nível cultural. Obviamente
a educação não era um fim em si mesmo, mas uma forma de divulgação dos
elementos da cultura, política e governo romanos indicativos de sua
superioridade e soberania sobre os povos. Desse contexto participaram,
como visto acima, os judeus palestinienses, cristãos ou não, bem como os
judeus e gentios antioquenos, cristãos ou não. Jerusalém e demais cidades da
Palestina, assim como em maior grau Antioquia, estiveram envolvidas
integralmente nesse processo. Uma das evidências da instrução helênica em
Jerusalém e Antioquia é que, sabe-se hoje, ambas possuíam ginásios. É
43
claro, portanto, que o evangelho de Mateus, mesmo provindo com muita
probabilidade de um escritor e dirigido a uma audiência ambos judeus, por
ter surgido em um contexto helenista, em meio a pessoas que não apenas
liam o grego, mas que conheciam convenções da literatura grega, deve ter
recebido algum tipo de influência sociocultural em sua produção
(FERREIRA, 2006, p. 123).
Disso se diz que o evangelista utilizou-se dos meios disponíveis na época por seu auditório
para comunicar-se, no caso, a biografia greco-latina. Esse termo só foi cunhado a partir do
século V d.C., antes era usado pelos gregos bios e pelos romanos de vita para essa literatura,
tendo seu surgimento aproximadamente nos séculos V e IV a.C.
Não se pretende discutir muitos detalhes do gênero literário greco-romano, mas é preciso
situar a discussão porque algumas características desse gênero são importantes para
compreender a intenção de Mateus na produção de seu evangelho e qual a visão que se toma
nesse trabalho para tratar Jesus como personagem do mesmo.
A pesquisa feita por Ferreira (2006) é, por demais, importante no estudo do evangelho de
Mateus enquanto literatura e dá um suporte valioso para o estudo argumentativo deste. Isso
porque ele mostra que esse evangelho tem por fonte principal o evangelho de Marcos ou
comum a este, mas que foi intencionalmente retrabalhado de forma que os textos narrativos e
discursivos cedessem a palavra a Jesus Cristo, o protagonista do livro. Essa dinâmica
promovida por Mateus permite à personagem a comunicação direta com seus leitores.
O evangelho de Mateus apresenta, como mensagem central, a presença de
Jesus Cristo, Emanuel, entre os seus seguidores. O objetivo do texto é
explicitar como o Jesus ressurreto pode influenciar e dirigir suas vidas e,
mediante técnicas retóricas, atuar sobre os leitores do texto (FERREIRA,
2006, p.19).
Ferreira (2006, p. 20) assegura que “o evangelho será compreendido adequadamente à medida
que for considerado o gênero literário a que pertence”. Desse modo, é importante entender
que, ao considerar Mateus como parte do gênero biográfico greco-latino, isso lhe dá um tom
altamente retórico, justamente porque a ênfase recai sobre a personagem central. Assim “o
texto é libertado das amarras da interpretação literalista e historicista e reconhecido como obra
literária suscetível de receber a aplicação de princípios teórico-literários” (FERREIRA, 2006,
p. 20).
O narrador nesse gênero, e especificamente na obra supracitada, opta por ocupar um papel
secundário diminuindo sua presença e atribuindo destaque às falas e às ações do protagonista.
44
Com essa estratégia, o texto perde em definição e explicitação, já que a função do narrador é
dar as devidas orientações ao leitor. Por outro lado, a obra ganha em comunicabilidade pelo
que convida o leitor de forma mais direta a interpretar as palavras e ações de Jesus, o que
possibilita a interação de modo mais profundo com a narrativa.
Faz-se necessário entender que a biografia greco-latina é de caráter ficcional e assim o
evangelho de Mateus foi escrito inserido nessa categoria, o que evita alguns equívocos em
razão de querer dar a esse livro o valor de documento historiográfico. No entanto, isso não
atrapalha em confirmar o valor dessa obra enquanto documento histórico; ela o é, e foi escrita
segundo o gênero biográfico. “Ao indicar o gênero, não se está querendo negar sua
historicidade, mas entender que ela é trabalhada a fim de gerar reação em seus leitores”
(FERREIRA, 2006, p. 147).
Em relação a isso, a maioria dos teólogos entende que os textos dos evangelhos devam ser
interpretados sob o prisma de que os autores intentavam comunicar verdades teológicas, o que
justifica muitas vezes a não preocupação com a organização cronológica ou até mesmo
geográfica de determinados acontecimentos em alguns dos evangelhos. Ou seja, a organização
das cenas deu-se objetivando uma determinada mensagem e, por sua vez, buscando evidenciar
o protagonista.
Para se entender quais as técnicas ou os recursos argumentativos utilizados por Jesus, o
evangelho de Mateus é singular, pois coloca o leitor como plateia de uma peça teatral em que
a personagem principal desenvolve seu papel. Desse modo, pode-se assistir as ações, as falas,
os discursos, os embates e os milagres de forma que a personagem central do drama se
apresenta para seus espectadores diretivamente. Assim, nessa biografia mateana, pode-se
conhecer, de forma singular, o caráter de Jesus por suas ações e palavras, possibilitando
analisar melhor alguns de seus discursos, no caso, o Sermão do monte.
Entender que o evangelho de Mateus foi escrito com a intencionalidade pré-estabelecida de
apresentar Jesus - a personagem central - como o Emanuel e de que, para tanto, o evangelista
construiu seu texto selecionando acontecimentos, discursos e falas, de forma geradora de
convencimento para um determinado auditório/povo, no caso os judeus, é, deste modo, aceitar
que essa obra seja altamente conativa com um forte poder retórico capaz de gerar
convencimento/persuasão nos leitores do século I d.C. Assim, com a utilização da teoria
literária, pode-se reconhecer que a estrutura do texto, bem como a identificação de estratégias
45
literárias nele presentes, são poderosas ferramentas de convencimento/persuasão voltadas para
os leitores (FERREIRA, 2006). Por conseguinte, partindo-se disso, pode-se, com maior
eficácia, fazer não mais, simplesmente, um trabalho com as teorias literárias ou teológicas no
centro, mas sob o ponto de vista argumentativo, tentando compreender como se dá a
argumentação dessa personagem principal em seu discurso.
46
3
ARGUMENTAÇÃO RETÓRICA NO SERMÃO DO MONTE
3.1 A RETÓRICA: DEFINIÇÃO E ORIGEM
Definir o termo retórica não é uma tarefa simples, pois os seus sentidos são diversos e, por
vezes, divergentes. O senso comum o entende de maneira pejorativa, como sinônimo de algo
falso, artificial, enganoso, empolado etc. Os acadêmicos, no início dos anos de 1960, ao
redescobrirem a retórica, logo cuidaram de devolver certa nobreza ao vocábulo, apesar da
falta de consenso quanto ao seu sentido.
Na ocasião havia duas posições extremas relacionadas ao sentido do vocábulo retórica: para
Chaïm Perelman e L. Olbrechts-Tyteca a retórica é a arte de argumentar com o objetivo de
convencer; já para Morier, G. Genette, J. Cohen e do Grupo MU ela constitui-se como o
estudo do estilo, ou especificamente das figuras, sendo propriamente aquilo que torna literário
um texto (REBOUL, 2004).
A retórica clássica, que nasce com Aristóteles no quarto século a.C e vai até o século XIX
d.C, caracteriza-se pela junção do que parece extremo nas duas posições acima. Destarte, ela
concebe “a articulação dos argumentos e do estilo numa mesma função” (REBOUL, 2004, p.
VIII). É a partir de elementos dessa tradição que se pode recorrer, de maneira mais estável,
para definir a retórica.
Como não poderia deixar de ser, Aristóteles ([1354] 2007, p. 23) emite sua definição clássica
de retórica: “A Retórica pode ser definida como a faculdade de observar os meios de
persuasão disponíveis em qualquer caso dado”. Ele considera essa arte (techné)42 “como o
poder de observar os meios de persuasão em quase todos os assuntos que nos apresentam”
(2007, p. 23).
Por seu turno, Reboul (2004) define retórica como a arte de persuadir/convencer pelo
discurso, podendo ser utilizada para diferentes fins, sempre buscando a adesão do auditório.
No intuito de melhor compreender a retórica em princípio, ou seja, como ela pode servir aos
42
Quanto ao emprego desse termo Olivier Reboul (2004) discorre: “Este termo [...] é ambíguo, e até duplamente
ambíguo. Em primeiro lugar, porque designa tanto uma habilidade espontânea quanto uma competência
adquirida através do ensino. Depois porque designa ora uma simples técnica, ora, ao contrário, o que na criação
ultrapassa a técnica e pertence somente ao “gênio” do criador. Em qual ou em quais desses sentidos se está
pensando quando se diz que a retórica é uma arte? Em todos” (REBOUL, Olivier. Introdução à retórica. São
Paulo: Martins Fonte, 2004, p. XVI).
47
que a utilizam, faz-se necessário uma breve abordagem sobre suas funções, na perspectiva
apresentada por Reboul (2004). A primeira delas é decorrente de sua definição: função
persuasiva: argumentação e oratória. Diz respeito aos meios racionais (argumentação) e
afetivos (oratórios) como elementos indissociáveis para se persuadir, até porque “em retórica
razão e sentimentos são inseparáveis” (REBOUL, 2004, p. XVII).
A segunda é a função hermenêutica. Esta diz respeito ao trabalho de interpretação que o
orador precisa fazer face ao seu interlocutor, bem como frente ao seu discurso, seja este
manifesto ou latente. A outra função é chamada de heurística, a qual se caracteriza pela
função de descoberta, no sentido de que se arrazoa para encontrar ou inventar uma solução
razoável para alguns problemas que são apresentados ao orador.
A última função apresentada por Reboul (2004) é a pedagógica. Segundo ele, a retórica fazia
parte da cultura geral, ou da própria escola, sendo assim, “gramática, retórica e dialética não
passavam de partes de um mesmo todo que se esclerosaram quando se separaram” (REBOUL,
2004, p. XXI). Apesar dessa desarticulação das disciplinas, e a retórica ter sido
desprestigiada, ela ainda continuou na escola, contudo destituída de sua unidade interna e
coerência, ou seja, dissolvida em outras disciplinas.
Por certo, isso não aconteceu de um dia para o outro, nem aconteceu simplesmente por conta
do uso da retórica por parte da religião cristã, como sugerem alguns, mas foi um processo
histórico que contribuiu para o declínio dessa arte. Porquanto, para se entender um pouco
mais é preciso voltar à história da retórica.
3.1.1 DA ORIGEM AO DECLÍNIO DA RETÓRICA
A retórica é anterior à sua história e, apesar de poder encontrar retórica entre outros povos
antigos, pode se afirmar que essa arte é uma invenção dos gregos. Isso porque eles inventaram
tanto a técnica retórica, que “possibilitava defender qualquer causa e qualquer tese”
(REBOUL, 2004, p.1), quanto a teoria da retórica, que visava refletir sobre tal disciplina.
A retórica nasce na Sicília grega, aproximadamente, em 465 a.C., tendo uma origem
judiciária, em um contexto onde os cidadãos despojados pelos tiranos persas requeriam seus
48
bens. Ademais, os conflitos judiciários eram incontáveis, por conta da guerra civil em que
estavam. Quanto a isso, Reboul (2004, p. 2) afirma que “numa época em que não existiam
advogados, era preciso dar aos litigantes um meio de defender sua causa”. E é dessa forma
que surge a retórica como “criadora de persuasão” Reboul (2004, p. 2) atrelada a uma
necessidade concreta da vida cotidiana.
Dada a estreita relação entre a Sicília e Atenas, esta de imediato adotou a retórica. É nesta
cidade da antiga Grécia que a retórica firma-se, por volta de 427 a.C., época, também, em que
a retórica tem uma nova fonte: estética e literária, sendo Górgias43 apontado como o principal
responsável por isso44. Por esta razão, ficou conhecido como o orador que tinha a prosa “tão
bela quanto a poesia” (REBOUL, 2004, p. 6), mas também como um dos primeiros sofistas.
Os primeiros sofistas eram professores itinerantes que cobravam um valor estimado por suas
aulas de filosofia e eloquência, preenchendo uma necessidade da época em que não se tinha
uma formação além da elementar, porquanto eles inovaram com um ensino intelectual
consistente, destituído de finalidade religiosa ou profissional, com o objetivo maior de ensinar
a cultura geral. Assim, nessa categoria mais técnica de sofistas estão Górgias, Pitágoras,
Pródico, Trasímaco, Hípias, Crítias, dentre outros (REBOUL, 2004, p. 6).
Em Protágoras45 (486 – 410 a.C), a retórica e a sofística se unem plenamente. Ele foi o pai do
relativismo pragmático e dono da célebre tese: “O homem é a medida de todas as coisas, as
coisas são como aparecem a cada homem; não há outro critério de verdade” (REBOUL, 2004,
p. 8).
Contra sofistas como Protágoras, Platão e Aristóteles tiveram de empenhar muitos esforços, o
que mostra a capacidade intelectual que eles tinham. Deste modo, apesar de tudo que se tem
contra os sofistas46, Reboul (2004, p. 9) assegura que se pode dizer que eles foram os
criadores da retórica como arte do discurso persuasivo. Destarte, o ensino sistematizado e
global fundado numa visão de mundo proporcionou a criação de elementos de uma riquíssima
retórica encontrados mais tarde em Aristóteles.
43
Siciliano e discípulo de Empédocles, um dos criadores do discurso epidíctico, sendo o mais famoso o Elogio
de Helena.
44
Numa época em que a prosa era puramente funcional restrita a transcrever a linguagem oral e a literatura era
identificada com apenas a poesia (épica trágica etc), Górgias cria uma prosa eloquente com uso de muitas
figuras, comparada à poeisa (REBOUL, 2004, p. 4).
45
Originário da Abdera, na Trácia, professor de eloquência e filosofia.
46
Especialmente contra a não objetividade da verdade, ou seja, o mundo dos sofistas é um mundo destituído de
verdade objetiva, prevalecendo o sucesso do discurso.
49
Aristóteles (384-322 a.C) - nascido em Estagira - foi partícipe da academia de Platão por vinte
anos, dono de um espírito de observação e de sistema e foi também quem repensou a retórica,
integrando-a num sistema filosófico muito diferente daquele dos sofistas. “Aristóteles salva a
retórica, colocando-a em seu verdadeiro lugar, atribuindo-lhe um papel modesto, mas
indispensável num mundo de incertezas e de conflitos” (REBOUL, 2004, p. 27).
Quando não houver outro recurso senão o debate contraditório, a retórica faz parceria com a
dialética e se firma como a arte de encontrar tudo o que contém de persuasivo em um caso.
Para o grande pensador da antiguidade, a dialética é a arte do diálogo ordenado. Contudo, sua
relação com a retórica não é tão simples de se definir.
Em alguns argumentos de Aristóteles ([1354] 2007), a retórica e a dialética parecem dois
termos referentes à mesma disciplina. Contudo, Reboul (2004, p. 35) assegura que “a retórica
é apenas uma ‘aplicação’, entre outras, da dialética; é uma de suas quatro funções.
Inversamente, a retórica utiliza a dialética como um meio, entre outros, de persuadir”, ou seja,
a dialética como um jogo do intelecto utiliza da retórica, esta, por sua vez, como arte da
persuasão, utiliza-se da dialética como instrumento intelectual, dentre outros, capaz de gerar
convencimento.
O sistema retórico impetrado por Aristóteles pode ser decomposto em quatro partes
(invenção; disposição; elocução; ação). São as quatro fases que passam todos os que logram
um discurso, portanto, é preciso buscar compreender sobre o assunto a ser tratado e reunir os
argumentos que vão servir (invenção, heurísis, em grego) ao discurso; ordená-los (disposição,
taxis); redigir o discurso da melhor maneira possível (elocução, lexis); e, por fim, exercitar-se
proferindo-o (ação, hypocrisis) a contento.
Em Aristóteles, pode-se encontrar, de forma organizada, os três gêneros do discurso, cada
qual destinado a seu auditório específico: o judiciário ao Tribunal; o deliberativo à
Assembleia (Senado); o epidíctico aos espectadores de modo geral. Com isso, Aristóteles tem
o mérito de mostrar como o discurso pode ser classificado de acordo com o auditório e a
finalidade pretendida.
Disso Aristóteles depreendeu a necessidade de encontrar argumentos adequados. Deste modo,
ele define três tipos de argumentos com o objetivo de persuadir: no plano afetivo, estão o
ethos - que diz respeito ao caráter assumido pelo orador para inspirar confiança no auditório e o pathos - que se refere às muitas emoções, aos sentimentos, às paixões, que devem ser
50
despertadas pelo orador no auditório por meio de seu discurso; no plano racional, está o
logos47, que diz respeito ao processo argumentativo, ou mesmo, o aspecto dialético da
retórica.
Dessa maneira, pode-se afirmar que é tendo por suporte o sistema aristotélico que a retórica se
desenvolve solidamente, sendo enriquecida por diferentes retores e pensadores, servindo,
portanto, ao longo de séculos aos mais diferentes temas, associando-se à moral, à democracia,
à religião etc. Por conseguinte, como esse trabalho tem como objeto de análise um discurso
religioso, é importante pontuar também que a retórica fez uma grande parceria com o
cristianismo, isso porque essa religião sempre teve em seu objetivo um papel missionário,
propagandista. Sendo assim, ela não pode fugir das polêmicas, ao que recorreu à retórica
como técnica imprescindível aos objetivos da fé propagada.
O livro de suporte à cristandade é a bíblia, que é um livro bastante retórico. Reboul (2004,
p.77) assegura que “não sobejam nela metáforas, alegorias, jogos de palavras, antíteses,
argumentações, tanto quanto nos textos gregos, se não mais?”. Ele diz mais: “a Bíblia era um
modelo, porém mais ainda: um problema. Com efeito, não bastava ser lida, precisava ser
compreendida; e, para interpretá-la, nunca era demais utilizar todos os recursos da retórica”
(REBOUL, 2004, p. 78).
Contudo, apesar da proeminente pareceria entre retórica e cristianismo, alguns acusam esta
religião de contribuir para o declínio dessa disciplina, isso dado que o cristianismo, em algum
momento, “não poderia [...], conviver com a ideia de multiplicidade de premissas, igualmente
aproveitáveis como ponto de partida para a argumentação” (COELHO, 2005, p. XII, XIII).
No entanto, Reboul (2004, p. 79) argumenta que “o cristianismo nada tem a ver com o
declínio da retórica”, pois quem dá o golpe mortal na retórica são as novas ideias do século
XVI, que rompe “o elo entre o argumentativo e o oratório, que lhe davam força e valor”. A
saber, o principal responsável por esse golpe é o racionalismo de René Descartes, século
XVII, que, em seu Discours de la méthode, destrói a possibilidade de argumentação
contraditória e probabilista, lançando ao desprezo a dialética, um dos pilares da retórica.
Assim, o racionalismo apregoou ser o científico a única forma válida de conhecimento,
“capaz de explicar tudo e todos segundo padrões de racionalidade” (COELHO, 2005, p. XIII),
47
Aristóteles, segundo Reboul (2004, p. 49), não utiliza o termo logos como definição estrita, ao que é
empregado para simplificar a explicação referente ao processo argumentativo aristotélico.
51
relegando, portanto, outras possibilidades de conhecimento que não fossem validadas pelo
método científico, ou seja, verossímeis ou contraditórias, a serem descartáveis ou mesmo
inúteis.
Junto ao racionalismo, contra a retórica, levantam-se os filósofos do empirismo inglês, que
diziam que qualquer verdade vem da experiência sensível; bem como os filósofos do
positivismo, que rejeitavam a retórica em nome da verdade científica; e os do romantismo,
que o faziam em nome da sinceridade.
Então, na virada do século XIX para o XX, têm-se a seguinte situação:
A retórica está cientificamente invalidade como método por ser incapaz de
produzir o saber positivo e é, além disso, associada a um grupo clerical
caracterizado por seu antirrepublicanismo, o que leva a sua exclusão do
currículo universitário. [...] A argumentação não foi esquecida, ela foi é
profundamente deslegitimada (PLANTIN, 2008, p. 19, 20).
É assim que se dá o declínio da retórica, contudo, como não se podia deixar de usá-la, como
assegurado acima, ela apenas foi deslegitimada, todavia, essa arte começa por refazer seu
longo caminho de volta à legitimidade a partir da Segunda Guerra Mundial.
3.2 OS ÂMBITOS E O PONTO DE PARTIDA DA ARGUMENTAÇÃO NO SERMÃO
DO MONTE
Após a Segunda Guerra Mundial (1945), os estudos intitulados retóricos ganharam força na
Europa surgindo várias retóricas, como a retórica da imagem iniciada por Roland Barthes no
início da década 1960, bem como a retórica da propaganda e da publicidade e muitos outros
trabalhos em literatura e direito, contudo, essas correntes entendiam a retórica como
meramente uma maneira de conhecer os procedimentos da linguagem literária (REBOUL,
2004, p. 89).
Oposta à retórica literária, nos anos de 1960, surge uma Nova Retórica, que, de fato, resgata a
tradição aristotélica e engrena, em anos posteriores48, como teoria do discurso persuasivo. Os
48
Inicialmente as ideias de Perelman não foram bem recebidas na França, pois o ambiente era dominado pelos
estudiosos da literatura, mas não somente por esse meio, contudo sofreu resistência também dos meios
filosóficos. Assim, o pensamento de Perelman só teve maior acolhimento no fim dos anos de 1970, ainda assim
com restrições, pois seu trabalho foi mais utilizado para desmitificar as manipulações ideológicas do que para
interpretar os autores (REBOUL, 2004, p. 89).
52
responsáveis por isso foram Chaïm Perelman e Lucïe Olbrechts-Tyteca, que haviam dado
início em 1947, na Bélgica, pela Universidade de Bruxelas, pesquisas que resultaram na
publicação da obra intitulada Traité de l’argumentation, la nouvelle rhétorique (Tratado da
Argumentação: a Nova Retórica49), em 1958; uma retórica centrada não mais na elocução,
mas, de fato, na invenção.
O filósofo belga e sua assistente partiram de um problema filosófico na tentativa de
fundamentar os juízos de valor. Eles tentaram responder ao questionamento por demais
pertinente: “O que nos permite afirmar que isto é justo ou que aquilo não é belo? Buscaram,
pois, a lógica do valor, paralela à da ciência, e acabaram por encontrá-la na antiga retórica,
completada, como convém, pela dialética” (REBOUL, 2004, p. 89).
O Tratado da Argumentação ([1958] PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005) é uma
ruptura com a primazia do racionalismo, das ciências dedutivas, que considera como prova o
que é evidente e concebem racionais apenas as demonstrações; e também com o empirismo,
com as ciências experimentais ou naturais, que entende a verdade em conformidade com o
fato sensível tendo-o como prova. Essa ruptura dá-se porque o campo da argumentação, ao
qual se filiam os autores, é do verossímil, do plausível, do provável, desde quando este escape
à certeza do cálculo, asseveram Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 01), porquanto
a Nova Retórica “é a única filosofia que enaltece aqueles que hesitam, refletem e em seguida
modificam o seu curso de ação”, assegura Maneli (2004, p. 19).
A Nova Retórica revive conceitos desenvolvidos nos Tópicos e trabalhados em a Retórica de
Aristóteles e faz a reaproximação da teoria da argumentação à dialética, “concebida pelo
próprio Aristóteles como a arte de raciocinar a partir de opiniões geralmente aceitas”
(PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. II). Ela define o objeto da teoria da
argumentação como o estudo dos mecanismos discursivos que intentam, explicitamente,
conquistar ou intensificar a adesão dos espíritos às teses propostas.
3.2.1 O CONTATO DO ORADOR COM SEU AUDITÓRIO
O vínculo do Tratado da Argumentação com as teorias antigas da retórica se dá
explicitamente ao enfatizar “o fato de que é em função de um auditório que qualquer
49
São Paulo, Martins Fontes, 2005.
53
argumentação se desenvolve” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 6,
grifo do autor). Além disso, o tratado perelmaniano excede, em algumas questões, os antigos
mestres da retórica como, por exemplo, Aristóteles, ao mesmo tempo em que deixa de abordar
questões importantes antes trabalhadas, ele “deixa de reconhecer os aspectos afetivos da
Retórica, o delectare e o movere, o encanto e a emoção, essenciais à persuasão” (REBOUL,
2004, p. 89). Ademais, o tratado ocupa-se, por seu turno, mais com o discurso escrito,
impresso, do que com o discurso oral, como faziam os antigos.
Uma das novidades da Nova Retórica é o rompimento com a distinção feita, em certa medida,
por Aristóteles entre dialética e retórica. Ao que o velho filósofo, nos Tópicos, concebe a
retórica oposta à dialética, quando não abruptamente, em Retórica faz algumas distinções
entre essa e aquela. Ele conceitua a dialética como o estudo dos argumentos usados numa
discussão com apenas um interlocutor; e a retórica relacionada às técnicas do orador
“dirigindo-se a uma turba reunida na praça pública, a qual não possui nenhum saber
especializado e que é incapaz de seguir um raciocínio um pouco mais elaborado”
(PERELMAN, 1993, p. 24). A ruptura dá-se na medida em que se considera que a (nova)
retórica diz respeito aos discursos direcionados a todos as espécies de auditórios, quer seja ele
o universal, o particular ou consigo mesmo (deliberação íntima).
Na argumentação, portanto, faz-se necessário um contato intelectual, por assim dizer, importa
considerar relevantes as condições psíquicas e sociais dos espíritos dos quais se pretende obter
a adesão. Isso porque não se está mais no âmbito da demonstração matemática, que pressupõe
um sistema axiomático que não depende de qualquer aceitação do auditório e não se abre às
ambiguidades. Ao contrário, “na argumentação a discutibilidade está sempre presente, já que
o seu fim ‘não é deduzir consequências de certas premissas, mas provocar ou aumentar a
adesão de um auditório às teses que se apresentam ao seu assentimento” (PERELMAN,
1993, p. 24, grifo do autor).
Na formação da comunidade efetiva dos espíritos, uma das condições prévias para a
argumentação é a existência de uma linguagem em comum. Mas não somente isso, é
necessário que haja o desejo, de alguma maneira, de ambos os lados naquilo que se discute;
“É mister que se esteja de acordo, antes de mais nada e em princípio, sobre a formação dessa
comunidade intelectual e, depois, sobre o fato de se debater uma questão determinada”
(PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 16). Logo, “Fazer parte de um
mesmo meio, conviver, manter relações sociais, tudo isso facilita a realização das condições
54
prévias para o contato dos espíritos” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005,
p. 19).
Por ser assim, o interesse das multidões (Mt 4. 23-25) que seguiam Jesus dá-se,
explicitamente, pelo apreço que este tinha pelas pessoas, demonstrado pela preocupação em
lhes anunciar por meio do ensino e da pregação “o evangelho[as boas notícias] do reino” dos
céus (Mt 4. 23) e ajudá-los em suas mazelas curando-os “de toda sorte de doenças e
enfermidades” (Mt 4. 23).
Tal mobilização de Jesus era de despertar bastante interesse às pessoas que viviam na região
da Galileia e na circunvizinhança. Elas eram dominadas pelo Império Romano, nessa época,
através do tetrarca Herodes Antipas (4 a.C a 39 d.C.), que se esforçava para manter e
aumentar a influência do Governo contando com capitais em cidades como Séforis e
Tiberíades onde vivia certa elite. Nelas, os camponeses eram explorados com impostos tanto
tributários quanto religiosos50, o que fazia com que eles incorressem em empréstimos
oferecendo suas propriedades - fontes de sobrevivência - como garantia de pagamento. Por
conta disso, “a pesada extorsão de excedentes unida à desonesta comercialização agrária
gerou um previsível e gradativo processo de endividamento que conduziu grande parte da
classe camponesa à completa miséria” (LIMA, 2010, p. 07).
A situação de boa parte dos habitantes daquela região da Palestina, segundo aponta os estudos
de Crossan (2002), era de calamidade, de sofrimento fruto da exploração política, religiosa e
da profunda desigualdade social. Situação que proporcionou o surgimento do chamado
Movimento de Jesus.
