UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS I PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS - PPGEL LUCAS NASCIMENTO SILVA O ORADOR JESUS CRISTO E SUAS TÉCNICAS ARGUMENTATIVAS: UM ESTUDO RETÓRICO NO SERMÃO DO MONTE Salvador 2013 LUCAS NASCIMENTO SILVA O ORADOR JESUS CRISTO E SUAS TÉCNICAS ARGUMENTATIVAS: UM ESTUDO RETÓRICO NO SERMÃO DO MONTE Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Estudo de Linguagens (PPGEL), Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado da Bahia – UNEB, em cumprimento parcial do requisito para obtenção de grau de Mestre em Estudo de Linguagens. Orientador: Prof. Dr. Gilberto N. Telles Sobral Salvador 2013 FICHA CATALOGRÁFICA Sistema de Bibliotecas da UNEB Bibliotecária: Jacira Almeida Mendes – CRB: 5/592 Silva, Lucas Nascimento O orador Jesus Cristo e suas técnicas argumentativas: um estudo retórico no Sermão do Monte / Lucas Nascimento Silva . - Salvador, 2013. 128f. Orientador: Gilberto N. Telles Sobral. Dissertação (Mestrado) - Universidade do Estado da Bahia. Departamento de Ciências Humanas. Campus I. 2013. Contém referência e anexos. 1. Discursos, alocuções, etc. 2. Sermão do Monte. 3. Oratória. 4. Análise do discurso. I. Sobral, Gilberto N. Telles. II. Universidade do Estado da Bahia, Departamento de Ciências Humanas. CDD: 808.5 . LUCAS NASCIMENTO SILVA O ORADOR JESUS CRISTO E SUAS TÉCNICAS ARGUMENTATIVAS: UM ESTUDO RETÓRICO NO SERMÃO DO MONTE BANCA EXAMINADORA Profª. Drª. Denise Maria Oliveira Zoghbi Doutora em Letras e Linguística - UFBA Profª. Drª. Jaciara Ornélia Nogueira de Oliveira Doutora em Letras e Linguística - UNEB Prof. Dr. Gilberto N. Telles Sobral Doutor em Letras e Linguística - UNEB Salvador 2013 Aos meus pais, Helena e Luis Carlos, por tudo. E, em memória, do prof. Dr. Manoel Sarmento pelo apoio oportuno e exato. AGRADECIMENTOS Ao bondoso Deus que me proporciona viver consciente de sua presença e orientação. Aos que me ouviram falar por, aproximadamente, dez meses em dezenas de sextas-feiras sobre o Sermão do monte, cujo discernimento veio que eu deveria propor uma pesquisa como essa. Dentre essas pessoas estão os amigos da Aliança Bíblica Universitária - ABU. Ao meu querido orientador, Gilberto Sobral. Um orientador que orienta, é compreensivo, amigo, paciente e motivador. Obrigado pelo apoio. Sei que fiz um bom amigo. À minha família que me apoiou em tudo possível para a realização desse sonho. Sou grato a Deus por meu pai Luis, minha mãe Helena e meu irmão Luan. Certamente, vocês são parte dessa realização. Aos meus colegas do mestrado, em especial, aos mais chegados: Priscila, Patrícia, Taciana, Lucélia e Vanessa. À professora e amiga, Drª. Adriana Barbosa pelo apoio e incentivo de sempre. Sei a importância que você teve, certamente faz parte dessa realização. Grato também pelo apoio dos colegas do Grupo de Estudos em Teorias do Discurso – GETED. Sei que essa minha conquista é nossa. Aos meus muitos amigos pessoais que sempre estiveram ao meu lado durante todo esse processo. Sou muito agradecido a Deus e a vocês por tão profundas amizades. Ao estimado companheiro de apartamento, Marcio Barreto, que me apoiou durante o tempo em que residi em Salvador. À amiga Glória Barreto, cujo prazer tive de conhecer na ocasião do início do mestrado e fazer uma boa amizade. À amiga Celiane que, carinhosamente, fez a revisão desta dissertação. De igual modo, agradeço à amiga Aliana que se dispôs a ler esse trabalho. Aos professores, funcionários e amigos do PPGEL. Continuem fazendo um trabalho comprometido e com muito carinho. “O coração do sábio é mestre de sua boca e aumenta a persuasão nos seus lábios” (PROVÉBIOS, 16. 23) RESUMO O sermão é um gênero discursivo bastante argumentativo. Por meio deste, o orador intenta, explicitamente, conquistar a adesão dos espíritos às teses propostas. Não poderia ser diferente em se tratando do Sermão do Monte, discurso proferido por Jesus Cristo, personagem do evangelho de Mateus. Assim, esse trabalho adotou como corpus tal discurso jesuânico, materializado por Mateus (capítulos de 5-7) no livro que leva seu nome. Justifica essa pesquisa pela importância do sermão e do gênero para a cristandade, por sua vez, para boa parte do Ocidente, que esteve sob influência dominante do Cristianismo por vários séculos. O objetivo desse trabalho foi, a partir do aporte teórico do Tratado da Argumentação de Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005), investigar algumas técnicas argumentativas utilizadas por Jesus em seu sermão que visam convencer e persuadir seu auditório. Tenta-se compreender como se dá a relação dessas técnicas, se prevalece o uso de uma sobre a outra, ou se há uma harmonização no uso de ambas. Busca-se ainda, compreender qual gênero retórico o sermão poderia ser enquadrado. Assim, nesse texto dissertativo, observou-se que há tanto o uso abundante de argumentos quase-lógicos quanto o uso de argumentos pertinentes à estrutura do real com vistas à persuasão de um auditório heterogêneo, e que o orador utiliza-se dessas técnicas com bastante habilidade. Palavras-Chave: Argumentação. Sermão do monte. Nova Retórica. Jesus. ABSTRACT The sermon is a very argumentative discourse genre. Through this, the speaker intends to gain the entry of the spirits to these proposals. There could be different in the Sermon on the Mount case, discourse given by Jesus Christ, the character of Matthew's gospel. Thus, this study adopted as the corpus such jesuanic speech , materialized by Matthew (chapters 5-7) in the book that bears his name. The importance of this sermon justifies such research and gender for the Christianity, and this one for the West, which was under the dominant influence of Christianity by several centuries. The aim of this work was, from the theoretical approach of the Treaty of Argumentation by Perelman and Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005), to investigate some argumentative techniques used by Jesus in his sermon that aims to convince and persuade his audience, trying to understand how happens the relationship of these techniques, if there is a dependence on one another, or if there is a harmonization in the use of both, as well as understanding in what rhetorical genre the sermon could be classified. Thus, in this dissertative text, it was observed that there is both the abundant use of quasilogical arguments, as well some relevant arguments to the structure of the real with a view to persuade an heterogeneous audience, and that the speaker uses these techniques with great skill. Keywords: Argumentation. Sermon on the mount. New Rhetoric. Jesus. SUMÁRIO 1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS 11 2 POR UMA ANÁLISE ARGUMENTATIVA DO SERMÃO DO MONTE 15 2.1 O DISCURSO RELIGIOSO 15 2.2 O GÊNERO DO DISCURSO SERMÃO E O SERMÃO DO MONTE 18 2.2.1 O gênero sermão: conceituação 18 2.2.2 O sermão do monte: particularidades e temáticas 19 2.2.3 Considerações sobre a estrutura do sermão 23 2.3 O NOVO TESTAMENTO: CÂNON, MANUSCRITOS E VERSÕES 24 2.4 MATEUS: RELAÇÃO SINÓTICA 31 2.4.1 Relação sinótica 31 2.4.2 Autoria, datação e local de autoria 34 2.5 UM OLHAR SOBRE A PESQUISA EM MATEUS E SEU GÊNERO LITERÁRIO 36 2.5.1 Mateus como biografia: o gênero literário 38 3 ARGUMENTAÇÃO RETÓRICA NO SERMÃO DO MONTE 46 3.1 A RETÓRICA: DEFINIÇÃO E ORIGEM 46 3.1.1 Da origem ao declínio da retórica 47 3.2 OS ÂMBITOS E O PONTO DE PARTIDA DA ARGUMENTAÇÃO NO SERMÃO DO MONTE 51 3.2.1 O contato do orador com seu auditório 52 3.2.2 Acordos: convencendo e persuadindo auditórios 59 3.2.3 O gênero epidíctico e seus efeitos 75 4 AS TÉCNICAS ARGUMENTATIVAS DO ORADOR JESUS CRISTO 80 4.1 OS ARGUMENTOS QUASE-LÓGICOS 80 4.2 OS ARGUMENTOS BASEADOS NA ESTRUTURA DO REAL 98 4.3 AS LIGAÇÕES QUE FUNDAMENTAM A ESTRUTURA DO REAL 111 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS 122 REFERÊNCIAS 125 ANEXO 128 LISTA DE QUADROS E FIGURAS Quadro 1: Argumentos quase-lógicos 97 Quadro 2: Argumentos baseados na estrutura do real 111 Quadro 3: Argumentos que fundamentam a estrutura do real 121 11 1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS Existem alguns gêneros do discurso que são essencialmente argumentativos, ou seja, intentam, de forma explícita, conquistar a adesão dos espíritos às teses propostas. Um desses gêneros é o sermão, que, inegavelmente, tem grande relevância sócio-histórico-cultural no Ocidente por ser o principal gênero veiculador da mensagem da religião cristã, cuja influência foi dominante por muitos séculos nas mais diversas sociedades. Portanto, um estudo argumentativo do Sermão do monte – proferido por Jesus no I século d.C. e tido para muitos como o discurso fundante do Cristianismo, no qual as bases éticas dessa religião são lançadas e, por conseguinte, de boa parte do Ocidente - é o que justifica esse trabalho. O Sermão do monte foi pronunciado por Jesus aproximadamente na primavera do ano 28 d.C. sobre o monte identificado por alguns estudiosos como o Chifres de Hatin. Seu discurso foi dirigido aos seus discípulos e para as multidões (Mateus 5. 1, 2) que o seguia. Essas multidões eram pessoas da região da Galileia, de Jerusalém, de Decápolis e da Judeia, que o acompanhavam em busca de milagres e de ensinamentos. Nesse trabalho, faz-se uma análise do Sermão do monte materializado no evangelho de Mateus (5-7). Esse sermão, que compreende três capítulos do Evangelho de Mateus (5-7), é considerado o mais importante dos discursos de Jesus; ele é também o maior discurso da obra mateana, dado que há quatro outros discursos menores proferidos por Jesus Cristo. A importância desse sermão não se dá simplesmente por ser o primeiro dentro da obra, mas pela abrangência dos temas abordados e por apresentar uma visão dos valores ou mesmo a ética jesuânica em contraposição à judaica representada pelos escribas e fariseus da época. Deste modo, há uma reinterpretação da Lei do Antigo Testamento e são ressaltados alguns princípios essenciais de relação do homem com Deus, consigo mesmo e com o outro; o que mostra como funciona a vida no que chama de “Reino dos céus”. Jesus é a personagem principal do evangelho de Mateus. Portanto, o que possibilita trabalhar uma abordagem argumentativa nesse texto é o fato de essa obra poder ser tomada como literária. Vale então ressaltar que, por muito tempo, o texto bíblico foi estudado apenas nos círculos religiosos, relegando o estudo literário e argumentativo para planos outros. Apesar de o estudo literário desse não ser antagônico ao teológico, mas complementar, a maioria dos teólogos não se interessa em estudar o texto enquanto literatura, sendo visto como se não 12 houvesse um estilo, uma estrutura e intencionalidades narrativas e persuasivas. Os literatos, por sua vez, relegam o livro a um segundo plano por acharem que se trata meramente de um texto religioso-doutrinário, o que acabou inibindo o estudo argumentativo do mesmo. Entretanto, compreende-se que o valor teológico e sagrado não precisam ser negados. Sendo assim, na análise aqui trabalhada, toma-se o evangelho de Mateus como tendo características que se enquadram no gênero biográfico greco-latino. Tal posição é tomada por Ferreira (2006) em sua tese de doutoramento em Teoria e Crítica Literária, defendida na Universidade Estadual de Campinas, em que estuda o narrador no evangelho de Mateus e sua relação com o protagonista, Jesus Cristo. O presente estudo traz para discussão o Sermão do monte, não mais necessariamente sob o viés teológico, mas sob o ponto de vista da teoria da argumentação de Perelman e OlbrechtsTyteca desenvolvida no Tratado da argumentação ([1958] 2005). Ao que se objetiva, de maneira geral, investigar algumas técnicas argumentativas utilizadas por Jesus em seu sermão que visam convencer e persuadir seu auditório, tentando compreender como se dá a relação dessas técnicas, se prevalece o uso de uma sobre a outra, ou se há uma harmonização no uso de ambas. Especificamente, primeiro, objetiva-se entender a que tipo de auditório o discurso de Jesus é dirigido e como se dá a comunhão do orador com esse auditório. Desse modo, busca-se entender como se dá o estabelecimento dos acordos do orador com seu auditório, bem como definir o gênero retórico do sermão; segundo, objetiva-se analisar quais são os argumentos quase-lógicos utilizados pelo orador; por último, tenta-se compreender quais são as técnicas argumentativas baseadas na estrutura do real e as que fundamentam a estrutura do real utilizadas pelo orador no Sermão do monte. Nesse trabalho, discute-se teoricamente os conceitos de argumentação, mostrando como se dão as técnicas ligadas ao convencimento e à persuasão no discurso do orador Jesus Cristo. Sendo que quem busca convencer trabalha no campo das ideias, da razão; conceito este que se relaciona, de alguma maneira, com o lógos e associa-se, no Tratado da argumentação ([1958] 2005), aos argumentos quase-lógicos. Quem busca persuadir trabalha no campo da emoção, conceito que se vincula ao pathos e em Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005) está associado mais diretamente aos argumentos baseados na estrutura do real e aos argumentos que fundamentam a estrutura do real. 13 Nesse trabalho, é utilizada uma versão revisada e atualizada da Bíblia Sagrada, em Português, de João Ferreira de Almeida (2011), por ser a tradução feita a partir do texto crítico, texto este mais aceito para pesquisas acadêmicas por ter passado por um estudo a partir dos manuscritos bíblicos mais antigos disponíveis em grego. No entanto, em alguns momentos, para efeito de verificação e esclarecimento, recorre-se a consulta ao texto na língua original, em grego, sendo, para tanto, utilizados os textos do Novum Testamentum Graece1 Nestle-Aland, 4ª. edição publicado no Brasil no Novo Testamento Trilíngue (1998). O suporte à interpretação do evangelho se dá a partir de leituras de obras de estudiosos bíblicos, portanto de comentários consistentes para compreensão do objeto analisado: autoria, estrutura, filiações literárias, estilísticas e simbólicas, o que auxilia na aplicação da teoria supramencionada para responder às questões levantadas nesse trabalho. Para alcançar os objetivos propostos, a dissertação está dividida, além das considerações iniciais (seção I) e finais (seção V), em três seções. Na seção II, Por uma Análise Argumentativa do Sermão do monte, faz-se uma abordagem sobre o discurso religioso, ressaltando sua importância sócio-histórica e a necessidade de estudá-lo argumentativamente. Após isso, procede-se a conceituação do sermão como gênero do discurso e, para melhor compreensão do Sermão do monte, são apresentadas algumas particularidades temáticas e estruturais. Em seguida, são apresentados dados históricos relacionados, de alguma maneira, ao texto em estudo; posteriormente, discute-se a possibilidade de estudo do texto bíblico enquanto literatura, por sua vez, mostrando por que o Evangelho de Mateus está na categoria de gênero literário biográfico greco-latino e o que isso contribui para a justificativa do estudo do Sermão do monte argumentativamente. Na seção III, Argumentação Retórica no Sermão do monte, é feita uma breve abordagem histórica da Retórica para melhor situar a teoria da argumentação de Perelman e OlbrechtsTyteca ([1948] 2005) nesse trabalho. Só então, discute-se os âmbitos e o ponto de partida da argumentação que compreendem alguns conceitos basilares da Nova Retórica, como os conceitos de auditório e as noções de convencer e persuadir. Tenta-se ainda compreender quais acordos o orador estabelece com seu auditório, busca-se também a caracterização do sermão como gênero retórico. Já, na seção IV, As Técnicas Argumentativas do Orador Jesus Cristo, tenta-se verificar quais são os principais argumentos quase-lógicos utilizados pelo orador Jesus em seu sermão 1 Novo Testamento Grego (tradução nossa). 14 com a finalidade de convencer seu auditório. De igual modo, busca-se identificar quais os argumentos baseados na estrutura do real e os argumentos que fundamentam a estrutura do real que são utilizados com a finalidade de persuadir seus ouvintes. Nas Considerações Finais, chega-se a algumas constatações quanto à constituição do corpus e ao exame analítico, mostrando os resultados das técnicas argumentativas no Sermão do monte, a partir do Tratado da argumentação de Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005). 15 2 POR UMA ANÁLISE ARGUMENTATIVA DO SERMÃO DO MONTE 2.1 O DISCURSO RELIGIOSO O texto bíblico encontra-se no domínio do discurso religioso. Dessa maneira, faz-se necessário salientar a importância do estudo argumentativo do mesmo relegado por muito tempo ao desprezo, em especial pela academia brasileira. Isso advém de questões ideológicas dos pesquisadores e também é preciso considerar que, como assegura Maingueneau (2010, p. 100), “[...] nas sociedades ocidentais, a cultura religiosa é cada vez menos divulgada entre os pesquisadores em ciências humanas e sociais”. Por outro lado, os que estudam o discurso religioso fazem-no para compreender como ele interfere em outros domínios e não para compreendê-lo como tal, não o fazem com o objetivo de desencantar o maravilhoso, assegura Maingueneau (2010, p. 101), ou seja, para compreender sua constituição, seus mecanismos internos a partir de seus diferentes gêneros de discursos. Os textos do domínio discursivo religioso, juntamente com a filosofia e a literatura, têm em sua história de estudo as técnicas de comentário e crítica das mais antigas, abundantes e sofisticadas (MAINGUENEAU, 2010, p. 100). No entanto, muitas vezes, os especialistas desse domínio eram reticentes aos estudos que fugiam para uma análise mais discursiva de tais textos, ao que, nos anos 1960, com o desenvolvimento de novas abordagens das produções verbais, os pesquisadores concentraram-se em corpora que não eram contemplados pelas abordagens mais antigas, ou seja, concentraram-se em analisar textos fora do domínio discursivo religioso. De fato, os “grandes textos” não deixaram de interessar às correntes inovadoras. Para os textos literários, sabe-se como foi importante o papel exercido pela semiótica inspirada em Greimas. A influência dessa abordagem foi igualmente forte nos estudos de textos religiosos. Mas, se nestes últimos fala-se frequentemente de “discurso religioso”, estamos longe das problemáticas que, nas ciências humanas e sociais, atualmente se consideram ligadas ao discurso. (MAINGUENEAU, 2010, p. 100, grifo do autor). Hoje, o número de pesquisadores que têm se ocupado com o discurso religioso é crescente, eles estão fazendo análises argumentativas, discursivas, semióticas e literárias de textos religiosos. Tal feito se dá por se compreender a importância desse gênero na formação e 16 interação social, ou por compreender que a dimensão religiosa é essencial em um grande número de conflitos que vêm aumentando desde o final do século XX. Maingueneau (2010, p. 101) assegura que o discurso religioso enquadra-se no que chama de discurso constituinte, por isso faz parte dos discursos que são bem heterogêneos, “que associam gêneros de discurso muito fechados, produzidos por e para especialistas, que pretendem enunciar em nome da Fonte que os funda, e gêneros mais próximas da vida cotidiana” (MAINGUENEAU, 2010, p. 101). Uma característica peculiar desse discurso é, por certo, a persuasão (CITELLI, 2004), ainda mais no caso do gênero discursivo sermão. Entende-se que tal discurso seja bastante autoritário e não há espaço para se questionar o eu enunciador, que não pode ser visto ou analisado. Desse modo, todas as vozes, inclusive a que fala, são plasmadas pela voz de Deus. O discurso religioso realiza a tarefa sui generis enquanto mecanismo de comunicação, pois, se os demais discursos autoritários-persuasivos podem vir a revelar a voz do sujeito falante, nele resta apenas a noção de dogma. Não deixa de ser uma situação curiosa estar diante da mais visível forma de persuasão e do mais invisível eu persuasivo. Deus não fala, dado ser uma realidade imaterial; quem fala em seu nome não é dono do discurso: o agente é apenas veículo, porta-voz, no máximo “interpretador” da palavra do Senhor (CITELLI, 2004, p. 61). De acordo com Orlandi (2006), há nesse discurso um desvelamento fundamental na relação entre locutor e ouvinte. Dá-se isso porque estes são de esferas totalmente diferentes: o locutor é do plano espiritual (Deus), e o ouvinte é do plano temporal (os homens). Logo, dá-se o domínio do mundo espiritual sobre o temporal. “Na desigualdade, Deus domina os homens” (ORLANDI, 2006, p. 243). Orlandi (2006) assegura que o discurso religioso é sustentado pela “ilusão de reversibilidade”, ilusão não necessariamente como engano, mas como sentimento, o que se dá na tentativa de que a reversibilidade não seja zero, mesmo que o discurso autoritário tenda a aproximar-se de zero. Caso chegue a zero, o contato se rompe, desfaz-se a relação, comprometendo assim o domínio (o escopo) do discurso. Ou seja, não há reversão no processo comunicativo como há no discurso dos homens. Por isso a necessidade de se manter o desejo de tornar tal discurso reversível. Eis a ilusão. Então, como assegura Citelli (2004, p. 62), “ficamos com a ‘ilusão’ do reversível, dado que os representantes de Deus na Terra parecem falar por ele”. Isso serve para se compreender que, no discurso religioso, o orador não fala em seu próprio nome, contudo, nesse trabalho, o que 17 se analisa é o locutor que predica o sermão - enquanto produtor de seu discurso - e suas estratégias argumentativas. Entende-se, portanto, como discurso a produção verbal que o locutor enuncia, podendo ser escrita ou oral. Por assim dizer, não se trabalha nessa dissertação com a noção de sujeito, mas com a de orador como sendo aquele que escreve um texto e/ou pronuncia um discurso, sendo o mesmo inteiramente responsável pelo que diz. Quanto à noção de discurso, adota-se a apontada por Reboul (2004, p. XIV): Por discurso entendemos toda produção verbal, escrita ou oral, constituída por uma frase ou por uma sequência de frases, que tenha começo e fim e apresente certa unidade de sentido. De fato, um discurso incoerente, feito por um bêbado ou um louco, são vários discursos tomados por um só (grifo do autor). Quanto a isso, cumpre deixar evidente algumas noções adotadas nesse trabalho. Como se analisa o discurso da personagem Jesus Cristo, crucial assegurar que Mateus é o autor do texto, ou seja, aquele que narra, que dá voz à personagem, constituindo-se esta como locutor responsável pela enunciação. Maingueneau (1996, p. 88) assegura que “o autor não é o único a poder dizer ‘eu’ num texto. As narrações apresentam continuamente personagens que se expressam por discurso direto, colocando-se como responsáveis por sua enunciação, como ‘locutores’”. O locutor, nesse caso, é um ser do discurso, contudo não impossibilita de esse locutor condizer com o indivíduo enquanto ser no mundo, ser histórico, ou se referir a ele. Porquanto, o estudo aqui é a partir da enunciação do locutor Jesus Cristo enquanto personagem da narrativa mateana. Além de lidar com a disputa entre a filologia, concebedora dos textos religiosos como fatos históricos, e as hermenêuticas feitas pelos crentes, o trabalho com textos religiosos requer a interpretação dos mesmos, “seja para descobrir conteúdos espirituais ocultos, seja para considerar os textos como documentos históricos que permitem compreender um autor ou uma época” (MAINGUENEAU, 2010, p. 102). Quanto a isso, Maingueneau (2010, p. 102) afirma que É uma linha divisória que nem sempre é tão clara quanto se poderia pensar. O ensinamento transmitido em uma faculdade de teologia não se reduz a um comentário dos textos fundadores; ele se interessa também pela arqueologia, pela codicologia etc., mesmo que tais saberes desempenhem um papel subalterno; a verdade propriamente religiosa é considerada de uma outra ordem. Na sequência desse trabalho, discute-se o gênero discursivo em questão e algumas de suas especialidades, logo após apresenta-se questões breves, porém, relevantes a respeito do Novo 18 Testamento e dos seus processos de constituição, bem como questões essenciais do evangelho de Mateus e a definição do gênero literário da obra em questão. 