Horsley e Silberman descrevem a situação dos habitantes da região sob o ponto de vista dos
estudos sociológico e antropológico:
“Sob a pressão dos tributos e da expropriação de terras por parte de Herodes,
eles haviam se afastado do espírito aldeão tradicional de cooperação mútua:
a dissensão e a recriminação mútua precisavam ser apaziguadas [...]
Portanto, as curas e os ensinamentos de Jesus precisam ser vistos nesse
contexto, não como verdades espirituais abstratas, ditas entre um milagre
extraordinário e outro, mas como programa de ação comunitária e resistência
prática a um sistema que conseguiu transformar aldeias fechadas em
comunidades muito fragmentadas de indivíduos alienados e amedrontados”
(HORSLEY; SILBERMAN, 2000, apud LIMA, 2010, p. 11).
50
O império romano dominava politicamente. Culturalmente era a Grécia que dominava, e a religião dominante
da região era o Judaísmo.
55
Sendo assim, é nesse contexto acima apresentado que a pregação e o ensino de Jesus 51 vão ao
encontro, de alguma maneira, à expectativa e à necessidade das pessoas desejosas em ouvir
palavras de esperança e de ter cura para suas muitas enfermidades. Vê-se, portanto, que a
formação das multidões que vão ouvir o Sermão do monte não se dá sem razão de ser.
Dessa forma, cabe observar que, para se tomar a palavra e ser ouvido, é preciso haver alguma
qualidade naquele que o faz, asseguram Perelman e Obrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 21).
Urge mais ainda essa necessidade quando não se tem uma instituição que facilite ou organize
o contato prévio. Tal habilidade do orador que se dirige verbalmente a um auditório pode
variar de acordo com as circunstâncias, “às vezes bastará apresentar-se como ser humano,
decentemente vestido, às vezes cumprirá ser adulto, às vezes, simples membro de um grupo
constituído, às vezes, porta-voz desse grupo” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA,
[1958] 2005, p. 21).
Jesus não era um mestre (rabino) autorizado institucionalmente pela religião judaica, nem
possuía alguma nobre posição social, pelo contrário, ele exercia uma atividade profissional
como artesão - descrita pelo termo grego tekton (Mc 6.3)52- que possivelmente era herdada de
seu pai José (Mt 13. 55)53. Apesar de esse termo ser sempre traduzido pela palavra
carpinteiro, pode, também, ter uma designação mais genérica para um artífice do setor da
construção, habilitado a trabalhar não somente com madeira, mas também com metais ou
como pedreiro.
Ser um tekton, ou seja, um camponês/artesão da aldeia de Nazaré54 era estar no grupo dos que
provavelmente serviam como trabalhadores das construções e manutenções de grandes
cidades da época. Fato que não colocava Jesus como alguém privilegiado social e
economicamente. Crossan (2002) mostra, a partir de estudos de G. Lenski sobre sociedades
agrárias semelhantes ao império romano, que os artesãos eram normalmente inferiores aos
agricultores camponeses. Estes tinham acesso indireto à comida e gozavam de pouco recurso
financeiro, mesmo havendo exceções; Crossan (2002), por sua vez, chega à conclusão de que
quem optava pela profissão de ser um artesão eram os aldeões que não conseguiam tirar o
51
É preciso considerar que Jesus, possivelmente, falasse habitualmente em aramaico, algumas expressões de
Jesus nos evangelhos foram conservadas em aramaico. Mas também se considera a possibilidade de sempre que
preciso falar aos gentios, Jesus e os discípulos falassem grego, isso porque o grego era a língua da cultura, e na
Palestina se falava grego corretamente (TENNEY, 1995, p. 83).
52
“Não é este [Jesus] o carpinteiro, filho de Maria [...]”.
53
“Não é este [Jesus] o filho do carpinteiro [José] [...]”.
54
Situada aproximadamente a uma hora de Séforis (LIMA, 2010, p. 09).
56
suficiente da terra para sobreviver. Pode-se deduzir a partir disso que Jesus não gozava de
nenhum prestígio por sua atividade profissional.
O que autoriza Jesus tomar a palavra diante de seu auditório é o fato de ele ter recebido a
confirmação de seu ministério de duas fortes testemunhas, como mostra Mateus: o
testemunho de João Batista (Mt 3. 11)55, profeta reconhecido e respeitado como tal entre os
judeus, e de ter sido batizado pelo mesmo, ocasião em que Jesus recebe o testemunho de uma
voz vinda do céu, identificada como voz de Deus, que dizia “Este é meu Filho amado, em que
me comprazo” (Mt 3. 17); sendo, portanto, o próprio Deus a segunda testemunha. Apesar de
ele não ter uma autorização formal para pregar e ensinar, cuja autorização passava por todo
um processo formal devendo ser emitida por no mínimo dois rabinos, ele tem duas fortes
testemunhas ou autorizações a seu favor: pelo que essas testemunhas tinham, por demais,
autoridade.
Além disso, Jesus é identificado, logo em seu nascimento, como Rei dos Judeus pelos magos
do Oriente enviados pelo rei Herodes (Mt 2. 2)56, o qual temia ser ele o Cristo57 (Messias)
(Mt. 2.4); o próprio Jesus apontou que os profetas do Antigo Testamento profetizaram a
respeito de sua vinda (Mt 4. 15,16; Isaias (Is) 9. 1,2). Ele também disse ser o cumprimento do
que dizia a Lei e os Profetas (Mt 5.17)58. Como confirmação de suas qualidades especiais,
Jesus tinha a seu favor os feitos milagrosos que acompanhavam seu ministério testificando
sua autoridade celestial; além de ele ter se tornado o enunciador do reino dos céus (Mt 4.17)59,
anunciando a proposta de uma vida nova para as pessoas baseada na justiça do reino (Mt 5.6);
o que era bastante atraente para os injustiçados. Portanto, ele tinha qualidade para tomar a
palavra diante de seu auditório. Quanto a isso um comentarista assegura:
Mateus então mostra que o próprio Jesus estava qualificado para o papel do
Messias [...] Todos os atos demonstram que Jesus não apenas satisfaz as
condições impostas pela profecia do Antigo Testamento, mas que Ele estava
plenamente qualificado por um caráter e um poder exclusivos para
reivindicar o trono de Israel (RICHARDS, 2008, p. 15).
55
“Eu vos batizo com água, para arrependimento; mas aquele [Jesus] que vem depois de mim é mais poderoso
do que eu, cujas sandálias não sou digno de levar [...]”. João Batista é descrito como o profeta responsável por
preparar o caminho do Senhor (Mt 3.3), no caso do Messias.
56
“E [os magos do Oriente] perguntavam: Onde está o recém-nascido Rei dos judeus? Porque vimos a sua
estrela no Oriente e viemos para adora-lo”.
57
A palavra Cristo é tradução do grego Khrístos que significa Ungido, que, por sua vez, é a tradução do hebraico
Masîah, transliterado como Messias. Aramaico, Mashiach.
58
“Não penseis que vim para revogar a Lei ou os Profetas; não vim para revogar, vim para cumprir”.
59
“Daí por diante, passou Jesus a pregar e a dizer: Arrependei-vos, porque está próximo o reino dos céus”.
57
Mas “como definir semelhante auditório?”, essa é a problemática lançada por Perelman e
Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 21). O auditório pode ser mais do que as pessoas a quem se
dirige a palavra diretamente. De modo especial, essa questão é importante na análise do
Sermão do monte dado que Jesus tem dois grupos que ouvem o seu discurso, que são as
multidões e os seus discípulos (CARSON, 2000)60: “Vendo Jesus as multidões, subiu ao
monte, e, como se assentasse, aproximaram-se os seus discípulos; ele passou a ensiná-los
[...]” (Mt 5.1,2, grifo nosso).
Quanto aos dois grupos que ouviam o discurso, alguns estudiosos afirmam que Jesus dirige
seu discurso aos discípulos, mas que ao fundo estava uma grande multidão, ou multidões que
o ouviam (MONASTERIO; CARMONA, 1992, p. 201). A formulação inicial do sermão não
permite determinar que Jesus esquivou-se em ensinar às multidões, mas o que se pode
observar a partir da formulação no final do sermão é que as multidões estavam ali o ouvindo:
“[...] estavam as multidões maravilhadas da sua doutrina” (Mt 7. 28). Diante disso, Luz (1993,
p. 267) assegura que o sermão tem, de certo modo, dois círculos concêntricos de ouvintes. De
qualquer modo, esses dois grupos, em sua maioria, tinham a mesma finalidade: ouvir e
aprender do mestre de Nazaré. Chevrot (1965, p. 20) faz uma descrição interessante desse
auditório:
Comprimida lá na montanha, por trás dos discípulos, estendia-se uma
multidão a perder de vista. Nela estariam inevitavelmente os curiosos, talvez
mesmo os censores prontos para a crítica; mas este vasto auditório era em
grande parte constituído pelo bom povo do campo, pelos pequenos
proprietários e operários artífices de aldeia, pescadores do lago.
O que se pode observar é que esse auditório, de algumas maneiras, é heterogêneo, no qual se
reúnem “pessoas diferenciadas pelo caráter, vínculos e funções” (PERELMAN;
OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 24), vindas de diferentes regiões (Síria, Galileia,
Decápolis, Jerusalém, Judeia etc.), tendo diferentes profissões, níveis de instrução, econômico
etc., mas quanto a isso não há nenhuma objeção em se considerar que todos os seus
interlocutores sejam parte de um único auditório. A questão é que o orador “deverá utilizar
argumentos múltiplos para conquistar os diversos elementos de seu auditório. É a arte de levar
em conta, na argumentação, esse auditório heterogêneo que caracteriza o grande orador”,
afirmam Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 24), os quais definem auditório “como
60
O termo discípulos na perícope em questão, ou nesse estágio inicial do ministério de Jesus, não se refere
necessariamente aos doze, que classicamente são conhecidos, mas muitos que foram se associando ao grupo dos
que queriam seguir a Jesus nessa etapa inicial (CARSON, 2000, p.46).
58
o conjunto daqueles que o orador quer influenciar com sua argumentação” (PERELMAN;
OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 220, grifo do autor).
De certo que a argumentação dá-se em função do auditório, por seu turno, “nenhum orador,
nem sequer o orador sacro, pode descuidar desse esforço de adaptação ao auditório”
(PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 27). Jesus não fugiu a esse princípio
retórico da adaptação, pois, se de alguma maneira boa parte de seu auditório sentia-se
injustiçado pelo que os sacerdotes da religião judaica junto com o Império Romano faziam, de
forma que o povo sentia-se oprimido e carente de um libertador, por conseguinte, essas
pessoas desejavam um reino que superasse tal infortúnio. O discurso de Jesus, por sua vez,
mostra que ele vem anunciar um reino de justiça, fato que esse orador já inicia mostrando, de
alguma forma, aos seus ouvintes a possibilidade de serem desse reino ou que o reino dos céus
poderia ser delas (Mt 5.3)61. Mesmo que o reino dos céus não tivesse a configuração de um
reino que fosse exatamente ao encontro da expectativa do povo, e que o conceito não fosse no
sentido comum de reino humano e terreno - mas espiritual e construído no interior do ser
humano - o que sobressalta é que a proposta de um outro reino atraiu as pessoas.
Quanto a isso se diz que o auditório está condicionado a algumas questões, que dizem respeito
ao desejo, ao sentimento, às necessidades biológicas, financeiras, existenciais, intelectuais,
lúdicas etc. Dado que o orador precisa saber identificá-las, para que de alguma maneira
adapte-se aos seus interlocutores, suscitando a partir desse condicionamento o interesse deles
em seu discurso, ao que por meio de um novo condicionamento que se dá pelo discurso
propriamente, acontece que “o auditório já não é, no final do discurso, exatamente o mesmo
do início” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 26). Isso só acontece se o
orador for capaz de adaptar-se continuamente ao auditório.
O fato de Jesus iniciar seu sermão afirmando ser alguns tipos de pessoas “bem-aventuradas”,
como os “pobres [humildes] de espírito”, “os que choram”, “mansos”, “os que têm fome e
sede de justiça” (respectivamente Mt 5. 3, 4, 5, 6), por certo, é uma forma de mexer
emocionalmente com seus ouvintes. Sendo assim, pode-se assegurar que a linguagem
utilizada pelo orador e o uso que ele faz de expressões comuns da vida religiosa e social
(PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 26), o uso de metáforas
relacionadas aos elementos utilizadas no dia a dia, como vós sois os sal da terra (Mt 5. 13),
candeia, alqueire (Mt. 5. 14), ovelhas, lobos, bem como a abordagem que ele faz de temas
61
“Bem-aventurado os humildes [pobres] de espírito, porque deles é o reino dos céus”.
59
importantes à vida e à prática religiosa (homicídio, adultério, juramentos, vingança, amor ao
próximo, jejum, oração Mt 5. 21 – 48, 6. 1 - 18), dizem respeito à adaptação feita do orador
Jesus ao seu auditório.
É importante chamar atenção para o que se afirma no Tratado da argumentação quanto à
adaptação do discurso ao auditório: “o fundo e a forma de certos argumentos, apropriados a
certas circunstâncias, podem parecer ridículas noutras”, porquanto o uso de determinados
argumentos precisam ser compreendidos à luz de seu auditório, ainda mais no caso da análise
específica de um discurso proferido há mais de vinte séculos.
Diante do que foi apresentado, é fácil notar que o auditório de Jesus caracteriza-se, em
primeira instância, como sendo um auditório particular. A definição deste está vinculada à
noção de persuasão, que, por sua vez, dialoga com a noção de convencimento. Observa-se que
a distinção não deve ser tão rígida, pois há argumentos racionais dirigidos ao auditório
universal encarnado em pessoas que fazem parte do auditório particular, que, por ser assim, é
dirigido à razão com vistas ao convencimento.
3.2.2 ACORDOS: CONVENCENDO E PERSUADINDO AUDITÓRIOS
O Tratado da argumentação inscreve-se numa discussão histórica que diz respeito aos
partidários da verdade e os da opinião, os que se ocupam de questões eternas e universais e
aqueles que se ocupam de valores temporais e locais. No bojo desse debate, à luz da teoria da
argumentação e a partir da influência de certos auditórios, Perelman e Olbrechts-Tyteca
([1958] 2005, p. 30) propõem certa distinção não tão estanque entre persuadir e convencer.
Diz-se que uma argumentação persuasiva é aquela que pretende valer apenas para um
auditório particular, enquanto uma argumentação convincente é aquela que deveria obter
adesão de todo ser racional. Deste modo, o que está em questão “são os meios de obter a
adesão das mentes [...]. Ou seja, é principalmente a atitude do orador e o seu modo de
argumentar que estão em causa” (SOUSA, 2000, p. 30, grifo do autor). Ou mesmo, o matiz de
distinção entre ambas as noções depende da imagem que o orador faz da encarnação da razão
(PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 31). Sendo assim, cumpre dizer que
o auditório universal não existe, a não ser como construção ideal do orador.
60
Por conseguinte, a distinção perelmaniana entre convencimento e persuasão não é tão nítida,
ou mesmo em situações concretas elas não são tão estanques, destarte, os proponentes da
distinção asseguram que “os critérios pelos quais se julga poder separar convicção e persuasão
são sempre fundamentados numa decisão que pretende isolar de um conjunto - conjunto de
procedimentos, conjunto de faculdades - certos elementos considerados racionais”
(PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 30). Como o homem não é
constituído por completamente faculdades separadas, Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958]
2005, p. 33) apresentam seu ponto de vista sobre essa distinção:
Nosso ponto de vista permite compreender que o matiz entre os termos
convencer e persuadir seja sempre impreciso e que, na prática, deva
permanecer assim. Pois, ao passo que as fronteiras entre a inteligência e a
vontade, entre a razão e o irracional, podem constituir um limite precioso
[...]. Nossa distinção entre persuadir e convencer se assemelha, portanto, por
muitos traços, às distinções antigas, mesmo que não lhes adote os critérios
(grifo do autor).
Ora, se as noções de auditórios supramencionadas estão vinculadas ao convencimento e a
persuasão, que não têm um matiz rígido, por seu turno, o auditório particular pode, em alguns
casos, ser encarnação do auditório universal. Quanto a isso, Perelman e Obrechts-Tyteca
([1958] 2005, p. 36) discorrem sobre a questão do consentimento universal que firma o
auditório universal:
“[...] o consentimento universal invocado o mais das vezes não passa da
generalização ilegítima de uma instituição particular. É por esta razão que é
sempre temerário identificar com a lógica a argumentação para o uso do
auditório universal, tal como a própria pessoa concebeu. [...] Em vez de se
crer na existência de um auditório universal, análogo ao espírito divino que
tem de dar seu consentimento à “verdade”, poder-se-ia, com mais razão,
caracterizar cada orador pela imagem que ele próprio forma do
auditório universal que busca conquistar para suas opiniões” (grifo
nosso).
Portanto, “Cada cultura, cada indivíduo tem sua própria concepção do auditório universal”,
afirmam Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 37). Desta maneira, pode-se dizer que
tanto do ponto de vista de um judeu do primeiro século, como do ponto de vista do orador,
Jesus, que faz um acordo versando sobre a irrevogabilidade e o cumprimento da Lei (judaica)
e das profecias do Antigo Testamento (Mt 5. 17 – 19)62, sendo assim, ele o faz sobre um fato.
62
“Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas; não vim para revogar, vim para cumprir. Porque em
verdade vos digo: até que o céu e a terra passem, nem um i ou til jamais passará da Lei, até que tudo se cumpra.
Aquele, pois, que violar um destes mandamentos, posto que dos menores, e assim ensinar aos homens, será
considerado mínimo no reino dos céus, aquele, porém, que os observar e ensinar, esse será considerado grande
no reino dos céus”.
61
Por seu turno, é estabelecido um acordo com o auditório concreto particular, mas pode se
dizer que este, por vezes, é tomado pelo orador como encarnação do auditório universal.
Para se prosseguir com tal análise, é preciso compreender a questão das premissas da
argumentação, ou seja, o que é aceito como ponto de partida de raciocínios. Dessa maneira,
tanto o ponto de partida da argumentação quanto o desenvolvimento desta deve levar em
consideração o que é presumidamente admitido pelo auditório. Deste modo, pressupõe certo
acordo do auditório.
Todo acordo tem seus tipos de objeto, por ser assim, Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958]
2005, p. 74) agrupam os objetos passíveis de acordo em duas categorias: uma referente ao
real, que compreenderia os fatos, as verdades e as presunções; a outra relativa ao preferível,
que comportaria os valores, as hierarquias e os lugares do preferível.
Os proponentes da Nova Retórica (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p.
74) asseguram que “na argumentação, tudo que se presume versar sobre o real se caracteriza
por uma pretensão de validade para o auditório universal”. Por outro lado, “o que versa sobre
o preferível, o que nos determina as escolhas e não é conforme a uma realidade preexistente,
será ligado a um ponto de vista determinado que só podemos identificar com o de um
auditório particular, por mais amplo que seja” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA,
[1958] 2005, p. 74).
Vê-se, portanto, que todas essas noções estão, de alguma maneira, imbricadas. Desse modo,
poder-se-ia dizer que as premissas podem ser tratadas a partir das condições em que elas se
encontram. Disto se diz do estudo da natureza de certos auditórios constituídos nos quais se
pode perceber uma ordem mais estática, enquanto outras condições podem se configurar
como mais dinâmicas, dado que diz respeito ao empenho do orador em encontrar as
manifestações de seu auditório, que sejam elas implícitas ou explícitas, com as quais pode
contar para obter a adesão do mesmo.
Dessa maneira, poder-se-ia dizer que, no Sermão do monte, existe um acordo central
pertinente à natureza do auditório. É a partir desse objeto de acordo que o orador Jesus vai
desenvolver seus principais argumentos, o que não fica isento de se ter acordos outros ao
longo do discurso como observar-se-á mais à frente. Contudo, nesse momento, cabe
compreender como se dá esse acordo que seria central no sermão e, de certa maneira,
explícito.
62
Jesus inicia seu sermão com nove63 bem-aventuranças (Mt 5. 3-11), seguida de um ligeiro
comentário a respeito da última (Mt 5. 12) e continua seu discurso fazendo a declaração de
que os seus discípulos são o “sal da terra” e a “luz do mundo” (Mt. 5. 13, 14-16,
respectivamente)64. No trecho seguinte, ele passa a definir de forma clara o objeto de acordo
sobre o qual versará sua argumentação.
Jesus declara: “Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas; não vim para revogar, vim
para cumprir. Porque em verdade vos digo: até que o céu e a terra passem, nem um i ou til
jamais passará da Lei, até que tudo se cumpra” (Mt 5.17). Quanto a esta declaração, é
relevante destacar o fato de ele dizer “[...] não penseis que vim revogar [...]” (grifo nosso), o
que deixa entender que alguns de seus ouvintes pudessem ter pensado, ou o próprio ter
previsto tal pensamento, que, por conta de suas declarações iniciais, supramencionadas, ele
pudesse estar discursando sobre algo que ia de encontro65 à Lei ou o que disseram os profetas
de Israel grafados no Antigo Testamento. Por conta disso, ele pode ter sentido a necessidade
de firmar um objeto de acordo para prosseguir seu discurso e mostrar que sua justiça estava
em completa harmonia com a Lei (Pentateuco) e os Profetas (o restante do Antigo
Testamento). Quanto a esse tipo de justificativa, Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005,
p. 120) arrazoam:
A justificação da mudança será substituída muitas vezes por uma tentativa de
provar que não houve mudança real. Essa tentativa é às vezes determinada
pelo fato de que a mudança vedada: o juiz, que não pode mudar a lei,
sustentará que a sua interpretação não a modifica, que corresponde melhor à
intenção do legislador.
Sendo assim, Jesus assegura que não veio revogar a Lei ou os Profetas, mostrando que não
está sendo um revolucionário, contudo ele prefere retomar apenas o termo Lei (Mt 5. 18) com
a finalidade de, explicitamente, firmar seu objeto de acordo com o auditório sobre o conteúdo
específico da Lei, retomando alguns mandamentos correspondestes a essa (5.21 – 48).
Quanto a esse objeto de acordo, é possível assegurar que ele tem as características de ser um
fato. Na argumentação, a noção de “fato é caracterizada unicamente pela ideia que se tem de
certos gêneros de acordos a respeito de certos dados” (PERELMAN; OLBRECHTS63
Apesar de se afirmar ser nove, pois o termo bem-aventurança é citado nove vezes, contudo a nona é
considerada uma extensão ou aplicação da oitava.
64
A análise desses versículos dar-se-á mais adiante.
65
Quanto a essa possibilidade de alguns de seus ouvintes estarem pensando sobre tom aparentemente
revolucionário de Jesus, Hendriksen (2001, p. 403) comenta o versículo em questão: “Os oponentes de Cristo já
tinham começado a considera-lo um revolucionário destrutivo, um iconoclasta que queria romper com todos os
vínculos com o passado”.
63
TYTECA, [1958] 2005, p. 75), sendo que estes devem ser referentes a uma realidade objetiva.
Portanto, para Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 75), citando H. Poincaré, o fato
designa “o que é comum a vários entes pensantes e poderia ser comum a todos”,
consequentemente, ele goza de um acordo universal.
Para que se verifique isso, é preciso estar consciente de algumas particularidades sobre a
Torah66. Esta palavra é traduzida por lei, mas não no sentido moderno, pois “Israel acreditava
que a Torá (idêntica com o Pentateuco67) foi entregue já pronta a Moisés da parte de Deus.
Deus se fizera responsável por ela, e, além disto, ela é eternamente obrigatória para Ele”
(COENEN; BROWN, 2000, V. I, p. 1156). Sobre a relação e concepção que os judeus tinham
da lei na época de Jesus, Coenen e Brown (2000, V. I, p. 1156) comentam:
No judaísmo dos dois últimos séculos a.C., e nos tempos de Jesus, nomos se
empregava no sentido absoluto: a lei era coisa absoluta em si mesma
independente da aliança68. É cumprimento da lei que determina se alguém é
membro do povo de Deus. Israel já não considerava sua posição especial
como sendo o resultado da auto-revelação viva de Javé no decurso de sua
história; pelo contrário, considerava que esta dignidade baseava-se na
obediência daqueles que eram justos conforme os termos da lei (Fariseus)
[...]. A totalidade da vida podia ser regulada pela lei, e é isto mesmo que
aconteceu. No judaísmo helenístico em especial, a lei chegou a ficar lado a
lado com a sabedoria, que, de forma semelhante, também veio dotada de
hipóstase. Quanto a isto, a lei foi separada da situação histórica original, a
saber da aliança dada por Deus. Além disto, agora podia ser apresentada
como lei universal, i.é, como sendo universalmente válida. Este aspecto
era importante no mundo helenístico, onde todo e qualquer sistema de
pensamento tinha de entrar em competição apologética com filosofias
existentes. Além disto, sua universalidade foi projetada para tempos
passados. Alegava-se que os patriarcas já a conheciam, e que de fato,
antecedia a totalidade da criação. Os judeus helenizados, por meio desta
universalização da lei, desvinculando-a da aliança, podiam lhe dar uma base
racional e proclamá-la como filosofia superior [...]. (grifo nosso).
A partir dessas considerações, é possível compreender que para aquele auditório o que os
mandamentos de Deus diziam constituía um fato não-controverso, isto é, uma premissa
66
Essa palavra foi traduzida do Antigo Testamento em hebraico para o grego na versão LXX (Septuaginta) pelo
termo nomos (lei), sendo esta a tradução encontrada em Mateus 5.17 (ton nomon). Coenen e Brown (2000, V. I,
p. 1154) afirmam que “Originalmente, torah significava uma “instrução” da parte de Deus, um “mandamento”
para uma determinada situação” (grifo do autor). Quando se refere à lei (torah/nomos) ela não significa algo
uniforme no Antigo Testamento, podendo se referir tanto ao Pentateuco, os cinco livros primeiros livros do
Antigo Testamento tidos como de Moisés, como outras seções do mesmo. Contudo, pode se dizer que no
judaísmo rabínico a torah se tornou o cânon dentro do cânon, “a Torá ficou sendo normativa em contraste com
as duas outras seções do AT, a saber: os Profetas e os Escritos, que eram considerados meros desenvolvimentos
daquilo que já estava presente na Torá” (2000, V. I, p. 1156).
67
Os cinco primeiros livros do Antigo Testamento.
68
Pacto específico que Deus fizera ao povo Judeu, como nação escolhida para benção e salvação, sendo
considerado como o povo de Deus.
64
sólida. No entanto, isso não era considerado somente para o auditório, vê-se que o era também
para o orador, tanto que ele confirma a irrevogabilidade da palavra de Deus afirmando:
“Porque em verdade vos digo: até que o céu e a terra passem, nem um i ou til jamais passará
da Lei, até que tudo se cumpra” (Mt 5.18). Portanto, o acordo que estava sendo feito era com
um auditório como sendo a encarnação de um universal.
A análise da expressão “Porque em verdade vos digo [amén gar légo umin]”69 (Mt 5.17),
pode ser adicionada ao argumento de que o orador Jesus tem em mente um acordo com uma
universalidade pretendida - mas é importante ressaltar que isso é apenas uma pretensão do
orador, ao que o auditório universal está sempre vinculado, de alguma maneira, ao particular.
A expressão em verdade é a tradução do grego da palavra amén70, sendo que esta palavra em
grego “é uma transliteração do Heb71. ´amen, que deriva de aman”, cujo significado é
“mostrar-se firme, digno de confiança, durar; saber-se seguro, ter fé, e assim a palavra
significa ‘certo’, ‘verdadeiro’” (COENEN; BROWN, 2000, V. I, p. 110). Ainda em
consideração a essa palavra, Coenen e Brown (2000) mostram que “a palavra foi empregada
cerca de 25 vezes no AT em ocasiões solenes para confirmar uma maldição ou juramento ao
se identificar com ela, para aceitar uma bênção, ou associar-se com uma doxologia”
(COENEN; BROWN, 2000, V. I, p. 110). Neste sentido, dizer amém, confirma uma
declaração feita por outra pessoa72.