2.2 O GÊNERO DO DISCURSO SERMÃO E O SERMÃO DO MONTE 2.2.1 O GÊNERO SERMÃO : CONCEITUAÇÃO O sermão é um gênero do discurso bastante conhecido e praticado no Ocidente. De acordo com Bakhtin (1997, p. 179), “[...] cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciado”, sendo isso o que ele denomina gêneros do discurso. Marcuschi (2003) retoma essa noção preferindo chamá-la de gêneros textuais e assegura que esses são os textos encontrados no dia a dia e que apresentam padrões sociocomunicativos característicos definidos por composições funcionais, objetivos enunciativos e estilos concretamente realizados na interação de forças históricas, institucionais e técnicas. São fenômenos históricos, profundamente vinculados à vida sociocultural, servindo para ordenar e estabilizar as atividades comunicativas do cotidiano. Os gêneros são o reflexo das estruturas sociais recorrentes e típicas de cada cultura, por conta disso a variação cultural traz consequências significativas para a variação de gêneros. Como a sociedade muda, os gêneros também mudam, assim pregar um sermão hoje não se dá da mesma forma como era a prática na Idade Média, nem muito menos na Palestina do primeiro século d.C. Porquanto, isso remete ao que Bakhtin (1997) discute sobre a possibilidade da transmutação genérica, em que um gênero assimila outro, gerando novos gêneros. Maingueneau (2010) analisa a historicidade de um gênero de discurso: o sermão, e mostra que há muitas diferenças do gênero nos séculos XVII e XVIII para o início do século XXI. Por sua vez, quanto à atualização desse gênero, Patriota e Almeida (2006, p. 68) afirmam que “os sermões continuam sermões, entretanto [atualmente] assumem formatos próprios que emergem das características inerentes ao discurso midiático”. “O sermão entra na categoria das enunciações monologais orais” (MAINGUENEAU, 2010, p. 105). Ele é, por certo, eminentemente persuasivo, pois existem toda uma técnica, instrumentos 19 e sistematização envolvidos em sua elaboração para um mesmo fim: a persuasão dos fiéis, em alguns casos, de não fiéis. “Poder-se-ia dizer que se trata de um gênero ‘irradiador’, isto é, que tem a capacidade de ativar a produção verbal de outros gêneros, de fazer falar dele”, assegura Maingueneau (2010, p. 105) ao falar do sermão mais tradicional, não do sermão que surge como fenômeno midiático. O termo sermão implica certa assimetria entre uma posição superior, “a do ‘sermonneur’ [aquele que passa/faz um sermão], e uma posição inferior, a do ‘sermonné’ [aquele a quem o sermão é dirigido]” (MAINGUENEAU, 2010, p. 114). Existem aqueles que fazem a diferenciação entre sermão e homilia: “A homilia é antes de tudo consagrada a um texto, enquanto o sermão é antes de tudo consagrado a um tema moral ou espiritual” (RÉGENTSUSINI, 2009, 17 apud MAINGUENEAU, 2010, p. 113, grifo autor). Contudo, essas diferenças não são importantes para essa análise, dado que esses termos servem apenas como designação de um gênero que ao longo dos séculos vem se transmutando. Aquele que prega um sermão, além de preocupar-se com o conteúdo, preocupa-se com a cadência da voz, a postura, as palavras utilizadas e a adequação desses elementos de acordo com o ambiente e o nível sócio cultural, ou seja, preocupa-se com o auditório a quem a mensagem está sendo direcionada. Vale salientar que, por auditório compreende-se como sendo todos aqueles que o orador deseja influenciar com seu discurso (PERELMAN; OLBRESCHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 22). Considerando-se isso, pode-se dizer que esse gênero tem sua temática, suas formas composicionais e estilísticas próprias, cujo objetivo é a persuasão religiosa. 2.2.2 O SERMÃO DO MONTE: PARTICULARIDADES E TEMÁTICAS O discurso de Jesus chamado de Sermão do monte ou de Sermão da montanha2 é o primeiro e mais extenso dos cinco discursos proferidos por Jesus Cristo no evangelho de Mateus. Como o título alude, foi proferido em um monte (Mt 5.1) situado nas vizinhanças de Cafarnaum. Hendriksen (2001, p. 362) defende que, pelo fato de o texto usar o artigo definido - o monte, “[...] subiu ao monte [...]” (Mt 5.1) -, esse monte pode ter sido bastante conhecido na época, 2 Diferenças decorrentes da escolha dos tradutores. 20 por sua vez, sugere ser o Chifres de Hatin3, tal designação por conta de seus picos se assemelharem a dois chifres ao serem vistos de longe. A questão da localização do sermão traz uma problemática, pois Lucas (6. 17) fala de um sermão de Jesus Cristo, Sermão da planície, com características semelhantes ao Sermão do monte, contudo menor, descrito como se fosse pronunciado num lugar plano. No entanto, alguns estudiosos acreditam que há apenas uma aparente contradição, porquanto Hendriksen (2001, p. 362) assegura que pode se admitir que Jesus pronunciou seu discurso em um planalto, “ou que tendo escolhido seus discípulos no cume do monte, desceu com eles para a planície onde curou os enfermos e, em seguida, com os discípulos, voltou para o cume do monte (ver Mc 3.13; Lc 6.17; e Mt 5.1, nessa ordem)”. Se se adotar o segundo ponto de vista, “tudo indica que na planície ele parou para curar os enfermos; no alto do monte ele se sentou, segundo o costume da época (Mc 4.1; 9.35; 13.3; Lc 4.20), para pronunciar seu sermão” (HENDRIKSEN, 2001, p. 362, grifos do autor). Porquanto, para esse estudioso, qualquer um dos pontos de vista adotados pode ser aceito já que não se pode comprovar que haja conflito entre a narrativa de Mateus e Lucas. Uma questão bastante discutida é se o Sermão do monte foi proferido de uma só vez ou se é uma coleção de ensinos ou ditos de Jesus agrupados de forma temática. Os estudiosos que propõem a teoria de que eles provêm de uma coleção de ensinos apresentam os seguintes argumentos: primeiro, o material é extenso demais para ser dito de uma só vez; segundo, não há unidade e continuidade temática ou relação lógica entre as seções; terceiro, há duas versões entre as quais há muitas discrepâncias4. Quanto a isso se contra argumenta: El argumento de “demasiado material para una ocasión” está basado en la costumbre de cultos contemporáneos donde el predicador está limitado a aproximadamente una hora. En cambio, Jesús seguramente se extendió en su discurso durante varias horas, quizá un día entero, o aun más (comp. 15:32). La presentación de Mateo parece ser un breve resumen de las principales enseñanzas de una serie de temas distintos, siendo el tema unificador “el reino de los cielos”. Si es que Jesús presentó una serie de temas a lo largo de un día de conferencias, no habría necesariamente una continuidade lógica entre éstos. Por otro lado, algunos versículos del Sermón presentado por Mateo, esparcidos en Lucas, probablemente son evidencia de la práctica de 3 Segundo Hendriksen (2001, p. 361) essa elevação fica cerca de seis quilômetros e meio a oeste do Mar da Galileia e cerca de treze quilômetros a sudeste de Cafarnaum. Fazendo referência a um estudo de Howard La Fay, (“Where Jesus Walked”, National Geographic, vol. 132, no 6 (dezembro de 1967), p. 763) o monte pode ter sido uma verdejante colina que fica ao ocidente de Tabgha. 4 Por exemplo: o discurso de Mateus contém 111 versículos dos quais 29 aparecem em Lucas em um lugar (Lc 6:20 – 49), 35 estão espalhados em todo livro de Lucas e 47 versículos não se encontram no evangelho (COMENTARIO BIBLICO MUNDO HISPANO, v.14, 1993, p. 87). 21 repetir las mismas verdades en distintas ocasiones, como es común entre maestros en todos los tiempos. (COMENTARIO BÍBLICO MUNDO HISPANO, v. 14, 1993, p. 87)5. Quanto à questão da suposta falta de lógica entre as seções do sermão e seus itens, Hendriksen (2001, p. 366) discute: “O sermão tem também suas divisões ou ‘itens’ bem definidos. Estes são rígidos ou formais – ‘os ossos não chamam atenção’ -, porém orgânicos, de modo que uma subdivisão gradualmente avança ou se combina com outra”. Por outro lado, os que defendem a teoria que o sermão foi proferido de uma só vez apresentam os seguintes argumentos: primeiro, o sermão é descrito com início e conclusão: “subiu ao monte” (Mt 5.1) e “desceu do monte” (Mt 8.1); segundo, se dirigiu a um grupo definido: “seus discípulos aproximaram-se dele [...] e passou a ensina-los dizendo” ( Mt 5.1); terceiro, é mencionada a reação das multidões, ao finalizar o sermão: “todos estavam maravilhados com seus ensinos” (Mt 7.29). Ao que parecem ser esses argumentos mais convincentes, porquanto Mateus e Lucas apresentam duas versões do mesmo sermão. A Teoria das Duas Fontes, que é abordada em detalhes mais à frente6, mostra que Mateus e Lucas se utilizaram de Marcos e de uma fonte Q7 para construir seus evangelhos. Isso, portanto, é um argumento a favor de que o Sermão da Planície é uma versão mais curta do Sermão do Monte, ou melhor, os dois são versões de um mesmo discurso adaptados a partir de uma fonte Q. Esse discurso provavelmente foi pronunciado na primavera do ano de 28 d.C., assegura Hendriksen (2001, p. 31), após Jesus ter passado uma noite em oração, como descreve Lucas (Lc 6.12). A oração foi seguida da escolha de seus doze discípulos (Marcos (Mc) 3. 13-19; Lc 6. 13-16) e a escolha precedeu a cura de vários enfermos (Lc 6. 17-19; Mt 4. 23-25), vindo em posteriormente o sermão (Lc 6. 19, 20; Mt 5. 1,2). 5 “O argumento de “demasiado material para uma ocasião” está baseado no costume dos cultos contemporâneos onde o pregador está limitado à aproximadamente uma hora. Contudo, Jesus seguramente se estendeu em seu discurso durante várias horas, quiçá um dia inteiro, ou mesmo mais (comp. 15:32). A apresentação de Mateus parece ser um breve resumo dos principais ensinos de uma série de temas distintos, sendo o tema unificador “o reino dos céus”. Se é que Jesus apresentou uma série de temas ao longo de um dia de conferências, não havia necessariamente uma continuidade lógica entre eles. Por outro lado, alguns versículos apresentados por Mateus, espalhados em Lucas, provavelmente são evidências da prática de repetir as mesmas verdades em distintas ocasiões, como é comum entre os mestres de todos os tempos” (COMENTARIO BÍBLICO MUNDO HISPANO, v. 14, 1993, p. 87, tradução nossa). 6 Na seção 2.4 MATEUS: RELAÇÃO SINÓTICA. Acredita-se derivar da primeira letra da palavra alemã Quelle, que significa fonte – que se diz ser um documento hipotético que pode ter contido ditos (aforismos) de Jesus sem, necessariamente, descrição narrativa. 7 22 Santo Agostinho (COMENTÁRIO BÍBLICO MUNDO HISPANO, v.14. 1993, p. 86) bispo de Hipona, século IV d.C, foi quem deu o título Sermão do Monte ao primeiro dos cinco discursos de Jesus no evangelho de Mateus. Sendo assim, os muitos títulos dados a esse famoso discurso indicam os variados enfoques que ele vem recebendo ao longo dos tempos: O manifesto antifaraisáico; Os ensinos na colina; Um projeto para a vida; A carta magna do reino; A ética do reino; O discurso de ordenação dos apóstolos; O compêndio da doutrina cristã; A constituição do reino de Deus; O puro evangelho e a A lei do reino (COMENTÁRIO BÍBLICO MUNDO HISPANO, 1993). Vê-se então que o Sermão do monte, ao longo de dois milênios, tem recebido diversas interpretações, aplicações pessoais e comunitárias, contudo como o objetivo desse trabalho não é uma análise teológica, não se faz necessário discutir as várias interpretações 8 dadas a tal discurso. Entretanto, é preciso entender ao que ele se refere, ou seja, qual é o seu tema central, até porque há quem defenda que a unidade do sermão se dá por abordar um tema central, no caso, o evangelho do reino dos céus (BROOKS, 1992). Conforme essa abordagem, o ponto de vista aqui adotado é o que permite um olhar argumentativo sobre o texto, sendo apenas uma possibilidade interpretativa dentre algumas outras. Mateus mostra Jesus, antes de subir ao monte para discursar o sermão, ensinando e pregando “o evangelho do reino dos céus” (Mt 4. 17, 23) às multidões, ao que são estas mesmas que ouvem o discurso desse orador no monte sob o mesmo tema central. Deste modo, no Sermão do monte a expressão reino dos céus aparece seis vezes (Mt 5. 3, 10, 19 [duas vezes], 20; 7, 21), e o termo reino três vezes (Mt 6. 10, 13, 33) em lugares estratégicos. Por seu turno, alguns importantes teólogos concluem que “The sermon is therefore a description of the virtues which should characterize those who belong to the kingdom of heaven.”9 (BROOKS, 1992, p. 25), ou melhor, a justiça do reino (Mt 5.20). Vale ressaltar que estudiosos do Novo 8 Na busca de um tema ou proposito para o sermão, muitas teorias sugiram para tentar explica-lo: estudiosos luteranos entendem o sermão como uma exposição da Lei judaica com o objetivo de mostrar a necessidade da graça às pessoas; O liberalismo clássico compreende o sermão como uma ética para todas as pessoas; os liberais contemporâneos veem no sermão padrões éticos de Mateus; a tradição anabatista-menonita tende querer que se aplique o sermão a todas as pessoas de todas as idades, de modo a justificar o pacifismo etc.; os existencialistas interpretam-no como apelo à autêntica existência; Albert Schweitzer, teólogo e filósofo alemão, descreveu o sermão como uma ética interina entre a sua proclamação e a expectativa do fim do mundo. Como o mundo não acabou, como supostamente Jesus esperava, então, na acepção de Schweitzer, o sermão tem pouca validade hoje; alguns evangélicos entendem o sermão como uma intensificação da lei judaica; o dispensacionalismo clássico compreende o sermão como uma ética para o reino milenar, portanto, tem pouca relevância para a igreja atual. (BROOKS, J. A. The unity and structure of sermon on the mount. Criswell Theological Review 6.1, Dallas, Texas: 1992, p. 15-28). 9 “o sermão é, portanto, uma descrição das virtudes que devem caracterizar os que pertencem ao reino dos céus” (tradução nossa). 23 Testamento como J. Jeremias (1961, p. 32)10, professor de Novo Testamento da Universidade de Göttingen, na Alemanha, defende que o sermão não é Lei, comparada à Lei judaica, e que suas exigências não devem ser interpretadas, mesmo que já o foi por muitos, como se fossem uma espécie de uma moral cristã ou mesmo ética cristã, pois obedece a outra lógica, o que ele chama de fé viva. 2.2.3 CONSIDERAÇÕES SOBRE A ESTRUTURA DO SERMÃO Assim como existem muitas teorias a respeito do significado do sermão, não é diferente em relação à determinação da estrutura do mesmo, isso se diz porque já se buscou bastante uma chave para compreender a organização estrutural do referido discurso. Contudo, adota-se aqui a estrutura natural do texto, ou seja, a que segue a ordem estabelecida por quem compilou o sermão proferido por Jesus. Apesar de não se entrar aqui em muitos detalhes em relação às teorias que tratam da estrutura do sermão, vale chamar atenção para o trabalho de Dale e Alisson (1987), tido como um dos mais importantes trabalhos de análise do sermão, havendo elementos importantes em tal trabalho a serem considerados. Sendo assim, eles fazem críticas a estudos anteriores que, segundo esses estudiosos, tentam determinar a estrutura do sermão de forma equivocada, ao que eles propõem suas concepções a respeito da estrutura desse discurso. Do que se pode aproveitar do trabalho de Dale e Allison (1987, p. 467) referente à estrutura do Sermão do monte para esse trabalho, é que eles mostram como há claramente uma introdução (Mt 4. 23-5.2) e uma conclusão (Mt 7.28 – 8.1) correspondentes que antecedem e procedem, respectivamente, ao sermão, havendo a menção de elementos que apontam a 10 J. Jeremias no artigo The Sermon on the mount, publicado em 1961, faz algumas críticas a basicamente três das mais conhecidas concepções (já mencionadas anteriormente) que tentam responder à pergunta: qual é o significado do sermão do monte?. Essas concepções são chamadas por ele de: Concepção Perfeccionista; Teoria da Impossibilidade ideal; Ética Interina. O teólogo faz as refutações a essas concepções e conclui dando uma resposta ao questionamento: “ The result to which we have come is that the Sermon on the Mount is not Law, but Gospel. For this is indeed the difference between Law and Gospel: the Law leaves man to rely upon his own strength and challenges him to do his utmost. The Gospel, on the other hand, brings man before the gift of God and challenges him really to make the inexpressible gift of God the basis for his life.” [O resultado a que chegamos é que o Sermão do Monte não é Lei, mas Evangelho. Por isso é de fato a diferença entre Lei e Evangelho: a Lei deixa o homem a confiar em sua própria força e desafia-o a fazer o seu melhor. O Evangelho, por outro lado, traz o homem diante do dom de Deus e desafia-o realmente para fazer o dom inefável de Deus a base para sua vida”] (JEREMIAS, Joachim. The Sermon On The Mount. The Athlone Press, London: 1961, p. 32, tradução nossa). 24 correspondência de início e finalização do discurso. Observe as correspondências: “numerosas multidões o seguiam” (Mt 4.25 e 8.1), tanto no início quanto no final do discurso; “multidões ouviram o discurso” (Mt 5.1 e 7.28); situa o lugar, “o monte” (Mt 5.1 e 8.1); “subiu” (Mt 5.1) e “descendo” (Mt 8.1); “passou a ensiná-los” (Mt 5.2) e “quando Jesus acabou de proferir estas palavras” (Mt 7. 28) (BROOKS, 1992). Vê-se que há elementos que apontam uma introdução e uma conclusão do sermão, por conseguinte, o núcleo do sermão compreende os textos do 5. 3 ao 7.27 do evangelho de Mateus. Portanto, o sermão tem um esboço simples: introdução (Mt 4.23-5.2); discurso (Mt 5.3-7.27); conclusão (Mt 7.28-8.1). Quanto à questão de certa estrutura rígida do sermão, é pertinente o questionamento e a constatação de Brooks (1992, p. 27): “[...] if Matthew himself employed a rigid structure. If he did, it still has not been discovered even after 19 centuries of searching”11. Esse pesquisador defende que diante do impasse histórico na busca de uma chave interpretativa para se determinar a estrutura de tal discurso, e como o próprio autor, Mateus, não impôs estrutura rígida ao sermão, então o pesquisador conclui que “[…] modern readers therefore may adopt any outline which is helpful, as long as it is realized that it is not the only possible one.”12 (BROOKS, 1992, p. 28). Sendo assim, usa-se a ordem natural do sermão, como disposta no texto, para efeito de análise argumentativa. Como o sermão pertence ao evangelho de Mateus, que é do Novo Testamento (NT), é preciso que se trate de algumas questões pertinentes relacionadas a esse evangelho: os manuscritos do NT, o cânon; a relação sinótica: a autoria de Mateus, a datação, o local de composição; bem como situar, de forma breve, a pesquisa nesse evangelho até chegar à questão do gênero literário biográfico greco-latino que dá ancoragem à análise do Sermão do Monte, discurso de Jesus Cristo, personagem principal da obra mateana. 2.3 O NOVO TESTAMENTO: CÂNON, MANUSCRITOS E VERSÕES O Novo Testamento (NT) estava completo por volta do ano 100 d.C.. A maior parte dos livros já tinha sido escrito de vinte a quarenta anos antes dessa data, sendo que a datação específica 11 “[...] se o próprio Mateus empregou uma estrutura rígida. Se ele o fez, ela ainda não foi descoberta mesmo depois de 19 séculos de busca” (tradução nossa). 12 “[...] os leitores modernos, portanto, podem adotar qualquer esboço que é útil, enquanto se percebe que não é a única possível” (tradução nossa). 25 de cada um dos quatro evangelhos não é tão simples de ser determinada; o que se discute mais à frente. O cânon do NT é constituído por vinte e sete livros, escritos por nove escritores diferentes. A sua formação deu-se por alguns critérios não tão simples, como é, de modo geral, a canonização de uma obra. Isso porque o cânone de um autor é formado por obras que são genuinamente de sua autoria. Contudo, o cânone do NT não pode ser resolvido à base dessa questão apenas. E nem simplesmente pela escolha da Igreja. Boa parte dos teólogos defende que, o verdadeiro critério para escolha desses livros como canônicos é a inspiração, até porque foi com base nesse critério que tradicionalmente se aceitam os livros do NT como canônicos. Dessa forma, Tenney (1995, p. 429), estudioso do NT, assegura que, se esse critério for adotado como definitivo, é necessário responder a seguinte pergunta: “Como se demonstra a inspiração?”. Diante disso, ele argumenta que como a maioria dos livros não começa com a afirmação que demonstre ser inspirados por Deus, ele apresenta argumentos em favor da inspiração que deu suporte à aceitação dos mesmos como canônicos. Como o objetivo desse trabalho não é discutir em profundidade tais questões, cumpre apenas apresentar resumidamente alguns argumentos, como os de Tenney (1995). O primeiro argumento é o que ele chama de testemunho interno. Deste, diz-se que há uma centralidade nos livros canônicos quanto à abordagem a respeito da pessoa de Jesus Cristo. Ele e outros estudiosos asseguram que a mensagem desses livros era única e inovadora aos contemporâneos. Esse autor usa, assim, o argumento da centralidade de Cristo nessas obras para afirmar isso como sendo uma das fortes razões para os vinte e sete livros neotestamentários terem sido considerados canônicos, mostrando, por outro lado, o porquê de muitos outros livros terem ficado de fora do cânon, ou seja, por não apresentar tal centralidade. Portanto, apresenta isso como um dos motivos de os apócrifos não terem sido canonizados. Na segundo resposta, Tenney (1995) apresenta o argumento do testemunho externo. Neste, ele assegura que a distinção entre os livros canônicos e não canônicos não foi feita por uma pessoa, ou por um só grupo local, como alguns equivocadamente falam. Contudo, pelo processo de consciência espiritual que foi se desenvolvendo ao longo do tempo, trançando-se 26 linhas de discriminação. “Nem foram estas tão pouco mera[me]nte o resultado de preferências ou preconceitos pessoais alheios a um espírito crítico” (TENNEY, 1995, p. 432). Outrossim, o estudioso argumenta que “a Igreja não determinou o cânon; reconheceu o cânon” (TENNEY, 1995, p. 432). Portanto, diz-se que nenhum concílio poderia criar um cânon, já que a qualidade essencial da canonicidade é o que se chama de inspiração, e nenhum concílio poderia soprar inspiração em obras que já existiam. Desta forma, “tudo quanto os concílios podiam fazer era dar a sua opinião acerca dos livros que eram canônicos e dos que o não eram e, depois, deixar que a história justificasse ou invalidasse o veredito”, assegura Tenney (1995, p. 432). Para fundamentar seu argumento, Tenney (1995) mostra que o testemunho externo é, ao mesmo tempo, informal e formal. Diz-se do informal o uso frequente que os Pais da Igreja13 fizeram do NT. As suas citações atestam tanto a existência quanto a autoridade de tais livros, sendo que elas foram feitas de maneira direta e indireta. Por conseguinte, a obra mais antiga contendo citações do NT é datada do ano 95 d.C. feita por Clemente 14 (I [Epístola] de Clemente aos Coríntios), obra deste também considerada como canônica por alguns cristãos. Ela se encontra, juntamente com os livros do NT, no Códice Alexandrino. A mesma faz menção explícita a Hebreus, I Epístola aos Coríntios, Romanos e ao evangelho de Mateus. Muitos exemplos reforçam o testemunho externo informal do reconhecimento da maioria dos livros do NT pelos Pais da Igreja: Inácio15 de Antioquia na Síria (aproximadamente 116 [?] d. C.). Assim também, Policarpo16 de Esmirna (em cerca de 150 d.C.); o Didaquê17 nessa mesma época; a Epístola de Barnabé18(cerca de 130 d.C.) faz o mesmo. E notáveis citações 13 Denominação carinhosa dada aos bispos ou líderes, teólogos, professores e mestres da igreja aproximadamente a partir do início do II século até o VII século d.C., seus trabalhos foram usados como precedentes doutrinários para os séculos que se seguiram. Alguns deles são Clemente de Roma, Inácio de Antioquia, Policarpo de Esmirna etc. 14 Conhecido como São Clemente ou Clemente Romano é também considerado pela tradição católica como o quarto papa romano. 15 Bispo da igreja de Antioquia da Síria, discípulo do apóstolo João. 16 Foi bispo e superintendente de Esmirna, atualmente onde é localizada a Turquia. É considerado santo pela Igreja Católica Romana e pelas Igrejas Ortodoxas Orientais. 17 Ou Didache é uma obra do primeiro século d.C. que trata de questões doutrinárias, apesar de pequeno, dezesseis capítulos, tem grande relevância teológica para a Igreja. 18 É uma epístola grega que contém vinte e um capítulos presente no Codex Sinaiticus após o NT. Atribuída por muitos a Barnabé mencionado em Atos dos Apóstolos, contudo alguns defendem ser outro Barnabé de Alexandria, um Pai Apostólico. 27 dos evangelhos são feitas por Justino Mártir19 (cerca de 100 a 165 d.C.), filósofo grego-sírio, e afirma que as memórias dos apóstolos, ou seja, os evangelhos, eram lidos todos os domingos na Igreja juntamente com o Antigo Testamente. Ademais, Taciano, aluno de Justino, compôs a primeira harmonização dos evangelhos, Diatessaron20, utilizada pela Igreja por muito tempo. Os estudiosos asseguram que, aproximadamente em 170 d.C., quando se inicia o que os teólogos chamam de a era de Irineu21, não havia mais dúvidas da autoridade dos livros do NT. A primeira lista formal que tentou estabelecer um cânon conscientemente foi feita por Márcio22, cerca de 140 d.C.. Outra lista importante é o Cânon Muratoriano23, nome que vem do historiador e bibliotecário italiano que o encontrou na Biblioteca Ambrosiana, em Milão. O manuscrito com a lista tem um conteúdo que remete ao final do segundo século d.C. e faz menção aos principais livros canônicos. Assim, há ainda outras listas: a africana do IV século (cerca de 360 d.C) 24; a Carta Festal de Atanásio25 (cerca de 367 d.C.), que faz distinção entre os escritos inspirados e transmitidos aos pais da igreja, dos chamados escritos secretos dos hereges. 19 Também conhecido como Justino Mártir ou Justino de Nablus, viveu entre 100 a 165 d.C., foi um filósofo e teólogo do século II d.C. O mesmo faz em seus escritos referências aos livros bíblicos: Mateus, Marcos, Lucas, João e muitas epístolas paulinas. 20 Taciano buscou fazer um relato único dos acontecimentos e palavras vida de Jesus eliminando as supostas repetições dos evangelhos. Essa obra combina frases e perícopas dos quatro evangelhos (Mateus, Marcos, Lucas e João) a partir de uma ordem inspirada em Mateus. Só se tem apenas fragmentos do Diatessaron em diversas obras pelas quais tem-se tentado reconstruí-lo. 21 Irineu foi um influente apologista cristão, foi Bispo de Lyon, na Gália, atual Sul da França, onde ficou conhecido como Polemista Anti-Gnóstico, por defender a igreja da filosofia e heresias do Gnosticismo. Em suas apologias citou os quatro evangelhos, Atos, as epistolas de Paulo, outras tantas epístolas e Apocalipse. (TENNEY, 1995, p. 434). Sua era foi certo período que sua influência intelectual se estendeu. 22 Estudioso cristão do II século d.C., nascido em Sinope, no Ponto, onde seu pai era bispo. Ele ao rejeitar qualquer influência judaica, escolheu Lucas como seu evangelho preferido, mesmo rejeitando os dois primeiros capítulos que contém os dois primeiros capítulos do nascimento virginal; utilizou-se de dez epístolas de Paulo abolindo as pastorais e Hebreus (TENNEY, 1995, p.435). 23 Esse manuscrito não está completo, portanto pertence a uma obra maior. Inicia-se no meio de uma frase, e o primeiro livro mencionado é Lucas, chamado de o terceiro evangelho, ao que se deduz que antes deva ter vindo Mateus e Marcos. Ademais são mencionados: I Epístola de João, Atos, I e II epístolas aos Coríntios, Efésios, Filipenses, I e II Epístolas de Tessalonicenses, Romanos, Filemon, Tito, I e II epístolas a Timóteo, Judas, I e III epístolas de João e Apocalipse. Essa lista rejeitava as epístolas de Paulo aos Laodicenses e aos Alexandrinos; aceitava o Apocalipse de Pedro; não menciona nem a epístola de Tiago nem Hebreus (TENNEY, 1995, p.436). 24 Não se conhece seu compilador. Nela estava inclusa os quatro evangelhos, treze epístolas de Paulo, Atos, Apocalipse, três epístolas de João e duas de Pedro (TENNEY, 1995, p.436, 437). 25 Nascido na Alexandria em 295, participou do Concílio de Nicéia. Ele é considerado Santo pela Igreja Católica Romana. 28 Os concílios só começaram a acontecer a partir de 363 da era cristã. O primeiro foi o de Laodicéia26 (Sínodo de Laodicéia), sobre o qual não se tem certeza da lista oficial, não havendo a presença de todas as principais igrejas. Foi no Concílio de Hippo, em 393 d.C., que se apresentou uma lista formal de 27 livros do Novo Testamento, repetida no Concílio de Cartago, 397 d.C., nos quais se emitiu um decreto sobre quais livros ler nos cultos. Com isso, boa parte dos estudiosos desses documentos e do NT afirma que os livros neotestamentários eram conhecidos ou aceitos por todas as igrejas do Oriente e do Ocidente durante os primeiros quatro séculos. Mesmo que Hebreus não fosse aceito por todos de início, pela incógnita da autoria, bem como a II epístola de Pedro e a II e a III epístolas de João pelo pequeno conteúdo e relevância doutrinária. Dessa maneira, o argumento é que nenhum dos livros do cânone foi imposto ou aceito pela Igreja como compulsão eclesiástica, sendo que, como visto rapidamente acima, os concílios só tiveram lugar no quarto século d.C., quando o NT, de modo geral, já se tornara o cânone, ou seja, as Escrituras da Igreja. Os escritos neotestamentários vêm sendo estudados há muito tempo em busca de evidências que atestem sua autenticidade. Tanto é que muitos peritos afirmam que a evidência em favor desses escritos avulta e torna-se cada vez mais superior a de autores clássicos, cuja autenticidade não é posta em dúvida. Diante disso, Bruce (2003, p. 22), catedrático das universidades de Sheffield e Manchester na Inglaterra, em Merece confiança o novo testamento, assegura: Fôsse o Novo Testamento mera antologia de escritos seculares, a autenticidade desses documentos seria geralmente havida como além de toda a dúvida. Fato curioso é que historiadores frequentemente se têm mostrado mais predispostos a confiar na fidedignidade dos escritos néo-testamentários que muitos teólogos. Desta ou daquela forma, o fato é que há quem considere ipso facto suspeito um “livro sagrado” e exija muito mais evidência corroborativa em favor de obra que tal do que em referência a documentos seculares ou pagãos em geral. Do ponto de vista do historiador, os mesmos critérios e normas se deveriam de aplicar a ambos os tipos de documentos. Atualmente, existem quase 5.000 manuscritos gregos que contêm o NT, alguns apenas fragmentos, outros integrais. Os mais importantes e conservados datam aproximadamente de meados do quarto século d.C, sendo o Códex Vaticano (Vaticanus), um tesouro da Biblioteca do Vaticano em Roma, e o famoso Códex Sináitico (Sinaiticus), o principal tesouro do Museu 26 Nesse Concílio que se decretou no artigo 59º que só se deveria ler os livros canônicos do Novo Testamento. Mas ainda se tem dúvida sobre a verdadeira lista desse concílio. 29 Britânico, adquirido pelo Governo Britânico das mãos do Poder Soviético, em 1933. Há ainda outros dois importantes manuscritos na Inglaterra: o Códex Alexandrino (Alexandrinus), datado do quinto século, e o Códex Beza (Bezae), da Biblioteca da Universidade de Cambridge, escrito no quinto ou sexto século. Vale notar que há fragmentos menores, como o do evangelho de João (capítulo 10.31-33; 37-38), que foi escrito durante o primeiro quartel do segundo século d.C. (HALE, 1983, p. 28), além de muitos outros. Ressalta-se que nenhum manuscrito em grego é totalmente idêntico, havendo algumas variantes. Além dos manuscritos gregos, existem ainda muitos outros em outras línguas, pois, apesar do grego ter sido a língua do comércio, do governo, da comunicação e da religião na época, existiam comunidades que estavam fora do caminho comercial etc. e não entendiam prontamente o idioma grego. Por isso os primeiros cristãos, nos meados do segundo século d.C., traduziram muitos desses textos considerados sagrados para o idioma das comunidades de fé. Os textos mais importantes são: o siríaco, língua da Mesopotâmia e Síria; o cóptico, são os vários dialetos do vernáculo egípcio; e o latim antigo. Divide-se a história do texto grego impresso do Novo Testamento em três períodos: o primeiro é o período não-crítico, em que se dá o estabelecimento e a padronização do texto encontrado na maioria dos manuscritos usados pela Igreja Antiga e Medieval. São chamados de bizantino, sírio, tradicional, eclesiástico, ou majoritário. Tradicionalmente ele veio a ficar conhecido como Textus Receptus, sendo sua primeira impressão feita por Ximenes em 1514 e foi usada por muito tempo sem haver muitas diferenças em suas edições, por ter aceitação incondicional por parte da Igreja (ANGLADA, 1996, p. 02). O segundo período é denominado de pré-crítico, com o início atribuído à data da edição de John Fell, em 1675, estendendo-se até 1831, época em que Lachmann publica um texto que se afasta consideravelmente do Textus Receptus. Esse período é caracterizado pela soma de evidências por parte dos críticos e de teorias que seriam melhor elaboradas posteriormente repudiando o texto grego majoritário do NT. Mas, apesar disso, a Igreja aceitara largamente e usara o Textus Receptus (texto recebido), já que as evidências textuais aplicados a ele não tinham sido ainda aplicadas ao texto de forma a convencer o consenso da Igreja. O último período é chamado de período crítico, que começa com Lachmann, em 1831, e estende-se até os dias atuais, cuja tendência foi se afastar bastante do Texto Majoritário. Dessa maneira, se caracteriza pelo aparecimento de um texto eclético, que se baseia em um 30 número bastante reduzido de manuscritos, considerados os mais antigos, porém com leituras variantes entre si, bem como leitura variante da do Texto Majoritário. O texto eclético teve seu início com Lachmann, mas foi Westcott e Hort seus maiores defensores e divulgadores, sendo as principais edições desse texto a de Nestle-Aland e da United Bible Societies (UBS). Atualmente, é versão mais acessível do Novo Testamento em grego, utilizada pela maioria dos pesquisadores, exegetas, estudantes e tradutores do NT (ANGLADA. 1996, p. 03). Em relação à quantidade de manuscritos, o Texto Majoritário tem cerca de 95 (90?)% dos manuscritos, que são cópias de manuscritos antigos, contudo a maioria são datados a partir do século VI a IX d.C. Enquanto os manuscritos - que são minoritários - possuem 5 (3? 4?)%, estes últimos são os mais antigos, sendo datados a partir do segundo ou terceiro século d.C., ao que, a partir de laborioso estudo, elaborou-se o Texto Crítico ou Eclético. O termo ‘eclético’ refere-se ao fato de que o texto de Westcott-Hort é o resultado de várias escolhas feitas entre variantes disponíveis, seguindo critérios de evidências internas (como a leitura que melhor se encaixa no contexto, e a leitura que melhor explica o surgimento de outras variantes), sem maiores considerações para com evidências externas, tais como a história da transmissão do texto (ANGLADA, 1996, p. 01). Ainda assim, existem alguns eruditos que advogam a favor do Texto Majoritário como é o caso de Wilbur Pickering em sua obra The Identity of the New Testament Text (em português traduzido como: Qual o texto original do Novo Testamento) publicada em 1980, sendo que o mesmo apresenta bons argumentos baseados em evidências históricas, ou seja, evidências externas da história da transmissão do texto em favor do Texto Majoritário. Apesar da polêmica existente, muitos estudiosos ressaltam que não há grandes diferenças entre o Texto Crítico e o Textus Receptus concernente às questões básicas da fé cristã, pois as variantes são muito poucas para afetar tanto (nem para o texto objeto de estudo). As diferenças mais significativas encontram-se no final de Marcos (16. 9-20) e em João (7. 538.11). Em língua portuguesa, as versões utilizadas a partir do Texto Eclético ou Texto Crítico são a Nova Versão Internacional (NVI), a Bíblia na Linguagem de Hoje e a famosa versão de 31 Almeida Revista e Atualizada (2ª ed., 2011)27. Sendo esta a mais utilizada atualmente para pesquisas formais e acadêmicas no Novo Testamento e Antigo Testamento, versão esta adotada para efeito de análise nesse trabalho por corresponder à tradução do Texto Crítico. Vale ressaltar que, em alguns casos, faz-se a verificação do texto na língua original, no grego, para possível esclarecimento da tradução, para tanto, usam-se os textos do Novum Testamentum Graece28 Nestle-Aland (1998), sendo tal texto em grego o correspondente ao Texto Crítico. 2.4 MATEUS: RELAÇÃO SINÓTICA 2.4.1 RELAÇÃO SINÓTICA O evangelho de Mateus tem sido, dentre os quatro evangelhos, o mais estudado e discutido na tradição cristã. Por certo, é a obra que mais notadamente ajudou a formatar o movimento cristão desde o início. Ferreira (2006, p. 36) apresenta algumas razões para o destaque desse evangelho: a primeira delas é que ele leva o nome de um dos apóstolos de Jesus juntamente com o evangelho de João. Dado que, como já se mencionou acima, era fator importante para fazer parte do cânon do NT, corroborado pela ideia de que Mateus teria sido testemunha ocular dos feitos de Jesus. A outra razão para destaque do evangelho de Mateus é o fato de esse evangelho ter uma estrutura bastante didática - a presença dos cinco grandes discursos (Mt 5-7; 10; 13; 18; 2425) confirma isso - portanto, útil para o ensino dos iniciantes na fé. E a terceira razão é que, por conta de suas características judaicas, grupos judeu-cristãos foram estimulados a utilizálo, assim como as passagens pró-gentílicas facilitaram a sua aceitação pelas igrejas gentílicas. Na determinação de alguns elementos básicos desse evangelho, como autoria, datação e local de escrita, tem-se grandes dificuldades, pois não há praticamente nenhum elemento interno e pouquíssimos elementos externos relacionados ao evangelho de Mateus. Para tanto, toma-se 27 As versões anteriores de Almeida são baseadas nos textos que o tradutor tinha disponível na época, ou seja, o Textus Receptus. Porquanto, essa versão Almeida Revista e Atualizada é fruto do trabalho de cerca de trinta revisores em treze anos que se baseou no Texto Crítico dos originais grego e hebraico. 28 Novo Testamento Grego (tradução nossa). 