É relevante observar que o uso que Jesus faz do amém é apontado como algo pertinente a ele,
como característica singular de seu modo de falar (JEREMIAS, 1974). “Jesus empregava o
Heb. ‘amém’ para confirmar as palavras que falava em Aram 73., embora existissem frases em
Aram. que [ele] poderia ter empregado no lugar desta palavra” (COENEN; BROWN, 2000,
69
Hendriksen (2001, p. 407) prefere a tradução “Eu solenemente declaro”, por expressar melhor o sentido de que
se está declarando sobre algo que independe do ponto de vista alheio para se creditar como fato, ele é sob o
ponto de vista de quem o pronuncia, no caso, Jesus que faz uso constate dessa expressão nos evangelhos.
70
Quanto ao uso do amém no hebraico Hendriksen (2001, p. 407) acrescenta algumas informações afirmando
que “ele se refere, em geral, às ideias de verdade e fidelidade. Em sua forma simples (Qal), o verbo significa ser
fiel, seguro. Na forma reflexiva simples (Noph´al): ser feito firme; ser confirmado, estabelecido. Em sua forma
causal (Hiph´il): estar firme, considerar como digno de confiança, crer” (grifos do autor).
71
Hebraico.
72
Por isso se dá o uso corrente do termo amém como sinônimo de assim seja. Coenen e Brown discorrem:
“‘Amém contém um juramento, a aceitação de palavras, e a confirmação de palavras’. Qualquer pessoa que
dissesse “amém” a uma oração ou doxologia tornava-se dele próprio. Qualquer pessoa que dissesse “amém” a
uma adjuração, bênção ou maldição tornava-se obrigatória para ela mesma” (COENEN; BROWN, 2000, V. I, p.
110).
73
Aramaico.
65
V. I, p. 111). Essa forma incomum74 de Jesus falar, comentam Coenen e Brown (2000, V. I, p.
111), “foi preservada nos evangelhos mais antigos, por causa do desejo de conservar e
transmitir fielmente as suas palavras”. Isso denota um status de confiança e autoridade
assumido pelo mesmo, dado que Jesus, ao introduzir “suas palavras com um “amém”,
marcou-as como certas e dignas de confiança. Ficava firme ao lado delas e tornava-as
obrigatórias para Ele mesmo e seus ouvintes” (COENEN; BROWN, 2000, V. I, p. 111, grifo
do autor).
Desse modo, no texto em questão, a palavra amém implica o sentido de veracidade e
solenidade, que em algumas versões do texto neotestamentário, como a usada nesse trabalho,
opta por traduzi-la pela expressão “[...] em verdade [...]” (Mt 5 18). Diz-se isso porque a
palavra amém, nesse contexto, ou mesmo essa expressão quando em sua ocorrência na fala de
Jesus, introduz uma declaração que, segundo Hendriksen (2001, p. 407), não apenas se
contenta em expressar uma verdade ou fato – como, por exemplo: 2 x 2 = 4 seria um fato –
“mas um fato solene, importante, que em muitos casos está em discrepância com a opinião ou
esperança popular, ou, pelo menos, causa alguma surpresa” (HENDRIKSEN, 2001, p. 407);
o que em argumentação tem-se um estatuto de um fato, firmando com uma universalidade
garantida. “Trata-se evidentemente, nesse caso, não de um fato experimentalmente provado,
mas de uma universalidade garantida e de uma unanimidade que o orador imagina, do acordo
de um auditório que deveria ser universal”, afirmam Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958]
2005, p. 35).
Com isso, tem-se, nessa situação, uma argumentação que não visa apenas a um auditório
concreto particular, mas visa a todos os seres humanos que são criaturas de Deus. Essa
argumentação “deve convencer o leitor [ouvinte] do caráter coercivo das razões fornecidas, de
sua evidência, de sua validade intemporal e absoluta, independente das contingências locais
ou históricas” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 35), o que, de fato, é
declarado em relação à Lei (Mt 5. 18). Por isso, verifica-se que o objeto de acordo central do
sermão é referente a um fato, e isso não invalida ter-se no sermão acordos referentes aos
valores.
O objeto de acordo referente aos valores está na categoria do preferível, portanto busca a
adesão de grupos particulares. Somado aos valores, estão as hierarquias e os lugares do
74
Coenen e Brown (2000, V. I, p. 111) asseguram que não existem evidências dos tempos de Jesus que outras
pessoas confirmassem assim suas palavras com amém.
66
preferível. Assim Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 84) esclarecem essa noção
afirmando que “estar de acordo acerca de um valor é admitir que um objeto, um ser ou um
ideal deve exercer sobre a ação e as disposições à ação uma influência determinada, sem se
considerar, porém, que esse ponto de vista se impõe a todos”.
Os valores estão, de alguma maneira, presentes em todas as argumentações, mesmo aquelas
concernentes aos raciocínios de ordem científica, asseguram Perelman e Olbrechts-Tyteca
([1958] 2005, p. 84). Lança-se mão deles para motivar o ouvinte a fazer algumas escolhas em
vez de outras, ademais eles são utilizados também para justificar tais escolhas de maneira que
elas se tornem aceitáveis e aprovadas por outrem.
Perelman (1993, p. 45) apresenta um conceito operatório de valor: “[...] o termo valor se
aplica sempre que tenhamos de proceder a uma ruptura da indiferença ou da igualdade entre
as coisas, sempre que uma delas deva ser posta antes ou acima de outra, sempre que ela é
julgada superior e lhe mereça ser preferida”. A partir dessas concepções, pode se verificar que
a argumentação de Jesus, no Sermão do monte, inicia-se com as bem-aventuranças (Mt 5. 3 10), o que se poderia chamar de valores do reino dos céus, dado que ele é o porta voz do
“evangelho do reino75 [dos céus]” (Mt 3. 23). Porquanto, ele está anunciando esses valores
que, de alguma maneira, divergem dos valores cultivados e anunciados pelos mestres de
então.
É importante notar ou retomar a ideia de que a maior parte dos ouvintes desse sermão estava à
margem da sociedade e não se encaixava no padrão da religião, ou não era o tipo de pessoa
que, de modo geral, social e religiosamente, era considerada bem-aventurada. A partir desse
plano, é formidável observar que Jesus inicia o seu discurso afirmando que os bemaventurados76 são “os humildes [pobres] de espírito”77, “os que choram”, “os mansos”, “os
75
A expressão reino dos céus remete à ideia de reino como esfera de influência, assim pensavam os antigos, não
meramente como extensão territorial. O que se pode dizer que o reino de Deus é influência dinâmica de Deus
operando no mundo (RICHARDS, 2008, p. 24).
76
A expressão bem-aventurado é a tradução de makarious, que é, na Septuaginta, a tradução da palavra hebraica
´asre, que denota, segundo Richards (2008, p. 25): “Oh, as bênçãos de...! (...) é uma exclamação de aprovação,
uma afirmação do louvor gracioso de Deus”. A melhor tradução para o português é com o uso do termo feliz,
contudo o sentido ressoa muito mais amplo aos ouvintes da época, dado que essa palavra é tomada do Antigo
Testamento remetendo às bênçãos de Deus.
77
O termo traduzido para o português pobre ou humilde é em grego ptochoí, por ser assim, essa palavra no
sentido básico é designação de um tipo de pobreza extrema, comparada ao de um mendigo, de uma pessoa que
depende de outra para seu sustento. De outro modo, essa mesma palavra também pode significar um pobre sem
denotar paupérrimo (HENDRIKSEN, 2001, p. 376, em nota). Contudo observa-se que o orador não se refere a
qualquer pobre, mas “o pobre de espírito” (ptochoi tou pneúmati]. Não interessa a esse trabalho entrar no sentido
que a expressão pode querer dizer exatamente, contudo interessa afirmar que isso pode ter de alguma forma
chegado de forma positiva no ouvido dos ouvintes de Jesus.
67
que têm fome e sede de justiça”, “os misericordiosos”, “os limpos de coração”, “os
pacificadores” e “os perseguidos” (Mt 5. 3-10). Ou seja, no reino dos céus, os bemaventurados são as pessoas que compartilhavam, das mais variadas formas, daqueles valores.
Hendriksen (2001, p. 369) comenta:
O que o Orador está fazendo é nada menos que isto: ele está afirmando que,
ainda que todos considerem que seus seguidores são os mais infelizes e
desafortunados, e ainda que eles mesmos de forma alguma estejam sempre
cheios de otimismo com referência à sua própria condição, diante do céu e
pelas normas do reino eles são realmente felizes; sim, “felizes” no sentido
mais elevado do termo.
Pode-se verificar que esse discurso inicia-se com um tom emocional bem acentuado. Isso
porque esse orador está afirmando que bem-aventurados são aqueles que são encarnação dos
valores ali anunciados. Portanto, de certo modo, os seus ouvintes podem ter se identificado
com tais descrições, sendo isso ideal para o estabelecimento de um acordo inicial do orador
com auditório por meio daqueles valores.
Cada bem-aventurança78 é composta por, basicamente, três partes: uma é atribuição de bemaventurança (bem-aventurado); a segunda descreve a pessoa a quem se aplica a atribuição ou
o valor com o qual o ouvinte pode se identificar (“os humildes [pobres] de espírito”, “os que
choram” (Mt 5.3,4) etc.), sendo esta parte a que se refere ao que se pode chamar de valores; a
terceira parte refere-se a uma declaração da razão dessa bem-aventurança (“porque deles é o
reino dos céus”, “porque serão consolados” (Mt 5.3,4) etc.) (HENDRIKSEN, 2001, p. 369).
Dessa maneira, observa-se que são oito os valores expressos nas bem-aventuranças, isso
porque a nona bem-aventurança (Mt 5. 11) pode-se considerar como uma forma de aplicação
da oitava (Mt 5. 10). As oito são apresentadas em terceira pessoa - exemplo: “Bemaventurados os humildes de espírito, porque deles é o reino dos céus” (Mt 5. 3) -, porém, não
78
Sobre o gênero típico das bem-aventuranças pode-se dizer que elas eram utilizadas no âmbito judeu nas
chamadas parêneses sapiencial, como expressão de certo nexo, chamado por Luz (1993, p. 291) de ação-paixão
(acción-pasión). Elas eram normalmente formuladas em terceira pessoa sem ter um destinatário direto. Contudo,
o próprio Jesus, no texto em questão, procede uma mudança que é o uso na segunda pessoa quando aplica a
mesma: “Bem-aventurado sois vós quando, por minha causa, vos injuriarem (...)” (Mt 5. 11). Além disso, o uso
da apódosis (referente à parte final) de futuro com sentido escatológico era normal.
Além da mudança no uso da segunda pessoa, outras foram procedidas no discurso de Jesus, quais sejam: o uso
das seriações; e o fato de a prótasis (a formulação inicial) ser construída paradoxalmente pelo que se pode
depreender que o texto chama de bem-aventurados os que sabiam esperar. Luz (1993, p. 291) assegura que as
bem-aventuranças apresentadas por Jesus em Mateus se aproxima do uso linguístico do gênero sabedoria.
68
fica claro no texto que elas tenham sido direcionadas para algumas pessoas de maneira
específica. Apenas a nona vem empregada em segunda pessoa, sendo possivelmente
direcionada especificamente aos discípulos: “Bem-aventurados sois quando por minha causa,
vos injuriarem, e vos perseguirem, e, mentindo, disserem todo mal contra vós” (Mt 5. 11).
Pode-se depreender que a descrição desses valores e a seriação das bem-aventuranças são
feitas pelo orador com a finalidade de estabelecer uma comunhão do seu auditório, que é
heterogêneo, sobre modos particulares de agir, “vinculada à ideia de multiplicidade de
grupos” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 84).
Outro aspecto relevante é o fato de os valores poderem ser abstrato e concreto. Perelman e
Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 87) conceituam como valor concreto “o que se vincula a
um ente vivo, a um grupo determinado, a um objeto particular, quando os examinamos em sua
unicidade”. Já o valor abstrato tende à universalidade e independe da circunstância. Mesmo o
Tratado da argumentação não deixando esta noção bem clara, mostra que valores concretos
são utilizados para fundarem os valores abstratos, e assim também o é inversamente.
Com isso, observa-se que os valores do reino dos céus, apresentados por Jesus, podem ser
tanto abstratos, já que são características que pessoas precisam encarnar por dizerem respeito
às características do reino eterno de Deus, como também podem ser concretos, ao serem
encarnados por pessoas.
Se se partir da compreensão de que Jesus não está se dirigindo meramente para pessoas
presentes, que seria encarnação dos valores: pobres de espírito, manso etc., pode-se afirmar
que são valores abstratos. Porém, esses valores ao mesmo tempo fundam valores concretos
dado que pessoas ali podiam possuir tais valores.
Essa correspondência entre as duas noções de valores se confirma na análise do texto ao se
observar a última bem-aventurança: “Bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça,
porque deles é o reino dos céus” (Mt 5. 10), que é imediatamente aplicada pelo que Jesus
declara: “Bem-aventurados sois quando, por minha causa, vos injuriarem, e vos perseguirem,
e, mentindo, disserem todo mal contra vós” (Mt 5.11).
A noção de justiça, no Sermão do monte, é um valor que é abstrato, no entanto, de acordo
com o conselho do orador Jesus, a justiça precisa ser encarnada (“Porque vos digo que, se a
vossa justiça não exceder em muito a dos escribas e fariseus, jamais entrareis no reino dos
69
céus”, Mt 5.20), por isso, é um valor abstrato que funda um valor concreto cuja manifestação
o orador reclama para a vida de seus ouvintes e sobre a qual passa a ensinar no restante do
sermão.
Após Jesus fazer essa declaração, ele passa a fazer a revisão de outros valores, que pelo
encadeamento argumentativo parecem estar ligados à noção de justiça concebida pelo orador,
a qual para se viver, faz-se necessário compreender o sentido dos valores que o orador Jesus
se propõe em ampliar ou revisar, uma vez que ele atribui a esses valores um sentido ou
enfoque diferente do dado pelos antigos com os quais os mestres contemporâneos seus
comungavam (Mt 5. 21-48). Na maioria das vezes esse enfoque é redirecionado para a atitude
interior e não para a demonstração externa do ato, como faziam os escribas e fariseus.
Antes de se analisar alguns desses valores, é preciso considerar a problemática abordada por
Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005) em relação à noção de valores universais e em
relação à noção de verdade ou fato.
[...] um mesmo enunciado, conforme o lugar que ocupa no discurso,
conforme o que enuncia, o que refuta, o que corrige, poderá ser
compreendido como relativo ao que se considera comumente fato ou ao que
se considera valor. Por outro lado, o estatuto dos enunciados evolui:
inseridos num sistema de crenças, que se pretende valorizar aos olhos de
todos, alguns valores podem ser tratados como fatos ou verdades
(PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, P. 85).
Considerando-se que Jesus estabelecera um acordo tendo por objeto um fato - a Lei (Mt 5.18)
- e que está argumentando em favor de corrigir alguns erros de interpretação e aplicação feitos
pelos antigos em relação aos mandamentos dessa Lei, chega a assegurar: “Aquele, pois, que
violar um destes mandamentos, posto que dos menores, e assim ensinar aos homens, será
considerado mínimo no reino dos céus; [...]” (Mt 5.19). Considerando-se isso, é possível
assegurar que, nos enunciados de Mt 5. 21- 48, Jesus está tratando questões que podem gozar
da noção de verdade; até porque elas emanam da Lei. No entanto, como a correspondência
entre valores particulares com o universal, bem como com a noção de verdade, não são
simples de determinar, prefere-se adotar a noção de valores universais para enquadrar a
respeito do que Jesus está tratando nos enunciados conhecidos como as antíteses (Mt 5. 2148), pois, na medida em que ele explica e argumenta a respeito das verdades - “não matarás”
(Mt 5.21-26); “não adulterarás” (Mt 5. 27-32); “não jureis falso, mas cumprirás rigorosamente
para com o Senhor os teus juramentos” (Mt 5. 33-34); “Olho por olho, dente por dente” (Mt 5.
70
38-42); “Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo” (Mt 5. 43-48) - ele amplia a noção
delas e, de certa forma, traz novas aplicações não praticadas por seus ouvintes.
Por ser assim, ele está argumentando em favor da modificação da interpretação feita pelos
antigos a respeito do sistema de verdades que emanam da Lei. E mesmo que sob a
prerrogativa de resgatar o real sentido das verdades dos mandamentos, quando o orador
precisa apresentar argumentos para fortalecer seu ponto de vista, o estatuto de verdade ou de
fato está em jogo, porquanto, não há objeção em se considerar como valores universais as
noções apresentadas por Jesus nos enunciados em análise.
Como dito acima, tais valores estão ligados à Lei e, por esta razão, Jesus ao abordá-los, parte
da concepção que seu auditório já tinha daqueles valores. Por isso, inicia com a expressão
“Ouvistes que foi dito aos antigos [...]” (Mt 5, 21, 27, 33, 38, 43)79, e prossegue ampliando a
noção dos valores, reinterpretando-os, e, ao mesmo tempo, de alguma maneira, reafirmandoos, isso fica claro com a expressão “eu, porém, vos digo” (Mt 5. 22, 28, 34, 39, 44, grifo
nosso), pelo que faz uma antítese ao entendimento que se tinha de tais valores.
Quanto à correspondência entre valores particulares e universais, Perelman e OlbrechtsTyteca ([1958] 2005, p. 86) discorrem:
Os valores particulares sempre podem ser vinculados aos valores universais
e servir para especificá-los. O auditório real poderá considerar-se tanto mais
próximo de um auditório universal quanto mais o valor particular parecer
apagar-se ante ao valor universal por ele determinado. É, portanto, na
medida em que são vagos que esses valores se apresentam como universais e
pretendem um estatuto semelhante ao dos fatos. Na medida em que são
precisos, apresentam-se simplesmente como conformes às aspirações de
certos grupos particulares.
É possível também afirmar que Jesus, ao utilizar especificações dos valores, não fez com que
eles perdessem o estatuto de valores universais ou mesmo de verdade procedente dos
mandamentos. Contudo, pode-se entender as especificações como estratégias para persuadir
seu auditório real. Quanto a isso, os proponentes do Tratado da argumentação discorrem:
“seu papel é, pois, justificar escolhas sobre as quais não há acordo unânime, inserindo essas
escolhas numa espécie de contexto vazio, mas sobre o qual reina um acordo mais amplo”
(PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 87).
79
No primeiro enunciado ele profere “Ouvistes o que foi dito aos antigos” (é possível a tradução “pelos
antigos”), contudo nos outros versículos aparece apenas “ouvistes que foi dito (...)”, ficando subtendido o que já
fora enunciado: “aos antigos”, que só volta a aparecer no versículo 33.
71
Para melhor compreender como se dá a argumentação a partir da noção de valores, lança-se
mão de outro conceito operatório de Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 90), que é
a noção de hierarquias. Esses autores asseguram que a argumentação não só se esteia em
valores, mas também em hierarquias. “Por certo essas hierarquias seriam justificáveis em
virtude de valores, porém, mais comumente, só se tratará de buscar-lhes um fundamento
quando for o caso de defendê-las; amiúde, aliás, ficarão implícitas [...]” (PERELMAN;
OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 90).
Percebe-se que o orador Jesus lança mão da noção explícita de hierarquias para fortalecer o
sentido mais amplo e o enfoque que ele dá à questão do homicídio, pois se era dito pelos
antigos que quem matasse estaria sujeito a julgamento: “Ouvistes que foi dito aos antigos:
Não matarás; e: quem matar estará sujeito a julgamento” (Mt 5. 21), ele, contudo, explicita
um outro elemento constituinte do ato homicida, no caso, a ira. Há uma espécie de
hierarquização na pena, decorrente desde o ato interior de irar-se, passando por um simples
insulto, até o ato verbal de chamar o outro de tolo: “Eu, porém, vos digo que todo aquele que
[sem motivo] se irar contra seu irmão estará sujeito a julgamento; e quem proferir um insulto
a seu irmão estará sujeito a julgamento do tribunal; e quem chamar: Tolo, está sujeito ao
inferno de fogo” (Mt 5.22). Assim ele argumenta em favor de que não merece castigo apenas
o ato de matar alguém, todavia o sentimento que pode levar alguém a matar, a ira, que está
presente no insulto, no xingamento, podendo chegar até ao homicídio.
De igual modo, esse orador lança mão da hierarquia para aprofundar a noção do ato do
adultério, porquanto adultério não é apenas a prática sexual, porém há uma hierarquia, pelo
que ele mostra: “[...] qualquer que olhar para uma mulher com intenção impura, no coração, já
adulterou com ela” (Mt 5. 28). Desta forma, o adultério nasce na intenção impura do coração,
porquanto há uma hierarquização da intenção em relação ao ato.
Para reforçar essas hierarquias, bem como os valores, Jesus lança mão do que se pode chamar
de lugares (tópoi). Para Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 94), o orador que se
utiliza de argumentos baseados em lugares tem a finalidade de fundamentar ou aumentar a
intensidade da adesão que valores ou hierarquias suscitam, sendo, portanto, indispensáveis à
argumentação.
72
Ele faz isso tanto em relação à noção de homicídio, quanto à noção de adultério. Quanto à
noção de homicídio, ele recorre ao seguinte lugar-comum, ilustrando com um caso de litígio
por causa de uma dívida:
“Entra em acordo sem demora com o seu adversário, enquanto estás com ele
a caminho, para que o adversário não te entregue ao juiz, o juiz, ao oficial de
justiça, e sejas recolhido à prisão. Em verdade te digo que não sairás dali,
enquanto não pagares o último centavo” (Mt 5. 25, 26).
Neste caso, ele trata do fato de que é melhor se pagar com dinheiro do que se pagar na prisão
com a privação da liberdade. Desta maneira, este lugar-comum está na ampla categoria de
lugares da quantidade, ou seja, são “os lugares comuns que afirmam que alguma coisa é
melhor do que outra por razões quantitativas” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA,
[1958] 2005, p. 97).
Quanto ao lugar-comum utilizado para reforçar a hierarquia sobre a questão do adultério, temse o seguinte:
Se o teu olho direito te faz tropeçar, arranca-o e lança-o de ti; pois te convém
que se perca um dos teus membros, e não seja todo o teu corpo lançado no
inferno. E, se a tua mão direito te faz tropeçar, corta-a e lança-a de ti; pois te
convém que se perca um dos teus membros, e não vá todo o teu corpo para o
inferno (Mt 5. 29,30).
Portanto, ele mostra ser mais vantajoso perder uma parte do corpo do que perdê-lo todo. Isso
está vinculado à noção da superioridade do todo sobre a parte, a qual também está na
categoria de lugares da quantidade (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p.
97).
Em duas outras antíteses (sobre o juramento - Mt 5. 33 – 37 - e sobre a vingança - Mt 5. 38 42), após as supracitadas, não é facilmente possível identificar a presença de lugares, mas, na
última (sobre o amor ao próximo, Mt 5. 43 – 48), pode-se perceber a presença de outro lugar,
o da quantidade. Vê-se, portanto, que é mais honroso amar a todos, inclusive o inimigo, do
que amar apenas o próximo, ou melhor, o irmão da religião:
Ouvistes que foi dito: Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo. Eu,
porém, vos digo: amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem;
para que vos torneis filhos do vosso Pai celeste, porque ele faz nascer o seu
sol sobre maus e bons e vir chuvas sobre justos e injustos. Porque, se
amardes os que vos amam, que recompensa tendes? Não fazem os
publicanos também o mesmo? E, se saudardes80 somente os vossos irmãos,
80
O ato de saudar já é uma espécie de consideração pelo outro, que denota na cultura judaica uma certa atitude
de amor.
73
que fazeis de mais? Não fazem os gentios também o mesmo? Portanto, sede
vós perfeitos como perfeito é o vosso Pai celeste (Mt 5. 43-48, grifo
nosso).
Outrossim, ao mesmo tempo, pode-se verificar também, nesse enunciado, um outro lugar que
seria o da qualidade. Constata-se que o orador argumenta em favor de um ato de amor que
não seja igualado ao dos publicanos, nem ao dos gentios, mas ao do Pai celeste que é perfeito:
“Portanto, sede vós perfeitos como perfeito é o vosso Pai celeste” (Mt 5. 48). A partir disso, é
possível observar um ato único, a presença do lugar da essência, que diz respeito à
valorização daquele “que encarna melhor um padrão, uma essência, uma função, é valorizado
por isso mesmo” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 106). Neste caso,
é possível verificar isso na seguinte parte do argumento utilizado por Jesus: “Portanto, sede
vós perfeitos como perfeito é o vosso Pai celeste” (Mt. 5. 48). Sendo assim, a atitude de amor
e de saudar as pessoas que não eram da religião é uma forma de encarnação de uma essência,
a do Pai celeste, ou seja, a essência da perfeição.
Em alguns argumentos seguintes, pode-se notar a presença categórica da hierarquização de
alguns valores ligados à vida religiosa e à justiça do reino anunciada por Jesus. O orador diz
aos seus ouvintes: “Guardai-vos de exercer a vossa justiça diante dos homens, com o fim de
serdes vistos por eles; doutra sorte, não tereis galardão junto de vosso Pai celeste” (Mt 6.1).
Deste modo, a hierarquia estabelecida é que a atitude do discípulo deve ser feita com a
finalidade de agradar primeiramente a Deus e não aos homens, porquanto esse é o fundamento
ou o acordo do mestre palestino que hierarquiza outros valores. Tais hierarquias estão nos
versículos seguintes que dizem respeito ao ato de se fazer as práticas religiosas centradas não
meramente no ato externo ou público (esmolas, orar, jejuar, Mt 6. 2-4, 5-8, 16-18), mas sim
com a atitude do coração direcionada ao Pai celeste, sendo este o recompensador das ações
humanas.
Em alguns casos, cumpre apenas sumariar os exemplos dados pelo orador apontando
objetivamente as respectivas referências no texto em estudo. Quanto ao valor de dar esmola
(Mt 6. 2-4), Jesus reafirma-o, mas estabelece uma hierarquia diferente que dispensa a atitude
de mostrar publicamente que se está praticando tal ato para meramente ser visto pelos
homens: “Quando, pois, deres esmola, não toques trombeta diante de ti, como fazem os
hipócritas, nas sinagogas e nas ruas, para serem glorificados pelos homens. Em verdade vos
digo que eles já receberam a recompensa.” (Mt 6. 2). Há, assim, a incompatibilidade entre
querer ser reconhecido pelos homens como doador de esmolas e ao mesmo tempo receber o
74
reconhecimento ou a recompensa de Deus por tal ato. Portanto, por haver essa
incompatibilidade que há a hierarquização, quanto a isso Perelman e Olbrechts-Tyteca
([1958] 2005, p. 93) asseguram isto: “sentir obrigado a hierarquizar os valores, seja qual for o
resultado dessa hierarquização, provém do fato de a busca simultânea desses valores pode
criar incompatibilidades, obrigar a escolhas”.
De igual modo, Jesus ao ensinar sobre a oração - “E, quando orardes, não sereis como os
hipócritas; porque gostam de orar em pé nas sinagogas e nos cantos das praças, para serem
vistos dos homens [...]” (Mt 6. 5-8) -, a hierarquização segue a mesma lógica do exemplo
anterior; bem como sobre o ato de jejuar (Mt 6. 16-18) ele dá a mesma ênfase na prática do
ato com o fim de ser visto pelos homens. Quanto ao acúmulo de riquezas (tesouros) (Mt 6. 19
- 21), pode-se dizer que há também um hierarquia, apontando a necessidade de não se
acumular tesouros na terra “onde a traça e a ferrugem corroem e onde ladrões escavam e
roubam” (Mt 6. 19), mas, no céu, “onde traça nem ferrugem corrói, e onde ladrões não
escavam nem roubam” (Mt 6. 20). Ademais, esse valor é reforçado por um lugar comum, qual
seja o fato de se preferir o duradouro ao perecível, porquanto um lugar da quantidade.
Jesus hierarquiza a prioridade de se buscar o reino dos céus e a sua justiça em primeiro plano
do que as coisas materiais, como a comida e a bebida e a vestimenta (Mt 6. 25 – 34): “[...]
buscai, pois, em primeiro lugar, o reino e a sua justiça [...]”. Para reforçar tal adesão, ao final
do argumento, ele lança mão dos lugares do existente afirmando a superioridade do que
existe, sobre o possível, o eventual, afirmando: “Portanto, não vos inquieteis com o dia de
amanhã, pois o amanhã trará os seus cuidados; basta ao dia o seu próprio mal” (PERELMAN;
OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 106).