32 como ponto de partida a comparação entre os três evangelhos sinóticos para melhor determinar tais elementos. A relação sinótica advém da possibilidade de sinopse, termo do grego synopsis, que significa ver em conjunto, designação que, segundo Carson, Moo e Morris (1997, p. 19), foi utilizada pela primeira vez por Griesbach, estudioso da bíblia de nacionalidade alemã, ao perceber que Mateus, Marcos e Lucas poderiam ser colocados em três colunas, uma ao lado da outra, e compará-los num só olhar. Por não ser possível esse mesmo olhar sinótico para o Evangelho de João, por ter uma narrativa diferente da dos demais, ele não se enquadra nesse grupo. As semelhanças entre os três evangelhos envolvem estrutura, conteúdo e enfoque. Apesar de ser possível a comparação entre eles, não significa que um seja a mera cópia do outro; a questão é muito mais complexa. Porquanto, diz-se que tem como característica a relação de proximidade e distância. Quanto ao ângulo da proximidade, Ferreira (2006, p. 28) discorre em linhas gerais: [...] eles fazem uma apresentação muito semelhante do ministério de Jesus. Em linhas gerais pode-se visualizar a seguinte organização: surgimento de João Batista anunciando a vinda do Cristo; batismo e tentação de Jesus, marcando o início de seu ministério; este se desenvolve na Palestina setentrional, na região denominada Galileia; ao final, Jesus dirige-se para Jerusalém, onde passa seus últimos momentos, sendo preso, julgado e morto. Ao terceiro dia ressuscita. Cada uma dessas obras tem o que lhe é peculiar, ao que Mateus e Lucas têm um volume maior de material29. Quanto à distância, há consideráveis diferenças entre Mateus e Lucas, bem como entre Marcos e os outros dois. Portanto, por conta da relação de semelhanças e diferenças entre esses evangelhos, os estudiosos buscaram respostas para o que se convencionou chamar de questão sinótica. Os estudiosos dos evangelhos, nos últimos duzentos anos, vêm buscando muitas repostas para essa questão. Atualmente, a que tem tido maior adesão, e se impõe por sua razoabilidade no campo da pesquisa bíblica, é a chamada Teoria das Duas Fontes. Ancorado nesta teoria que a maioria dos pesquisadores tem desenvolvido seus estudos aplicados a essas obras. Vale ressaltar que, outras teorias se propuseram a responder à questão ou às questões30 sinóticas. 29 30 Mateus contém vinte e oito capítulos, Lucas vinte e quatro, enquanto Marcos apenas dezesseis capítulos. Cason, Moo e Morris (1997, p. 31 - 43) faz uma sucinta abordagem sobre “as principais soluções”. 33 Apesar de já no segundo século d.C. Taciano ter combinado os quatro evangelhos no que chamou de Diatessaron, e Agostinho, cerca de 400 d.C., ter escrito um tratado chamado de A Harmonia dos Evangelhos (De Consensu Evangelistarum) - no qual afirma que Mateus foi o primeiro evangelho -, na ordem que aparece no cânon, Marcos é apenas um resumo de Mateus. No entanto, há algum tempo, os estudiosos vêm discordando dessas ideias dominantes nos estudos neotestamentários até o século XIX. Esses debruçaram profundamente nessa relação entre os evangelhos para ter a determinação desses e de outros elementos supracitados. O rompimento com a tradição de Agostinho dá-se, formalmente, com a publicação do artigo de Karl Lachmann, em 1835, intitulado A Ordem da narração nos evangelhos sinóticos (De Ordine Narrationum in Evangeliis Synopticis) (apud FERREIRA 2006, p. 30), que assegura ser impossível concordar com a opinião vigente de que Marcos fizera uso de Mateus e Lucas. Do contrário, ao fazer a comparação minuciosa em relação à ordem dos acontecimentos dos três evangelhos, ele observou que Mateus e Lucas usaram o mesmo material presente em Marcos. A ordem seguida por ambos é muito semelhante, contudo, ao se distanciar deste, a descrição feita por eles não é correspondente. A partir disso, Lachmann concluiu que os três utilizaram uma fonte anterior a eles, oral ou escrita, e que Marcos foi bem mais fiel a tal fonte. Diante disso, ele percebeu que Marcos é detentor de uma tradição mais antiga que a dos dois outros; o que mudou o rumo das pesquisas nesse campo, tendo-se Marcos como o foco. C.H. Weisse e C.G. Wilke, em 1838, ampliaram as conclusões de Lachmann e asseguraram que Mateus e Lucas têm uma fonte em comum, Marcos. Weisse foi mais além e afirmou que, dadas as diferenças entre Mateus e Lucas em relação a Marcos e, por outro lado, das semelhanças entre aqueles dois, Mateus e Lucas podem ter usado uma fonte em comum, chamada de fonte Q, - acredita-se derivar da primeira letra da palavra alemã Quelle, que significa fonte – que se diz ser um documento hipotético que pode ter contido ditos (aforismos) de Jesus sem, necessariamente, descrição narrativa (HENDRIKSEN, 2001). Ademais, B. H. Streeter fez uma contribuição complementar importante a essa teoria, afirmou haver mais duas outras fontes, uma M, usada apenas por Mateus; e outra L, usada apenas por Lucas. Ou seja, desenvolveu-se a partir da Teoria das Duas Fontes, transmutando-se para a hipótese das Quatro Fontes, uma tentativa de explicar a origem dos evangelhos por meio do que ficou conhecida como Crítica das Fontes, “que focaliza a maneira como unidades 34 literárias diferentes foram reunidas para constituir os evangelhos” (CARSON; MOO; MORRIS, 1997, p. 21). A Teoria das Duas Fontes vem somar ao argumentar que o Sermão do monte de Mateus (5-7), guardadas as adaptações, é o mesmo chamado de Sermão da planície de Lucas (6, 20 – 7, 1), sendo que Mateus e Lucas utilizaram uma mesma fonte chamada Q, da qual fez suas adaptações para a redação dos sermões (BROOKS, 1992). 2.4.2 AUTORIA, DATAÇÃO E LOCAL DE AUTORIA A autoria do Evangelho de Mateus não tem sido simples de se determinar, pois a tradição cristã, os pais da Igreja, historicamente, defende que Mateus, apóstolo, é o autor da obra que leva seu nome, o que foi questionado bastante nos últimos séculos. Boa parte dos estudiosos que questiona a autoria acredita que essa obra teve circulação anônima e que o título Evangelho Segundo Mateus não faz parte do autógrafo. Portanto, assegura-se que o mesmo foi afixado em algum momento do segundo século (125 d.C.). Contudo, o consenso dos estudiosos a respeito de esse evangelho ter sido anônimo foi atacado por Martin Hengel em sua obra Studies in the Gospel Mark (apud CARSON; MOO; MORRIS, 1997, p. 73). Ele fez uma pesquisa com a finalidade de saber como as obras circulavam no mundo antigo, percebendo, portanto, que os títulos eram necessários para se identificar uma obra cuja referência era feita. Somado a esses argumentos, existem muitos outros de importantes estudiosos, girando em torno de vários outros pormenores, inclusive da afirmação das polêmicas palavras31 de Papias (EUSEBIO, 2002) a respeito da autoria ter sido de Mateus. Prefere-se adotar nesse trabalho a postura que, em relação à questão da autoria, não se pode chegar a uma conclusão definitiva, porque os dois lados têm muitos argumentos razoáveis, o que divide muitos especialistas em várias questões. A maioria dos estudiosos considera que o 31 “Mateus ordenou as sentenças em língua hebraica, mas cada um as traduziu como melhor podia” (EUSÉBIO, 2002, III, 39, 16, p. 72). “O que diz respeito diretamente a Mateus é reconhecidamente difícil de traduzir, conforme mostrado aqui. “Mateus [...] (synetaxeto, ‘compôs?’, ‘compilou?’, ‘dispôs [de forma organizada]’?) [...] (ta logia, ‘as declarações’?, ‘o evangelho’?) em [...] (Hebraïde dialektõ, na ‘língua hebraica [aramaica]’?, ‘o estilo hebraico [aramaico]’?), e cada um os [...] (hermeneusen, ‘interpretou’?, ‘traduziu’?, ‘transmitiu’?) da melhor forma que pôde” (CARSON; MOO; MORRIS, 1997, p. 75). 35 que se pode afirmar de forma mais contundente é apenas que quem deve ter escrito o evangelho fora um judeu (FERREIRA, 2006, p. 34), sendo que, para boa parte desses eruditos, é possível não ter sido Mateus discípulo, mas talvez outro Mateus. Sendo assim, não se tem grande problema em chamar de Mateus o autor do evangelho. Quanto à datação do evangelho de Mateus, ela não é menos complexa, quiçá, mais complexa, do que a questão da autoria. Isso porque a determinação da data de escrita do mesmo depende, em muito, do ponto de vista assumido quanto à autoria. Por outro lado, a grande maioria dos pesquisadores aponta que o evangelho de Mateus foi escrito por volta de 80 a 100 d.C. e não menos que isso (Ferreira, 2006, p. 36). Porém, vale ressaltar que, alguns estudiosos como Carson, Moo e Morris (1997) apresentam argumentos razoáveis que, de certa maneira, mudam atualmente um pouco o quadro do consenso em relação a essa questão e argumentam em favor de uma data anterior a 70 d.C. Por seu turno, como boa parte dos estudiosos assegura que nenhum dos argumentos é conclusivo, é pertinente adotar a posição da maioria, portanto, de 80 a 100 d.C. Quanto ao local de autoria, Ulrich Luz (1993, v. I, p. 105) apresenta algumas razões em favor de ter sido Antioquia a cidade onde o Evangelho de Mateus fora escrito. Ele mostra que esse evangelho teria de proceder de uma grande cidade com facilidade de comunicação para melhor difusão do mesmo, como o foi; o fato de nessa cidade ter havido muitos judeus, homens bem letrados, é outro argumento; bem como as tradições petrinas32 (Mt 16. 17-19) que podem apontar para Antioquia. Ainda assim, ele mesmo assegura que não é conclusivo o local da autoria ser em Antioquia. A Galileia tem sido também apontada por influentes pesquisadores como Anthony J. Saldarine (1992, p. 26 apud FEREIRA, 2006, p. 39) e J. Andrew Overman (1999, p. 27-29 apud FERREIRA, 2006, p. 39) como um possível local. As duas propostas mais razoáveis para o local em que evangelho de Mateus foi escrito se situa entre a Galileia e a Antioquia. Quanto a isso, Ferreira (2006) assegura que essa obra tem a favor dela boas razões para ter sido escrita em algum ponto entre a Galileia e a Antioquia, sem necessariamente ter a necessidade de determinar um local preciso. Isso se justifica dada à natureza itinerante dos discípulos comissionados por Jesus (Mt 10 e 28) para a proclamação do evangelho. “Esses discípulos estavam viajando constantemente [...] 32 Referente ao apóstolo Pedro. 36 Galileia e Antioquia eram somente dois pontos fixos dentro de um grupo de congregações, unidas por missionários que estavam em constante movimento” (SEGAL, 1991, p. 27, apud FERREIRA, 2006, p. 40). Portanto, aceita-se aqui que o evangelho foi escrito num ponto entre as duas regiões. 2.5 UM OLHAR SOBRE A PESQUISA EM MATEUS E SEU GÊNERO LITERÁRIO Ferreira (2006) faz um panorama da pesquisa acadêmica no evangelho de Mateus focando a Europa e os Estados Unidos, lugares onde os trabalhos mais importantes no campo bíblico foram desenvolvidos para então situar seu trabalho que, por sua vez, busca, também, uma definição do gênero literário de Mateus. Ferreira (2006) mostra como as pesquisas foram sendo desenvolvidas ao longo dos séculos desde a proposta do método Histórico-Literário33, que tem sua ancoragem no método chamado Histórico-Gramatical, proposto pelo reformador João Calvino, no século XVII, cujo objetivo era estudar o texto bíblico levando em consideração o contexto histórico descrito pelo texto e sua organização gramatical. Junto com os novos conceitos de ciências naturais, advindas da influência do rompimento da filosofia metafísica por meio de Emmanuel Kant, que passa a influenciar os métodos de pesquisas históricas, surgiu, então, uma nova forma de investigar o passado por meio de uma análise crítica e criteriosa das fontes, ou seja, dos documentos históricos (FERREIRA, 2006), influenciando, dessa maneira, a pesquisa no campo bíblico que passa a considerar a bíblia como outro livro qualquer, tendo a razão humana como critério de avaliação. Assim, passouse a questionar a visão ortodoxa a respeito das Escrituras, introduzindo o termo crítica ao estudo da bíblia, vindo a surgir o método Histórico-Crítico. 33 Centra-se em descrever o momento histórico em que o texto foi composto ou mesmo em que viveram os primeiros cristãos. 37 É a partir do método Histórico-Crítico34, desenvolvido inicialmente na Alemanha, e de sua metodologia que vão surgir os outros métodos, sempre com o objetivo de reconstrução histórica: Crítica das Fontes, Crítica das Formas35 e Crítica da Redação36. A teoria literária com objetivo especificamente literário surgiu bem posterior às abordagens literárias dos textos bíblicos já mencionados. A aplicação da teoria literária de forma específica ao texto bíblico deu-se a partir da publicação e influência do livro: Mimeses: a representação da realidade na literatura ocidental, de Erich Auerbach, publicado na Alemanha, em 1946 (apud FERREIRA, 2006). Essa obra, em dois de seus capítulos, faz uma comparação das narrativas do Antigo Testamento com as de Homero e descreve de forma realista, em oposição ao estilo retórico clássico, figuras dos evangelhos provindas do cotidiano. Por conseguinte, houve a interação do the new criticism com os estudos escriturísticos a partir da ênfase de Auerbach dada às estratégias pelas quais o texto constrói seu sentido. Assim sendo, o enquadre de Mateus como Gênero Literário biográfico greco-latino está situado no âmbito da Teoria Literária, conforme apresenta Ferreira (2006). A noção de biografia greco-latina não se refere à descrição da vida de alguém de seu nascimento à morte como se faz na biografia moderna. Mas refere-se basicamente ao fato de um autor selecionar determinadas ações e falas de uma pessoa importante para certo grupo e época e reuni-las em uma obra, cujo protagonista seja o biografado. Sendo assim, constrói-se uma narrativa em que tudo gire em torno da personagem principal, objetivando a exaltação de sua vida. Compreende-se que se faz necessário apresentar as razões pelas quais se pode analisar o Sermão do monte como objeto literário - trabalho este que oferece fundamento mais sólido para futuros trabalhos - bem como tentar romper com um velado preconceito em relação ao 34 A palavra alemã recai a ênfase sobre a história, chama-se Geschichte. Contudo na Inglaterra e nos Estudos Unidos, buscando uma ênfase científica para análise, usa-se o termo crítica em lugar de história apenas (FERREIRA, 2006, p. 44) 35 Não se abordou em detalhes a Crítica das Formas por não ser uma teoria relevante para o estudo de Mateus. Assim afirma Bauer apud Ferreira (2006, p. 47): “A crítica da forma, com seu foco na estrutura de perícope individuais e no contexto de vida nos quais essas perícopes surgiram, apresenta apenas uma pequena contribuição ao estudo do evangelho de Mateus em sua composição final”. 36 Foi o método mais utilizado e prestigiado no século XX nos estudos dos evangelhos. Esse tem por objetivo mostrar a posição teológica de cada um dos evangelhos sinóticos; tenta entender por quais critérios o escritor selecionou e organizou seu material, bem como, compreender como ele trabalhou os fragmentos da tradição enquadrando-os no contexto de seu evangelho e entender qual é a tendência teológica e intenção estrutura tal evangelho de modo geral. 38 texto bíblico dentro da academia brasileira, o que justifica a necessidade de explicar determinadas questões referentes ao texto em estudo. 2.5.1 MATEUS COMO BIOGRAFIA : O GÊNERO LITERÁRIO As teorias apresentadas anteriormente influenciaram na busca da definição do gênero literário de Mateus, ainda mais quando se diz respeito ao gênero biográfico greco-romano. Um dos principais defensores no Brasil do evangelho de Mateus como gênero biográfico grecoromano é Ferreira (2006). Assim, esse trabalho se orienta - no que se refere ao gênero literário - a partir do trabalho desse pesquisador. No entanto, é preciso lembrar que historicamente algumas são as propostas de gênero aventadas para Mateus. A primeira delas intenta compreendê-lo como gênero próprio do cristianismo, surgido a partir de afirmações de fé das comunidades primitivas cristãs, não apontando qualquer relação com gêneros da Antiguidade; outra concebe como coletânea de leituras litúrgicas semelhantes às praticadas nas sinagogas; por fim, há os que defendem o gênero desse evangelho como biografia greco-romano e suas variantes. Por ser julgada improvável pelas pesquisas contemporâneas, a segunda proposição não é digna de ser considerada nesse momento. Por ora, a primeira, que concebe os evangelhos como gênero inédito do cristianismo, tem os defensores de Mateus como Livro da origem [genealogia] de Jesus ou como Evangelho, no que se refere ao gênero. A identificação de Mateus como genealogia de Jesus é natural, pois, ao se procurar identificar o tipo de literatura a que pertence o evangelho, é lógico que se comece pelas indicações iniciais do texto: “Livro da genealogia de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abraão” (Mt 1.1). Por conta disso, alguns intentaram mostrar que a primeira frase (livro da genealogia [ge,nesij] de Jesus Cristo) representa o título do livro todo que narraria a história de Jesus ou apresentaria sua origem. O argumento é que há a correlação com o Gênesis, que, na versão da Septuaginta, em grego, é traduzido como ge,nesij, assim como este narra a criação de tudo, o evangelho apresentaria a nova criação por meio de Jesus. 39 Esse e outros argumentos interessantes são apresentados, contudo Ferreira (2006, p. 95) argumenta: É mais lógico e menos problemático aceitar que o primeiro versículo de Mateus se estende até 1.17, apresentando unicamente seus ascendentes, ou a 1.25, incluindo o relato de como sua mãe ficou grávida sendo virgem e da reação de José, esposo de Maria, diante de tal situação. Sendo assim, as primeiras palavras do livro não fornecem indicações a respeito do gênero literário. Há também os que consideram o gênero de Mateus como Evangelho. Vale ressaltar que esse termo (evangelho, euvagge,lion) tem uso no meio cristão, inicialmente, para designar o conteúdo da pregação dos cristãos primitivos37. Depois de algum tempo, com o objetivo de fazer vivos os ensinos de Jesus, alguns livros vieram a ser escritos e designados como evangelhos (Marcos, Mateus, Lucas e João)38. Portanto, houve uma ampliação do sentido primeiro dessa palavra. Como já se viu anteriormente, não são todos os manuscritos que têm o título evangelho segundo Mateus, ou apenas segundo Mateus, que pode ter sido afixado no segundo século d.C. Contudo, pelo fato de o livro de Marcos trazer no primeiro versículo a frase: “Princípio do evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus” (1.1), isso contribuiu para se designar os escritos a respeito da vida de Jesus sob o título de evangelhos. Assim, por os quatro evangelhos neotestamentários testemunharem um mesmo evangelho (de Jesus Cristo), no sentido específico da palavra, e em virtude de seu conteúdo, foram todos designados como evangelho, no que se refere ao gênero. Quanto a isso, Ferreira (2006, p. 98) discorre: A partir desse momento, atribuiu-se o designativo “evangelho” a um grupo de livros. O que isso significava? Que tais obras eram entendidas como compartilhando de uma mesma forma e de um mesmo conteúdo, o que as levava a pertencerem a um “gênero literário”, ao qual, mesmo que não fizessem parte do cânon, somaram-se os chamados evangelhos apócrifos39 (grifo do autor). 37 Exemplo: “Irmãos, venho lembrar-vos o evangelho que vos anunciei [...]” (1 Coríntios 15.1). A designação evangelho era corrente nas cartas do apóstolo Paulo entre os anos 50 a 70 d.C. 38 Estes e outros que não foram incorporados aos canônicos do NT. 39 “A distinção genérica, suficiente para os propósitos deste trabalho, entre o grupo dos quatro evangelhos que constam no Novo Testamento e os apócrifos tem como critério a canonicidade ou não do texto. John Dominic Crossan apresenta uma tipologia mais específica ao falar de “Evangelhos de sentenças”, “Evangelhos biográficos” (representados pelos quatro evangelhos canônicos), “Evangelhos discursivos” e “Evangelhos biográfico-discursivos” (2004, p. 70-75)” (FERREIRA, 2006, p. 98). 40 Como não se intenciona dar pormenores desta corrente, é preciso que se diga que a designação de Mateus como evangelho traz as problemáticas apresentadas por Ferreira (2006, p. 101): A definição dos evangelhos como literatura própria do cristianismo nascente sem conexões com outras formas literárias parece ser uma conseqüência lógica do diminuto papel atribuído nesse processo aos escritores, segundo os proponentes de tais métodos. Para eles, as discrepâncias, os problemas históricos e outras dificuldades com os textos são atribuídos à inabilidade dos evangelistas que, como coletores de tradições, foram incapazes de compor um texto coeso. Tal abordagem concebia os evangelhos como uma colcha de retalhos composta por diversos fragmentos textuais de procedências as mais variadas. Na realidade, eles eram tidos como baixa literatura, longe de qualquer comparação com os escritos da cultura literária da época. Ou seja, existem alguns acontecimentos narrados nos evangelhos que não se explicam de forma satisfatória como simples representação da realidade, ou como um amontoado de fragmentos que rementem à forma de vida comunitária dos primeiros cristãos. Apesar de não se negar que os evangelhos apresentam dados da realidade social, Ferreira (2006, p. 109) é contundente em afirmar que “seu objetivo também é descrever o mundo ideologicamente com a intenção de levar os leitores a aceitarem os valores ali expressos em oposição àqueles da sociedade”. Portanto, [...] atribuir a Mateus o designativo “evangelho”, tido como literatura própria do cristianismo que propõe manifestar o querigma de Jesus Cristo, entendido como a proclamação da vida e experiências das comunidades cristãs nascentes com o ressurreto, expressas em um texto formado por fragmentos com frágeis conexões, é insuficiente para definir os propósitos do gênero literário utilizado pelo escritor do evangelho. Sendo segmentos de fragmentos, esses compõem um todo com unidade de sentido. Dessa maneira, a alternativa de Mateus como biografia greco-romana tem fortes argumentos para sustentar tal tomada de posição. Vale ressaltar que não somente Mateus pode ser enquadrado nessa categoria, mas também os outros três evangelhos canônicos. Com um olhar atento aos evangelhos, pode-se perceber que Jesus Cristo sobressalta como personagem principal, tendo em vista que o foco é centrado nele durante toda a narrativa. Cenários, indicações cronológicas e personagens giram em torno da personagem que é o centro da história. Os locais aparecem como espaço onde Jesus atua; de igual modo, as indicações de tempo fazem com que os leitores percebam a dinâmica de seu ministério, e, somente, em relação ao protagonista que as demais personagens ganham consistência. 41 Observações generalistas como essas levaram vários estudiosos, no século XIX e no início do XX, a começar a pensar os evangelhos como biografias de Jesus Cristo. Esses estudiosos, por estarem influenciados por uma visão positivista da história, acreditavam ser possível a reconstrução factual de acontecimentos passados, por sua vez, trabalhavam com a ideia de biografia como descrição histórica da vida de um indivíduo. A partir disso surge então a tentativa da reconstrução da vida do Jesus histórico. Uma das objeções a qual surgiu foi quanto ao gênero biografia empregado a Mateus. Isso porque os elementos que permitem identificar uma obra como sendo uma biografia não são explícitos no livro de Mateus. Os elementos colocados em questão, e que são escassos nesse evangelho, são: a indicação do ano do nascimento de Jesus, a localização exata de sua sepultura, bem como a falta de indícios que permitam identificar a duração de seu ministério. Além dessas, há ainda pouca informação sobre sua vida pessoal. Não se tem explicação em relação ao lapso de tempo que há entre as narrativas da infância até seu batismo, acontecido na idade adulta (Mt 3. 13-17). Não há referência específica sobre sua formação educacional e intelectual, semelhantemente, não se descreve seus hábitos e costumes. Levando-se em consideração também de que dados cronológicos e geográficos40 dificultariam que se enquadrassem o evangelho como biografia moderna com preocupações históricas. E algumas outras questões referentes a isso ficam sem respostas. Porquanto, essas questões não respondidas dificultaram que se aceitassem Mateus como biografia conforme proposta no século XIX e no início do XX. Contudo, Ferreira (2006, p. 114) argumenta que “as dificuldades para o recebimento de Mateus como biografia derivam mais das ferramentas e dos objetivos com os quais se abordam o texto do que da própria categoria”. Consequentemente, torna-se inconcebível Mateus como biografia moderna. Diante desse impasse, U. Luz (1993, v. I, p. 46) afirma: Hay que distinguir una noción general de ‘biografía’, entendida como descripción de la vida de una persona que empieza con el nacimiento y ternima con la muerte, de lo que se entendía en la antiguedad por el género ‘biografía’ (Bíos)41. 40 Os vários cenários são colocados sem maiores detalhes: Mt. 3. 13; 4.1; 5.1; 4.18; 12.9; 9.10, 28; 13.2; 20.17; 9.9, 9.27; 12. 15; 13.53; 19.15. 41 “Há que distinguir uma noção geral de ‘biografia’, entendida como descrição da vida de uma pessoa que começa com o nascimento e termina com a morte, do que se entendia na antiguidade por gênero ‘biografia’ (= Bios)” (Tradução nossa). 42 Desse modo, o questionamento que deve ser feito, assegura Ferreira (2006, p. 115), é se, de fato, o gênero está sendo entendido de maneira correta. Sendo assim, qual o significado de biografia para os escritores e leitores do primeiro século? Por certo, a pergunta é consistente já que se deve buscar compreender um gênero literário em seu contexto sócio-culturalliterário. Os contextos cultural e social influenciam o artista na composição de sua obra, bem como seu leitor. Assim, saber qual o tempo e local em que um texto surgiu, mesmo que não se saibam com exatidão, é importante. Ou seja, surgiu por volta do ano 85 [?] d.C., destinado às comunidades cristãs distribuídas em uma região que tem como ponto de referência o Sul da Galileia, alargando-se até a Antioquia da Síria. O texto foi escrito em grego Koiné, ou seja, o grego comum da época, “para leitores da parte oriental do Império Romano, os elementos contidos no texto indicam as influências e expectativas do autor e dos leitores desse período e região” (FERREIRA, 2006, p. 117). Apesar de Roma dominar social e politicamente, a cultura grega estendeu-se por todo o Império Romano. Tanto é que os evangelhos foram escritos em grego e assim lidos na região. Assim Ferreira (2006, p. 117) lembra que [...] a Palestina, bem como a Província da Síria, cuja capital nos tempos neotestamentários era Antioquia, faziam parte do Império Romano não apenas territorialmente, mas participavam, em maior ou menor grau, de suas leis, política e cultura. A helenização dessas áreas era um fato. Até mesmo as sinagogas, onde eram estudados os textos sagrados em hebraico, sofreram influência da língua grega. Tanto é que Jerusalém possuía Sinagoga de helenistas, na qual o texto veterotestamentário era lido na versão grega, a Septuaginta. A cultura helenística foi utilizada como elemento unificador do império. Ao que a educação/cultura helenista, ou seja, a Paidéia estava ligada à construção de ginásios que serviam como escolas espalhadas por diversas cidades do Império. [tinha-se na época] a clara intenção de promover uma educação padrão que colocasse os membros do império em um mesmo nível cultural. Obviamente a educação não era um fim em si mesmo, mas uma forma de divulgação dos elementos da cultura, política e governo romanos indicativos de sua superioridade e soberania sobre os povos. Desse contexto participaram, como visto acima, os judeus palestinienses, cristãos ou não, bem como os judeus e gentios antioquenos, cristãos ou não. Jerusalém e demais cidades da Palestina, assim como em maior grau Antioquia, estiveram envolvidas integralmente nesse processo. Uma das evidências da instrução helênica em Jerusalém e Antioquia é que, sabe-se hoje, ambas possuíam ginásios. É 43 claro, portanto, que o evangelho de Mateus, mesmo provindo com muita probabilidade de um escritor e dirigido a uma audiência ambos judeus, por ter surgido em um contexto helenista, em meio a pessoas que não apenas liam o grego, mas que conheciam convenções da literatura grega, deve ter recebido algum tipo de influência sociocultural em sua produção (FERREIRA, 2006, p. 123). Disso se diz que o evangelista utilizou-se dos meios disponíveis na época por seu auditório para comunicar-se, no caso, a biografia greco-latina. Esse termo só foi cunhado a partir do século V d.C., antes era usado pelos gregos bios e pelos romanos de vita para essa literatura, tendo seu surgimento aproximadamente nos séculos V e IV a.C. Não se pretende discutir muitos detalhes do gênero literário greco-romano, mas é preciso situar a discussão porque algumas características desse gênero são importantes para compreender a intenção de Mateus na produção de seu evangelho e qual a visão que se toma nesse trabalho para tratar Jesus como personagem do mesmo. A pesquisa feita por Ferreira (2006) é, por demais, importante no estudo do evangelho de Mateus enquanto literatura e dá um suporte valioso para o estudo argumentativo deste. Isso porque ele mostra que esse evangelho tem por fonte principal o evangelho de Marcos ou comum a este, mas que foi intencionalmente retrabalhado de forma que os textos narrativos e discursivos cedessem a palavra a Jesus Cristo, o protagonista do livro. Essa dinâmica promovida por Mateus permite à personagem a comunicação direta com seus leitores. O evangelho de Mateus apresenta, como mensagem central, a presença de Jesus Cristo, Emanuel, entre os seus seguidores. O objetivo do texto é explicitar como o Jesus ressurreto pode influenciar e dirigir suas vidas e, mediante técnicas retóricas, atuar sobre os leitores do texto (FERREIRA, 2006, p.19). Ferreira (2006, p. 20) assegura que “o evangelho será compreendido adequadamente à medida que for considerado o gênero literário a que pertence”. Desse modo, é importante entender que, ao considerar Mateus como parte do gênero biográfico greco-latino, isso lhe dá um tom altamente retórico, justamente porque a ênfase recai sobre a personagem central. Assim “o texto é libertado das amarras da interpretação literalista e historicista e reconhecido como obra literária suscetível de receber a aplicação de princípios teórico-literários” (FERREIRA, 2006, p. 20). O narrador nesse gênero, e especificamente na obra supracitada, opta por ocupar um papel secundário diminuindo sua presença e atribuindo destaque às falas e às ações do protagonista. 44 Com essa estratégia, o texto perde em definição e explicitação, já que a função do narrador é dar as devidas orientações ao leitor. Por outro lado, a obra ganha em comunicabilidade pelo que convida o leitor de forma mais direta a interpretar as palavras e ações de Jesus, o que possibilita a interação de modo mais profundo com a narrativa. Faz-se necessário entender que a biografia greco-latina é de caráter ficcional e assim o evangelho de Mateus foi escrito inserido nessa categoria, o que evita alguns equívocos em razão de querer dar a esse livro o valor de documento historiográfico. No entanto, isso não atrapalha em confirmar o valor dessa obra enquanto documento histórico; ela o é, e foi escrita segundo o gênero biográfico. “Ao indicar o gênero, não se está querendo negar sua historicidade, mas entender que ela é trabalhada a fim de gerar reação em seus leitores” (FERREIRA, 2006, p. 147). Em relação a isso, a maioria dos teólogos entende que os textos dos evangelhos devam ser interpretados sob o prisma de que os autores intentavam comunicar verdades teológicas, o que justifica muitas vezes a não preocupação com a organização cronológica ou até mesmo geográfica de determinados acontecimentos em alguns dos evangelhos. Ou seja, a organização das cenas deu-se objetivando uma determinada mensagem e, por sua vez, buscando evidenciar o protagonista. Para se entender quais as técnicas ou os recursos argumentativos utilizados por Jesus, o evangelho de Mateus é singular, pois coloca o leitor como plateia de uma peça teatral em que a personagem principal desenvolve seu papel. Desse modo, pode-se assistir as ações, as falas, os discursos, os embates e os milagres de forma que a personagem central do drama se apresenta para seus espectadores diretivamente. Assim, nessa biografia mateana, pode-se conhecer, de forma singular, o caráter de Jesus por suas ações e palavras, possibilitando analisar melhor alguns de seus discursos, no caso, o Sermão do monte. Entender que o evangelho de Mateus foi escrito com a intencionalidade pré-estabelecida de apresentar Jesus - a personagem central - como o Emanuel e de que, para tanto, o evangelista construiu seu texto selecionando acontecimentos, discursos e falas, de forma geradora de convencimento para um determinado auditório/povo, no caso os judeus, é, deste modo, aceitar que essa obra seja altamente conativa com um forte poder retórico capaz de gerar convencimento/persuasão nos leitores do século I d.C. Assim, com a utilização da teoria literária, pode-se reconhecer que a estrutura do texto, bem como a identificação de estratégias 45 literárias nele presentes, são poderosas ferramentas de convencimento/persuasão voltadas para os leitores (FERREIRA, 2006). Por conseguinte, partindo-se disso, pode-se, com maior eficácia, fazer não mais, simplesmente, um trabalho com as teorias literárias ou teológicas no centro, mas sob o ponto de vista argumentativo, tentando compreender como se dá a argumentação dessa personagem principal em seu discurso. 46 3 ARGUMENTAÇÃO RETÓRICA NO SERMÃO DO MONTE 3.1 A RETÓRICA: DEFINIÇÃO E ORIGEM Definir o termo retórica não é uma tarefa simples, pois os seus sentidos são diversos e, por vezes, divergentes. O senso comum o entende de maneira pejorativa, como sinônimo de algo falso, artificial, enganoso, empolado etc. Os acadêmicos, no início dos anos de 1960, ao redescobrirem a retórica, logo cuidaram de devolver certa nobreza ao vocábulo, apesar da falta de consenso quanto ao seu sentido. Na ocasião havia duas posições extremas relacionadas ao sentido do vocábulo retórica: para Chaïm Perelman e L. Olbrechts-Tyteca a retórica é a arte de argumentar com o objetivo de convencer; já para Morier, G. Genette, J. Cohen e do Grupo MU ela constitui-se como o estudo do estilo, ou especificamente das figuras, sendo propriamente aquilo que torna literário um texto (REBOUL, 2004). A retórica clássica, que nasce com Aristóteles no quarto século a.C e vai até o século XIX d.C, caracteriza-se pela junção do que parece extremo nas duas posições acima. Destarte, ela concebe “a articulação dos argumentos e do estilo numa mesma função” (REBOUL, 2004, p. VIII). É a partir de elementos dessa tradição que se pode recorrer, de maneira mais estável, para definir a retórica. Como não poderia deixar de ser, Aristóteles ([1354] 2007, p. 23) emite sua definição clássica de retórica: “A Retórica pode ser definida como a faculdade de observar os meios de persuasão disponíveis em qualquer caso dado”. Ele considera essa arte (techné)42 “como o poder de observar os meios de persuasão em quase todos os assuntos que nos apresentam” (2007, p. 23). Por seu turno, Reboul (2004) define retórica como a arte de persuadir/convencer pelo discurso, podendo ser utilizada para diferentes fins, sempre buscando a adesão do auditório. No intuito de melhor compreender a retórica em princípio, ou seja, como ela pode servir aos 42 Quanto ao emprego desse termo Olivier Reboul (2004) discorre: “Este termo [...] é ambíguo, e até duplamente ambíguo. Em primeiro lugar, porque designa tanto uma habilidade espontânea quanto uma competência adquirida através do ensino. Depois porque designa ora uma simples técnica, ora, ao contrário, o que na criação ultrapassa a técnica e pertence somente ao “gênio” do criador. Em qual ou em quais desses sentidos se está pensando quando se diz que a retórica é uma arte? Em todos” (REBOUL, Olivier. Introdução à retórica. São Paulo: Martins Fonte, 2004, p. XVI). 47 que a utilizam, faz-se necessário uma breve abordagem sobre suas funções, na perspectiva apresentada por Reboul (2004). A primeira delas é decorrente de sua definição: função persuasiva: argumentação e oratória. Diz respeito aos meios racionais (argumentação) e afetivos (oratórios) como elementos indissociáveis para se persuadir, até porque “em retórica razão e sentimentos são inseparáveis” (REBOUL, 2004, p. XVII). A segunda é a função hermenêutica. Esta diz respeito ao trabalho de interpretação que o orador precisa fazer face ao seu interlocutor, bem como frente ao seu discurso, seja este manifesto ou latente. A outra função é chamada de heurística, a qual se caracteriza pela função de descoberta, no sentido de que se arrazoa para encontrar ou inventar uma solução razoável para alguns problemas que são apresentados ao orador. A última função apresentada por Reboul (2004) é a pedagógica. Segundo ele, a retórica fazia parte da cultura geral, ou da própria escola, sendo assim, “gramática, retórica e dialética não passavam de partes de um mesmo todo que se esclerosaram quando se separaram” (REBOUL, 2004, p. XXI). Apesar dessa desarticulação das disciplinas, e a retórica ter sido desprestigiada, ela ainda continuou na escola, contudo destituída de sua unidade interna e coerência, ou seja, dissolvida em outras disciplinas. Por certo, isso não aconteceu de um dia para o outro, nem aconteceu simplesmente por conta do uso da retórica por parte da religião cristã, como sugerem alguns, mas foi um processo histórico que contribuiu para o declínio dessa arte. Porquanto, para se entender um pouco mais é preciso voltar à história da retórica. 3.1.1 DA ORIGEM AO DECLÍNIO DA RETÓRICA A retórica é anterior à sua história e, apesar de poder encontrar retórica entre outros povos antigos, pode se afirmar que essa arte é uma invenção dos gregos. Isso porque eles inventaram tanto a técnica retórica, que “possibilitava defender qualquer causa e qualquer tese” (REBOUL, 2004, p.1), quanto a teoria da retórica, que visava refletir sobre tal disciplina. A retórica nasce na Sicília grega, aproximadamente, em 465 a.C., tendo uma origem judiciária, em um contexto onde os cidadãos despojados pelos tiranos persas requeriam seus 48 bens. Ademais, os conflitos judiciários eram incontáveis, por conta da guerra civil em que estavam. Quanto a isso, Reboul (2004, p. 2) afirma que “numa época em que não existiam advogados, era preciso dar aos litigantes um meio de defender sua causa”. E é dessa forma que surge a retórica como “criadora de persuasão” Reboul (2004, p. 2) atrelada a uma necessidade concreta da vida cotidiana. Dada a estreita relação entre a Sicília e Atenas, esta de imediato adotou a retórica. É nesta cidade da antiga Grécia que a retórica firma-se, por volta de 427 a.C., época, também, em que a retórica tem uma nova fonte: estética e literária, sendo Górgias43 apontado como o principal responsável por isso44. Por esta razão, ficou conhecido como o orador que tinha a prosa “tão bela quanto a poesia” (REBOUL, 2004, p. 6), mas também como um dos primeiros sofistas. Os primeiros sofistas eram professores itinerantes que cobravam um valor estimado por suas aulas de filosofia e eloquência, preenchendo uma necessidade da época em que não se tinha uma formação além da elementar, porquanto eles inovaram com um ensino intelectual consistente, destituído de finalidade religiosa ou profissional, com o objetivo maior de ensinar a cultura geral. Assim, nessa categoria mais técnica de sofistas estão Górgias, Pitágoras, Pródico, Trasímaco, Hípias, Crítias, dentre outros (REBOUL, 2004, p. 6). Em Protágoras45 (486 – 410 a.C), a retórica e a sofística se unem plenamente. Ele foi o pai do relativismo pragmático e dono da célebre tese: “O homem é a medida de todas as coisas, as coisas são como aparecem a cada homem; não há outro critério de verdade” (REBOUL, 2004, p. 8). Contra sofistas como Protágoras, Platão e Aristóteles tiveram de empenhar muitos esforços, o que mostra a capacidade intelectual que eles tinham. Deste modo, apesar de tudo que se tem contra os sofistas46, Reboul (2004, p. 9) assegura que se pode dizer que eles foram os criadores da retórica como arte do discurso persuasivo. Destarte, o ensino sistematizado e global fundado numa visão de mundo proporcionou a criação de elementos de uma riquíssima retórica encontrados mais tarde em Aristóteles. 43 Siciliano e discípulo de Empédocles, um dos criadores do discurso epidíctico, sendo o mais famoso o Elogio de Helena. 44 Numa época em que a prosa era puramente funcional restrita a transcrever a linguagem oral e a literatura era identificada com apenas a poesia (épica trágica etc), Górgias cria uma prosa eloquente com uso de muitas figuras, comparada à poeisa (REBOUL, 2004, p. 4). 45 Originário da Abdera, na Trácia, professor de eloquência e filosofia. 46 Especialmente contra a não objetividade da verdade, ou seja, o mundo dos sofistas é um mundo destituído de verdade objetiva, prevalecendo o sucesso do discurso. 49 Aristóteles (384-322 a.C) - nascido em Estagira - foi partícipe da academia de Platão por vinte anos, dono de um espírito de observação e de sistema e foi também quem repensou a retórica, integrando-a num sistema filosófico muito diferente daquele dos sofistas. “Aristóteles salva a retórica, colocando-a em seu verdadeiro lugar, atribuindo-lhe um papel modesto, mas indispensável num mundo de incertezas e de conflitos” (REBOUL, 2004, p. 27). Quando não houver outro recurso senão o debate contraditório, a retórica faz parceria com a dialética e se firma como a arte de encontrar tudo o que contém de persuasivo em um caso. Para o grande pensador da antiguidade, a dialética é a arte do diálogo ordenado. Contudo, sua relação com a retórica não é tão simples de se definir. Em alguns argumentos de Aristóteles ([1354] 2007), a retórica e a dialética parecem dois termos referentes à mesma disciplina. Contudo, Reboul (2004, p. 35) assegura que “a retórica é apenas uma ‘aplicação’, entre outras, da dialética; é uma de suas quatro funções. Inversamente, a retórica utiliza a dialética como um meio, entre outros, de persuadir”, ou seja, a dialética como um jogo do intelecto utiliza da retórica, esta, por sua vez, como arte da persuasão, utiliza-se da dialética como instrumento intelectual, dentre outros, capaz de gerar convencimento. O sistema retórico impetrado por Aristóteles pode ser decomposto em quatro partes (invenção; disposição; elocução; ação). São as quatro fases que passam todos os que logram um discurso, portanto, é preciso buscar compreender sobre o assunto a ser tratado e reunir os argumentos que vão servir (invenção, heurísis, em grego) ao discurso; ordená-los (disposição, taxis); redigir o discurso da melhor maneira possível (elocução, lexis); e, por fim, exercitar-se proferindo-o (ação, hypocrisis) a contento. Em Aristóteles, pode-se encontrar, de forma organizada, os três gêneros do discurso, cada qual destinado a seu auditório específico: o judiciário ao Tribunal; o deliberativo à Assembleia (Senado); o epidíctico aos espectadores de modo geral. Com isso, Aristóteles tem o mérito de mostrar como o discurso pode ser classificado de acordo com o auditório e a finalidade pretendida. Disso Aristóteles depreendeu a necessidade de encontrar argumentos adequados. Deste modo, ele define três tipos de argumentos com o objetivo de persuadir: no plano afetivo, estão o ethos - que diz respeito ao caráter assumido pelo orador para inspirar confiança no auditório e o pathos - que se refere às muitas emoções, aos sentimentos, às paixões, que devem ser 50 despertadas pelo orador no auditório por meio de seu discurso; no plano racional, está o logos47, que diz respeito ao processo argumentativo, ou mesmo, o aspecto dialético da retórica. Dessa maneira, pode-se afirmar que é tendo por suporte o sistema aristotélico que a retórica se desenvolve solidamente, sendo enriquecida por diferentes retores e pensadores, servindo, portanto, ao longo de séculos aos mais diferentes temas, associando-se à moral, à democracia, à religião etc. Por conseguinte, como esse trabalho tem como objeto de análise um discurso religioso, é importante pontuar também que a retórica fez uma grande parceria com o cristianismo, isso porque essa religião sempre teve em seu objetivo um papel missionário, propagandista. Sendo assim, ela não pode fugir das polêmicas, ao que recorreu à retórica como técnica imprescindível aos objetivos da fé propagada. O livro de suporte à cristandade é a bíblia, que é um livro bastante retórico. Reboul (2004, p.77) assegura que “não sobejam nela metáforas, alegorias, jogos de palavras, antíteses, argumentações, tanto quanto nos textos gregos, se não mais?”