Por meio da verificação da prevalência de certos lugares na argumentação jesuânica, é
possível fazer uma espécie de redução desses lugares e agrupá-los mostrando quais
argumentos o orador imagina serem os mais persuasivos para seu auditório, portanto uma
forma de, por meio dessa imagem, caracterizar o auditório desse orador como tendo um
espírito clássico ou romântico.
Como prevalece o uso de lugares da quantidade no sermão em análise, esses lugares, segundo
Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005), estão ligados ao espírito clássico que, por sua
vez, tende a convencer o auditório universal. No entanto, o apelo aos argumentos da
75
quantidade pode também dizer respeito à tentativa de se mudar uma ordem estabelecida
(PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 109).
Os lugares do existente bem como os da essência utilizados no discurso em análise podem
vincular-se aos lugares da quantidade. Assim, Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p.
111) asseguram que “o que é universal e eterno, o que é racional e comumente válido, o que é
estável, duradouro, essencial, o que interessa ao maior número, será considerado superior e
fundamento de valor entre os clássicos”. Os autores ainda ressaltam que é pertinente ao
espírito clássico “justificar a importância que conferem aos lugares da qualidade
apresentando-os como um aspecto da quantidade” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA,
[1958] 2005, p. 111).
Dessa maneira, esse trabalho avança na análise buscando compreender a relação entre
convencimento e persuasão subjacente à questão dos auditórios particular e universal.
Porquanto, por meio da análise dos efeitos da argumentação, bem como do gênero retórico do
mesmo e das técnicas argumentativas elencadas por Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958]
2005) é que essa relação vai ficando mais nítida, possibilitando, por assim dizer, compreendêla melhor.
3.2.3 O GÊNERO EPIDÍCTICO E SEUS EFEITOS
A Nova Retórica contempla o duplo efeito da argumentação, qual seja a adesão tanto
intelectual quanto a ação, ou criar uma disposição para esta. Porquanto, a eficácia de uma
argumentação dá-se quando ela consegue intensificar a adesão, de maneira que se
“desencadeie nos ouvintes a ação pretendida (ação positiva ou abstenção) ou, pelo menos, crie
neles uma disposição para a ação, que se manifestará no momento oportuno” (PERELMAN;
OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 50).
Percebe-se, portanto, que o Tratado da argumentação vem romper com a cisão entre a ação
sobre o entendimento e a ação sobre a vontade, como se tivesse tratando de coisas distintas,
ou “a primeira como pessoal e intemporal e a segunda como totalmente irracional”
(PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 52, 53). Por ser contrário a essa
forma de conceber a argumentação, a nova retórica busca tratá-la em seus efeitos práticos:
76
“voltada para o futuro, ela se propõe provocar uma ação ou preparar para ela, atuando por
meios discursivos sobre o espírito dos ouvintes” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA,
[1958] 2005, p. 53), fato que contempla as duas ações, sobre o entendimento e sobre a
vontade, como complementares. Logo a Nova Retórica examina sob um novo ponto de vista o
gênero oratório epidíctico.
Os discursos epidícticos são uma parte central na arte de persuadir, afirmar isso significa
romper com a noção que os antigos tinham desse gênero vinculando-o meramente ao
espetáculo, “visando ao prazer dos espectadores e à glória do autor, mediante a valorização
das sutilezas de sua técnica” (PERELMAN, [1989] 2004, p. 67).
Por outro lado, isso significa dizer que esse gênero também está vinculado à noção de que a
intensidade da adesão que se tem de obter vai além dos resultados meramente intelectuais;
destarte, o orador, ao usar o gênero epidíctico, pode não o utilizar apenas para mostrar que
uma tese é mais provável que outra, contudo pode fazê-lo com a finalidade de reforçar a
proposição até que a ação, que essa deveria desencadear, seja efetivada (PERELMAN;
OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 54, 55).
Quanto a isso, observa-se alguns elementos no discurso de Jesus em estudo que apontam a
intenção do mesmo em utilizar-se de alguns argumentos para defender determinadas
proposições e reforçá-las de modo a desencadear a ação pretendida nos seus ouvintes. Vê-se
que, ao final do sermão, o orador faz um apelo à prudência de se ouvir suas palavras e praticálas (Mt 7. 24-27)81; por outro lado, ele aponta a insensatez de não fazê-lo. Com isso verificase que seu discurso não se destina tão somente ao intelecto, mas o orador preocupa-se com a
ação de seus ouvintes a partir de seu discurso. Finalizar o discurso com tal advertência revela
por parte do orador a intenção persuasiva com vistas à ação, algo inerente à argumentação e
ao gênero epidíctico definido por Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005).
Entretanto, esse apelo direto à ação não se dá somente no final do sermão, pois em todo o
discurso o orador palestino convida seu auditório à ação. Ele diz aos seus discípulos: “Assim
brilhe também a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras [...]” (Mt
81
“Todo aquele, pois, que ouve estas minhas palavras e as pratica será comparado a um homem prudente que
edificou a sua casa sobre a rocha; e caiu a chuva, transbordaram os rios, sopraram os ventos e deram com ímpeto
contra aquela casa, que não caiu, porque fora edificada sobre a rocha. E todo aquele que ouve estas minhas
palavras e não as pratica será comparado a um homem insensato que edificou a sua casa sobre a areia; e caiu a
chuva, transbordaram os rios, sopraram os ventos e deram com ímpeto contra aquela casa, e ela desabou, sendo
grande a sua ruína”.
77
5. 16); ele fala sobre a necessidade da prática de uma justiça superior à dos fariseus (Mt 5.
20), sobre a qual ele passa a ensinar.
No sermão em questão, percebe-se que o orador ensina como seu auditório deve ou não
praticar determinadas ações, ou ele faz um convite à abstenção, ao que diz: “Guardai-vos de
exercer a vossa justiça diante dos homens [...]” (Mt 6. 1); “Quando, pois, deres esmola, não
toques trombeta diante de ti [...]” (Mt 6. 2); “E, quando orardes, não sereis como os hipócritas
[...]. Tu, porém, quando orardes, entra no teu quarto e, fechada a porta, orarás ao teu Pai [...]”
(Mt 6. 5, 6). Assim avultam as vezes que Jesus deixa perceber sua intenção de que se pratique
o que ele está ensinando, tanto no sentido de uma ação positiva ou abstenção a fazer alguma
coisa.
Pode-se verificar que o Sermão do Monte é um discurso epidíctico. Não aquele que parecia
prender-se mais à literatura do que à argumentação, mas na perspectiva de que esse gênero
oratório serve para “reforçar uma disposição para a ação ao aumentar a adesão aos valores que
exalta” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 55, 56). Sendo assim, o
orador Jesus exalta ao mesmo tempo em que critica e completa (aprofunda) alguns valores
ligados à vida de seu auditório, sendo, portanto, sobre o homicídio ou o ódio (Mt 5.21-26),
sobre o adultério (Mt 5. 27-32), sobre o juramento (Mt 5. 33-34), sobre a vingança (Mt 5. 3842), sobre o amor ao próximo (Mt 5. 43-48). No entanto, não são apenas esses valores, já que
há outros trabalhados em seu discurso que estão ligados à prática de dar esmolas (Mt 6. 2-4),
da oração (Mt 6. 5-8), do jejum (Mt 6. 16-18) etc. Assim, no discurso epidíctico, “o orador
procura criar uma comunhão em torno de certos valores reconhecidos pelo auditório, valendose do conjunto de meios que a retórica dispõe para amplificar e valorizar” (PERELMAN;
OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 57).
Uma característica singular do orador Jesus é que ele emprega, no texto em análise, muitos
procedimentos82 da arte literária em seu discurso, recursos esses pertinentes à epidíctica, dado
que eles contribuem para promover a comunhão do auditório. Quanto a isso, Perelman e
Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 57) asseguram que “é o único gênero que, imediatamente,
faz pensar na literatura [...], o que corre mais risco de virar declamação, de tornar-se retórica,
no sentido pejorativo e habitual da palavra”. Quanto às características desse gênero, os
proponentes da Nova Retórica dizem mais:
82
Esses elementos serão analisados mais à frente como estratégias argumentativas.
78
Não receando a contradição, nele o orador transforma facilmente em valores
universais, quando não em verdades eternas, o que, graças à unanimidade
social, adquiriu consistência. Os discursos epidíctico apelarão com mais
facilidade a uma ordem universal, a uma natureza ou a uma divindade que
seriam fiadoras dos valores incontestes e que são julgados incontestáveis. Na
epidíctica, o orador se faz educador (PERELMAN; OLBRECHTSTYTECA, [1958] 2005, p. 57).
O discurso epidíctico, de igual modo toda educação, visa mais ao aumento da adesão ao que
já é aceito do que a mudança nas crenças. Assim, mostrou-se que Jesus parte de um acordo
sobre o cumprimento ou a validez dos mandamentos da Lei (Mt 5. 17-19); pois, o que ele faz
é aprofundar o entendimento de seus ouvintes a respeito dos valores provenientes desses
mandamentos, ao mesmo tempo em que busca orientá-los sobre as más interpretações e
aplicações ensinadas pelos fariseus, trazendo à luz uma justiça superior à praticada e à
ensinada pelos rabinos da época.
Mesmo que a epidíctica não seja o lugar da controvérsia, isso não significa dizer que o orador
não pode tocar em assuntos que soem controversos ao seu auditório. No entanto, como
educador, para fazê-lo, faz-se necessário que ele usufrua de uma confiança suficiente,
procedendo, por sua vez, “com o auxílio de argumentos a que Aristóteles chama didáticos e
que os ouvintes adotam porque ‘o mestre disse’” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA,
[1958] 2005, p. 60). Quanto ao fato de o orador de tal gênero precisar gozar de certa
confiança que advém das qualificações para tomar a palavra, já verificamos anteriormente83
que Jesus as tem, bem como ele não é inábil no uso das palavras.
Destaca-se que o discurso epidíctico não visa, em primeiro plano, a valorização do orador,
mas visa a criação de certa disposição entre os ouvintes, pelo que, segundo Perelman e
Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 60), é possível aproximá-lo do pensamento filosófico.
Perelman ([1969] 2004, p. 68) assegura que, se o gênero epidíctico coloca quem o pronuncia
em destaque, isso não é mais do que uma consequência do discurso, porém “ao querer
transformar isso na própria meta do discurso, corre-se o risco de expor-se ao ridículo”.
Ademais, a epidíctica releva a ação exercida pelo discurso sobre a integralidade dos ouvintes.
E como toda argumentação é substituta da força material, da coerção, assim também ela é
“uma ação que tende sempre a modificar um estado de coisas preexistente. Isso é verdade, até
83
Na seção 2.2.1 O Contato do Orador com seu Auditório.
79
no que concerne ao discurso epidíctico” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958]
2005, p. 61).
Por conseguinte, verifica-se, a partir da reação dos ouvintes ao final do sermão, que eles - em
algum sentido - já não eram mais os mesmos, chegando a compararem a eficácia do discurso
ouvido em relação aos discursos de outros mestres da Lei. Quanto a isso, Mateus narra que
“quando Jesus acabou de proferir estas palavras, estavam as multidões maravilhadas da sua
doutrina; porque ele as ensinava como quem tem autoridade e não como os escribas” (Mt 7.
28,29).
Verifica-se que o discurso do orador Jesus, no Sermão do monte, tem fortes características
educativas, porém isso não invalida a ênfase nova dada por ele sobre valores já consagrados
socialmente que repousa sobre determinados acordos estabelecidos e aceitos por seu
auditório. Por assim dizer, o que há de revolucionário, talvez, sejam as ênfases novas dadas a
respeito de alguns valores, como foi explicitado na seção anterior84.
84
Seção: 3.2.2 “Acordos: convencendo e persuadindo auditórios”
80
4
AS TÉCNICAS ARGUMENTATIVAS DO ORADOR JESUS CRISTO
Na análise das técnicas argumentativas, faz-se necessário separar algumas articulações que
são partes integrantes de um mesmo discurso que se encaixa num processo argumentativo
maior. Fazendo isso, corre-se o risco de incorrer em ambiguidades, dado que alguns
argumentos estão imbricados em outros; portanto, alguns esquemas discernidos na análise são
hipóteses mais ou menos prováveis (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p.
212).
Na análise das técnicas argumentativas presentes no Sermão do monte, por uma questão de
praticidade, os argumentos estão dispostos seguindo a sequência das noções apresentadas no
Tratado da argumentação, sendo, dessa forma, retirados da estrutura original os dados para
serem agrupados de acordo com o conceito trabalhado.
Ao se reconhecer que há alguns argumentos que demandariam um trabalho de explicitação
bastante denso para enquadrá-los em determinada categoria conceitual, prefere-se apresentar,
nesse trabalho, os argumentos que podem ser verificados de forma mais ou menos explícita no
texto analisado.
4.1 OS ARGUMENTOS QUASE-LÓGICOS
O Tratado da argumentação filia-se a uma argumentação retórica em que a contradição pode
estar presente, dado que o orador busca a intensidade da adesão do auditório. Logo, a
argumentação não é coerciva, isso porque, segundo Perelman (2004, p. 77), não há coerção
em retórica, diferentemente da lógica, que se poderia chamar de formal.
Nisso a lógica diferencia-se da retórica, pois nessa o raciocínio é construído no interior de um
sistema supostamente aceito. No entanto, na retórica, a argumentação não se desenvolve no
interior de “um sistema cujas premissas e regras de dedução são unívocas e fixadas de
maneira invariável” (PERELMAN, 2004, p. 77).
Entretanto, isso não invalida a aproximação de possíveis comparações da argumentação com
raciocínios formais, lógicos, matemáticos. Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 219)
chamam os argumentos que se aproximam da lógica formal de quase-lógicos. As
características comparáveis destes argumentos com a demonstração formal dar-se-ão, pois o
81
esquema formal serve de molde à construção do argumento, passando pelo processo de
inserção dos dados nesse esquema, tornando-o comparável e aproximável do raciocínio
lógico.
A força persuasiva do argumento quase-lógico vem da aproximação dos raciocínios
incontestados. Contudo, isso não significa privilegiar o raciocínio formal em detrimento da
argumentação, muito pelo contrário, asseguram os proponentes do Tratado da argumentação
([1958] 2005, p. 219) que “o raciocínio formal resulta de um processo de simplificação que só
é possível em condições particulares, no interior de sistemas isolados e circunscritos”,
conforme dito anteriormente.
O uso que o orador pode fazer da argumentação quase-lógica pode se dar de maneira mais ou
menos explícita. Quando julgar necessário, ele pode utilizar dos raciocínios que se aproximam
do formal prevalecendo-se do prestígio do pensamento lógico; quando não, esses podem
apenas ser utilizados de forma assessória, de maneira subjacente.
O orador pode utilizar de um esquema quase-lógico apresentando a incompatibilidade de um
pensamento, uma atitude, ou algo semelhante por parte de quem se pretender persuadir.
Segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 222), “a incompatibilidade é sempre
relativa a circunstâncias contingentes, sejam estas construídas por leis naturais, fatos
particulares ou decisões humanas”. Observa-se alguns usos feitos por Jesus de argumentos
baseados nesse molde, até porque “algumas incompatibilidades podem resultar da aplicação
em determinadas situações de várias regras morais ou jurídicas, de textos legais ou sacros”
(PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 223).
Após Jesus dizer que os perseguidos por causa da justiça e por causa dele eram (são) bemaventurados (Mt 5. 10,11), ele faz a seguinte afirmação: “Vós sois o sal da terra; ora, se o sal
vier a ser insípido, como lhe restaurar o sabor? Para nada mais presta senão para, lançado
fora, ser pisado pelos homens”. Nesse caso, como assegura Luz (1993, p. 312), “La metáfora
‘sal da terra’ indica solo indirectamente lo que se exige al oyente la sal no es sal para sí, sino
que es condimento para el manjar. Del mismo modo, los discípulos no existen para sí mismos,
sino para la tierra.”85, o que reforça o ensino de que não importa se os discípulos são
85
“A metáfora ‘sal e terra’ indica só indiretamente o que se exige ao ouvinte, o sal não é sal para si, senão que é
condimento para o manjar. Do mesmo modo, os discípulos não existem para si mesmos, senão para a terra.”
(tradução nossa).
82
perseguidos, eles devem ser sal para a terra. Nesse caso, apresenta-se uma incompatibilidade
dos discípulos não praticarem as obras de justiça que foram chamados por Deus para fazê-las.
Para reforçar a adesão ao argumento, de forma mais nítida, Jesus, em seguida, faz uso do
mesmo esquema no trecho que segue:
Vós sois a luz do mundo. Não se pode esconder a cidade edificada sobre um
monte; nem se ascende uma candeia para coloca-la debaixo do alqueire86,
mas no velador, e alumia a todos os que se encontram em casa. Assim brilhe
a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e
glorifiquem a vosso Pai que está nos céus (Mt 5. 14, 15, 16).
Portanto, assim como tentar esconder uma cidade edificada em cima do monte é incompatível
senão absurdo, de igual modo, acender uma lâmpada para depois abafá-la com um alqueire o
é também, pois normalmente a intenção inicial de quem constrói a cidade sobre um monte não
é escondê-la - caso o fosse a construiria em outro local -, nem de quem acende a candeia é
imediatamente abafar a sua luz até apagar. Desse modo, a compatibilidade do discípulo com o
chamado do Pai (Deus) está em ele brilhar a luz, ou seja, anunciar a justiça do reino
proclamada por Jesus mesmo e apesar da perseguição -“[...] Bem-aventurados sois quando,
por minha causa, vos injuriarem, e vos perseguirem, e, mentindo, disserem todo mal contra
vós.” (Mt 5. 10 - 12). Dessa maneira, Jesus argumenta em favor de os discípulos não
desanimarem diante da afronta, caso o façam, é incompatível com a convocação feita a eles.
Em seguida, infere-se que o orador galileu prevê a objeção por parte de alguns ouvintes e
defende-se da possível acusação de incompatibilidade de seu ensino com a Lei ou os Profetas:
“Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas; não vim para revogar, vim para cumprir”
(Mt 5. 17). Para reforçar seu argumento e continuar sua argumentação, ele estabelece um
acordo com seu auditório ao confirmar a irrevogabilidade da Lei: “Porque em verdade vos
digo: até que o céu e a terra passem, nem um i ou til jamais passará da Lei, até que tudo se
cumpra" (Mt 5. 18).
A partir desse acordo, o orador mostra de imediato certo grau de incompatibilidade em
relação à Lei por parte daqueles que a violarem: “Aquele, pois, que violar um destes
mandamentos, posto que dos menores, e assim ensinar aos homens, será considerado mínimo
no reino dos céus; [...]” (Mt 5. 19). Desse modo, ele usa tal esquema argumentativo para
86
Recipiente de medida (LUZ, 1993, p. 313, em nota 35).
83
argumentar contra seus adversários (Mt 5. 20)87 de que ele não está sendo incompatível em
relação à Lei, passando, portanto, a os acusar de incompatibilidade.
Por conseguinte, em boa parte do sermão, nos capítulos 6 e 7 de Mateus, Jesus condena a
atitude hipócrita dos escribas e fariseus cujo objetivo maior estava em receber recompensas
(elogios etc.) dos homens ao praticarem suas obras; o que muitas vezes os colocava em
conflito com a vontade do Pai celeste por preferir agradar mais aos homens com obras de
justiça externas do que com atitude coerente com a justiça de Deus (Mt 6.1)88. Por conta
disso, algumas vezes, o orador chama-os de hipócritas (Mt 6. 5, 16; 7. 5), termo que se
enquadra na noção de incompatibilidade. Quanto à postura de hipocrisia, Perelman e
Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 226) fazem as seguintes considerações:
O hipócrita finge adotar uma regra de conduta conforme à dos outros para
evitar ter de justificar uma conduta por ele preferida ou adotada na realidade.
Muitas vezes foi dito que a hipocrisia era uma homenagem que o vício presta
à virtude: conviria precisar que a hipocrisia é uma homenagem a um
determinado valor, aquele que se sacrifica, simulando ao mesmo tempo
segui-lo, porque se recusa a confrontá-lo com outros valores.
Esse mesmo orador utiliza ainda da força desse molde quase-lógico ao ensinar sobre a
tentativa de buscar tanto a riqueza quanto a Deus: “Ninguém pode servir a dois senhores;
porque ou há de aborrecer-se de um e amar a outro, ou se devotará a um e desprezará ao
outro. Não podeis servir a Deus e às riquezas” (Mt 6. 24). Dessa forma, esse argumento é
desenvolvido de maneira que a adesão que se busca é a exposta no versículo 33 do mesmo
capítulo: “buscai, pois, em primeiro lugar, o seu reino e a sua justiça [do Pai celeste] [...]”.
Por fim, Jesus lança mão de mais uma metáfora para ensinar sobre o cuidado que se deve ter
para não ser enganado pelos falsos profetas, portanto, ele mostra a incompatibilidade que
possibilita identificá-los como tais (Mt 7. 15 – 20). Ele assegura o seguinte: “Pelos seus frutos
os conhecereis. Colhem-se, porventura, uvas dos espinheiros ou figos dos abrolhos? Assim,
toda árvore boa produz bons frutos, porém a árvore má produz frutos maus” (Mt 7. 16, 17).
Tal incompatibilidade do falso profeta é revelada a partir das obras (frutos), que são
incompatíveis com a natureza (árvore) do Pai celeste, portanto se conhece, de fato, se alguém
é um falso profeta ou não a partir das obras dele.
87
Pode-se perceber que tais acusadores eram os escribas e fariseus, de igual modo estes mesmos passam a ser
objeto direto dessa acusação de incompatibilidade com a Lei, dado que Jesus assegura aos seus ouvintes que a
justiça deles deveria exceder a de tais mestres e religiosos (Mt 5. 20).
88
“Guardai-vos de exercer a vossa justiça diante dos homens, com o fim de serdes vistos por eles; doutra sorte,
não tereis galardão junto de vosso Pai celeste”.
84
Outro esquema quase-lógico identificado no Sermão do monte é o que Perelman e OlbrechtsTyteca ([1958] 2005, p. 233) chamam de ridículo. Os autores do Tratado da argumentação
asseguram que o ridículo é aquilo que merece ser confirmado pelo riso. “Uma afirmação é
ridícula quando entra em conflito, sem justificação, com uma opinião aceita” (PERELMAN;
OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 233), tendo, também, um papel análogo ao que o
absurdo desempenha na demonstração.
Perelman e Olbrechts-Tyeca asseguram ([1958] 2005, p. 237) que se mede o prestígio de um
chefe pela capacidade de ele impor regras que pareçam ridículas fazendo com que seus
subordinados admitam-nas. Para se fazer admitir uma regra que se oponha aos fatos ou à
razão, é preciso que quem o propõe tenha um prestígio elevado, sobre isso se diz que “um
prestígio sobre-humano seria necessário para opor-se aos fatos ou à razão: daí o alcance do
credo quia absurdum89” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 237).
A partir disso, pode-se perceber que Jesus ataca o que se admitia válido, sujeito a lançar-se ao
ridículo ou mesmo ao absurdo ao ensinar que não se deveria mais se exercer a vingança
ensinada pelos escribas e fariseus, portanto, não sendo mais a regra “olho por olho, dente por
dente90” (Mt 5. 38), ao que ele diz algo que poderia - no primeiro momento - parecer risível
ou mesmo ridículo:
Eu, porém, vos digo: não resistais ao perverso; mas, a qualquer que te ferir
na face direita, volta-lhe também a outra; e, ao que quer demandar contigo e
tirar-te a túnica, deixa-lhe também a capa. Se alguém te obrigar a andar uma
milha, vai com ele duas. Dá a quem te pede e não voltes as costas ao que
deseja que lhe emprestes (Mt 5. 39 - 42).
É preciso que fique esclarecido que, por ser algo ensinado pelos fariseus ou meramente pela
tradição (Mt 5. 38), Jesus não está se opondo à Lei, contudo aos valores ensinados por esses
mestres, o que condiz com o que Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 237) afirmam:
“normalmente a argumentação, obra humana, apenas se opõe ao que não é considerado
objetivamente válido”. Portanto, para Jesus, e possivelmente para boa parte de seu auditório,
aqueles mestres não eram inatacáveis e nem seus ensinos absolutamente indiscutíveis, assim o
ensino de Jesus é uma alternativa interpretativa sobre a Lei ao ensino dos mestres de então.
89
“Creio embora seja absurdo” (Tradução nossa).
Os fariseus apelavam para o que estava escrito em Êxodos 21. 24, 24 (“Olho por olho, dente por dente, mão
por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferimento por ferimento, golpe por golpe”), que ensina que
quem deve aplicar a justiça eram os tribunais civis com o fim de desencorajar a vingança privada, isso pode ser
depreendido também a partir de Levíticos 24. 14. Contudo eles ensinavam o oposto, apelando para tais textos
para justificar a retribuição e a vingança pessoais.
90
85
No discurso do mestre palestino do primeiro século, é possível identificar mais um recurso
quase-lógico utilizado: a regra de justiça. Esse esquema ganha força por recorrer ao mesmo
princípio da justiça formal. Segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 248), “a
regra de justiça requer a aplicação de um tratamento idêntico a seres ou a situações que são
integrados numa mesma categoria”.
O uso explícito que esse orador faz da regra de justiça é parte de uma oposição que ele faz ao
que era ensinado: “amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo91” (Mt 5. 43). Contrário a tal
ensino, ele argumenta em favor da necessidade de amar inclusive os inimigos: “amai os
vossos inimigos” (Mt 5. 44); mostra ainda que o Pai celeste “faz nascer o seu sol sobre maus e
bons e vir chuvas sobre justos e injustos” (Mt 5. 45). Portanto, ao tratar do amor ao próximo
(Mt 5. 43 – 48), ele ensina sobre a aplicação de tal justiça (amor) a todos e não apenas ao
próximo ou aos irmãos da religião, mas a todos indistintamente, assim como o Pai celeste o
faz (Mt 5. 45, 48).
Ao argumentar sobre a necessidade de seus ouvintes não andarem ansiosos pela vida, pelo que
comer, beber e vestir (Mt 6. 25 – 34), Jesus recorre mais uma vez à regra de justiça para
ensinar o cuidado de Deus sobre a vida deles: “ora, se Deus veste assim a erva do campo, que
hoje existe e amanhã é lançada no forno, quanto mais a vós outros, homens de pequena fé?”
(Mt 6. 30). Com isso o orador mostra que, se Deus providencia comida para as aves do céu
(Mt 6. 26) e veste os lírios do campo (Mt 6. 28), por razões ainda mais fortes aplicará tal
justiça sobre os partícipes do reino dos céus.
A regra de justiça é aplicada também quando esse orador ensina sobre o ato de pedir 92 alguma
coisa a Deus, ao mostrar que, se um filho pedir pão ao pai, ele não o dará uma pedra, ou se
pedir peixe, não o dará uma cobra (Mt 7. 9, 10), assim o orador conclui com uma pergunta
retórica: “ora, se vós, que sois maus, sabeis dar boas dádivas aos vossos filhos, quanto mais
vosso Pai, que está nos céus, dará boas coisas aos que lhe pedirem?” (Mt 7. 11). Isso
induzindo o ouvinte a tirar suas próprias conclusões sobre a justiça do Pai celeste.
Na sequência, Jesus faz uma afirmação denominada pelos teólogos de a Regra Áurea ou a
regra de ouro por ser norteadora das relações interpessoais e ser chave interpretativa de
muitos ditos jesuânicos, qual seja: “tudo quanto, pois, quereis que os homens vos façam,
91
Essa segunda parte “odiarás o teu inimigo” não é encontrada em nenhuma parte da Lei, portanto, Jesus está se
opondo aos ensinos de alguns fariseus e mestres da época que assim ensinavam (HENDRIKSEN, 2001, p. 438).
92
Tradicionalmente se compreende como o ato de orar a Deus.
86
assim fazei-o vós também a eles, porque esta é a Lei e os Profetas” (Mt 7.12). Esta afirmação
se enquadra de maneira bastante explícita na regra de justiça, dado que se pode dela
depreender que o mesmo tratamento que alguém queira receber, é preciso também dar.