. Ele diz mais: “a Bíblia era um modelo, porém mais ainda: um problema. Com efeito, não bastava ser lida, precisava ser compreendida; e, para interpretá-la, nunca era demais utilizar todos os recursos da retórica” (REBOUL, 2004, p. 78). Contudo, apesar da proeminente pareceria entre retórica e cristianismo, alguns acusam esta religião de contribuir para o declínio dessa disciplina, isso dado que o cristianismo, em algum momento, “não poderia [...], conviver com a ideia de multiplicidade de premissas, igualmente aproveitáveis como ponto de partida para a argumentação” (COELHO, 2005, p. XII, XIII). No entanto, Reboul (2004, p. 79) argumenta que “o cristianismo nada tem a ver com o declínio da retórica”, pois quem dá o golpe mortal na retórica são as novas ideias do século XVI, que rompe “o elo entre o argumentativo e o oratório, que lhe davam força e valor”. A saber, o principal responsável por esse golpe é o racionalismo de René Descartes, século XVII, que, em seu Discours de la méthode, destrói a possibilidade de argumentação contraditória e probabilista, lançando ao desprezo a dialética, um dos pilares da retórica. Assim, o racionalismo apregoou ser o científico a única forma válida de conhecimento, “capaz de explicar tudo e todos segundo padrões de racionalidade” (COELHO, 2005, p. XIII), 47 Aristóteles, segundo Reboul (2004, p. 49), não utiliza o termo logos como definição estrita, ao que é empregado para simplificar a explicação referente ao processo argumentativo aristotélico. 51 relegando, portanto, outras possibilidades de conhecimento que não fossem validadas pelo método científico, ou seja, verossímeis ou contraditórias, a serem descartáveis ou mesmo inúteis. Junto ao racionalismo, contra a retórica, levantam-se os filósofos do empirismo inglês, que diziam que qualquer verdade vem da experiência sensível; bem como os filósofos do positivismo, que rejeitavam a retórica em nome da verdade científica; e os do romantismo, que o faziam em nome da sinceridade. Então, na virada do século XIX para o XX, têm-se a seguinte situação: A retórica está cientificamente invalidade como método por ser incapaz de produzir o saber positivo e é, além disso, associada a um grupo clerical caracterizado por seu antirrepublicanismo, o que leva a sua exclusão do currículo universitário. [...] A argumentação não foi esquecida, ela foi é profundamente deslegitimada (PLANTIN, 2008, p. 19, 20). É assim que se dá o declínio da retórica, contudo, como não se podia deixar de usá-la, como assegurado acima, ela apenas foi deslegitimada, todavia, essa arte começa por refazer seu longo caminho de volta à legitimidade a partir da Segunda Guerra Mundial. 3.2 OS ÂMBITOS E O PONTO DE PARTIDA DA ARGUMENTAÇÃO NO SERMÃO DO MONTE Após a Segunda Guerra Mundial (1945), os estudos intitulados retóricos ganharam força na Europa surgindo várias retóricas, como a retórica da imagem iniciada por Roland Barthes no início da década 1960, bem como a retórica da propaganda e da publicidade e muitos outros trabalhos em literatura e direito, contudo, essas correntes entendiam a retórica como meramente uma maneira de conhecer os procedimentos da linguagem literária (REBOUL, 2004, p. 89). Oposta à retórica literária, nos anos de 1960, surge uma Nova Retórica, que, de fato, resgata a tradição aristotélica e engrena, em anos posteriores48, como teoria do discurso persuasivo. Os 48 Inicialmente as ideias de Perelman não foram bem recebidas na França, pois o ambiente era dominado pelos estudiosos da literatura, mas não somente por esse meio, contudo sofreu resistência também dos meios filosóficos. Assim, o pensamento de Perelman só teve maior acolhimento no fim dos anos de 1970, ainda assim com restrições, pois seu trabalho foi mais utilizado para desmitificar as manipulações ideológicas do que para interpretar os autores (REBOUL, 2004, p. 89). 52 responsáveis por isso foram Chaïm Perelman e Lucïe Olbrechts-Tyteca, que haviam dado início em 1947, na Bélgica, pela Universidade de Bruxelas, pesquisas que resultaram na publicação da obra intitulada Traité de l’argumentation, la nouvelle rhétorique (Tratado da Argumentação: a Nova Retórica49), em 1958; uma retórica centrada não mais na elocução, mas, de fato, na invenção. O filósofo belga e sua assistente partiram de um problema filosófico na tentativa de fundamentar os juízos de valor. Eles tentaram responder ao questionamento por demais pertinente: “O que nos permite afirmar que isto é justo ou que aquilo não é belo? Buscaram, pois, a lógica do valor, paralela à da ciência, e acabaram por encontrá-la na antiga retórica, completada, como convém, pela dialética” (REBOUL, 2004, p. 89). O Tratado da Argumentação ([1958] PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005) é uma ruptura com a primazia do racionalismo, das ciências dedutivas, que considera como prova o que é evidente e concebem racionais apenas as demonstrações; e também com o empirismo, com as ciências experimentais ou naturais, que entende a verdade em conformidade com o fato sensível tendo-o como prova. Essa ruptura dá-se porque o campo da argumentação, ao qual se filiam os autores, é do verossímil, do plausível, do provável, desde quando este escape à certeza do cálculo, asseveram Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 01), porquanto a Nova Retórica “é a única filosofia que enaltece aqueles que hesitam, refletem e em seguida modificam o seu curso de ação”, assegura Maneli (2004, p. 19). A Nova Retórica revive conceitos desenvolvidos nos Tópicos e trabalhados em a Retórica de Aristóteles e faz a reaproximação da teoria da argumentação à dialética, “concebida pelo próprio Aristóteles como a arte de raciocinar a partir de opiniões geralmente aceitas” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. II). Ela define o objeto da teoria da argumentação como o estudo dos mecanismos discursivos que intentam, explicitamente, conquistar ou intensificar a adesão dos espíritos às teses propostas. 3.2.1 O CONTATO DO ORADOR COM SEU AUDITÓRIO O vínculo do Tratado da Argumentação com as teorias antigas da retórica se dá explicitamente ao enfatizar “o fato de que é em função de um auditório que qualquer 49 São Paulo, Martins Fontes, 2005. 53 argumentação se desenvolve” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 6, grifo do autor). Além disso, o tratado perelmaniano excede, em algumas questões, os antigos mestres da retórica como, por exemplo, Aristóteles, ao mesmo tempo em que deixa de abordar questões importantes antes trabalhadas, ele “deixa de reconhecer os aspectos afetivos da Retórica, o delectare e o movere, o encanto e a emoção, essenciais à persuasão” (REBOUL, 2004, p. 89). Ademais, o tratado ocupa-se, por seu turno, mais com o discurso escrito, impresso, do que com o discurso oral, como faziam os antigos. Uma das novidades da Nova Retórica é o rompimento com a distinção feita, em certa medida, por Aristóteles entre dialética e retórica. Ao que o velho filósofo, nos Tópicos, concebe a retórica oposta à dialética, quando não abruptamente, em Retórica faz algumas distinções entre essa e aquela. Ele conceitua a dialética como o estudo dos argumentos usados numa discussão com apenas um interlocutor; e a retórica relacionada às técnicas do orador “dirigindo-se a uma turba reunida na praça pública, a qual não possui nenhum saber especializado e que é incapaz de seguir um raciocínio um pouco mais elaborado” (PERELMAN, 1993, p. 24). A ruptura dá-se na medida em que se considera que a (nova) retórica diz respeito aos discursos direcionados a todos as espécies de auditórios, quer seja ele o universal, o particular ou consigo mesmo (deliberação íntima). Na argumentação, portanto, faz-se necessário um contato intelectual, por assim dizer, importa considerar relevantes as condições psíquicas e sociais dos espíritos dos quais se pretende obter a adesão. Isso porque não se está mais no âmbito da demonstração matemática, que pressupõe um sistema axiomático que não depende de qualquer aceitação do auditório e não se abre às ambiguidades. Ao contrário, “na argumentação a discutibilidade está sempre presente, já que o seu fim ‘não é deduzir consequências de certas premissas, mas provocar ou aumentar a adesão de um auditório às teses que se apresentam ao seu assentimento” (PERELMAN, 1993, p. 24, grifo do autor). Na formação da comunidade efetiva dos espíritos, uma das condições prévias para a argumentação é a existência de uma linguagem em comum. Mas não somente isso, é necessário que haja o desejo, de alguma maneira, de ambos os lados naquilo que se discute; “É mister que se esteja de acordo, antes de mais nada e em princípio, sobre a formação dessa comunidade intelectual e, depois, sobre o fato de se debater uma questão determinada” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 16). Logo, “Fazer parte de um mesmo meio, conviver, manter relações sociais, tudo isso facilita a realização das condições 54 prévias para o contato dos espíritos” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 19). Por ser assim, o interesse das multidões (Mt 4. 23-25) que seguiam Jesus dá-se, explicitamente, pelo apreço que este tinha pelas pessoas, demonstrado pela preocupação em lhes anunciar por meio do ensino e da pregação “o evangelho[as boas notícias] do reino” dos céus (Mt 4. 23) e ajudá-los em suas mazelas curando-os “de toda sorte de doenças e enfermidades” (Mt 4. 23). Tal mobilização de Jesus era de despertar bastante interesse às pessoas que viviam na região da Galileia e na circunvizinhança. Elas eram dominadas pelo Império Romano, nessa época, através do tetrarca Herodes Antipas (4 a.C a 39 d.C.), que se esforçava para manter e aumentar a influência do Governo contando com capitais em cidades como Séforis e Tiberíades onde vivia certa elite. Nelas, os camponeses eram explorados com impostos tanto tributários quanto religiosos50, o que fazia com que eles incorressem em empréstimos oferecendo suas propriedades - fontes de sobrevivência - como garantia de pagamento. Por conta disso, “a pesada extorsão de excedentes unida à desonesta comercialização agrária gerou um previsível e gradativo processo de endividamento que conduziu grande parte da classe camponesa à completa miséria” (LIMA, 2010, p. 07). A situação de boa parte dos habitantes daquela região da Palestina, segundo aponta os estudos de Crossan (2002), era de calamidade, de sofrimento fruto da exploração política, religiosa e da profunda desigualdade social. Situação que proporcionou o surgimento do chamado Movimento de Jesus. Horsley e Silberman descrevem a situação dos habitantes da região sob o ponto de vista dos estudos sociológico e antropológico: “Sob a pressão dos tributos e da expropriação de terras por parte de Herodes, eles haviam se afastado do espírito aldeão tradicional de cooperação mútua: a dissensão e a recriminação mútua precisavam ser apaziguadas [...] Portanto, as curas e os ensinamentos de Jesus precisam ser vistos nesse contexto, não como verdades espirituais abstratas, ditas entre um milagre extraordinário e outro, mas como programa de ação comunitária e resistência prática a um sistema que conseguiu transformar aldeias fechadas em comunidades muito fragmentadas de indivíduos alienados e amedrontados” (HORSLEY; SILBERMAN, 2000, apud LIMA, 2010, p. 11). 50 O império romano dominava politicamente. Culturalmente era a Grécia que dominava, e a religião dominante da região era o Judaísmo. 55 Sendo assim, é nesse contexto acima apresentado que a pregação e o ensino de Jesus 51 vão ao encontro, de alguma maneira, à expectativa e à necessidade das pessoas desejosas em ouvir palavras de esperança e de ter cura para suas muitas enfermidades. Vê-se, portanto, que a formação das multidões que vão ouvir o Sermão do monte não se dá sem razão de ser. Dessa forma, cabe observar que, para se tomar a palavra e ser ouvido, é preciso haver alguma qualidade naquele que o faz, asseguram Perelman e Obrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 21). Urge mais ainda essa necessidade quando não se tem uma instituição que facilite ou organize o contato prévio. Tal habilidade do orador que se dirige verbalmente a um auditório pode variar de acordo com as circunstâncias, “às vezes bastará apresentar-se como ser humano, decentemente vestido, às vezes cumprirá ser adulto, às vezes, simples membro de um grupo constituído, às vezes, porta-voz desse grupo” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 21). Jesus não era um mestre (rabino) autorizado institucionalmente pela religião judaica, nem possuía alguma nobre posição social, pelo contrário, ele exercia uma atividade profissional como artesão - descrita pelo termo grego tekton (Mc 6.3)52- que possivelmente era herdada de seu pai José (Mt 13. 55)53. Apesar de esse termo ser sempre traduzido pela palavra carpinteiro, pode, também, ter uma designação mais genérica para um artífice do setor da construção, habilitado a trabalhar não somente com madeira, mas também com metais ou como pedreiro. Ser um tekton, ou seja, um camponês/artesão da aldeia de Nazaré54 era estar no grupo dos que provavelmente serviam como trabalhadores das construções e manutenções de grandes cidades da época. Fato que não colocava Jesus como alguém privilegiado social e economicamente. Crossan (2002) mostra, a partir de estudos de G. Lenski sobre sociedades agrárias semelhantes ao império romano, que os artesãos eram normalmente inferiores aos agricultores camponeses. Estes tinham acesso indireto à comida e gozavam de pouco recurso financeiro, mesmo havendo exceções; Crossan (2002), por sua vez, chega à conclusão de que quem optava pela profissão de ser um artesão eram os aldeões que não conseguiam tirar o 51 É preciso considerar que Jesus, possivelmente, falasse habitualmente em aramaico, algumas expressões de Jesus nos evangelhos foram conservadas em aramaico. Mas também se considera a possibilidade de sempre que preciso falar aos gentios, Jesus e os discípulos falassem grego, isso porque o grego era a língua da cultura, e na Palestina se falava grego corretamente (TENNEY, 1995, p. 83). 52 “Não é este [Jesus] o carpinteiro, filho de Maria [...]”. 53 “Não é este [Jesus] o filho do carpinteiro [José] [...]”. 54 Situada aproximadamente a uma hora de Séforis (LIMA, 2010, p. 09). 56 suficiente da terra para sobreviver. Pode-se deduzir a partir disso que Jesus não gozava de nenhum prestígio por sua atividade profissional. O que autoriza Jesus tomar a palavra diante de seu auditório é o fato de ele ter recebido a confirmação de seu ministério de duas fortes testemunhas, como mostra Mateus: o testemunho de João Batista (Mt 3. 11)55, profeta reconhecido e respeitado como tal entre os judeus, e de ter sido batizado pelo mesmo, ocasião em que Jesus recebe o testemunho de uma voz vinda do céu, identificada como voz de Deus, que dizia “Este é meu Filho amado, em que me comprazo” (Mt 3. 17); sendo, portanto, o próprio Deus a segunda testemunha. Apesar de ele não ter uma autorização formal para pregar e ensinar, cuja autorização passava por todo um processo formal devendo ser emitida por no mínimo dois rabinos, ele tem duas fortes testemunhas ou autorizações a seu favor: pelo que essas testemunhas tinham, por demais, autoridade. Além disso, Jesus é identificado, logo em seu nascimento, como Rei dos Judeus pelos magos do Oriente enviados pelo rei Herodes (Mt 2. 2)56, o qual temia ser ele o Cristo57 (Messias) (Mt. 2.4); o próprio Jesus apontou que os profetas do Antigo Testamento profetizaram a respeito de sua vinda (Mt 4. 15,16; Isaias (Is) 9. 1,2). Ele também disse ser o cumprimento do que dizia a Lei e os Profetas (Mt 5.17)58. Como confirmação de suas qualidades especiais, Jesus tinha a seu favor os feitos milagrosos que acompanhavam seu ministério testificando sua autoridade celestial; além de ele ter se tornado o enunciador do reino dos céus (Mt 4.17)59, anunciando a proposta de uma vida nova para as pessoas baseada na justiça do reino (Mt 5.6); o que era bastante atraente para os injustiçados. Portanto, ele tinha qualidade para tomar a palavra diante de seu auditório. Quanto a isso um comentarista assegura: Mateus então mostra que o próprio Jesus estava qualificado para o papel do Messias [...] Todos os atos demonstram que Jesus não apenas satisfaz as condições impostas pela profecia do Antigo Testamento, mas que Ele estava plenamente qualificado por um caráter e um poder exclusivos para reivindicar o trono de Israel (RICHARDS, 2008, p. 15). 55 “Eu vos batizo com água, para arrependimento; mas aquele [Jesus] que vem depois de mim é mais poderoso do que eu, cujas sandálias não sou digno de levar [...]”. João Batista é descrito como o profeta responsável por preparar o caminho do Senhor (Mt 3.3), no caso do Messias. 56 “E [os magos do Oriente] perguntavam: Onde está o recém-nascido Rei dos judeus? Porque vimos a sua estrela no Oriente e viemos para adora-lo”. 57 A palavra Cristo é tradução do grego Khrístos que significa Ungido, que, por sua vez, é a tradução do hebraico Masîah, transliterado como Messias. Aramaico, Mashiach. 58 “Não penseis que vim para revogar a Lei ou os Profetas; não vim para revogar, vim para cumprir”. 59 “Daí por diante, passou Jesus a pregar e a dizer: Arrependei-vos, porque está próximo o reino dos céus”. 57 Mas “como definir semelhante auditório?”, essa é a problemática lançada por Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 21). O auditório pode ser mais do que as pessoas a quem se dirige a palavra diretamente. De modo especial, essa questão é importante na análise do Sermão do monte dado que Jesus tem dois grupos que ouvem o seu discurso, que são as multidões e os seus discípulos (CARSON, 2000)60: “Vendo Jesus as multidões, subiu ao monte, e, como se assentasse, aproximaram-se os seus discípulos; ele passou a ensiná-los [...]” (Mt 5.1,2, grifo nosso). Quanto aos dois grupos que ouviam o discurso, alguns estudiosos afirmam que Jesus dirige seu discurso aos discípulos, mas que ao fundo estava uma grande multidão, ou multidões que o ouviam (MONASTERIO; CARMONA, 1992, p. 201). A formulação inicial do sermão não permite determinar que Jesus esquivou-se em ensinar às multidões, mas o que se pode observar a partir da formulação no final do sermão é que as multidões estavam ali o ouvindo: “[...] estavam as multidões maravilhadas da sua doutrina” (Mt 7. 28). Diante disso, Luz (1993, p. 267) assegura que o sermão tem, de certo modo, dois círculos concêntricos de ouvintes. De qualquer modo, esses dois grupos, em sua maioria, tinham a mesma finalidade: ouvir e aprender do mestre de Nazaré. Chevrot (1965, p. 20) faz uma descrição interessante desse auditório: Comprimida lá na montanha, por trás dos discípulos, estendia-se uma multidão a perder de vista. Nela estariam inevitavelmente os curiosos, talvez mesmo os censores prontos para a crítica; mas este vasto auditório era em grande parte constituído pelo bom povo do campo, pelos pequenos proprietários e operários artífices de aldeia, pescadores do lago. O que se pode observar é que esse auditório, de algumas maneiras, é heterogêneo, no qual se reúnem “pessoas diferenciadas pelo caráter, vínculos e funções” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 24), vindas de diferentes regiões (Síria, Galileia, Decápolis, Jerusalém, Judeia etc.), tendo diferentes profissões, níveis de instrução, econômico etc., mas quanto a isso não há nenhuma objeção em se considerar que todos os seus interlocutores sejam parte de um único auditório. A questão é que o orador “deverá utilizar argumentos múltiplos para conquistar os diversos elementos de seu auditório. É a arte de levar em conta, na argumentação, esse auditório heterogêneo que caracteriza o grande orador”, afirmam Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 24), os quais definem auditório “como 60 O termo discípulos na perícope em questão, ou nesse estágio inicial do ministério de Jesus, não se refere necessariamente aos doze, que classicamente são conhecidos, mas muitos que foram se associando ao grupo dos que queriam seguir a Jesus nessa etapa inicial (CARSON, 2000, p.46). 