Esse dito ainda pode ser analisado sob o ponto de vista dos argumentos de reciprocidade, os
quais “visam aplicar o mesmo tratamento a duas situações correspondentes” (PERELMAN;
OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 250), portanto o que calca tal argumento é a noção
de simetria. Quanto a isso, Perelman e Olbrechts-Tyteca asseguram que a identificação das
situações aplicáveis à reciprocidade é indireta, o que diferencia da regra de justiça que tende a
recorrer a situações mais diretas.
Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 252), como exemplo de um argumento de
reciprocidade, citam o seguinte enunciado considerado por ele como judaico-cristão: “Não
faças a outrem o que não gostarias que te fizessem”; por certo, esse enunciado é semelhante
ao dito jesuânico supracitado93 (Mt 7. 12), porém, na forma negativa, tal formulação é
normalmente atribuída a Confúcio, que, segundo Hendriksen (2001, p. 514) citando o
Mahabarata94 (XIII. 5571) é: “Nada faça ao seu próximo que em seguida você não queira que
seu próximo faça a você”. Diante disso, tanto o enunciado citado pelos autores da Nova
Retórica como a formulação jesuânica podem ser enquadrados na mesma categoria de
argumento de reciprocidade.
O princípio de reciprocidade pode servir de argumento mesmo quando a situação referida pelo
orador seja apresentada como hipótese; isto se de fato o princípio estiver fundamentado numa
simetria de situações. Assim, Jesus faz outro uso desse argumento ao ensinar seus ouvintes:
“não julgueis, para que não sejais julgados. Pois, com o critério com que julgardes, sereis
julgados; e, com a medida com que tiverdes medido, vos medirão também” (Mt 7. 1,2). Dessa
maneira, o orador primeiro expõe o princípio de reciprocidade – que é não julgar sob pena de
ser julgado - e em seguida ele interroga seus ouvintes “por que vês tu o argueiro no olho de
93
Por ser semelhante, tal enunciado muitas vezes é de fato confundido com o enunciado judaico-cristão de Jesus,
tanto que a Igreja antiga aceitava ambas as formulações (LUZ, 1993, p. 545), contudo não há uma formulação
com o início negativo no texto bíblico. Essa formulação negativa, segundo Luz (1993, p. 543), aparece em
escritos judeu-helenísticos, por exemplo, na Carta de Aristeas, em Eclo (LXX), no livro de Tobias, nos
Testamentos dos doze patriarcas e em Filón. Ver nota 6, em Luz (1993, p. 543). Jeremias (1974, p. 249) mostra
que a versão que corria no ambiente de Jesus em sua época era de um rabino chamado Hillel (20 a.C), por sua
vez, era uma versão negativa do dito.
94
É o dos maiores épicos clássicos da Índia, considerado por alguns como um dos maiores textos sagrados da
Índia.
87
teu irmão, porém não reparas na trave que está no teu próprio?”95 (Mt 7. 3). Disto se pode
inferir que o orador esteja acusando os escribas e fariseus pela atitude de julgar os outros, ao
mesmo tempo em que está ensinando seus ouvintes a não fazerem o mesmo.
Na oração ensinada por Jesus, conhecida como a oração do Pai nosso (Mt 6. 9 - 15), é
possível verificar o orador recorrendo ao argumento de reciprocidade ao afirmar: “porque, se
perdoardes aos homens as suas ofensas, também vosso Pai celeste vos perdoará; se, porém,
não perdoardes aos homens [as suas ofensas], tampouco vosso Pai vos perdoará as vossas
ofensas” (Mt 6. 14, 15). Dessa maneira, ele aponta para o fato de que o perdão divino para se
efetivar no homem precisa da reciprocidade do perdão do homem com seu semelhante. A
reciprocidade pode ser explicitada da seguinte maneira: se Deus perdoa o homem, o homem
precisa perdoar, caso contrário, Deus não o perdoará, por esse negar a passar adiante o perdão
divino para com ele.
De uso desse mesmo argumento quase-lógico, Jesus assegura aos seus ouvintes que, se a
justiça deles não excedesse a dos escribas e fariseus, eles não entrariam no reino dos céus (Mt
5. 20). Ele identifica a simetria de situações que seus ouvintes poderiam estar, ou seja, ele
alerta para o fato de que seus discípulos poderiam cair no mesmo erro dos escribas e fariseus,
já que se os mestres da época eram condenáveis por determinadas motivações erradas e
atitudes vinculadas a não observância coerente dos mandamentos (Mt 5. 19) que dizem
respeito à prática da justiça, de igual modo, seus discípulos e ouvintes poderiam sofrer as
mesmas consequências. Nota-se em: “[...] se a vossa justiça não exceder em muito a dos
escribas e fariseus, jamais entrareis no reino dos céus” (Mt 5. 20).
Outro argumento da categoria quase-lógica utilizado pelo mestre Jesus Cristo são os
argumentos em que se pode reconhecer a transitividade. Esta, segundo Perelman e OlbrechtsTyteca ([1958] 2005, p. 257, grifo do autor), é “uma propriedade formal de certas relações
que permite passar da afirmação de que existe a mesma relação entre os termos a e b e entre
os termos b e c, à conclusão de que ela existe entre os termos a e c”. Assim, classificam-se
como relações transitivas as de igualdade, de superioridade, de inclusão e de ascendência.
A transitividade que requer demonstrações enquadra-se na estrutura dos chamados
argumentos de transitividade quase-lógicos quando se exige dela adaptações, precisões ou
95
“A viga é uma pesada peça de madeira usada em construção como suporte horizontal para travar o
madeiramento. A “pequena mancha” ou “argueiro” é uma pequenina farpa de palha ou madeira, e talvez uma
minúscula lasca de uma viga” (HENDRIKSEN, 2001, p. 504, grifos do autor).
88
mesmo quando tal transitividade é questionada no âmbito formal. Um exemplo clássico de tal
argumento é a máxima “os amigos de nossos amigos são nossos amigos”, por ser assim, a
amizade configura-se como uma relação transitiva (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA,
[1958] 2005, p. 257).
“As relações entre valores são amiúde apresentadas como geradoras de novas relações entre
valores, sem que se recorra a outra justificação que não a transitividade” (PERELMAN;
OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 259). Por sua vez, Jesus utiliza tal esquema para
poder ensinar que merece ser julgado não apenas quem mata, mas quem tem alguma atitude
de ira, que pressupõe o sentimento de ódio. A partir do dito jesuânico abaixo, pode-se
depreender que o homicídio é a expressão máxima da ira, ou seja, que o homicídio
normalmente tem seu nascedouro nela:
Ouvistes que foi dito aos antigos: Não matarás; e: Quem matar estará sujeito
a julgamento. Eu, porém, vos digo que todo aquele que sem motivo se irar
contra seu irmão estará sujeito a julgamento; e quem proferir um insulto a
seu irmão estará sujeito a julgamento do tribunal; e quem lhe chamar: Tolo,
estará sujeito ao inferno de fogo (Mt 5. 21 – 22).
Portanto, o “não matarás” (Mt 5. 21), que diz respeito ao valor sobre o homicídio, tem uma
relação de transitividade com a ira, sendo esta o elemento inicial e transitivo em um processo
que, perpassando pelo insulto, pelo xingamento -“chamar: Tolo [...]” - (Mt 5. 22), e numa
espécie de ordem, pode-se depreender que o passo seguinte é o próprio ato homicida. Tal
argumento é usado para mostrar aos seus ouvintes que não merecia ser chamado de pecado
digno de julgamento somente o ato de matar, sendo este, de modo geral, apenas a
consequência de algo mais profundo, a ira.
Outra relação transitiva pode ser observada no discurso de Jesus, está na antítese sobre o
adultério - “ouvistes que foi dito: Não adulterarás. Eu, porém, vos digo: qualquer que olhar
para uma mulher com intenção impura, no coração, já adulterou com ela” (Mt 5. 27, 28,
grifo nosso) -, posto que o orador mostra que o adultério não se dá apenas na prática do ato
sexual, mas adultera também quem olha outra pessoa (mulher) com “intenção impura” (Mt 5.
28). Há uma relação transitiva no caso em questão, dado que o elemento de transitividade é a
intenção impura no coração.
A relação transitiva pode ser explicitada pela relação de implicação ou pela relação de
consequência lógica, sobre a qual se fundamenta o raciocínio silogístico. Jesus encadeia três
perícopes (Mt 6. 19 – 24), utilizando-se de forma mais explícita a força desse raciocínio.
89
A primeira dessas perícopes é ao ensinar sobre a necessidade de cultivar os tesouros no céu:
“Não acumuleis para vós outros tesouros sobre a terra, onde a traça e a ferrugem corroem e
onde ladrões escavam e roubam; mas ajuntai para vós outros tesouros no céu, onde traça nem
ferrugem corrói, e onde ladrões não escavam, nem roubam; [...]” (Mt 6. 19 - 20). O orador
inicia o argumento mostrando a desvantagem de se juntar tesouros na terra, qual seja o risco
de a traça e a ferrugem corroerem e os ladrões roubarem. Em seguida, mostra a vantagem de
juntá-los no céu, onde a traça e a ferrugem não podem corroer, nem ladrões podem roubá-los.
A partir disso ele emprega a peça final do raciocínio que dá suporte aos seus ouvintes tirarem
suas próprias conclusões, sendo esta última a premissa básica desse silogismo: “[...] porque,
onde está o teu tesouro, aí estará também o teu coração” (Mt 6. 21).
Para que fique mais nítida a presença do mecanismo silogístico no raciocínio, pode-se
formular da seguinte maneira: onde está o tesouro do homem, ali está o coração dele. Ora, se
ele acumula tal tesouro na terra, evidencia-se que o coração está nas coisas da terra; contudo,
se o homem acumula seu tesouro no céu, evidencia-se que o coração do mesmo está nas
coisas do céu.
Na segunda perícope, pode-se observar de forma clara o silogismo montado a partir de uma
metáfora que trata da relação dos olhos como lâmpada para o corpo:
São os olhos a lâmpada do corpo [premissa maior]. Se os teus olhos forem
bons [premissa menor], todo o teu corpo será luminoso [conclusão]; se,
porém, os teus olhos forem maus [premissa menor], todo o teu corpo estará
em trevas [conclusão]. Portanto, caso a luz que em ti há sejam trevas, que
grandes trevas serão! (Mt 6. 22 , 23, grifo nosso).
Disso, pode-se interpretar que o orador está partindo de um acordo com seu auditório ou de
um lugar comum, explicitado por meio da metáfora “são os olhos a lâmpada do corpo”, em
que os olhos são os receptores da luz, “o guia do qual todo o corpo depende para a sua
iluminação e direção” (HENDRIKSEN, 2001, p. 488). Partindo desse entendimento, o olho
pode ser chamado de a luz ou a lâmpada para o corpo. Desta maneira, se o olho for bom,
sadio, são (aplous)96, o corpo será bem guiado, terá luz e direção; do contrário, não terá tal
iluminação. Sendo assim, há um raciocínio que leva a uma conclusão, uma consequência
lógica, no caso há a possibilidade de duas conclusões, ficando a cargo do ouvinte concluir a
96
O significado básico desse adjetivo é simples, singular, sem complicação. Ao que se faz a transição do
significado básico, simples ou singular, para sem qualquer mistura ou defeito, sem mancha, e daí, são,
saudável, bom (HENDRIKSEN, 2001, p. 488).
90
respeito da qualidade da luz dos olhos, que, por sua vez, remente metaforicamente ao
discernimento espiritual.
Na terceira perícope, Jesus retoma a questão das riquezas, que dialoga com a questão de juntar
tesouro na terra, e assegura que “ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de
aborrecer-se de um e amar ao outro, ou se devotará a um e desprezará ao outro. Não podeis
servir a Deus e às riquezas” (Mt 6. 24). Dessa forma, o primeiro termo desse raciocínio é a
impossibilidade de se servir a dois senhores, sendo que a consequência é agradar a um e
acabar por desprezar o outro; ao que disso ele aplica utilizando-se da força do raciocínio para
assegurar que não se pode servir a Deus e às riquezas.
Ainda da força da consequência lógica de tal raciocínio, ele aprofunda sua argumentação em
favor de servir a Deus em vez de se deixar ficar ansioso pelas riquezas ou pelas coisas da vida
(Mt 6. 25 – 34). Pelo uso de tal força, pode-se ousar afirmar que o orador era consciente de tal
intensidade que ele formula o enunciado seguinte, de forma a requerer a força do argumento
utilizado: “Por isso, vos digo: não andeis ansiosos pela vida [...]” (Mt 6. 25).
É possível observar alguns usos que poderiam entrar na categoria de argumentos de
transitividade, por demandar um longo trabalho de explicitação, prefere-se aqui não abordálos no momento, dado que os mesmos textos são objetos mais explícitos de outros
argumentos; ademais, por conta também de esses raciocínios serem bastante variados, como
asseguram Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 261).
No amplo quadro dos argumentos quase-lógicos, os raciocínios que recorrem à divisão do
todo em suas partes gozam, de maneira geral, de bastante uso no discurso de Jesus, pois a
compreensão do todo como a soma de suas partes serve de fundamento para vários
argumentos, qualificados por Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 265) como
argumentos de divisão ou de partição.
No argumento por divisão, as partes devem se relacionar de modo exaustivo, no entanto, sua
escolha pode ser feita de acordo com o desejo de quem o utiliza, contanto que seja possível
uma reconstrução do conjunto que sofreu a partição. Um exemplo disso é o que Jesus faz ao
argumentar e estabelecer um acordo com seu auditório sobre a irrevogabilidade da Lei:
91
“Porque em verdade vos digo: até que o céu e a terra passem, nem um i [iota]97 ou til
[keraia]98 jamais passará da Lei, até que tudo se cumpra” (Mt 5. 18)99.
Ao fazer isso, Jesus mostra que até mesmo a letra menor da Lei é importante. Dito isso, ele
apresenta as consequências de se violar qualquer um dos mandamentos, bem como seus
benefícios, lançando mão do raciocínio da divisão do todo em suas partes:
Aquele, pois, que violar um destes mandamentos, posto que dos menores, e
assim ensinar aos homens, será considerado mínimo no reino dos céus;
aquele, porém, que os observar e ensinar, esse será considerado grande no
reino dos céus (Mt 5. 19).
Sendo assim, o ato de violar um mandamento acaba por desmerecer o todo no qual a parte
está inclusa e por ir de encontro com a irrevogabilidade da Lei, por ora, ratificada pelo orador
(Mt 5. 18).
O argumento de divisão exige que se tenha um conhecimento das relações que as partes
mantêm com o todo. Por vezes, cumpre ao orador explicitar, de alguma maneira, tal relação.
Assim sendo, é isso que o orador Jesus faz ao argumentar em favor de não se fazer qualquer
tipo de juramento com a finalidade de não cumprir, mesmo que não se esteja o fazendo
diretamente em nome de Deus:
Também ouvistes que foi dito aos antigos: Não jurarás falso, mas cumprirás
rigorosamente para com o Senhor os teus juramentos. Eu, porém, vos digo:
de modo algum jureis; nem pelo céu, por ser o trono de Deus; nem pela
terra, por ser estrado de seus pés; nem por Jerusalém, por ser cidade do
grande Rei; nem jures pela tua cabeça, porque não podes tornar um
cabelo branco ou preto. Seja, porém, a tua palavra: Sim, sim; não, não. O
que disto passar vem do maligno (Mt 5. 33-37, grifo nosso).
Os escribas e fariseus faziam interpretações dos mandamentos100, especificamente a respeito
do juramento, de forma a justificar suas atitudes equivocadas. Quanto a isso, Hendriksen
(2001, p. 431) afirma que “no pensamento dos escribas e fariseus e seus precursores, um voto
jurado ao “Senhor” devia ser guardado; ao contrário, um voto em relação ao qual não se
97
O iota é uma letra bem pequena em grego, que é a tradução do yodh hebraico, diz-se isso porque Antigo
Testamento foi escrito em hebraico, sendo a menor letra do alfabeto desse idioma a yodh, que soa com o i
(HENDRIKSEN, 2001, p. 408).
98
“A keraia é um prolongamento muito pequeno, um ínfimo sinal recurvo que distingue uma letra hebraica de
outra” [...] algo que se poderia chamar de vírgula. “O significado, pois, é que nem mesmo o menor aspecto o
Antigo Testamento deixará de cumprir” (HENDRIKSEN, 2001, p. 408).
99
Hendriksen (2001, p. 406) utiliza de uma tradução menos literal para o texto, que é esclarecedora: “Porque
solenemente lhes declaro: até que o céu e a terra desapareçam, não desaparecerá da lei, nem mesmo a menor das
letras, nem sequer uma vírgula sem que tudo se cumpra (o que ela exige) se cumpra”.
100
Levíticos 19. 12; Números 30. 2; Deuteronômio 23. 21.
92
mencionava o nome do Senhor era considerado de somenos importância”. Dessa forma, para
mostrar que tudo (o céu, a terra, a Jerusalém, a cabeça) pertence a Deus, sendo este soberano,
e qualquer que fosse o juramento estava fazendo em nome de Deus, mesmo sem citá-lo, Jesus
recorre ao argumento de divisão, usando, portanto, a força desse raciocínio quase-lógico para
condenar tal atitude hipócrita.
Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 274) afirmam que “a argumentação não poderia
ir muito longe sem recorrer a comparações, nas quais cotejam vários objetos para avaliá-los
um em relação ao outro”, sendo esta, portanto, a característica dos argumentos de
comparação.
Os argumentos de comparação são os que - por meio deles - pode se comparar duas realidades
entre si e são apresentados como constatações de fato, porquanto distinguem-se de um mero
juízo de semelhança ou de analogia, dado que este juízo é menos suscetível de prova do que
aqueles, sendo, em geral, uma pretensão do orador. Por sua vez, a comparação implica numa
ideia de mediação nos enunciados, mesmo que qualquer critério para realizar a medição não
esteja presente. Por ter essas características, os argumentos de comparação são quase-lógicos
(PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 274).
Nessa categoria de comparação, as bem-aventuranças (Mt 5. 3–12) enunciadas por Jesus
podem ser enquadradas como argumento de comparação, isso porque ele fala de
características ou valores cultivados por alguns de seus ouvintes, e que mesmo que tais
valores pudessem parecer desprezíveis na sociedade da época, eram, contudo, valorizados e
tidos em grande estima no reino dos céus, tanto que os que encarnam tais valores - segundo o
orador - têm a promessa de receberem benefícios futuros, sendo que para cada valor
encarnado há uma recompensa futura (exemplo: “bem-aventurados os misericordiosos,
porque alcançarão misericórdia (Mt 5. 7)). Porquanto, o orador compara duas realidades: a
presente, terrena; e a futura, celestial. De qualquer maneira, ele fala de uma dimensão
espiritual por demais valorizada para seu auditório; ademais, diz-se isso porque a promessa
em relação a algo no futuro já pode gerar uma mudança no presente (COENEN; BROWN,
2000, V. I, p. 219).
Além dessa característica apresentada, que coloca as bem-aventuranças na categoria de
argumento de comparação, pode-se verificar que tal argumento manifesta-se também pelo uso
93
do superlativo, por destacar o que pode ser superior a todos os seres de uma espécie ou
mesmo por ser incomparável (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 279).
A partir dessa concepção, as bem-aventuranças (Mt 5. 3 - 11) comportam outro elemento que
as fazem também serem contempladas nessa categoria quase-lógica. Isso porque a expressão
bem-aventurado101 é a tradução de uma palavra que denota um estado de felicidade superior.
Sendo assim, “diante do céu e pelas normas do reino, eles [os que encarnam as bemaventuranças] são realmente felizes; sim “felizes” no sentido mais elevado do termo; daí
superlativamente bem-aventurados” (HENDRIKSEN, 2001, p. 369). Quanto a isso, diz-se que
“não se atribui entre os exegetas mais recentes tanta importância às virtudes como à promessa
da salvação que é transmitida pela expressão “bem-aventurado” no começo de cada
pronunciamento” (COENEN; BROWN, 2000, v. I, p. 219). Dessa forma, considera-se que os
que encarnam os valores descritos são bem-aventurados não apenas pelo que vai acontecer no
futuro, mas pelo presente estado, ou seja, por terem sido abençoados por Deus ao serem
declarados bem-aventurados.
O uso da comparação pelo orador Jesus dá-se também quando ele, para motivar e persuadir
seus discípulos a viverem a justiça do reino (Mt 5. 10, 11), mesmo sob perseguição, faz a
comparação entre os seus discípulos que seriam ou eram perseguidos e os profetas que
também sofreram perseguições antes deles: “regozijai-vos e exultai, porque é grande o vosso
galardão nos céus; pois assim perseguiram aos profetas antes de vós” (Mt 5. 12, grifo
nosso). O caráter comparativo de tal situação se dá porque, ao se comparar, colocam-se ambos
no mesmo grupo. Ora se os profetas eram estimados por terem sido perseguidos, os discípulos
também o seriam.
A comparação pode ser efetuada tanto para associar de forma positiva, como para
desqualificar alguém. Sendo assim, usar a força dessa associação para persuadir o ouvinte, de
modo que a não adesão à tese por parte deste tenha como consequência a associação do
mesmo a um grupo inferior, por certo, é valer-se da força do argumento quase-lógico de
comparação.
101
(grego makarios; hebraico ´asrê). O uso dessa expressão (makarios) normalmente aparece em
literaturas antigas associada a uma benção superior. Na linguagem poética dos gregos ela aparecia como
descrição da condição dos deuses e dos seus adoradores que compartilhavam da existência feliz deles. No
judaísmo helenístico dizia que somente a divindade atinge a bem-aventurança, os homens compartilham disso à
medida que a natureza divina penetra a criação. Na época de Jesus as bem-aventuranças eram também vistas
como veículo para transmitir virtudes que Deus ordena aos homens (COENEN; BROWN, 2000, v. I, p. 217,
219).
94
Esse procedimento é feito por Jesus ao dizer que a justiça de seus ouvintes deveria exceder a
dos escribas e fariseus - e mais uma vez verifica-se isso num dito já enquadrado em outros
argumentos. -: “[...] se a vossa justiça não exceder a dos escribas e fariseus, jamais entrareis
no reino dos céus” (Mt 5. 20). Isso é uma condição para eles serem comparados ou ao grupo
dos escribas e fariseus ou aos dos pertencentes ao reino de Deus.
Procedimento semelhante dá-se quando esse orador tenta persuadir seu auditório sobre o valor
de amar ao próximo, sendo esse próximo, inclusive, os inimigos (Mt 5. 43). Para tanto, ele
recorre à possível comparação de determinadas atitudes condenadas por ele, comparando-as
com as atitudes dos publicanos102 e dos gentios, fechando seu argumento, exortando seus
ouvintes a terem atitudes que pudessem fazê-los comparáveis com o Pai celeste (Mt 5. 46 –
48), portanto não com as atitudes dos grupos mencionados:
Porque, se amardes aos que vos amam, que recompensa tendes? Não fazem
os publicanos também o mesmo? E, se saudardes somente vossos irmãos,
que fazeis de mais? Não fazem os gentios também o mesmo? Portanto, sede
vós perfeitos como perfeito é o vosso Pai celeste (Mt 5. 46 – 48).
Esse procedimento de buscar a força do argumento quase-lógico para induzir o ouvinte a
aderir à tese proposta sob pena de ser comparado com grupos desprezíveis é, em alguns
momentos, utilizado por Jesus no Sermão do monte, na maioria das vezes, em referência aos
escribas e fariseus, designados como hipócritas. Nos exemplos a seguir, essa comparação é
feita por meio do operador argumentativo como:
Quando, pois, deres esmola, não toques trombeta diante de ti, como fazem
os hipócritas, nas sinagogas e nas ruas, para serem glorificados pelos
homens [...]. E, quando orardes, não sereis como os hipócritas [...]. E,
orando, não useis de vãs repetições, como os gentios [...]. Quando jejuardes,
não vos mostreis contristados como os hipócritas (Mt 6. 2, 5, 7, 16, grifo
nosso).
Ao final de seu discurso, Jesus utiliza a noção de comparação tanto para associar aos que
ouvem e praticam suas palavras com um homem sensato, como para associar aos que apenas
ouvem suas palavras e não as põem em prática com um homem insensato:
Todo aquele, pois, que ouve estas minhas palavras e as pratica será
comparado a um homem prudente que edificou a sua casa sobre a rocha; e
caiu a chuva, transbordaram os rios, sopraram os ventos e deram com ímpeto
contra aquela casa, que não caiu, porque fora edificada sobre a rocha. E todo
aquele que ouve estas minhas palavras e não as pratica será comparado a
102
Os publicanos eram os cobradores de impostos que, por suas funções, eram considerados pecadores e
traidores da nação judia, porque eles que normalmente eram judeus serviam ao Império Romano como
instrumento de opressão (HENDRIKSEN, 2001, p. 443).
95
um homem insensato que edificou a sua casa sobre a areia; e caiu a chuva,
transbordaram os rios, sopraram os ventos e deram com ímpeto contra
aquela casa, e ela desabou, sendo grande a sua ruína (Mt 7. 24 – 27, grifo
nosso).
Nesse caso, há uso explícito do elemento de comparação grifado em negrito. Observa-se que
o orador coloca os ouvintes numa situação de escolha, portanto eles podem fazer uma boa
escolha (ouvir e praticar) ou fazer uma má escolha (ouvir e não praticar). Isso porque “a
própria ideia de escolha, de boa escolha, implica sempre comparação”, afirmam Perelman e
Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 280).
Ademais, com tal procedimento, Jesus coloca seus ouvintes entre a escolha de fazerem parte
de um grupo de pessoas sensatas ou de pessoas insensatas. O que vai determinar em qual
grupo o ouvinte vai pertencer é o comportamento deste em relação ao discurso do orador.
Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 281) apontam que a argumentação pelo
sacrifício é parte dos argumentos de comparação, sendo o mais utilizado deste o que alega
certo sacrifício a que se está disposto a sujeitar-se para obter determinado resultado.
O uso dessa argumentação é presente em todos os sistemas de trocas, seja referente ao
escambo, à venda ou mesmo ao contrato de prestação de serviços. É importante notar que “na
argumentação pelo sacrifício, este deve medir o valor atribuído àquilo por que se faz o
sacrifício” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA [1958] 2005, p. 281).
Por ter certa relação com os argumentos de comparação, as perícopes, no Sermão do monte,
nas quais podem ser identificados de maneira mais explícita argumentos pelo sacrifício,
podem coincidir com as já analisadas anteriormente, contudo cabe mostrar os elementos que
permitem enquadrá-los na categoria em questão.
Dessa forma, verifica-se a presença dessa estrutura quase-lógica quando Jesus assegura serem
“bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça [...]” (Mt 5. 10), e diz mais: “bemaventurados sois quando, por minha causa, vos injuriarem, e vos perseguirem, e, mentindo,
disserem todo mal contra vós. Regozijai-vos e exultai, porque é grande o vosso galardão nos
céus [...]” (Mt 5. 11, 12). O que fica explícito no argumento é que o sacrifício vale a pena por
ser declarado bem-aventurado quem o faz, além de galardões a serem recebidos, ou mesmo de
eles serem comparados aos profetas (Mt 5. 12), como já foi demonstrado. Portanto, há um
mérito nisso, o que, de alguma maneira, está em jogo certa troca que envolve o sacrifício.
96
Jesus faz uma argumentação que utiliza esse apelo ao sacrifício, ao assegurar aos seus
ouvintes que, se a justiça deles não exceder a dos escribas e fariseus, eles não entrariam no
reino dos céus (Mt 5.20). Esse sacrifício é, em certa medida, não ter atitudes de hipócrita
como o tinham tais mestres, de maneira que Jesus passa a contrapor o ensinamento deles
mostrando seus equívocos e convidando seus ouvintes a não praticarem o mesmo. Às vezes
ele faz isso de maneira implícita, outras tantas de maneira direta.
A partir dessa compreensão, pode-se perceber que o argumento pelo sacrifício, de alguma
maneira, é norteador do sermão, pois a noção de sacrifício é inferida do fato de os ouvintes de
Jesus se esforçarem para não terem atitudes semelhantes as dos escribas e fariseus. Para tanto,
o orador passa a ensinar como praticar tal justiça, ao que tais práticas envolvem sacrifícios, ou
de algum modo, ele passa a ensinar como não ter atitudes semelhantes aos hipócritas, que
denota sacrifício de renúncia. Sendo assim, pode-se observar que o ensino sobre o homicídio
(Mt 5. 21-26), sobre o adultério (Mt 5. 27 – 32), sobre os juramentos (Mt 33 – 37), sobre a
vingança (Mt 5. 38 – 42), sobre o amor ao próximo (Mt 43 – 48), ou seja, a seção conhecida
como a das antíteses (5. 21 – 48), são um apelo ao sacrifício, seja para deixar de fazer alguma
coisa como, por exemplo, não fazer juramentos (Mt 5. 34), seja para praticar o amor para com
os inimigos (Mt 5. 44).
Após essa seção, pode-se ver que uma forma de sacrifício é exigida: “guardai-vos de exercer a
vossa justiça diante dos homens, com o fim de serdes vistos por eles; doutra sorte, não tereis
galardão junto de vosso Pai celeste” (Mt 6.1). Por certo, é uma forma de troca que se faz, uma
escolha, entre receber a honra dos homens ou a de Deus.
Jesus diz isso e passa a dar exemplos que demostram como os hipócritas fazem ao exercerem
sua justiça diante dos homens para serem honrados por eles, mostrando, por outro lado, como
os seus ouvintes devem proceder se quiserem receber a recompensa de Deus. Assim ele fala
do ato de dar esmolas (Mt 6. 2 – 4), sendo que o sacrifício está em não anunciar que se dará
esmola; isso porque se fazia apenas com a finalidade de ser visto pelos homens. Ele discorre
ainda sobre como orar de forma a receber a recompensa não dos homens, mas de Deus (Mt 6.
5 – 8) e ensina como jejuar de maneira a não manter uma aparência apenas para mostrar aos
homens que se está jejuando (Mt 6. 16 – 18).
Jesus ainda discorre sobre a ansiedade pela vida, dado que ele diz: “não andeis ansiosos pela
vida [...]” (Mt 6. 25 – 34). O ato de não viver ansioso já é um sacrifício a ser feito. O mestre
97
galileu fala da ansiedade causada pela preocupação sobre o que comer, beber e vestir, fato que
Jesus argumenta em favor de que se busque em primeira instância não essas coisas, contudo o
reino e a sua justiça (Mt 6. 33). Nisso está o sacrifício que implica uma troca: deixar de buscar
em primeiro lugar as coisas da vida, que implica ansiedade, para buscar, em primeiro plano, o
reino dos céus, que implica uma não ansiedade.
De forma explícita, pode-se ainda verificar o uso do argumento pelo sacrifício quando Jesus
discorre sobre as duas portas, uma que leva à perdição e outra à vida:
Entrai pela porta estreita (larga é a porta, e espaçoso, o caminho que conduz
para a perdição, e são muitos os que entram por ela), porque estreita é a porta
que conduz para a vida, e são poucos os que acertam com ela (Mt 7. 13, 14).
Desse modo, vê-se que o sacrifício de entrar pela porta estreita está vinculado à recompensa
de se poder encontrar a vida e não a perdição.
No quadro (1) gráfico abaixo, pode-se observar a quantidade de cada um dos oito argumentos
explicitados no Sermão do monte na categoria de argumentos quase-lógicos.
Quadro 1
Incompatibilidade;
8
O Ridículo; 1
A argumentação
pelo sacrifício; 13
Comparação; 19
A regra de
justiça; 5
Reciprocidade; 4
Trasitividade; 5
A divisão do todo
em suas partes; 3
Pode-se, portanto, constatar que o orador Jesus Cristo lançou mão, de maneira mais explícita,
de 58 argumentos enquadrados na categoria de quase-lógicos. O que, de fato, é uma
quantidade significativa de argumentos.
98
4.2 OS ARGUMENTOS BASEADOS NA ESTRUTURA DO REAL
Os argumentos fundados na estrutura do real não mais se apoiam na lógica, e sim na
experiência, nos elos reconhecidos entre as coisas. Desta maneira, “argumentar não é
implicar, é explicar: ‘O adversário diz isso porque tem interesse em dizê-lo’” (REBOUL,
2004, p. 173, grifo do autor). Assim, o argumento é apenas provável.
Pode-se argumentar utilizando-se do vínculo causal. Este desempenha um papel fundamental
dentre as ligações de sucessão, sendo seus efeitos múltiplos e variados. Perelman e OlbrechtsTyteca ([1958] 2005, p. 300) pontuam a respeito de três argumentações decorrentes desse
vínculo: primeiro, as que - por meio de um vínculo causal - podem relacionar dois
acontecimentos sucessivos dados entre eles; segundo, as que - a partir de um acontecimento tendem a desvendar a existência de uma causa a fim de determiná-lo; e terceiro, as que - a
partir de um acontecimento - buscam evidenciar o efeito que dele deve resultar.
Os autores do Tratado da argumentação, em primeira instância, tratam dos dois últimos
argumentos acima apontados, deixando para abordar o primeiro na categoria relacionada aos
argumentos pelo exemplo ou de raciocínio indutivo.
Pela intervenção do vínculo causal, pode-se buscar “a partir de um dado acontecimento, a
aumentar ou a diminuir a crença na existência de uma causa que o explicaria ou de um efeito
que dele resultaria” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 300).
O vínculo causal trata da relação entre um princípio e suas consequências. Dessa maneira,
essa relação remete a uma ligação de sucessão constituinte da estrutura do real. De porte dessa
noção, é possível verificar o uso de argumentos no sermão de Jesus no monte como tendo
características que podem ser explicitadas de modo a considerá-los como pertencentes à
categoria do vínculo causal.
Assim, Jesus, ao assegurar: “bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça, porque
deles é o reino dos céus. Bem-aventurados sois quando, por minha causa, vos injuriarem, e
vos perseguirem, e, mentindo, disserem todo mal contra vós (Mt 5. 10,11)”, está alicerçando
seu argumento sobre a estrutura de ligação de sucessão, pois o orador evidencia ser a justiça, e
o vínculo de seus seguidores com ele mesmo, a causa de estes serem perseguidos. Porém, por
seus seguidores estarem associados a tal causa, esta é a razão de eles serem bem-aventurados.
Desta forma, pode-se perceber que, se de um lado há um efeito negativo por se ter o vínculo
99
com a justiça, de outro há um efeito positivo que é o fato de serem declarados bemaventurados. Isso é complementado com a declaração de recompensa: “regozijai e exultai
porque é grande o vosso galardão nos céus [...]”; além, é claro, de os mesmos serem
comparados aos honrados profetas: “[...] pois assim perseguiram os profetas que viveram
antes de vós” (Mt 5. 12).
Jesus, ao dizer “[...] se a vossa justiça não exceder em muito a dos escribas e fariseus, jamais
entrareis no reino dos céus” (Mt 5. 20), está recorrendo à noção do vínculo causal, porquanto
evidenciando as consequências de uma causa, ao que tal causa está associada à prática de
atitudes ou de uma justiça semelhante a dos mestres da época.
Nas duas primeiras perícopes em que trata sobre o homicídio e sobre o adultério (Mt 5. 21 –
32), é possível verificar, de maneira mais explícita, Jesus mostrando a causa tanto do
homicídio, quanto do adultério. Como já se lançou mão dessas perícopes antes, cumpre
apenas apresentar elementos suficientes para enquadrá-las no argumento em estudo.
Deste modo, ao se referir ao “não matarás”, Jesus utiliza-se da estrutura do real para
demonstrar que o ato de matar é motivado pela ira, ou sentimento de ódio, mas não somente o
ato de matar, mas a ira é também a causa do insulto, do xingamento, bem como do litígio:
Se, pois, ao trazeres ao altar a tua oferta, ali te lembrares de que teu irmão
tem alguma coisa contra ti, deixa perante o altar a tua oferta, vai primeiro
reconciliar-te com teu irmão; e, então, voltando, faze a tua oferta. Entra em
acordo sem demora com o teu adversário, enquanto estás com ele a caminho,
para que o adversário não te entregue ao juiz, o juiz, ao oficial de justiça, e
sejas recolhido à prisão (Mt 5. 23-25).
Dessa maneira, vê-se que o uso de tal recurso, ou seja, do vínculo causal, é para demonstrar
que o homicídio é um problema, tanto que ele merece julgamento - “Quem matar está sujeito
a julgamento” -, fato que Jesus não discorda, contudo tentar mostrar que o homicídio não é a
fonte do problema, discorda, portanto, da ênfase dada pelos antigos. Assim, ele recorre
também à estrutura do real para explicitar que o problema está na ira, que é o princípio
sustentador de boa parte dos litígios, insultos, xingamentos e homicídios. Sendo assim, o ato a
ser combatido não é, em primeira instância, o homicídio, mas a ira, destarte, todo ato de ira
merece um tipo de julgamento por ser a causa de vários problemas.
Quanto ao adultério, vê-se que, de igual maneira, na tentativa de dar uma nova hierarquização
a esse valor, Jesus recorre à explicitação da causa, mostrando, por seu turno, que “[...]
qualquer que olhar para uma mulher com intenção impura, no coração, já adulterou com ela
100
(Mt 5. 28, grifo nosso)”. Sendo assim, Jesus explicita que existe uma causa da qual o adultério
é apenas uma consequência. Tanto é que ele recorre a outro molde de argumento para ensinar
a combater o mal na sua origem ou causa: “se o teu olho direito te faz tropeçar, arranca-o e
lança-o de ti [...]. E, se a tua mão direita te faz tropeçar, corta-a e lança-a de ti [...]” (Mt 5. 29,
30).
No bojo da relação causa-efeito e efeito-causa está o argumento pragmático, deste modo,
utilizá-lo é levar em consideração um ato ou acontecimento de acordo com suas
consequências futuras, sejam elas favoráveis ou desfavoráveis. Pode-se dizer que a
transferência do valor das consequências para a causa se dá mesmo sem ser percebido, por
conseguinte, esse argumento desenvolve-se sem muita dificuldade (PERELMAN;
OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 303).
Pode-se observar que Jesus faz uso do argumento pragmático ao ensinar, utilizando-se de
metáforas que remetem a coisas preciosas, valiosas, e mesmo ao ato de dar conselhos a quem
não está interessado em ouvir: “Não deis aos cães o que é santo, nem lanceis ante os porcos as
vossas pérolas, para que não as pisem com os pés e, voltando-se, vos dilacerem” (Mt 7. 6).
Dar algo não comestível a um cão ou a um porco (coisas santas, pérolas) quando estão
famintos é assumir o risco de ser atacado pelos mesmos, logo, há uma transferência das
consequências para a causa. Desta forma, os culpados pelo ataque não são os animais, mas
quem lhes ofereceu tais objetos.
Um acontecimento pode ser interpretado de diferentes maneiras de acordo com a natureza
deliberada ou involuntária que se pode ter de suas consequências. Disso Perelman e
Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005) chamam de o vínculo causal como relação de um fato com
sua consequência ou de um meio com um fim. Quanto a isto se diz que, conforme se
conceba a sucessão causal, a relação fato-consequência ou meio-fim pode ser estabelecida de
acordo com a ênfase que se queira dar.
É com o manuseio de argumentos mobilizadores de estratégias semelhantes que Jesus
argumenta contra os fariseus de sua época apresentando os atos dos mesmos como meio-fim,
ou seja, como se os tais tivessem a finalidade de, por meio dos atos religiosos (esmolas,
oração, jejum; respectivamente (Mt 6. 2, 5, 16), serem vistos pelos homens e, não tendo, por
sua vez, a finalidade de agradar a Deus:
101
Quando, pois, deres esmola, não toques trombeta diante de ti, como fazem os
hipócritas, nas sinagogas e nas ruas, para serem glorificados pelos homens,
[...]. E, quando orardes, não sereis como os hipócritas; porque gostam de
orar em pé nas sinagogas e nos cantos das praças, para serem vistos dos
homens [...]. Quando jejuardes, não vos mostreis contristados como os
hipócritas; porque desfiguram o rosto com o fim de parecer aos homens
que jejuam [...] (Mt 6. 2, 5, 16, grifo nosso).
Sendo assim, o orador argumenta em favor de que os seus ouvintes tenham atitudes contrárias
aos hipócritas: “Guardai-vos de exercer a vossa justiça diante dos homens, com o fim de
serdes vistos por eles; doutra sorte, não tereis galardão junto de vosso Pai celeste” (Mt 6. 1).
Quanto à atitude do que se deve buscar, como objetivo maior na vida, Jesus argumenta em
favor de não se buscar a comida, a bebida e a vestimenta. Tal busca - como finalidade
primeira - segundo o orador, é que leva à ansiedade: “[...] não andeis ansiosos pela vossa vida
[...]. Não vos inquieteis, dizendo: Que comeremos? Que beberemos? Ou: Com que nos
vestiremos? Porque os gentios é que procuram todas estas coisas [...]” (Mt 6. 25, 31,32). Ao
dizer isso, ele argumenta em favor de seus ouvintes abandonarem a busca dessas coisas com a
finalidade principal da vida e arrazoa em favor de eles buscarem o reino de Deus e a sua
justiça com a finalidade maior da vida deles, deixando essas coisas como consequência da
relação deles com o reino e a justiça. Assim o orador assegura: “Buscai, pois, em primeiro
lugar, o seu reino e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas” (Mt 6. 33).
Diferentes das ligações de sucessão em que os termos estão num mesmo plano, as ligações de
coexistência relacionam duas realidades de níveis diferentes, cuja diferença remete para o
fato de uma ser mais fundamental que outra. Enquanto nas ligações de sucessão a ordem
temporal é mais importante, nas de coexistência, contudo, o que está em questão é o caráter
mais estruturado dos termos, ou melhor, caracteriza-se por relacionar uma essência com suas
manifestações (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 333).
Essa relação pode sair do meramente teórico e ser percebida nas relações entre uma pessoa e
seus atos. Quanto a isso, Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 334) asseguram que a
construção da pessoa humana está ligada aos seus atos de maneira que se pode fazer uma
distinção entre o que é considerado “importante, natural, próprio de quem fala, e o que se
considera transitório, manifestação exterior do sujeito”. Dessa maneira, pela repetição de um
ato, pode-se reconstruir a pessoa, bem como reafirmar a adesão à construção anterior.
Pode-se chamar atenção para o fato de que a concepção de pessoa está sujeita a variar
conforme as épocas e a metafísica preferida. Isso significa dizer que os acordos entram em
102
questão ao se construir uma pessoa, o que implica que os acordos podem ser limitados,
precários, particulares a um determinado grupo, podendo ser revisados a depender da
concepção religiosa, filosófica ou científica que se adote como novo parâmetro.
Isso leva a dizer que a noção de pessoa carrega um elemento de estabilidade, ao que, segundo
Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 334), “todo argumento sobre a pessoa explicita
essa estabilidade: presumimo-la, ao interpretar o ato em função da pessoa, deploramos que
essa estabilidade não tenha sido respeitada”. Essa estabilização pode ser comparável ao objeto
que é definido a partir de suas propriedades, de igual modo, a pessoa o é a partir de seus atos,
que, por vezes, são transformados em virtudes, integrando assim uma essência invariável
dessa pessoa.
Contudo, a pessoa possui a capacidade de transformar-se, de converter-se - o que é
fundamental para ser educada - para abandonar o passado. “Como sujeito livre, a pessoa
possui essa espontaneidade, esse poder de mudar e de se transformar, essa possibilidade de ser
persuadida e de resistir à persuasão”, asseguram Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005,
p. 336).
De alguma maneira, a pessoa cultiva certa relação com seus atos ao mesmo tempo em que ela
tem dele uma independência relativa. Deste modo, a não ser numa metafísica, o mérito de
uma pessoa não está dissociado de seus atos, e mesmo que se tente fazer uma dissociação
entre o ato e a pessoa, tal dissociação é apenas parcial e precária.
A interação entre o ato e a pessoa diz respeito ao fato de que a reação do ato sobre o agente
leva que se modifique a imagem que se tem da pessoa. Assim, por ato, Perelman e OlbrechtsTyteca ([1958] 2005, p. 339) entendem “tudo quanto pode ser considerado emanação da
pessoa, sejam eles ações, modos de expressão, reações emotivas, cacoetes involuntários ou
juízos”.
De posse da noção de que o ato age sobre a pessoa ao mesmo tempo em que revela a sua
essência, é que se pode observar que Jesus acusa os escribas e fariseus como sendo hipócritas
(Mt 6. 2, 5, 16; 7. 5). Ele constrói imagens dos gentios como sendo, por vezes, ansiosos (Mt 6.
32), e que saúdam os que apenas o saúdam (Mt 5. 47); constrói imagens dos publicanos como
sendo aqueles que amam a quem os ama (Mt 5. 46); ao mesmo tempo em que convida seus
ouvintes a terem atitudes de modo a serem perfeitos como perfeito é o Pai celeste (Mt 5. 48),
bem como a não serem como os hipócritas (Mt 6) e a praticarem atos de justiça que excedam
103
o dos escribas e fariseus (Mt 5. 20). Ainda é possível observar que esse orador argumenta em
favor de seus discípulos praticarem determinados atos, pois estes serviriam para glorificar a
Deus: “Assim brilhe a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e
glorifiquem a vosso Pai que está nos céus” (Mt 5. 16).
Nessa caracterização entre ato e pessoa, Jesus aponta para o fato de que determinados atos
tendem a revelar a intenção das pessoas, ou seja, revelar o que há no coração ou mesmo o que
elas realmente são. Assim é que o orador alerta a respeito dos falsos profetas: “Acautelai-vos
dos falsos profetas que se vos apresentam disfarçados em ovelhas, mas por dentro são lobos
roubadores” (Mt 7. 15).
Por certo, nesse alerta feito por Jesus, está implicada toda uma interação entre ato e pessoa
discutida conceitualmente por Perelman e Olbrechts-Tyteca. Sendo assim, o orador Jesus diz,
utilizando-se de expressões metafóricas, que, por meio dos atos, pode-se saber identificar um
falso profeta: “Pelos seus frutos os conhecereis.”. Desse modo ele usa a metáfora do fruto e da
árvore que pode caracterizar a relação entre a essência da pessoa e seu ato:
“Colhem-se, porventura, uvas [frutos nobres] dos espinheiros [ervas
daninhas] ou figos [muito preciosos] dos abrolhos [uma praga]? Assim, toda
árvore boa produz bons frutos, porém a árvore má produz frutos maus. Não
pode a árvore boa produzir frutos maus, nem a árvore má produzir frutos
bons” (Mt 7. 16-18).
Esses falsos profetas têm certa relação com o objeto de acusação anterior de Jesus, os escribas
e fariseus que agiam hipocritamente, ao que Jesus está mostrando essa relação entre os atos
deles e a essência, ao mesmo tempo em que está falando de sua intenção, pois eles parecem
ser ovelhas, contudo “por dentro são lobos roubadores” (Mt 7. 25), querem apenas se servir
das pessoas. Quanto a isso, Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 343) asseguram:
“Não sendo a intenção alheia conhecida diretamente, só se pode presumi-la pelo que se sabe
da pessoa no que ela tem de duradouro. Por vezes, a intenção é revelada em virtude de atos
repetidos e concordantes [...]”. Por isso Jesus alerta a seus ouvintes, utilizando-se de uma
estrutura do real para o fato de se identificar um pseudoprofeta por meio de seus atos, de seus
frutos; a lembrar da metáfora da árvore.
Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 350) asseguram que o argumento de prestígio
mais caracterizado é o argumento de autoridade, o qual utiliza como meio de prova atos ou
juízos de uma pessoa ao buscar a adesão de seu auditório. Como não se pode reduzir toda
104
prova à verdade científica, desta forma, o argumento de autoridade goza de utilidade em
praticamente toda argumentação.
Sendo assim, é preciso que se diga que às vezes “o argumento de autoridade, em vez de
construir a única prova, vem completar uma rica argumentação. Uma mesma autoridade é
valorizada ou desvalorizada conforme coincida ou não com a opinião dos oradores”
(PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA [1958] 2005, p. 350).
Jesus, de alguma maneira, ao mesmo tempo em que firma um acordo a partir da Lei, recorre à
autoridade da mesma e dos Profetas para fundamentar sua argumentação de maneira que, a
partir de uma nova interpretação da Lei, ele se opõe à autoridade dos antigos, de cuja
concordância participavam os escribas e os fariseus.
Assim, de alguma maneira Jesus recorre à autoridade da Lei e dos Profetas para combater a
autoridade e os valores cultivados e ensinados pelos escribas e fariseus, que se vinculavam à
tradição, ou seja, aos antigos. Isso fica claro ao observar que o orador apresenta os ditos dos
antigos e contrapõe sua interpretação a esses: “Ouvistes que foi dito aos [pelos] antigos: Não
matarás; [...] Eu, porém, vos digo que [...]” (Mt 5. 22, grifo nosso). Assim é feito repetidas
vezes na seção conhecida como das antíteses (Mt 5.27, 26, 31,32, 33, 34, 38, 39, 43, 44).
Ademais, quase ao final do sermão, Jesus recorre de forma explícita à autoridade da Lei e dos
Profetas para reforçar sua proposição: “Tudo quanto, pois, quereis que os homens vos façam,
assim fazei-o vós também a eles; porque esta é a Lei e os Profetas” (Mt 7. 12, grifo nosso).
Da mesma forma, é importante considerar que, ao invocar uma autoridade, o orador que o faz
vincula-se a ela de alguma maneira. Essa autoridade pode ser desde a opinião comum, a
ciência, a filosofia, os profetas e até mesmo a bíblia (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA
[1958] 2005, p. 350).
Ao falar do recurso ao argumento de autoridade que Jesus lança mão, cumpre mencionar uma
pertinente citação de Bossuet103 feita por Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 351):
... Um mestre [Jesus] em quem aparece tanta autoridade, conquanto sua
doutrina seja obscura, bem merece que se creia em sua palavra: ipsum
audite. ... Podeis reconhecer sua autoridade ao considerar o respeito que lhe
prestam Moisés e Elias; ou seja, a lei e os profetas, como expliquei. ... Não
busquemos as razões das verdades que ele nos ensina: toda a razão é que ele
falou. (grifo nosso).
103
BOSSUET. Sermons. vol. II: Sur la submission due à la parole de Jésus-Christ, pp. 117, 120, 121.
105
Dentro dessa categoria de argumentos de ligações de coexistência, o discurso como ato do
orador compreende uma das características bem pertinente à argumentação, característica
essa que a distingue e a faz oposta à demonstração. Isso porque o discurso, compreendido
como ato do orador, é a manifestação por excelência da pessoa, e mesmo que esse não faça
uso diretamente das ligações do tipo ato-pessoa, ele corre o risco de, por parte de seus
ouvintes, ser vinculado ao seu ato discursivo.
Essa interação entre discurso e orador importa ser considerada porque, segundo Perelman e
Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 361), “a pessoa é o contexto mais precioso para a
apreciação do sentido e do alcance de uma afirmação”. Disso se diz que o prestígio ou a falta
deste influencia na interpretação do enunciado proferido pelo orador, assim, observa-se que
“mesmo as palavras alheias, reproduzidas pelo orador, mudam de significação, pois quem as
repete sempre toma para com elas uma posição, de certa maneira nova, ainda que seja pelo
grau de importância que lhes concede” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958]
2005, p. 361). Portanto, há um contexto novo a partir do qual o ouvinte interpreta o
enunciado.
É a partir da interação do orador com seu discurso, e do que o ouvinte julga dessa relação que
os antigos mestres da retórica recomendavam aos oradores darem boa impressão de si,
atraindo a estima, a benevolência e a simpatia de seu auditório, ou seja, diz-se que é preciso
que o orador inspire confiança, sem a qual seu discurso não merece crédito.
Em contrapartida, o orador pode se aproveitar dessa relação para agir em direção ao seu
adversário, por isso pode usar argumentos para desvalorizá-lo colocando a confiança deste em
questão, bem como suas intenções. De alguma maneira, Jesus lança mão desse recurso para
atacar seus supostos adversários - os escribas e fariseus - apontando suas intenções que
granjeavam recompensas humanas e os faziam hipócritas (Mt 6). Por isso, Jesus de forma
explícita os chama de falsos profetas e lobos roubadores (Mt 7. 15), atacando, por sua vez, a
confiança que os mesmos tinham diante de todos.
Tal recurso, chamado de ataque ad personam, pode ser usado para desqualificar uma
testemunha, bem como um orador religioso. Deste modo, se essa pessoa for um preletor de
prédicas edificantes, a desqualificação lhe causa bastante prejuízo já que ele precisa do
106
prestígio para dar força a sua preleção (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005,
p. 363).
Pode-se verificar que o recurso de ataque ad personam utilizado por Jesus foi de alguma
maneira eficaz, dado que, ao final do sermão, Mateus descreve a reação da multidão
mostrando que esta fez uma comparação entre o ensino de Jesus e o dos escribas: “[...] porque
ele [Jesus] as ensinava como quem tem autoridade e não como os escribas” (Mt 7. 29).
Por meio dessa descrição, pode ainda ser verificado que o que os antigos chamam de “etos
oratório” que, segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 363, grifo do autor)
pode ser resumido como a “impressão que o orador, por suas palavras, dá de si mesmo”.
Logo, o discurso se constitui o meio pelo qual a imagem do orador é construída perante seu
auditório e, estando ligada ao prestígio, essa pode variar a depender de como o discurso é
produzido; quanto a isso os proponentes do Tratado da argumentação discorrem:
Por causa da interação constante entre o juízo que se faz do orador e aquele
que se faz de seu discurso, quem argumenta expõe constantemente, até certo
ponto, o seu prestígio, que cresce ou decresce consoante os efeitos da
argumentação. Uma argumentação vergonhosa, fraca ou incoerente, só
pode prejudicar o orador; o vigor do raciocínio, a clareza e a nobreza do
estilo predisporão, em contrapartida, a seu favor (PERELMAN;
OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 364, grifo nosso).
Além de se poder afirmar que Jesus obteve, de algum modo, sucesso em seu discurso,
também pode se assegurar que no discurso proferido por Jesus não faltou um nível razoável
de clareza, coerência e estilo sofisticado. Observa-se isso a partir do que o narrador do sermão
descreveu a respeito do auditório jesuânico: “Quando Jesus acabou de proferir estas palavras,
estavam as multidões maravilhadas da sua doutrina; porque ele as ensinava como quem tem
autoridade e não como os escribas” (Mt 7. 28, 29). Porquanto, o maravilhamento e a
comparação só poderiam ser possíveis se o discurso desse orador tivesse certo nível de clareza
e este gozasse, ao final de sua prédica, de prestígio.
Junta-se à categoria dos argumentos que se pressupõem vínculos de coexistência a relação que
se pode estabelecer entre o grupo e seus membros. Essa relação tem como protótipo a
ligação entre a pessoa e seus atos, porquanto se pode afirmar que, assim como a expressão da
pessoa é o ato, de igual maneira os membros são a manifestação do grupo ao qual fazem
parte. Desta forma, diz-se que “os indivíduos influem sobre a imagem que temos dos grupos
aos quais pertencem e, inversamente, o que achamos do grupo nos predispõe a certa imagem
107
daqueles que dele fazem parte” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p.
366).
Pelo fato de a noção de grupo ser um tanto indeterminada e, também, por uma pessoa
normalmente pertencer a vários grupos, faz com que a argumentação referente aos membros e
seu grupo situe-se em um nível de complexidade superior ao concernente à pessoa e a seus
atos.
Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 367) asseguram que “certos grupos - nacionais,
familiares, religiosos, profissionais - serão reconhecidos por todos, até mesmo por
instituições, mas outros nascem ao sabor do comportamento de seus membros”. De posse
dessa perspectiva, nota-se que Jesus argumenta em favor de se formar um grupo que seja
diferenciado por suas atitudes como reflexo da essência de filho de Deus (Mt 5. 45), portanto,
por ter atitudes condizentes com os valores do reino dos céus.