58 o conjunto daqueles que o orador quer influenciar com sua argumentação” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 220, grifo do autor). De certo que a argumentação dá-se em função do auditório, por seu turno, “nenhum orador, nem sequer o orador sacro, pode descuidar desse esforço de adaptação ao auditório” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 27). Jesus não fugiu a esse princípio retórico da adaptação, pois, se de alguma maneira boa parte de seu auditório sentia-se injustiçado pelo que os sacerdotes da religião judaica junto com o Império Romano faziam, de forma que o povo sentia-se oprimido e carente de um libertador, por conseguinte, essas pessoas desejavam um reino que superasse tal infortúnio. O discurso de Jesus, por sua vez, mostra que ele vem anunciar um reino de justiça, fato que esse orador já inicia mostrando, de alguma forma, aos seus ouvintes a possibilidade de serem desse reino ou que o reino dos céus poderia ser delas (Mt 5.3)61. Mesmo que o reino dos céus não tivesse a configuração de um reino que fosse exatamente ao encontro da expectativa do povo, e que o conceito não fosse no sentido comum de reino humano e terreno - mas espiritual e construído no interior do ser humano - o que sobressalta é que a proposta de um outro reino atraiu as pessoas. Quanto a isso se diz que o auditório está condicionado a algumas questões, que dizem respeito ao desejo, ao sentimento, às necessidades biológicas, financeiras, existenciais, intelectuais, lúdicas etc. Dado que o orador precisa saber identificá-las, para que de alguma maneira adapte-se aos seus interlocutores, suscitando a partir desse condicionamento o interesse deles em seu discurso, ao que por meio de um novo condicionamento que se dá pelo discurso propriamente, acontece que “o auditório já não é, no final do discurso, exatamente o mesmo do início” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 26). Isso só acontece se o orador for capaz de adaptar-se continuamente ao auditório. O fato de Jesus iniciar seu sermão afirmando ser alguns tipos de pessoas “bem-aventuradas”, como os “pobres [humildes] de espírito”, “os que choram”, “mansos”, “os que têm fome e sede de justiça” (respectivamente Mt 5. 3, 4, 5, 6), por certo, é uma forma de mexer emocionalmente com seus ouvintes. Sendo assim, pode-se assegurar que a linguagem utilizada pelo orador e o uso que ele faz de expressões comuns da vida religiosa e social (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 26), o uso de metáforas relacionadas aos elementos utilizadas no dia a dia, como vós sois os sal da terra (Mt 5. 13), candeia, alqueire (Mt. 5. 14), ovelhas, lobos, bem como a abordagem que ele faz de temas 61 “Bem-aventurado os humildes [pobres] de espírito, porque deles é o reino dos céus”. 59 importantes à vida e à prática religiosa (homicídio, adultério, juramentos, vingança, amor ao próximo, jejum, oração Mt 5. 21 – 48, 6. 1 - 18), dizem respeito à adaptação feita do orador Jesus ao seu auditório. É importante chamar atenção para o que se afirma no Tratado da argumentação quanto à adaptação do discurso ao auditório: “o fundo e a forma de certos argumentos, apropriados a certas circunstâncias, podem parecer ridículas noutras”, porquanto o uso de determinados argumentos precisam ser compreendidos à luz de seu auditório, ainda mais no caso da análise específica de um discurso proferido há mais de vinte séculos. Diante do que foi apresentado, é fácil notar que o auditório de Jesus caracteriza-se, em primeira instância, como sendo um auditório particular. A definição deste está vinculada à noção de persuasão, que, por sua vez, dialoga com a noção de convencimento. Observa-se que a distinção não deve ser tão rígida, pois há argumentos racionais dirigidos ao auditório universal encarnado em pessoas que fazem parte do auditório particular, que, por ser assim, é dirigido à razão com vistas ao convencimento. 3.2.2 ACORDOS: CONVENCENDO E PERSUADINDO AUDITÓRIOS O Tratado da argumentação inscreve-se numa discussão histórica que diz respeito aos partidários da verdade e os da opinião, os que se ocupam de questões eternas e universais e aqueles que se ocupam de valores temporais e locais. No bojo desse debate, à luz da teoria da argumentação e a partir da influência de certos auditórios, Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 30) propõem certa distinção não tão estanque entre persuadir e convencer. Diz-se que uma argumentação persuasiva é aquela que pretende valer apenas para um auditório particular, enquanto uma argumentação convincente é aquela que deveria obter adesão de todo ser racional. Deste modo, o que está em questão “são os meios de obter a adesão das mentes [...]. Ou seja, é principalmente a atitude do orador e o seu modo de argumentar que estão em causa” (SOUSA, 2000, p. 30, grifo do autor). Ou mesmo, o matiz de distinção entre ambas as noções depende da imagem que o orador faz da encarnação da razão (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 31). Sendo assim, cumpre dizer que o auditório universal não existe, a não ser como construção ideal do orador. 60 Por conseguinte, a distinção perelmaniana entre convencimento e persuasão não é tão nítida, ou mesmo em situações concretas elas não são tão estanques, destarte, os proponentes da distinção asseguram que “os critérios pelos quais se julga poder separar convicção e persuasão são sempre fundamentados numa decisão que pretende isolar de um conjunto - conjunto de procedimentos, conjunto de faculdades - certos elementos considerados racionais” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 30). Como o homem não é constituído por completamente faculdades separadas, Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 33) apresentam seu ponto de vista sobre essa distinção: Nosso ponto de vista permite compreender que o matiz entre os termos convencer e persuadir seja sempre impreciso e que, na prática, deva permanecer assim. Pois, ao passo que as fronteiras entre a inteligência e a vontade, entre a razão e o irracional, podem constituir um limite precioso [...]. Nossa distinção entre persuadir e convencer se assemelha, portanto, por muitos traços, às distinções antigas, mesmo que não lhes adote os critérios (grifo do autor). Ora, se as noções de auditórios supramencionadas estão vinculadas ao convencimento e a persuasão, que não têm um matiz rígido, por seu turno, o auditório particular pode, em alguns casos, ser encarnação do auditório universal. Quanto a isso, Perelman e Obrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 36) discorrem sobre a questão do consentimento universal que firma o auditório universal: “[...] o consentimento universal invocado o mais das vezes não passa da generalização ilegítima de uma instituição particular. É por esta razão que é sempre temerário identificar com a lógica a argumentação para o uso do auditório universal, tal como a própria pessoa concebeu. [...] Em vez de se crer na existência de um auditório universal, análogo ao espírito divino que tem de dar seu consentimento à “verdade”, poder-se-ia, com mais razão, caracterizar cada orador pela imagem que ele próprio forma do auditório universal que busca conquistar para suas opiniões” (grifo nosso). Portanto, “Cada cultura, cada indivíduo tem sua própria concepção do auditório universal”, afirmam Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 37). Desta maneira, pode-se dizer que tanto do ponto de vista de um judeu do primeiro século, como do ponto de vista do orador, Jesus, que faz um acordo versando sobre a irrevogabilidade e o cumprimento da Lei (judaica) e das profecias do Antigo Testamento (Mt 5. 17 – 19)62, sendo assim, ele o faz sobre um fato. 62 “Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas; não vim para revogar, vim para cumprir. Porque em verdade vos digo: até que o céu e a terra passem, nem um i ou til jamais passará da Lei, até que tudo se cumpra. Aquele, pois, que violar um destes mandamentos, posto que dos menores, e assim ensinar aos homens, será considerado mínimo no reino dos céus, aquele, porém, que os observar e ensinar, esse será considerado grande no reino dos céus”. 61 Por seu turno, é estabelecido um acordo com o auditório concreto particular, mas pode se dizer que este, por vezes, é tomado pelo orador como encarnação do auditório universal. Para se prosseguir com tal análise, é preciso compreender a questão das premissas da argumentação, ou seja, o que é aceito como ponto de partida de raciocínios. Dessa maneira, tanto o ponto de partida da argumentação quanto o desenvolvimento desta deve levar em consideração o que é presumidamente admitido pelo auditório. Deste modo, pressupõe certo acordo do auditório. Todo acordo tem seus tipos de objeto, por ser assim, Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 74) agrupam os objetos passíveis de acordo em duas categorias: uma referente ao real, que compreenderia os fatos, as verdades e as presunções; a outra relativa ao preferível, que comportaria os valores, as hierarquias e os lugares do preferível. Os proponentes da Nova Retórica (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 74) asseguram que “na argumentação, tudo que se presume versar sobre o real se caracteriza por uma pretensão de validade para o auditório universal”. Por outro lado, “o que versa sobre o preferível, o que nos determina as escolhas e não é conforme a uma realidade preexistente, será ligado a um ponto de vista determinado que só podemos identificar com o de um auditório particular, por mais amplo que seja” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 74). Vê-se, portanto, que todas essas noções estão, de alguma maneira, imbricadas. Desse modo, poder-se-ia dizer que as premissas podem ser tratadas a partir das condições em que elas se encontram. Disto se diz do estudo da natureza de certos auditórios constituídos nos quais se pode perceber uma ordem mais estática, enquanto outras condições podem se configurar como mais dinâmicas, dado que diz respeito ao empenho do orador em encontrar as manifestações de seu auditório, que sejam elas implícitas ou explícitas, com as quais pode contar para obter a adesão do mesmo. Dessa maneira, poder-se-ia dizer que, no Sermão do monte, existe um acordo central pertinente à natureza do auditório. É a partir desse objeto de acordo que o orador Jesus vai desenvolver seus principais argumentos, o que não fica isento de se ter acordos outros ao longo do discurso como observar-se-á mais à frente. Contudo, nesse momento, cabe compreender como se dá esse acordo que seria central no sermão e, de certa maneira, explícito. 62 Jesus inicia seu sermão com nove63 bem-aventuranças (Mt 5. 3-11), seguida de um ligeiro comentário a respeito da última (Mt 5. 12) e continua seu discurso fazendo a declaração de que os seus discípulos são o “sal da terra” e a “luz do mundo” (Mt. 5. 13, 14-16, respectivamente)64. No trecho seguinte, ele passa a definir de forma clara o objeto de acordo sobre o qual versará sua argumentação. Jesus declara: “Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas; não vim para revogar, vim para cumprir. Porque em verdade vos digo: até que o céu e a terra passem, nem um i ou til jamais passará da Lei, até que tudo se cumpra” (Mt 5.17). Quanto a esta declaração, é relevante destacar o fato de ele dizer “[...] não penseis que vim revogar [...]” (grifo nosso), o que deixa entender que alguns de seus ouvintes pudessem ter pensado, ou o próprio ter previsto tal pensamento, que, por conta de suas declarações iniciais, supramencionadas, ele pudesse estar discursando sobre algo que ia de encontro65 à Lei ou o que disseram os profetas de Israel grafados no Antigo Testamento. Por conta disso, ele pode ter sentido a necessidade de firmar um objeto de acordo para prosseguir seu discurso e mostrar que sua justiça estava em completa harmonia com a Lei (Pentateuco) e os Profetas (o restante do Antigo Testamento). Quanto a esse tipo de justificativa, Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 120) arrazoam: A justificação da mudança será substituída muitas vezes por uma tentativa de provar que não houve mudança real. Essa tentativa é às vezes determinada pelo fato de que a mudança vedada: o juiz, que não pode mudar a lei, sustentará que a sua interpretação não a modifica, que corresponde melhor à intenção do legislador. Sendo assim, Jesus assegura que não veio revogar a Lei ou os Profetas, mostrando que não está sendo um revolucionário, contudo ele prefere retomar apenas o termo Lei (Mt 5. 18) com a finalidade de, explicitamente, firmar seu objeto de acordo com o auditório sobre o conteúdo específico da Lei, retomando alguns mandamentos correspondestes a essa (5.21 – 48). Quanto a esse objeto de acordo, é possível assegurar que ele tem as características de ser um fato. Na argumentação, a noção de “fato é caracterizada unicamente pela ideia que se tem de certos gêneros de acordos a respeito de certos dados” (PERELMAN; OLBRECHTS63 Apesar de se afirmar ser nove, pois o termo bem-aventurança é citado nove vezes, contudo a nona é considerada uma extensão ou aplicação da oitava. 64 A análise desses versículos dar-se-á mais adiante. 65 Quanto a essa possibilidade de alguns de seus ouvintes estarem pensando sobre tom aparentemente revolucionário de Jesus, Hendriksen (2001, p. 403) comenta o versículo em questão: “Os oponentes de Cristo já tinham começado a considera-lo um revolucionário destrutivo, um iconoclasta que queria romper com todos os vínculos com o passado”. 63 TYTECA, [1958] 2005, p. 75), sendo que estes devem ser referentes a uma realidade objetiva. Portanto, para Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 75), citando H. Poincaré, o fato designa “o que é comum a vários entes pensantes e poderia ser comum a todos”, consequentemente, ele goza de um acordo universal. Para que se verifique isso, é preciso estar consciente de algumas particularidades sobre a Torah66. Esta palavra é traduzida por lei, mas não no sentido moderno, pois “Israel acreditava que a Torá (idêntica com o Pentateuco67) foi entregue já pronta a Moisés da parte de Deus. Deus se fizera responsável por ela, e, além disto, ela é eternamente obrigatória para Ele” (COENEN; BROWN, 2000, V. I, p. 1156). Sobre a relação e concepção que os judeus tinham da lei na época de Jesus, Coenen e Brown (2000, V. I, p. 1156) comentam: No judaísmo dos dois últimos séculos a.C., e nos tempos de Jesus, nomos se empregava no sentido absoluto: a lei era coisa absoluta em si mesma independente da aliança68. É cumprimento da lei que determina se alguém é membro do povo de Deus. Israel já não considerava sua posição especial como sendo o resultado da auto-revelação viva de Javé no decurso de sua história; pelo contrário, considerava que esta dignidade baseava-se na obediência daqueles que eram justos conforme os termos da lei (Fariseus) [...]. A totalidade da vida podia ser regulada pela lei, e é isto mesmo que aconteceu. No judaísmo helenístico em especial, a lei chegou a ficar lado a lado com a sabedoria, que, de forma semelhante, também veio dotada de hipóstase. Quanto a isto, a lei foi separada da situação histórica original, a saber da aliança dada por Deus. Além disto, agora podia ser apresentada como lei universal, i.é, como sendo universalmente válida. Este aspecto era importante no mundo helenístico, onde todo e qualquer sistema de pensamento tinha de entrar em competição apologética com filosofias existentes. Além disto, sua universalidade foi projetada para tempos passados. Alegava-se que os patriarcas já a conheciam, e que de fato, antecedia a totalidade da criação. Os judeus helenizados, por meio desta universalização da lei, desvinculando-a da aliança, podiam lhe dar uma base racional e proclamá-la como filosofia superior [...]. (grifo nosso). A partir dessas considerações, é possível compreender que para aquele auditório o que os mandamentos de Deus diziam constituía um fato não-controverso, isto é, uma premissa 66 Essa palavra foi traduzida do Antigo Testamento em hebraico para o grego na versão LXX (Septuaginta) pelo termo nomos (lei), sendo esta a tradução encontrada em Mateus 5.17 (ton nomon). Coenen e Brown (2000, V. I, p. 1154) afirmam que “Originalmente, torah significava uma “instrução” da parte de Deus, um “mandamento” para uma determinada situação” (grifo do autor). Quando se refere à lei (torah/nomos) ela não significa algo uniforme no Antigo Testamento, podendo se referir tanto ao Pentateuco, os cinco livros primeiros livros do Antigo Testamento tidos como de Moisés, como outras seções do mesmo. Contudo, pode se dizer que no judaísmo rabínico a torah se tornou o cânon dentro do cânon, “a Torá ficou sendo normativa em contraste com as duas outras seções do AT, a saber: os Profetas e os Escritos, que eram considerados meros desenvolvimentos daquilo que já estava presente na Torá” (2000, V. I, p. 1156). 67 Os cinco primeiros livros do Antigo Testamento. 68 Pacto específico que Deus fizera ao povo Judeu, como nação escolhida para benção e salvação, sendo considerado como o povo de Deus. 64 sólida. No entanto, isso não era considerado somente para o auditório, vê-se que o era também para o orador, tanto que ele confirma a irrevogabilidade da palavra de Deus afirmando: “Porque em verdade vos digo: até que o céu e a terra passem, nem um i ou til jamais passará da Lei, até que tudo se cumpra” (Mt 5.18). Portanto, o acordo que estava sendo feito era com um auditório como sendo a encarnação de um universal. A análise da expressão “Porque em verdade vos digo [amén gar légo umin]”69 (Mt 5.17), pode ser adicionada ao argumento de que o orador Jesus tem em mente um acordo com uma universalidade pretendida - mas é importante ressaltar que isso é apenas uma pretensão do orador, ao que o auditório universal está sempre vinculado, de alguma maneira, ao particular. A expressão em verdade é a tradução do grego da palavra amén70, sendo que esta palavra em grego “é uma transliteração do Heb71. ´amen, que deriva de aman”, cujo significado é “mostrar-se firme, digno de confiança, durar; saber-se seguro, ter fé, e assim a palavra significa ‘certo’, ‘verdadeiro’” (COENEN; BROWN, 2000, V. I, p. 110). Ainda em consideração a essa palavra, Coenen e Brown (2000) mostram que “a palavra foi empregada cerca de 25 vezes no AT em ocasiões solenes para confirmar uma maldição ou juramento ao se identificar com ela, para aceitar uma bênção, ou associar-se com uma doxologia” (COENEN; BROWN, 2000, V. I, p. 110). Neste sentido, dizer amém, confirma uma declaração feita por outra pessoa72. É relevante observar que o uso que Jesus faz do amém é apontado como algo pertinente a ele, como característica singular de seu modo de falar (JEREMIAS, 1974). “Jesus empregava o Heb. ‘amém’ para confirmar as palavras que falava em Aram 73., embora existissem frases em Aram. que [ele] poderia ter empregado no lugar desta palavra” (COENEN; BROWN, 2000, 69 Hendriksen (2001, p. 407) prefere a tradução “Eu solenemente declaro”, por expressar melhor o sentido de que se está declarando sobre algo que independe do ponto de vista alheio para se creditar como fato, ele é sob o ponto de vista de quem o pronuncia, no caso, Jesus que faz uso constate dessa expressão nos evangelhos. 70 Quanto ao uso do amém no hebraico Hendriksen (2001, p. 407) acrescenta algumas informações afirmando que “ele se refere, em geral, às ideias de verdade e fidelidade. Em sua forma simples (Qal), o verbo significa ser fiel, seguro. Na forma reflexiva simples (Noph´al): ser feito firme; ser confirmado, estabelecido. Em sua forma causal (Hiph´il): estar firme, considerar como digno de confiança, crer” (grifos do autor). 71 Hebraico. 72 Por isso se dá o uso corrente do termo amém como sinônimo de assim seja. Coenen e Brown discorrem: “‘Amém contém um juramento, a aceitação de palavras, e a confirmação de palavras’. Qualquer pessoa que dissesse “amém” a uma oração ou doxologia tornava-se dele próprio. Qualquer pessoa que dissesse “amém” a uma adjuração, bênção ou maldição tornava-se obrigatória para ela mesma” (COENEN; BROWN, 2000, V. I, p. 110). 73 Aramaico. 