Isso pode ser visto em todo o sermão em que o orador estima alguns valores afirmando ser
bem-aventurados os que os encarnam (5. 3-11). De igual modo, ele argumenta em favor de se
cultivar determinados valores e não outros (Mt 5. 20 – 48), condena algumas atitudes
hipócritas ensinando seus ouvintes a não fazerem o mesmo (Mt 6). Jesus faz isso a ponto de
assegurar como critério para ser partícipe do grupo reino dos céus a prática de atos de justiça
superiores aos dos escribas e fariseus (Mt 5. 20).
Quanto à formação do grupo, é preciso que fique claro: não significa que este seja
institucionalizado, no entanto, pode-se reconhecer a pertença de determinadas pessoas no
grupo pelos valores e atitudes praticados. Sendo assim, tal reconhecimento pode se dá por
terceiros, asseguram Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 367, 368):
Estes tendem a considerar que há um grupo social cada vez que eles têm um
comportamento diferenciado para com seus membros, servindo a noção de
grupo para descrever, para explicar ou para justificar esse comportamento
diferenciado [...]. Notemos que esse cuidado da argumentação explica a
tendência a constituir em grupo, a fim de torna-los solidários, todos aqueles
em quem se observar uma mesma atitude, os adversários ou os
partidários de certo ponto de vista, de certa pessoa ou de certa maneira
de agir. (grifo nosso).
108
Nessa categoria das ligações de coexistência, ainda se pode pontuar a relação que há entre o
ato e a essência. Mesmo que já se tenha dito isso em relações anteriores104, cumpre observar
o que Perelman e Olbrechts-Tyteca arrazoam sobre a questão de maneira específica.
Diz-se que por meio de uma categoria gramatical, um verbo, um adjetivo ou mesmo uma
expressão, podem-se estabilizar os atos de uma pessoa de maneira a formar essência de quem
os pratica, por isso se pode chamar alguém de o jogador, o patriota, a mãe etc. Essa relação é
estabelecida mais frequentemente quando o ato é intencional (PERELMAN; OLBRECHTSTYTECA, [1958] 2005, p. 374). Dessa maneira, verifica-se que Jesus caracteriza os escribas e
fariseus como sendo hipócritas (Mt 6. 2, 5, 16; 7. 5), justamente por praticarem atos que
evidenciam tal essência105, por vezes, atos intencionais.
A ligação simbólica, de acordo com os autores do Tratado da argumentação, é passível de
aproximação da ligação de coexistência. Segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca, o símbolo
possui um significado e um valor representativo que eles chamam de relação de participação.
O que diferencia a ligação simbólica das ligações de sucessão e de coexistência é justamente
seu valor irracional, no sentido de ser de natureza quase mágica. Isso porque o vínculo
simbólico, ao fazer parte do real como as outras ligações, não faz referência a uma estrutura
definida deste. Pelo fato de o símbolo e o simbolizado não fazerem parte da mesma camada
do real, a relação entre eles poderia ser entendida como analógica, no entanto, asseguram
Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 378) que tal relação “destruiria o que há de
impressionante na ligação simbólica, pois, para que ela desempenhe seu papel é preciso que
símbolo e simbolizado estejam integrados numa mesma realidade mítica ou especulativa”.
Na relação simbólica acontece a transferência entre o símbolo e o simbolizado. Essa
transferência não é necessariamente aceita por todos, contudo pode se dá apenas na comunhão
do grupo, dizendo respeito apenas a uma ligação reconhecida pelos membros do grupo.
Importa, pois, na argumentação, saber em que medida uma coisa, e tudo o
que lhe toca, é provida dessa natureza simbólica. Ora, é possível, dado o
caráter objetivamente indeterminado e indefinido da ligação simbólica,
conferir um valor simbólico, modificando-lhe, assim, o significado e a
importância. O aspecto simbólico de um ato será tanto mais facilmente
aceito quanto menos plausível for qualquer outra interpretação
(PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 380).
104
105
Tal análise é feita no tópico em que é analisada a interação entre o ato e a pessoa.
Ver melhor a relação no tópico a interação entre o ato e a pessoa.
109
Desse modo, pode se dizer que tal relação simbólica é traçada por Jesus ao ensinar que os
discípulos são sal e luz do mundo: “Vós sois o sal106 da terra [...] (Mt 5. 13, 14) . Vós sois a
luz do mundo”. Mesmo que se tenha uma relação metafórica, que pode ser enquadrada em
outra categoria, pode-se considerar que o fato de os discípulos serem considerados sal da terra
pode remeter a uma ideia de que eles poderiam ser considerados como o elemento de
conservação dos valores de Deus, já que conservar era uma das funções principais do sal na
época.
O sentido do termo luz na cultura judaica é bastante amplo e remente tanto à glória de Deus
quanto ao conhecimento do mesmo, além de remeter à noção de sabedoria, de amor etc.
(HENDRIKSEN, 2001, p. 397). Portanto, esta relação pode ser compreendida também como
relação simbólica em que os discípulos simbolizam a luz para o mundo ao mesmo tempo em
que a luz seja símbolo dos partícipes do reino dos céus.
O argumento de hierarquia dupla pode ser bastante utilizado na argumentação em que uma
hierarquia discutida faz correlação com uma hierarquia aceita. Deste modo, a hierarquia dupla
entra no processo argumentativo não necessariamente como ponto de partida ou acordo como
o faz os valores e as hierarquias propriamente.
Por trás de uma hierarquia, vê-se delinear de alguma maneira outra hierarquia, por isso podese assegurar que o argumento de hierarquia dupla está muitas vezes implícito. Perelman e
Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 384) asseguram que “esse recurso é natural e ocorre
espontaneamente porque nos damos conta de que é assim que o interlocutor decerto tentaria
sustentar sua afirmação”. Ainda se pode afirmar que “a hierarquia dupla exprime
normalmente uma ideia de proporcionalidade, direta ou inversa, ou pelo menos um vínculo
entre termo e termo” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 384).
Servem para ligar duas hierarquias e fundar o argumento de hierarquia dupla todas as ligações
fundadas na estrutura do real, quais sejam as ligações de sucessão ou de coexistência. Assim
Perelman e Olbrechts-Tyteca afirmam que “um ser racional tem de conformar-se a essa
hierarquia dupla” e apresentam um argumento de Leibniz baseado em uma perícope (Mt 6.
26) do Sermão do monte: “... zelando pelos passarinhos, ele [Deus] não descuidará das
criaturas racionais que lhe são infinitamente mais caras...”
106
O sal na época era um elemento valioso, tanto que os soldados romanos recebiam seu salário em sal. Ele era
utilizado como condimento, como conservante, como fertilizante e mesmo como remédio. Contudo, o mais
provável era a referência a ideia de conservante com valor preventivo (RICHARDS, 2008, p. 25).
110
Cumpre mostrar algumas hierarquias duplas mais explícitas no texto em análise. Deste modo,
pode-se verificar uma hierarquia dupla quando Jesus ensina sobre a ansiedade da vida: “Ora,
se Deus veste assim a erva do campo, que hoje existe e amanhã é lançada no forno, quanto
mais a vós outros, homens de pequena fé?” (Mt 6. 30). Este trecho do texto é posterior, no
sermão, a que Leibniz faz referência acima.
Um argumento baseado na mesma estrutura do argumento acima é mais uma vez utilizado por
Jesus: “Ora, se vós, que sois maus, sabeis dar boas dádivas aos vossos filhos, quanto mais
vosso Pai, que está nos céus, dará boas coisas aos que lhe pedirem?” (Mt 7. 11). Assim, vê-se
que se existe uma bondade para com os filhos por aqueles que são maus, com maior razão, o
Pai do céu, que é bom, agirá com bondade dando coisas boas aos seus filhos. Há, portanto,
uma hierarquia dupla dado que o orador entrelaça duas realidades, a humana - pais maus que
sabem dar boas coisas aos filhos - e a divina - o Pai celestial sendo solícito aos filhos que o
pedem alguma coisa.
Mais argumentos de hierarquia dupla podem ser verificados no discurso de Jesus e podem ser
enquadrados nas ligações de sucessão, pois recorre a certa noção de ordem ou mesmo de
causa e consequência. A ocasião do argumento é quando Jesus está ensinando para que não se
julgue para não ser julgado, ao que ele assegura: “Hipócrita! Tira primeiro a trave do teu olho
e, então, verás claramente para tirar o argueiro do olho de teu irmão” (Mt 7. 5).
De maneira mais explícita, Jesus, ao ensinar sobre o cuidado de se desperdiçar tempo com
quem não quer ouvir determinadas coisas, recorre à noção de causa e consequência em
argumento de hierarquia dupla: “Não deis aos cães o que é santo, nem lanceis ante aos porcos
as vossas pérolas, para que não as pisem com os pés e, voltando-se, vos dilacerem” (Mt 7.6).
O orador Jesus recorre à noção de meio-fim e apresenta outro argumento sob a forma de
hierarquia dupla: “Tudo quanto, pois, quereis que os homens vos façam, assim fazei-o vós
também a eles; porque esta é a Lei e os Profetas” (Mt. 7. 12).
As ligações de coexistência servem para fundamentar uma hierarquia dupla, essas ligações
dizem respeito à pessoa e seus atos. Desta forma, pode-se observar o uso do argumento de
hierarquia dupla quando Jesus ensina seus discípulos a orar:
e perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós temos perdoado aos nossos
devedores; [...] Porque, se perdoardes aos homens as suas ofensas, também
vosso Pai celeste vos perdoará; se porém, não perdoardes aos homens [as
111
suas ofensas], tampouco vosso Pai vos perdoará as vossas ofensas (Mt 6. 12,
14,15).
Por certo, outras hierarquias duplas poderiam ser identificadas, porém demandaria um
trabalho de explicitação maior, além de que algumas perícopes que poderiam ser enquadradas
nessa categoria podem aparecer também em outras. Até por essa razão que se optou por
analisar somente as mais explícitas. Assim, pode-se observar, no Quadro (2) abaixo, a
quantidade de ocorrência de cada argumento explicitado na categoria dos argumentos
baseados na estrutura do real.
Quadro 2
Hierarquia
dupla; 7
A ligação
simbólico; 2
O ato e a
essência; 4
Vínculo
Causal; 4
O vínculo causal
como relação de
um fato com sua
Pragmático; 1
consequência ou
de um meio com
um fim; 4
Interação entre o
ato e a pessoa; 11
O grupo e seus
membros; 8
O discurso como
ato do orador; 3
Autoridade; 2
Desta maneira, pode-se constatar que o orador Jesus Cristo faz uso de 46 argumentos
baseados na estrutura do real.
4.3 AS LIGAÇÕES QUE FUNDAMENTAM A ESTRUTURA DO REAL
Alguns argumentos podem ser analisados recorrendo-se às ligações que fundamentam o real
pelo caso particular. Nesta categoria, Perelman e Olbrechts-Tyteca enquadram três ligações
que são, aqui, suporte para a análise: a argumentação pelo exemplo, a ilustração e o
112
modelo/antimodelo. As outras ligações são estruturadas sob o raciocínio por analogia, que
compreende a metáfora.
A argumentação pelo exemplo é normalmente utilizada para fundamentar uma regra nova
ou sobre a qual não há ainda acordo explícito. Por isso que o exemplo apresentado, pelo
menos de maneira provisória, deve usufruir estatuto de fato, devendo o ouvinte não ter motivo
para pô-lo em dúvida (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 402). Isso
porque ele deve servir como ponto de partida para uma generalização.
Jesus utiliza do exemplo para reforçar uma tese ou regra; tal exemplo é do sal e da luz:
Vós sois o sal da terra; ora, se o sal vier a ser insípido, como lhe restaurar
o sabor? Para nada mais presta senão para, lançado fora, ser pisado
pelos homens. Vós sois a luz do mundo. Não se pode esconder a cidade
edificada sobre um monte; nem se acende uma candeia para colocá-la
debaixo do alqueire, mas no velador, e alumia a todos os que se
encontram na casa. Assim brilhe também a vossa luz diante dos homens,
para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem a vosso Pai que está nos
céus (Mt 5. 13-16, grifo nosso).
O exemplo é utilizado para sustentar, em primeira instância, a afirmação de que os discípulos
são o sal da terra e a luz do mundo. Para reforçar a primeira, ele apresenta um fato que
acontecia ao sal, que passava por um processo de deterioração e, ao entrar em contato com
outras substâncias, tornava-se insípido (HENDRIKSEN, 2001). Para reforçar a segunda
afirmação, “vós sois a luz do mundo” (Mt 5. 14), Jesus encadeia dois exemplos que tratam da
impossibilidade de esconder uma cidade edificada sobre um lugar alto; fala ainda de algo que
não era normal se fazer, acender uma lâmpada com o propósito de iluminar e imediatamente
apagar não a deixando cumprir sua função para a qual foi acesa.
Nessa sequência de exemplos apresentada, pode-se observar que os exemplos servem para o
orador aplicar uma regra ou mesmo uma generalização: a primeira, referente ao sal, que não
pode deixar de cumprir sua função básica, e a outra, que os discípulos, como a lâmpada,
brilhem diante dos homens de modo a glorificar a Deus.
Jesus, ao dar um novo enfoque sobre o valor referente ao homicídio, utiliza-se de um exemplo
para fundamentar sua tese de que se deve reconciliar com o irmão o mais rápido possível, (Mt
5. 25, 26):
Entra em acordo sem demora com o teu adversário, enquanto estás com ele a
caminho, para que o adversário não te entregue ao juiz, o juiz, ao oficial
113
de justiça, e sejas recolhido à prisão. Em verdade te digo que não sairás
dali, enquanto não pagares o último centavo (grifo nosso).
Outros exemplos são utilizados por Jesus para fundamentar suas afirmações, desse modo,
cumpre observar apenas os mais explícitos. Ao ensinar sobre o não jurar, ele enumera alguns
exemplos, que para o judeu constituem-se como fato: “de modo algum jureis; nem pelo céu,
por ser o trono de Deus; nem pela terra, por ser estrado de seus pés; nem por Jerusalém, por
ser cidade do grande Rei; nem jures pela tua cabeça, porque não podes tornar um cabelo
branco ou preto” (Mt 5. 34 – 36).
Jesus, ao falar sobre a necessidade de amar até o inimigo, dá o exemplo de como Deus age de
maneira igual com todas as pessoas (Mt 5. 45): “Para que vos torneis filhos do vosso Pai
celeste, porque ele faz nascer o seu sol sobre maus e bons e vir chuvas sobre justos e
injustos”. Jesus, para fundamentar a mesma tese, faz outras ligações que fundamentam pelo
caso particular, contudo, cabe considerar que elas já se encaixariam na categoria de ilustração,
porque constituem apenas um reforço à adesão à tese sustentada pelo exemplo, portanto
analisar-se-á mais a frente.
Jesus utiliza de exemplos para argumentar em favor de que seus ouvintes não vivam ansiosos
pela vida (Mt 6. 26-30):
Observai as aves do céu: não semeiam, não colhem, nem ajuntam em
celeiros; contudo, vosso Pai celeste as sustenta. Porventura, não valeis vós
muito mais do que as aves? Qual de vós, por ansioso que esteja, pode
acrescentar um côvado ao curso da sua vida? E por que andais ansiosos
quanto ao vestuário? Considerai como crescem os lírios do campo: eles
não trabalham, nem fiam. Eu, contudo, vos afirmo que nem Salomão,
em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles. Ora, se Deus veste
assim a erva do campo, que hoje existe e amanhã é lançada no forno, quanto
mais a vós outros, homens de pequena fé? (grifo nosso).
Pode-se observar que há um encadeamento de exemplos para reforçar uma tese geral, que é
reforçada com um exemplo: Observa-se que, no primeiro exemplo, o qual trata das aves do
céu, há uma aplicação por meio de dois questionamentos levando o ouvinte a uma possível
conclusão: “não valeis vós muito mais do que as aves? Qual de vós, por ansioso que esteja,
pode acrescentar um côvado ao curso da sua vida?”.
O segundo exemplo é introduzido com um questionamento: “E por que andais ansiosos
quanto ao vestuário?” (Mt 6. 28). O orador cita um exemplo de que Deus veste os lírios dos
campos, o que para o judeu é um fato tal feitura de Deus. Logo em seguida, ele reforça a
adesão ao exemplo, assegurando que “[...] nem Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como
114
qualquer deles” (lírios) (Mt 6. 29). Este reforço pode ser considerado uma ilustração, já que a
função desta é reforçar a tese aceita e conhecida. Desse modo, o orador faz isso para
confirmar sua tese, ao mesmo tempo em que procede a generalização, ou seja, a aplicação da
regra.
Jesus, para ensinar sobre o ato de pedir ou de orar, utiliza-se da força de dois exemplos, que
recorre ao acordo de que pais normalmente dão boas coisas aos filhos, para reforçar a tese de
que Deus, cuja bondade é maior do que a dos homens, dará coisas boas aos que lhe pedem
(Mt 7. 9-11):
Ou qual dentre vós é o homem que, se porventura o filho lhe pedir pão, lhe
dará pedra? Ou, se lhe pedir um peixe, lhe dará uma cobra? Ora, se vós, que
sois maus, sabeis dar boas dádivas aos vossos filhos, quanto mais vosso Pai,
que está nos céus, dará boas coisas aos que lhe pedirem?
Jesus, ao alertar seus ouvintes a respeito do perigo dos falsos profetas, utiliza de exemplos
para reforçar de que os falsos profetas não são o que dizem ser por seus atos não condizerem
com sua essência. Para tanto ele assegura (Mt 7. 16 - 20):
Colhem-se, porventura, uvas dos espinheiros ou figos dos abrolhos? Assim,
toda árvore boa produz bons frutos, porém a árvore má produz frutos maus.
Não pode a árvore boa produzir frutos maus, nem a árvore má produzir
frutos bons. Toda árvore que não produz bom fruto é cortada e lançada ao
fogo. Assim, pois, pelos seus frutos os conhecereis.
Dessa maneira, percebe-se que o uso de exemplos feitos por Jesus é abundante, servindo para
sustentar determinadas teses. Por certo não dá para mensurar quão fortes eram os exemplos
utilizados por ele, dado que a força de cada exemplo depende do acordo que se tem sobre o
mesmo, mas tais exemplos não eram menos persuasivos para os ouvintes do orador.
A ilustração faz parte de uma das ligações que fundamentam o caso particular. Essa tem a
função de reforçar a adesão à tese ou à regra aceita e conhecida, cumprindo um estatuto de dar
mais presença à regra geral na consciência do ouvinte. Diferentemente do exemplo, a
ilustração pode não gozar do estatuto de fato, no entanto, deve despertar a imaginação do
ouvinte para redobrar-lhe a atenção.
As ilustrações utilizadas por Jesus, em seu discurso, são empregadas normalmente após um
exemplo como forma de reforço da tese que, pela força do exemplo, tem consistência para ser
aceita pelo ouvinte. Assim, o orador, ao ensinar sobre o ato de amar, inclusive o inimigo (Mt
5. 43-46), adiciona duas ilustrações para reforçar e esclarecer a tese supracitada: “Porque, se
115
amardes os que vos amam, que recompensa tendes? Não fazem os publicanos também o
mesmo? E, se saudardes somente os vossos irmãos, que fazeis de mais? Não fazem os gentios
também o mesmo?” (Mt 5. 46, 47). Essas duas ilustrações podem ser compreendidas como
forma de o orador explicar em detalhes como se dá a prática do amor ao inimigo.
Como já dito anteriormente, Jesus, para ampliar a presença na mente dos ouvintes de que
Deus veste os lírios dos campos, lança mão da ilustração seguinte: “[...] nem Salomão, em
toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles” (lírios) (Mt 6. 29). Portanto, essa ilustração
cumpre a função de reforçar uma tese supostamente aceita, trabalhando por meio do reforço
do exemplo anterior.
Em outra perícope, Jesus, para esclarecer o que havia dito sobre os falsos profetas, tem sua
tese ancorada em um exemplo, pois mostra que, assim como a árvore que não produz bons
frutos é cortada pelo agricultor e lançada fora (Mt 7. 19), para esclarecer o que está dizendo e
aplicar de forma mais explícita a regra que deseja generalizar, ele trabalha uma ilustração (Mt
7. 21-23):
Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! entrará no reino dos céus, mas
aquele que faz a vontade de meu Pai, que está nos céus. Muitos, naquele dia,
hão de dizer-me: Senhor, Senhor! Porventura, não temos nós profetizado em
teu nome, e em teu nome não expelimos demônios, e em teu nome não
fizemos muitos milagres? Então, lhes direi explicitamente: nunca vos
conheci. Apartai-vos de mim, os que praticais a iniqüidade.
Observa-se que, do exemplo referente à árvore que é cortada pelo agricultor por não produzir
bons frutos, (Mt 7. 19) o orador passa à amplificação de tal exemplo contando aos ouvintes
uma ilustração com vigor imaginativo (Mt 7. 21-23), reforçando a adesão provocada por tal
exemplo. Pode-se observar, portanto, a relação entre o exemplo e a ilustração em que, assim
como a árvore é cortada por não produzir bons frutos, os falsos profetas ouvirão: “Nunca vos
conheci. Apartai-vos de mim, os que praticais a iniquidade (Mt 7. 22, grifo nosso)”. Isto, por
sua vez, configura-se como uma forma de corte, de rejeição por parte do Senhor aos falsos
profetas. Dessa maneira, a ilustração aqui é uma forma de aplicação ou generalização da regra
que o exemplo ajuda a ganhar a adesão.
O modelo e o antimodelo são parte do fundamento pelo caso particular. Quanto ao modelo,
pode-se dizer que ele serve mais do que simplesmente fundamento ou ilustração para uma
regra geral, já que pode ser utilizado como estímulo a uma imitação.
116
Não é qualquer pessoa que pode servir de modelo, isso porque, para servir de modelo, faz-se
necessário que se tenha certo prestígio. Por isso, Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005,
p. 414) asseguram que “podem servir de modelo pessoas ou grupos cujo prestígio valoriza os
atos”.
No Sermão do monte, de maneira explícita, os profetas, ao mesmo tempo em que servem de
elemento de comparação, servem de modelo a serem seguidos pelos discípulos de Jesus que
poderiam passar por perseguições semelhantes a dos antigos profetas: “[...], pois assim
perseguiram os profetas que viveram antes de vós” (Mt 5. 12).
Deus, o Pai celeste, é utilizado como modelo a ser seguido em relação a amar ao próximo:
“[...] sede vós perfeitos como perfeito é vosso Pai celeste” (Mt 5. 45, 48). Neste caso, não há
nenhum inconveniente quanto ao modelo dado - o próprio Deus - no qual se acredita não
haver nenhuma imperfeição.
Quanto à noção de antimodelo, Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 417) asseguram
que “se a referência a um modelo possibilita promover certas condutas, a referência a um
contraste, a um antimodelo permite afastar-se delas” (grifo do autor), portanto, de maneira
geral, o que é dito sobre o modelo - guardadas as devidas adequações - pode ser dito em
relação ao antimodelo.
No final de seu discurso, Jesus lança mão de um modelo e um antimodelo (Mt 7. 24 – 27),
respectivamente, referindo-se ao homem prudente e ao homem insensato. O modelo do que
ouve as palavras de Jesus e as pratica é o homem prudente que construiu a sua casa sobre a
rocha. Já o antimodelo é o homem insensato que construiu a sua casa sobre a areia, vindo a
desmoronar por conta das circunstâncias adversas:
Todo aquele, pois, que ouve estas minhas palavras e as pratica será
comparado a um homem prudente que edificou a sua casa sobre a
rocha; e caiu a chuva, transbordaram os rios, sopraram os ventos e deram
com ímpeto contra aquela casa, que não caiu, porque fora edificada sobre a
rocha. E todo aquele que ouve estas minhas palavras e não as pratica
será comparado a um homem insensato que edificou a sua casa sobre a
areia; e caiu a chuva, transbordaram os rios, sopraram os ventos e deram
com ímpeto contra aquela casa, e ela desabou, sendo grande a sua ruína (Mt
7. 24 – 27, grifo nosso).
Pode-se afirmar que o sermão é transpassado pela argumentação baseada no antimodelo. Jesus
apresenta atitudes que são deploráveis e mostra que algumas pessoas praticam tais atitudes,
117
devendo seus ouvintes, portanto, não adotarem comportamento semelhante, pois essas
pessoas servem de antimodelo por praticarem determinadas ações.
Pouco depois do início do sermão, Jesus apresenta os escribas e fariseus como tendo uma
conduta que seus ouvintes deveriam superá-la (Mt 5. 20). Desta forma, vê-se logo que esses
são tidos como antimodelos, cuja prática de justiça não deveria ser imitada pelos ouvintes do
orador Jesus. É o que ele aconselha.
Ao prosseguir seu discurso, Jesus chama os escribas e fariseus de hipócritas (Mt 6. 2, 5, 16),
ensinando aos seus ouvintes não imitarem tais mestres, sendo estes antimodelos à prática de
dar esmola, da oração e do jejum. Outra designação é dada para os hipócritas, que incluem os
referidos escribas e fariseus, pois são chamados de falsos profetas (Mt 7. 15-20), porquanto,
em relação a estes, Jesus mostra ser necessário acautelar-se deles.
Servindo-se dos hipócritas como antimodelo, de maneira direta, Jesus coloca os gentios
também como antimodelos em relação à prática das vãs repetições ao orar: “E, orando, não
useis de vãs repetições, como os gentios [...] Não vos assemelheis, pois, a eles [...]” (Mt 6.
7,8).
Jesus também utiliza a noção de antimodelo para argumentar sobre algumas questões
específicas. Assim o publicano e o gentio servem, de maneira implícita, como antimodelo no
que se refere, respectivamente, ao amor ao inimigo e a saudar os irmãos: “Porque, se amardes
os que vos amam, que recompensa tendes? Não fazem os publicanos também o mesmo? E, se
saudardes somente os vossos irmãos, que fazeis de mais? Não fazem os gentios também o
mesmo?” (Mt 5. 46, 47).
Mais uma vez, o gentio é, implicitamente, antimodelo, desta vez referente à ansiedade pelas
coisas da vida, atitude esta não aconselhada por Jesus a seus ouvintes: “[...] não vos
inquieteis, dizendo: Que comeremos? Que beberemos? Ou: Com que nos vestiremos? Porque
os gentios é que procuram todas estas coisas; pois vosso Pai celeste sabe que necessitais de
todas elas” (Mt 6. 31, 32).
Dessa maneira, verifica-se a importância das noções de modelo e antimodelo na
argumentação jesuânica. Quanto ao antimodelo, vê-se que há aquele que é foco da
argumentação, os hipócritas, e aqueles que servem apenas em algumas situações, de maneira
implícita, como antimodelo, os publicanos e os gentios.
118
A analogia é a relação que se pode estabelecer entre tema e foro, em que os termos A e B
podem ser chamados de tema, recaindo sobre eles a conclusão; assim o conjunto de termos C
e D podem ser chamados de foro, que servem para estribar o raciocínio. “Normalmente, o
foro é bem mais conhecido que o tema cuja estrutura ele deve esclarecer, ou estabelecer o
valor, seja valor de conjunto, seja valor respectivo dos termos” (PERELMAN;
OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 424, 425).
A analogia diferencia-se da noção de semelhança porque não é uma relação de semelhança,
mas uma semelhança de relação. Existe analogia quando tema e foro pertencem a áreas
diferentes, do contrário são apenas raciocínio comparável ao exemplo e à ilustração. Por
certo, são muitas as possibilidades de analogias, cumpre observar de fácil explicitação no
discurso de Jesus.
Uma analogia feita por Jesus, em seu discurso no monte, dá-se quando ele fala sobre os falsos
profetas: “Acautelai-vos dos falsos profetas, que se vos apresentam disfarçados em ovelhas,
mas por dentro são lobos roubadores” (Mt 7. 15). Pode-se notar a presença do foro, ovelhas e
lobos roubadores, e a presença de um dos termos do tema, falsos profetas, ficando o outro
termo subtendido que poderia ser entendido como verdadeiros profetas. Afirma-se ainda que
se tem aí uma analogia de três termos, havendo uma relação entre o foro - que é da âmbito da
vida animal - e o tema do âmbito da religião.
A metáfora, no Tratado da argumentação, é concebida como uma analogia condensada,
portanto não pode ser considerada como simplesmente ornamento, nem tão somente
substituição de um termo por outro. Contudo, pode-se entender a metáfora como uma forma
de interação de um termo com outro. Salutar ressaltar também que a fusão metafórica
acrescenta um significado a outro e, para compreender o significado resultante, é preciso estar
a par do contexto discursivo.
Sendo a metáfora uma espécie de analogia condensada, compreende certa “fusão de um
elemento do foro com um elemento do tema” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA,
[1958] 2005, p. 453). Desta forma, o tema é o que se busca provar e foro é o elemento que
serve para provar. Vale considerar o que Sardinha (2007, p. 13, 14) assegura sobre as
metáforas:
As metáforas são meios econômicos de expressar uma grande quantidade de
informação. Ao mesmo tempo, são um modo simples de expressar um rico
conteúdo de idéias, que não poderia ser bem expresso sem elas. As
119
metáforas também criam uma relação de proximidade com o ouvinte, o leito
ou a platéia, pois ao ‘entender’ a metáfora, o leitor passa a ser cúmplice do
falante.
Jesus utilizou bastantes metáforas para tentar persuadir seu auditório, no entanto algumas
dessas não são fáceis de serem verificados nesse estudo porque isso demandaria um trabalho
mais denso e bastante específico, por isso apresentam-se aqui as metáforas mais explícitas
empregadas por Jesus.
O orador Jesus assegura que bem-aventurados são “os humildes de espírito”107 ou pobres de
espírito (Mt 5. 3). Por não ser fácil de determinar o sentido que o orador queria que esta
expressão assumisse, então cumpre colocá-la à disposição de um sentido metafórico. Isso
porque a palavra para pobre utilizada é ptochoí, em grego, a qual, em seu sentido básico,
refere-se ao mendigo, ao miserável, alguém que depende de outro para ser sustentado, aos
oprimidos, subjugados (LUZ, 1993). Disso se pode concluir que o tema está para a palavra
espírito e o foro está para a palavra pobre, que pode remeter à ideia que se traduz
normalmente como humilde de espírito ou miserável de espírito ou mesmo espiritualmente
dependente de outrem etc.
Outra possível metáfora é quando ele assegura ser bem-aventurado “os que têm fome e sede
de justiça” (Mt 5. 6), sendo o foro fome e sede, e justiça pode ser considerado como o tema.
Isso para expressar a ideia de um desejo de justiça comparado à fome e à sede que sente o ser
humano.
Ainda nas bem-aventuranças, ele assegura ser bem-aventurados os “limpos de coração”108 ou
de coração limpo (Mt 5. 8). Como na linguagem judaica coração não significa uma esfera
interna do homem ou o órgão do corpo, mas o centro do querer, pensar e sentir humano (LUZ,
1993), logo é uma realidade cognoscível ou conceitual, porém, pode-se afirmar que coração é
o tema, sendo o termo limpo o foro. Contudo, os dois termos, a depender do ponto de vista
que se adote, podem estar no âmbito metafórico. Mas como a palavra limpo ou puro remete à
ideia de limpeza ligada à prática judaica de cerimônias ritualísticas de purificação
relacionadas ao culto judeu, então limpo pode ser entendido como o foro.
Observa-se mais uma interação metafórica quando Jesus diz aos seus ouvintes ou aos
discípulos: “Vós o sal da terra”. Desta forma, o tema são os discípulos e o foro o sal da terra.
107
108
ptochoí to pneúmati.
katharoí te kardía.
120
Com isso se pode observar também que sal da terra pode ser, a depender do ponto de vista
que se assuma, compreendido como metáfora, pois terra remete ao sentido de humanidade.
Talvez haja, neste caso, uma metáfora mais sofisticada em que sal seja um termo que coteje
uma relação metafórica tanto para os discípulos como para terra. De igual modo, o orador
assegura “Vós sois a luz do mundo” (Mt 7. 14), sendo o tema os discípulos e o foro a luz. Há,
portanto, uma interação entre termos de naturezas diferentes; no primeiro caso, de natureza
mineral com os discípulos e, no outro caso, de natureza física com esses mesmos.
O orador Jesus, ao ensinar sobre o ato de dar esmola, usa a expressão “não toques trombeta
diante de ti” (Mt 6. 2). Toques trombeta como metáfora de anunciar, gritar, dizendo respeito
ao ato de se dar esmola e dizer a todos que o fez.
Jesus, ao falar de não se acumular “tesouros sobre a terra”, usa a mesma palavra para falar de
se juntar “tesouros no céu” (Mt 6. 19), sendo esta última possível de verificação de haver uma
metáfora, dado que o tema seria céu, a realidade transcendente, e tesouros do âmbito das
riquezas materiais. Há, portanto, a fusão de duas realidades representadas pelos termos
apontados.
O orador Jesus emprega outra metáfora afirmando que são “os olhos a lâmpada do corpo” (Mt
6. 22). Busca em um objeto de uso cotidiano, a lâmpada, o foro para a metáfora que tem como
tema os olhos. Assim, tal metáfora dá fundamento ao desenvolvimento de outro raciocínio
que serve à argumentação do orador palestino, qual seja, a relação que se tem com o ato de
servir às riquezas ou a Deus.
Outro uso metafórico empregado por Jesus está ao ensinar sobre “servir a Deus e às riquezas”
(Mt 6. 24), sendo o uso do verbo servir a Deus no sentido comum do termo, cujo ato é de uma
pessoa servir a outra (Deus), mas já ao ser empregado no sentido de “servir às riquezas”, o
termo servir reveste-se de valor metafórico, pois a riqueza está em uma dimensão não-pessoa.
Destarte, pode-se considerar a palavra riqueza o tema e o verbo servir o foro.
Jesus utiliza algumas metáforas ao falar sobre a ansiedade pela vida. Desse modo, ao dar uma
ilustração de que “nem Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles [lírios
do campo]. Ora, se Deus veste assim a erva do campo [...]” (Mt 6. 29, 30), o orador está
empregando uma metáfora em que faz a fusão de duas realidades: a de atitudes humanas de
vestir roupa, com o florescimento da erva do campo.
121
Ao falar sobre o ato de jugar, Jesus usa duas metáforas: “Por que vês o argueiro no olho do
teu irmão, porém não reparas na trave que está no teu próprio?” (Mt 7. 3). Assim, “argueiro
[cisco, farpa de palha ou madeira] no olho” pode ser tomado como metafórico, contudo com
mais força a expressão “trave no olho”, cujo significado de trave pode remeter à ideia de uma
viga ou peça daquelas de madeira utilizadas em construção como suporte horizontal para
travar o madeiramento (HENDRIKSEN, 2001, p. 505).
Quando Jesus assegura que pelos frutos se conhecem os falsos profetas, ele está se servindo
de uma metáfora: “[...] pelos seus frutos os conhecereis [os falsos profetas]” (Mt 7. 20). Há
duas realidades fundidas, a do âmbito natural e a do humano.
Por fim, constata-se que o orador Jesus Cristo fez uso, de forma mais explícita, de 39
argumentos que fundamentam a estrutura do real. Vê-se a quantidade de cada argumento
no Quadro (3) abaixo:
Quadro 3
Ademais, pode-se assegurar que as perícopes analisadas aqui poderiam, sob outra perspectiva,
serem analisadas e delas se obter conclusões diferentes. Isso porque as conclusões de todos os
raciocínios, como os analisados à luz do Tratado da argumentação, podem ser submetidos
sempre a uma nova prova, podendo ser refutados ou superados, ou mesmo porque a prova
retórica é utilizada para justificar fatos e não para demonstrá-los.
122
5
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Se Cristo foi apenas um personagem humano, ele de fato foi um personagem
humano muito complexo e contraditório. [...]. O que ele dizia era sempre
inesperado, mas era sempre inesperadamente magnânimo e inesperadamente
moderado. [...] Cristo é onisciente em outro sentido: ele não apenas sabe,
mas sabe que sabe (CHESTERTON, 2010, p. 216, 217).
Esse trabalho possibilitou ampliar a compreensão sobre as técnicas argumentativas de uma
emblemática figura milenar, Jesus Cristo. Sob o olhar do Tratado da argumentação, pôde-se
perceber o uso consciente e abundante que esse orador faz de técnicas com vistas ao
convencimento/persuasão de seu auditório. Portanto, vê-se que o Sermão do monte abunda em
estratégias argumentativas, sendo, por assim dizer, construção de um orador habilidoso e
versátil retoricamente.
Viu-se que a Nova Retórica contempla tanto a adesão intelectual quanto a ação, ou criar uma
disposição para esta. Logo, a eficácia de uma argumentação está vinculada à intensidade da
adesão que ela consegue obter, ou, pelo menos, crie uma disposição para a ação em tempo
oportuno, possibilitando desencadear nos ouvintes a ação pretendida, que pode ser positiva ou
mesmo uma abstenção. Para tanto, viu-se que o orador pode utilizar as mais diferentes
técnicas argumentativas para obter o resultado pretendido por meio de seu discurso. Essas
técnicas podem visar tanto a ação sobre a vontade como sobre o intelecto. A partir dessas
noções, verifica-se com esse estudo que o orador Jesus Cristo explora muito bem essas
possibilidades, tanto que se pôde enquadrar o Sermão do monte como gênero retórico
epidíctico, na acepção de Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005).
Como já dito, os discursos epidícticos, para Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005), são
uma parte central na arte de persuadir. Isso significa dizer que os resultados da adesão não
contemplam somente o intelecto, ou apenas para mostrar que uma tese é mais provável que
outra, porém, para reforçar a proposição até que a ação seja efetivada. Quanto a isso, pôde-se
observar que o orador Jesus, em várias partes do sermão, mostra preocupar-se com a ação de
seus ouvintes a partir de seu discurso proferido, tanto que, ao final da prédica, ele deixa bem
categórico: “Todo aquele, pois, que ouve estas minhas palavras e as pratica será comparado a
um homem prudente [...]”, quem faz o contrário ele compara a um homem insensato (Mt 7. 24
– 27).
123
Como resultado de pesquisa, pode-se afirmar que o discurso de Jesus pretende um efeito sobre
a integralidade dos ouvintes. Isso se verifica pelo bom uso que esse orador faz da epidíctica.
Para assegurar isso, seria preciso verificar que há o uso abundante tanto de argumentos quaselógicos, quanto de argumentos que dizem respeito à estrutura do real. Esses argumentos, por
sua vez, são utilizados a partir de acordos que são, respectivamente, referentes ao real e ao
preferível. Destarte, cabe ressaltar que a Nova Retórica é um aporte teórico de análise
privilegiada para a compreensão de um discurso como o estudado, pois possibilita uma
análise integradora das faculdades humanas.
Assim, nesse trabalho, foi possível observar que o orador Jesus parte de acordos que dizem
respeito tanto ao preferível - pois utiliza-se de valores ligados ao auditório particular - a
exemplo das bem-aventuranças (Mt 5. 3 – 10), como também argumenta a partir do objeto de
acordo referente ao real, no caso um fato, a Lei (Mt 5. 18). Deste modo, o orador inicia seu
discurso com as bem-aventuranças, que exprimem os valores do reino dos céus, estabelece um
acordo com o auditório particular por meio desses valores, mas logo cuida também de
estabelecer um acordo que versa sobre um fato, constituindo-o como premissa central do
sermão. Nesse trabalho, por sua vez, pôde-se observar que há certa habilidade de tal orador de
transitar entre argumentos referentes ao real e ao preferível. Para tanto, ele faz bem a
harmonização da ação sobre o intelecto e sobre a emoção (vontade) pertinente ao gênero
epidíctico. Sendo assim, ele concebe o auditório particular para o qual dirigia seu discurso
também como encarnação do auditório universal.
No sermão, o uso que orador faz de valores universais (Mt 5. 21 – 48) aponta essa relação em
que o auditório particular, por vez, é encarnação do universal. Vale lembrar o que Perelman e
Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 86) disseram quanto a isso: “O auditório real poderá
considerar tanto mais próximo de um auditório universal quanto mais o valor particular
parecer apagar-se ante ao valor universal por ele determinado”. Os valores particulares podem
servir para especificar os valores universais. Disso se pode concluir que, quando Jesus utiliza
especificações dos valores, ele o faz como estratégia para persuadir seu auditório real, que é
heterogêneo.
Em seu discurso, o orador argumenta em favor de se viver uma justiça superior aos dos
escribas e fariseus, enquanto argumenta contra práticas hipócritas de tais representantes
religiosos da época; sendo assim, ele ensina seus ouvintes a não viverem com os tais. Para
tanto, o orador lança mão da força de abundantes argumentos quase-lógicos (58 argumentos),
124
argumentos baseados na estrutura do real (46 argumentos) e argumentos que fundamentam a
estrutura do real (39 argumentos).
Apesar de os argumentos que dizem respeito ao preferível (baseados e que fundamentam a
estrutura do real) superarem quantitativamente os argumentos referentes ao real (quaselógicos), isso não significa que os mesmos sejam menos importantes, mas porque há menos
categorias teóricas para estes, além de que os mesmos são fundamentais para o orador, no
sermão, desenvolver sua argumentação a partir do acordo central que é sobre um fato, a Lei.
Sendo assim, conclui-se que a relação entre convencimento e persuasão é, de fato, bastante
tênue, e que o orador Jesus, ao argumentar para um auditório heterogêneo, consegue articular
argumentos tanto do âmbito do real quanto do preferível, para justificar suas proposições. Por
certo, o estudo aqui realizado no Sermão do monte alarga um importante caminho para outros
tantos estudos argumentativos sobre tal discurso, que, certamente, se faz necessário dado à
riqueza argumentativa de tal texto. Como o Tratado da Argumentação pressupõe-se que as
conclusões dos raciocínios sempre podem ser submetidas a uma nova prova - podendo ser
superadas ou refutadas -, não deve ser diferente em relação às analises procedidas nesse
trabalho, pois a análise retórica não trabalha para demonstrar fatos, mas para justificá-los.
125
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ANEXO
O Sermão do Monte109
5 Vendo Jesus as multidões, subiu ao
monte,
e,
como
se
assentasse,
aproximaram-se os seus discípulos;
2 e ele passou a ensiná-los, dizendo:
3 Bem-aventurados os humildes de
espírito, porque deles é o reino dos céus.
4 Bem-aventurados os que choram, porque
serão consolados.
5 Bem-aventurados os mansos, porque
herdarão a terra.
6 Bem-aventurados os que têm fome e sede
de justiça, porque serão fartos.
7 Bem-aventurados os misericordiosos,
porque alcançarão misericórdia.
8 Bem-aventurados os limpos de coração,
porque verão a Deus.
9 Bem-aventurados os pacificadores,
porque serão chamados filhos de Deus.
10 Bem-aventurados os perseguidos por
causa da justiça, porque deles é o reino dos
céus.
11 Bem-aventurados sois quando, por
minha causa, vos injuriarem, e vos
perseguirem, e, mentindo, disserem todo
mal contra vós.
12 Regozijai-vos e exultai, porque é grande
o vosso galardão nos céus; pois assim
perseguiram aos profetas que viveram
antes de vós.
13 Vós sois o sal da terra; ora, se o sal vier
a ser insípido, como lhe restaurar o sabor?
Para nada mais presta senão para, lançado
fora, ser pisado pelos homens.
14 Vós sois a luz do mundo. Não se pode
esconder a cidade edificada sobre um
monte;
15 nem se acende uma candeia para
colocá-la debaixo do alqueire, mas no
velador, e alumia a todos os que se
encontram na casa.
16 Assim brilhe também a vossa luz diante
dos homens, para que vejam as vossas boas
109
Capítulos referentes ao Sermão do Monte
contido no evangelho de Mateus. Versão João
Ferreira de Almeida, Revista e Atualizada, 2011.
obras e glorifiquem a vosso Pai que está
nos céus.
17 Não penseis que vim revogar a Lei ou
os Profetas; não vim para revogar, vim
para cumprir.
18 Porque em verdade vos digo: até que o
céu e a terra passem, nem um i ou um til
jamais passará da Lei, até que tudo se
cumpra.
19 Aquele, pois, que violar um destes
mandamentos, posto que dos menores, e
assim ensinar aos homens, será
considerado mínimo no reino dos céus;
aquele, porém, que os observar e ensinar,
esse será considerado grande no reino dos
céus.
20 Porque vos digo que, se a vossa justiça
não exceder em muito a dos escribas e
fariseus, jamais entrareis no reino dos céus.
21 Ouvistes que foi dito aos antigos: Não
matarás; e: Quem matar estará sujeito a
julgamento.
22 Eu, porém, vos digo que todo aquele
que sem motivo110 se irar contra seu irmão
estará sujeito a julgamento; e quem
proferir um insulto a seu irmão estará
sujeito a julgamento do tribunal; e quem
lhe chamar: Tolo, estará sujeito ao inferno
de fogo.
23 Se, pois, ao trazeres ao altar a tua
oferta, ali te lembrares de que teu irmão
tem alguma coisa contra ti,
24 deixa perante o altar a tua oferta, vai
primeiro reconciliar-te com teu irmão; e,
então, voltando, faze a tua oferta.
25 Entra em acordo sem demora com o teu
adversário, enquanto estás com ele a
caminho, para que o adversário não te
entregue ao juiz, o juiz, ao oficial de
justiça, e sejas recolhido à prisão.
26 Em verdade te digo que não sairás dali,
enquanto não pagares o último centavo.
27 Ouvistes que foi dito: Não adulterarás.
110
Nesta e nas demais transcrições, termos e frases
grafados em itálico indicam incerteza quanto à sua
originalidade no texto grego. Alguns preferem
coloca-los em colchetes.
28 Eu, porém, vos digo: qualquer que olhar
para uma mulher com intenção impura, no
coração, já adulterou com ela.
29 Se o teu olho direito te faz tropeçar,
arranca-o e lança-o de ti; pois te convém
que se perca um dos teus membros, e não
seja todo o teu corpo lançado no inferno.
30 E, se a tua mão direita te faz tropeçar,
corta-a e lança-a de ti; pois te convém que
se perca um dos teus membros, e não vá
todo o teu corpo para o inferno.
31 Também foi dito: Aquele que repudiar
sua mulher, dê-lhe carta de divórcio.
32 Eu, porém, vos digo: qualquer que
repudiar sua mulher, exceto em caso de
relações sexuais ilícitas, a expõe a tornarse adúltera; e aquele que casar com a
repudiada comete adultério.
33 Também ouvistes que foi dito aos
antigos: Não jurarás falso, mas cumprirás
rigorosamente para com o Senhor os teus
juramentos.
34 Eu, porém, vos digo: de modo algum
jureis; nem pelo céu, por ser o trono de
Deus;
35 nem pela terra, por ser estrado de seus
pés; nem por Jerusalém, por ser cidade do
grande Rei;
36 nem jures pela tua cabeça, porque não
podes tornar um cabelo branco ou preto.
37 Seja, porém, a tua palavra: Sim, sim;
não, não. O que disto passar vem do
maligno.
38 Ouvistes que foi dito: Olho por olho,
dente por dente.
39 Eu, porém, vos digo: não resistais ao
perverso; mas, a qualquer que te ferir na
face direita, volta-lhe também a outra;
40 e, ao que quer demandar contigo e tirarte a túnica, deixa-lhe também a capa.
41 Se alguém te obrigar a andar uma
milha, vai com ele duas.
42 Dá a quem te pede e não voltes as
costas ao que deseja que lhe emprestes.
43 Ouvistes que foi dito: Amarás o teu
próximo e odiarás o teu inimigo.
44 Eu, porém, vos digo: amai os vossos
inimigos e orai pelos que vos perseguem;
45 para que vos torneis filhos do vosso Pai
celeste, porque ele faz nascer o seu sol
sobre maus e bons e vir chuvas sobre
justos e injustos.
46 Porque, se amardes os que vos amam,
que recompensa tendes? Não fazem os
publicanos também o mesmo?
47 E, se saudardes somente os vossos
irmãos, que fazeis de mais? Não fazem os
gentios também o mesmo?
48 Portanto, sede vós perfeitos como
perfeito é o vosso Pai celeste.
6 Guardai-vos de exercer a vossa justiça
diante dos homens, com o fim de serdes
vistos por eles; doutra sorte, não tereis
galardão junto de vosso Pai celeste.
2 Quando, pois, deres esmola, não toques
trombeta diante de ti, como fazem os
hipócritas, nas sinagogas e nas ruas, para
serem glorificados pelos homens. Em
verdade vos digo que eles já receberam a
recompensa.
3 Tu, porém, ao dares a esmola, ignore a
tua mão esquerda o que faz a tua mão
direita;
4 para que a tua esmola fique em secreto; e
teu Pai, que vê em secreto, te
recompensará.
5 E, quando orardes, não sereis como os
hipócritas; porque gostam de orar em pé
nas sinagogas e nos cantos das praças, para
serem vistos dos homens. Em verdade vos
digo que eles já receberam a recompensa.
6 Tu, porém, quando orares, entra no teu
quarto e, fechada a porta, orarás a teu Pai,
que está em secreto; e teu Pai, que vê em
secreto, te recompensará.
7 E, orando, não useis de vãs repetições,
como os gentios; porque presumem que
pelo seu muito falar serão ouvidos.
8 Não vos assemelheis, pois, a eles; porque
Deus, o vosso Pai, sabe o de que tendes
necessidade, antes que lho peçais.
9 Portanto, vós orareis assim: Pai nosso,
que estás nos céus, santificado seja o teu
nome;
10 venha o teu reino; faça-se a tua vontade,
assim na terra como no céu;
11 o pão nosso de cada dia dá-nos hoje;
12 e perdoa-nos as nossas dívidas, assim
como nós temos perdoado aos nossos
devedores;
13 e não nos deixes cair em tentação; mas
livra-nos do mal pois teu é o reino, o poder
e a glória para sempre. Amém!
14 Porque, se perdoardes aos homens as
suas ofensas, também vosso Pai celeste vos
perdoará;
15 se, porém, não perdoardes aos homens
as suas ofensas, tampouco vosso Pai vos
perdoará as vossas ofensas.
16 Quando jejuardes, não vos mostreis
contristados como os hipócritas; porque
desfiguram o rosto com o fim de parecer
aos homens que jejuam. Em verdade vos
digo que eles já receberam a recompensa.
17 Tu, porém, quando jejuares, unge a
cabeça e lava o rosto,
18 com o fim de não parecer aos homens
que jejuas, e sim ao teu Pai, em secreto; e
teu Pai, que vê em secreto, te
recompensará.
19 Não acumuleis para vós outros tesouros
sobre a terra, onde a traça e a ferrugem
corroem e onde ladrões escavam e roubam;
20 mas ajuntai para vós outros tesouros no
céu, onde traça nem ferrugem corrói, e
onde ladrões não escavam, nem roubam;
21 porque, onde está o teu tesouro, aí
estará também o teu coração.
22 São os olhos a lâmpada do corpo. Se os
teus olhos forem bons, todo o teu corpo
será luminoso;
23 se, porém, os teus olhos forem maus,
todo o teu corpo estará em trevas. Portanto,
caso a luz que em ti há sejam trevas, que
grandes trevas serão!
24 Ninguém pode servir a dois senhores;
porque ou há de aborrecer-se de um e amar
ao outro, ou se devotará a um e desprezará
ao outro. Não podeis servir a Deus e às
riquezas.
25 Por isso, vos digo: não andeis ansiosos
pela vossa vida, quanto ao que haveis de
comer ou beber; nem pelo vosso corpo,
quanto ao que haveis de vestir. Não é a
vida mais do que o alimento, e o corpo,
mais do que as vestes?
26 Observai as aves do céu: não semeiam,
não colhem, nem ajuntam em celeiros;
contudo, vosso Pai celeste as sustenta.
Porventura, não valeis vós muito mais do
que as aves?
27 Qual de vós, por ansioso que esteja,
pode acrescentar um côvado ao curso da
sua vida?
28 E por que andais ansiosos quanto ao
vestuário? Considerai como crescem os
lírios do campo: eles não trabalham, nem
fiam.
29 Eu, contudo, vos afirmo que nem
Salomão, em toda a sua glória, se vestiu
como qualquer deles.
30 Ora, se Deus veste assim a erva do
campo, que hoje existe e amanhã é lançada
no forno, quanto mais a vós outros,
homens de pequena fé?
31 Portanto, não vos inquieteis, dizendo:
Que comeremos? Que beberemos? Ou:
Com que nos vestiremos?
32 Porque os gentios é que procuram todas
estas coisas; pois vosso Pai celeste sabe
que necessitais de todas elas;
33 buscai, pois, em primeiro lugar, o seu
reino e a sua justiça, e todas estas coisas
vos serão acrescentadas.
34 Portanto, não vos inquieteis com o dia
de amanhã, pois o amanhã trará os seus
cuidados; basta ao dia o seu próprio mal.
7 Não julgueis, para que não sejais
julgados.
2 Pois, com o critério com que julgardes,
sereis julgados; e, com a medida com que
tiverdes medido, vos medirão também.
3 Por que vês tu o argueiro no olho de teu
irmão, porém não reparas na trave que está
no teu próprio?
4 Ou como dirás a teu irmão: Deixa-me
tirar o argueiro do teu olho, quando tens a
trave no teu?
5 Hipócrita! Tira primeiro a trave do teu
olho e, então, verás claramente para tirar o
argueiro do olho de teu irmão.
6 Não deis aos cães o que é santo, nem
lanceis ante os porcos as vossas pérolas,
para que não as pisem com os pés e,
voltando-se, vos dilacerem.
7 Pedi, e dar-se-vos-á; buscai e achareis;
batei, e abrir-se-vos-á.
8 Pois todo o que pede recebe; o que busca
encontra; e, a quem bate, abrir-se-lhe-á.
9 Ou qual dentre vós é o homem que, se
porventura o filho lhe pedir pão, lhe dará
pedra?
10 Ou, se lhe pedir um peixe, lhe dará uma
cobra?
11 Ora, se vós, que sois maus, sabeis dar
boas dádivas aos vossos filhos, quanto
mais vosso Pai, que está nos céus, dará
boas coisas aos que lhe pedirem?
12 Tudo quanto, pois, quereis que os
homens vos façam, assim fazei-o vós
também a eles; porque esta é a Lei e os
Profetas.
13 Entrai pela porta estreita (larga é a
porta, e espaçoso, o caminho que conduz
para a perdição, e são muitos os que
entram por ela),
14 porque estreita é a porta, e apertado, o
caminho que conduz para a vida, e são
poucos os que acertam com ela.
15 Acautelai-vos dos falsos profetas, que
se vos apresentam disfarçados em ovelhas,
mas por dentro são lobos roubadores.
16 Pelos seus frutos os conhecereis.
Colhem-se,
porventura, uvas dos espinheiros ou figos
dos abrolhos?
17 Assim, toda árvore boa produz bons
frutos, porém a árvore má produz frutos
maus.
18 Não pode a árvore boa produzir frutos
maus, nem a árvore má produzir frutos
bons.
19 Toda árvore que não produz bom fruto
é cortada e lançada ao fogo.
20 Assim, pois, pelos seus frutos os
conhecereis.
21 Nem todo o que me diz: Senhor,
Senhor! entrará no reino dos céus, mas
aquele que faz a vontade de meu Pai, que
está nos céus.
22 Muitos, naquele dia, hão de dizer-me:
Senhor, Senhor! Porventura, não temos nós
profetizado em teu nome, e em teu nome
não expelimos demônios, e em teu nome
não fizemos muitos milagres?
23 Então, lhes direi explicitamente: nunca
vos conheci. Apartai-vos de mim, os que
praticais a iniqüidade.
24 Todo aquele, pois, que ouve estas
minhas palavras e as pratica será
comparado a um homem prudente que
edificou a sua casa sobre a rocha;
25 e caiu a chuva, transbordaram os rios,
sopraram os ventos e deram com ímpeto
contra aquela casa, que não caiu, porque
fora edificada sobre a rocha.
26 E todo aquele que ouve estas minhas
palavras e não as pratica será comparado a
um homem insensato que edificou a sua
casa sobre a areia;
27 e caiu a chuva, transbordaram os rios,
sopraram os ventos e deram com ímpeto
contra aquela casa, e ela desabou, sendo
grande a sua ruína.
28 Quando Jesus acabou de proferir estas
palavras,
estavam
as
multidões
maravilhadas da sua doutrina;
29 porque ele as ensinava como quem tem
autoridade e não como os escribas.
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