65 V. I, p. 111). Essa forma incomum74 de Jesus falar, comentam Coenen e Brown (2000, V. I, p. 111), “foi preservada nos evangelhos mais antigos, por causa do desejo de conservar e transmitir fielmente as suas palavras”. Isso denota um status de confiança e autoridade assumido pelo mesmo, dado que Jesus, ao introduzir “suas palavras com um “amém”, marcou-as como certas e dignas de confiança. Ficava firme ao lado delas e tornava-as obrigatórias para Ele mesmo e seus ouvintes” (COENEN; BROWN, 2000, V. I, p. 111, grifo do autor). Desse modo, no texto em questão, a palavra amém implica o sentido de veracidade e solenidade, que em algumas versões do texto neotestamentário, como a usada nesse trabalho, opta por traduzi-la pela expressão “[...] em verdade [...]” (Mt 5 18). Diz-se isso porque a palavra amém, nesse contexto, ou mesmo essa expressão quando em sua ocorrência na fala de Jesus, introduz uma declaração que, segundo Hendriksen (2001, p. 407), não apenas se contenta em expressar uma verdade ou fato – como, por exemplo: 2 x 2 = 4 seria um fato – “mas um fato solene, importante, que em muitos casos está em discrepância com a opinião ou esperança popular, ou, pelo menos, causa alguma surpresa” (HENDRIKSEN, 2001, p. 407); o que em argumentação tem-se um estatuto de um fato, firmando com uma universalidade garantida. “Trata-se evidentemente, nesse caso, não de um fato experimentalmente provado, mas de uma universalidade garantida e de uma unanimidade que o orador imagina, do acordo de um auditório que deveria ser universal”, afirmam Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 35). Com isso, tem-se, nessa situação, uma argumentação que não visa apenas a um auditório concreto particular, mas visa a todos os seres humanos que são criaturas de Deus. Essa argumentação “deve convencer o leitor [ouvinte] do caráter coercivo das razões fornecidas, de sua evidência, de sua validade intemporal e absoluta, independente das contingências locais ou históricas” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 35), o que, de fato, é declarado em relação à Lei (Mt 5. 18). Por isso, verifica-se que o objeto de acordo central do sermão é referente a um fato, e isso não invalida ter-se no sermão acordos referentes aos valores. O objeto de acordo referente aos valores está na categoria do preferível, portanto busca a adesão de grupos particulares. Somado aos valores, estão as hierarquias e os lugares do 74 Coenen e Brown (2000, V. I, p. 111) asseguram que não existem evidências dos tempos de Jesus que outras pessoas confirmassem assim suas palavras com amém. 66 preferível. Assim Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 84) esclarecem essa noção afirmando que “estar de acordo acerca de um valor é admitir que um objeto, um ser ou um ideal deve exercer sobre a ação e as disposições à ação uma influência determinada, sem se considerar, porém, que esse ponto de vista se impõe a todos”. Os valores estão, de alguma maneira, presentes em todas as argumentações, mesmo aquelas concernentes aos raciocínios de ordem científica, asseguram Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 84). Lança-se mão deles para motivar o ouvinte a fazer algumas escolhas em vez de outras, ademais eles são utilizados também para justificar tais escolhas de maneira que elas se tornem aceitáveis e aprovadas por outrem. Perelman (1993, p. 45) apresenta um conceito operatório de valor: “[...] o termo valor se aplica sempre que tenhamos de proceder a uma ruptura da indiferença ou da igualdade entre as coisas, sempre que uma delas deva ser posta antes ou acima de outra, sempre que ela é julgada superior e lhe mereça ser preferida”. A partir dessas concepções, pode se verificar que a argumentação de Jesus, no Sermão do monte, inicia-se com as bem-aventuranças (Mt 5. 3 10), o que se poderia chamar de valores do reino dos céus, dado que ele é o porta voz do “evangelho do reino75 [dos céus]” (Mt 3. 23). Porquanto, ele está anunciando esses valores que, de alguma maneira, divergem dos valores cultivados e anunciados pelos mestres de então. É importante notar ou retomar a ideia de que a maior parte dos ouvintes desse sermão estava à margem da sociedade e não se encaixava no padrão da religião, ou não era o tipo de pessoa que, de modo geral, social e religiosamente, era considerada bem-aventurada. A partir desse plano, é formidável observar que Jesus inicia o seu discurso afirmando que os bemaventurados76 são “os humildes [pobres] de espírito”77, “os que choram”, “os mansos”, “os 75 A expressão reino dos céus remete à ideia de reino como esfera de influência, assim pensavam os antigos, não meramente como extensão territorial. O que se pode dizer que o reino de Deus é influência dinâmica de Deus operando no mundo (RICHARDS, 2008, p. 24). 76 A expressão bem-aventurado é a tradução de makarious, que é, na Septuaginta, a tradução da palavra hebraica ´asre, que denota, segundo Richards (2008, p. 25): “Oh, as bênçãos de...! (...) é uma exclamação de aprovação, uma afirmação do louvor gracioso de Deus”. A melhor tradução para o português é com o uso do termo feliz, contudo o sentido ressoa muito mais amplo aos ouvintes da época, dado que essa palavra é tomada do Antigo Testamento remetendo às bênçãos de Deus. 77 O termo traduzido para o português pobre ou humilde é em grego ptochoí, por ser assim, essa palavra no sentido básico é designação de um tipo de pobreza extrema, comparada ao de um mendigo, de uma pessoa que depende de outra para seu sustento. De outro modo, essa mesma palavra também pode significar um pobre sem denotar paupérrimo (HENDRIKSEN, 2001, p. 376, em nota). Contudo observa-se que o orador não se refere a qualquer pobre, mas “o pobre de espírito” (ptochoi tou pneúmati]. Não interessa a esse trabalho entrar no sentido que a expressão pode querer dizer exatamente, contudo interessa afirmar que isso pode ter de alguma forma chegado de forma positiva no ouvido dos ouvintes de Jesus. 67 que têm fome e sede de justiça”, “os misericordiosos”, “os limpos de coração”, “os pacificadores” e “os perseguidos” (Mt 5. 3-10). Ou seja, no reino dos céus, os bemaventurados são as pessoas que compartilhavam, das mais variadas formas, daqueles valores. Hendriksen (2001, p. 369) comenta: O que o Orador está fazendo é nada menos que isto: ele está afirmando que, ainda que todos considerem que seus seguidores são os mais infelizes e desafortunados, e ainda que eles mesmos de forma alguma estejam sempre cheios de otimismo com referência à sua própria condição, diante do céu e pelas normas do reino eles são realmente felizes; sim, “felizes” no sentido mais elevado do termo. Pode-se verificar que esse discurso inicia-se com um tom emocional bem acentuado. Isso porque esse orador está afirmando que bem-aventurados são aqueles que são encarnação dos valores ali anunciados. Portanto, de certo modo, os seus ouvintes podem ter se identificado com tais descrições, sendo isso ideal para o estabelecimento de um acordo inicial do orador com auditório por meio daqueles valores. Cada bem-aventurança78 é composta por, basicamente, três partes: uma é atribuição de bemaventurança (bem-aventurado); a segunda descreve a pessoa a quem se aplica a atribuição ou o valor com o qual o ouvinte pode se identificar (“os humildes [pobres] de espírito”, “os que choram” (Mt 5.3,4) etc.), sendo esta parte a que se refere ao que se pode chamar de valores; a terceira parte refere-se a uma declaração da razão dessa bem-aventurança (“porque deles é o reino dos céus”, “porque serão consolados” (Mt 5.3,4) etc.) (HENDRIKSEN, 2001, p. 369). Dessa maneira, observa-se que são oito os valores expressos nas bem-aventuranças, isso porque a nona bem-aventurança (Mt 5. 11) pode-se considerar como uma forma de aplicação da oitava (Mt 5. 10). As oito são apresentadas em terceira pessoa - exemplo: “Bemaventurados os humildes de espírito, porque deles é o reino dos céus” (Mt 5. 3) -, porém, não 78 Sobre o gênero típico das bem-aventuranças pode-se dizer que elas eram utilizadas no âmbito judeu nas chamadas parêneses sapiencial, como expressão de certo nexo, chamado por Luz (1993, p. 291) de ação-paixão (acción-pasión). Elas eram normalmente formuladas em terceira pessoa sem ter um destinatário direto. Contudo, o próprio Jesus, no texto em questão, procede uma mudança que é o uso na segunda pessoa quando aplica a mesma: “Bem-aventurado sois vós quando, por minha causa, vos injuriarem (...)” (Mt 5. 11). Além disso, o uso da apódosis (referente à parte final) de futuro com sentido escatológico era normal. Além da mudança no uso da segunda pessoa, outras foram procedidas no discurso de Jesus, quais sejam: o uso das seriações; e o fato de a prótasis (a formulação inicial) ser construída paradoxalmente pelo que se pode depreender que o texto chama de bem-aventurados os que sabiam esperar. Luz (1993, p. 291) assegura que as bem-aventuranças apresentadas por Jesus em Mateus se aproxima do uso linguístico do gênero sabedoria. 68 fica claro no texto que elas tenham sido direcionadas para algumas pessoas de maneira específica. Apenas a nona vem empregada em segunda pessoa, sendo possivelmente direcionada especificamente aos discípulos: “Bem-aventurados sois quando por minha causa, vos injuriarem, e vos perseguirem, e, mentindo, disserem todo mal contra vós” (Mt 5. 11). Pode-se depreender que a descrição desses valores e a seriação das bem-aventuranças são feitas pelo orador com a finalidade de estabelecer uma comunhão do seu auditório, que é heterogêneo, sobre modos particulares de agir, “vinculada à ideia de multiplicidade de grupos” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 84). Outro aspecto relevante é o fato de os valores poderem ser abstrato e concreto. Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 87) conceituam como valor concreto “o que se vincula a um ente vivo, a um grupo determinado, a um objeto particular, quando os examinamos em sua unicidade”. Já o valor abstrato tende à universalidade e independe da circunstância. Mesmo o Tratado da argumentação não deixando esta noção bem clara, mostra que valores concretos são utilizados para fundarem os valores abstratos, e assim também o é inversamente. Com isso, observa-se que os valores do reino dos céus, apresentados por Jesus, podem ser tanto abstratos, já que são características que pessoas precisam encarnar por dizerem respeito às características do reino eterno de Deus, como também podem ser concretos, ao serem encarnados por pessoas. Se se partir da compreensão de que Jesus não está se dirigindo meramente para pessoas presentes, que seria encarnação dos valores: pobres de espírito, manso etc., pode-se afirmar que são valores abstratos. Porém, esses valores ao mesmo tempo fundam valores concretos dado que pessoas ali podiam possuir tais valores. Essa correspondência entre as duas noções de valores se confirma na análise do texto ao se observar a última bem-aventurança: “Bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus” (Mt 5. 10), que é imediatamente aplicada pelo que Jesus declara: “Bem-aventurados sois quando, por minha causa, vos injuriarem, e vos perseguirem, e, mentindo, disserem todo mal contra vós” (Mt 5.11). A noção de justiça, no Sermão do monte, é um valor que é abstrato, no entanto, de acordo com o conselho do orador Jesus, a justiça precisa ser encarnada (“Porque vos digo que, se a vossa justiça não exceder em muito a dos escribas e fariseus, jamais entrareis no reino dos 69 céus”, Mt 5.20), por isso, é um valor abstrato que funda um valor concreto cuja manifestação o orador reclama para a vida de seus ouvintes e sobre a qual passa a ensinar no restante do sermão. Após Jesus fazer essa declaração, ele passa a fazer a revisão de outros valores, que pelo encadeamento argumentativo parecem estar ligados à noção de justiça concebida pelo orador, a qual para se viver, faz-se necessário compreender o sentido dos valores que o orador Jesus se propõe em ampliar ou revisar, uma vez que ele atribui a esses valores um sentido ou enfoque diferente do dado pelos antigos com os quais os mestres contemporâneos seus comungavam (Mt 5. 21-48). Na maioria das vezes esse enfoque é redirecionado para a atitude interior e não para a demonstração externa do ato, como faziam os escribas e fariseus. Antes de se analisar alguns desses valores, é preciso considerar a problemática abordada por Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005) em relação à noção de valores universais e em relação à noção de verdade ou fato. [...] um mesmo enunciado, conforme o lugar que ocupa no discurso, conforme o que enuncia, o que refuta, o que corrige, poderá ser compreendido como relativo ao que se considera comumente fato ou ao que se considera valor. Por outro lado, o estatuto dos enunciados evolui: inseridos num sistema de crenças, que se pretende valorizar aos olhos de todos, alguns valores podem ser tratados como fatos ou verdades (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, P. 85). Considerando-se que Jesus estabelecera um acordo tendo por objeto um fato - a Lei (Mt 5.18) - e que está argumentando em favor de corrigir alguns erros de interpretação e aplicação feitos pelos antigos em relação aos mandamentos dessa Lei, chega a assegurar: “Aquele, pois, que violar um destes mandamentos, posto que dos menores, e assim ensinar aos homens, será considerado mínimo no reino dos céus; [...]” (Mt 5.19). Considerando-se isso, é possível assegurar que, nos enunciados de Mt 5. 21- 48, Jesus está tratando questões que podem gozar da noção de verdade; até porque elas emanam da Lei. No entanto, como a correspondência entre valores particulares com o universal, bem como com a noção de verdade, não são simples de determinar, prefere-se adotar a noção de valores universais para enquadrar a respeito do que Jesus está tratando nos enunciados conhecidos como as antíteses (Mt 5. 2148), pois, na medida em que ele explica e argumenta a respeito das verdades - “não matarás” (Mt 5.21-26); “não adulterarás” (Mt 5. 27-32); “não jureis falso, mas cumprirás rigorosamente para com o Senhor os teus juramentos” (Mt 5. 33-34); “Olho por olho, dente por dente” (Mt 5. 70 38-42); “Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo” (Mt 5. 43-48) - ele amplia a noção delas e, de certa forma, traz novas aplicações não praticadas por seus ouvintes. Por ser assim, ele está argumentando em favor da modificação da interpretação feita pelos antigos a respeito do sistema de verdades que emanam da Lei. E mesmo que sob a prerrogativa de resgatar o real sentido das verdades dos mandamentos, quando o orador precisa apresentar argumentos para fortalecer seu ponto de vista, o estatuto de verdade ou de fato está em jogo, porquanto, não há objeção em se considerar como valores universais as noções apresentadas por Jesus nos enunciados em análise. Como dito acima, tais valores estão ligados à Lei e, por esta razão, Jesus ao abordá-los, parte da concepção que seu auditório já tinha daqueles valores. Por isso, inicia com a expressão “Ouvistes que foi dito aos antigos [...]” (Mt 5, 21, 27, 33, 38, 43)79, e prossegue ampliando a noção dos valores, reinterpretando-os, e, ao mesmo tempo, de alguma maneira, reafirmandoos, isso fica claro com a expressão “eu, porém, vos digo” (Mt 5. 22, 28, 34, 39, 44, grifo nosso), pelo que faz uma antítese ao entendimento que se tinha de tais valores. Quanto à correspondência entre valores particulares e universais, Perelman e OlbrechtsTyteca ([1958] 2005, p. 86) discorrem: Os valores particulares sempre podem ser vinculados aos valores universais e servir para especificá-los. O auditório real poderá considerar-se tanto mais próximo de um auditório universal quanto mais o valor particular parecer apagar-se ante ao valor universal por ele determinado. É, portanto, na medida em que são vagos que esses valores se apresentam como universais e pretendem um estatuto semelhante ao dos fatos. Na medida em que são precisos, apresentam-se simplesmente como conformes às aspirações de certos grupos particulares. É possível também afirmar que Jesus, ao utilizar especificações dos valores, não fez com que eles perdessem o estatuto de valores universais ou mesmo de verdade procedente dos mandamentos. Contudo, pode-se entender as especificações como estratégias para persuadir seu auditório real. Quanto a isso, os proponentes do Tratado da argumentação discorrem: “seu papel é, pois, justificar escolhas sobre as quais não há acordo unânime, inserindo essas escolhas numa espécie de contexto vazio, mas sobre o qual reina um acordo mais amplo” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 87). 79 No primeiro enunciado ele profere “Ouvistes o que foi dito aos antigos” (é possível a tradução “pelos antigos”), contudo nos outros versículos aparece apenas “ouvistes que foi dito (...)”, ficando subtendido o que já fora enunciado: “aos antigos”, que só volta a aparecer no versículo 33. 71 Para melhor compreender como se dá a argumentação a partir da noção de valores, lança-se mão de outro conceito operatório de Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 90), que é a noção de hierarquias. Esses autores asseguram que a argumentação não só se esteia em valores, mas também em hierarquias. “Por certo essas hierarquias seriam justificáveis em virtude de valores, porém, mais comumente, só se tratará de buscar-lhes um fundamento quando for o caso de defendê-las; amiúde, aliás, ficarão implícitas [...]” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 90). Percebe-se que o orador Jesus lança mão da noção explícita de hierarquias para fortalecer o sentido mais amplo e o enfoque que ele dá à questão do homicídio, pois se era dito pelos antigos que quem matasse estaria sujeito a julgamento: “Ouvistes que foi dito aos antigos: Não matarás; e: quem matar estará sujeito a julgamento” (Mt 5. 21), ele, contudo, explicita um outro elemento constituinte do ato homicida, no caso, a ira. Há uma espécie de hierarquização na pena, decorrente desde o ato interior de irar-se, passando por um simples insulto, até o ato verbal de chamar o outro de tolo: “Eu, porém, vos digo que todo aquele que [sem motivo] se irar contra seu irmão estará sujeito a julgamento; e quem proferir um insulto a seu irmão estará sujeito a julgamento do tribunal; e quem chamar: Tolo, está sujeito ao inferno de fogo” (Mt 5.22). Assim ele argumenta em favor de que não merece castigo apenas o ato de matar alguém, todavia o sentimento que pode levar alguém a matar, a ira, que está presente no insulto, no xingamento, podendo chegar até ao homicídio. De igual modo, esse orador lança mão da hierarquia para aprofundar a noção do ato do adultério, porquanto adultério não é apenas a prática sexual, porém há uma hierarquia, pelo que ele mostra: “[...] qualquer que olhar para uma mulher com intenção impura, no coração, já adulterou com ela” (Mt 5. 28). Desta forma, o adultério nasce na intenção impura do coração, porquanto há uma hierarquização da intenção em relação ao ato. Para reforçar essas hierarquias, bem como os valores, Jesus lança mão do que se pode chamar de lugares (tópoi). Para Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 94), o orador que se utiliza de argumentos baseados em lugares tem a finalidade de fundamentar ou aumentar a intensidade da adesão que valores ou hierarquias suscitam, sendo, portanto, indispensáveis à argumentação. 72 Ele faz isso tanto em relação à noção de homicídio, quanto à noção de adultério. Quanto à noção de homicídio, ele recorre ao seguinte lugar-comum, ilustrando com um caso de litígio por causa de uma dívida: “Entra em acordo sem demora com o seu adversário, enquanto estás com ele a caminho, para que o adversário não te entregue ao juiz, o juiz, ao oficial de justiça, e sejas recolhido à prisão. Em verdade te digo que não sairás dali, enquanto não pagares o último centavo” (Mt 5. 25, 26). Neste caso, ele trata do fato de que é melhor se pagar com dinheiro do que se pagar na prisão com a privação da liberdade. Desta maneira, este lugar-comum está na ampla categoria de lugares da quantidade, ou seja, são “os lugares comuns que afirmam que alguma coisa é melhor do que outra por razões quantitativas” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 97). Quanto ao lugar-comum utilizado para reforçar a hierarquia sobre a questão do adultério, temse o seguinte: Se o teu olho direito te faz tropeçar, arranca-o e lança-o de ti; pois te convém que se perca um dos teus membros, e não seja todo o teu corpo lançado no inferno. E, se a tua mão direito te faz tropeçar, corta-a e lança-a de ti; pois te convém que se perca um dos teus membros, e não vá todo o teu corpo para o inferno (Mt 5. 29,30). Portanto, ele mostra ser mais vantajoso perder uma parte do corpo do que perdê-lo todo. Isso está vinculado à noção da superioridade do todo sobre a parte, a qual também está na categoria de lugares da quantidade (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 97). Em duas outras antíteses (sobre o juramento - Mt 5. 33 – 37 - e sobre a vingança - Mt 5. 38 42), após as supracitadas, não é facilmente possível identificar a presença de lugares, mas, na última (sobre o amor ao próximo, Mt 5. 43 – 48), pode-se perceber a presença de outro lugar, o da quantidade. Vê-se, portanto, que é mais honroso amar a todos, inclusive o inimigo, do que amar apenas o próximo, ou melhor, o irmão da religião: Ouvistes que foi dito: Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, vos digo: amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem; para que vos torneis filhos do vosso Pai celeste, porque ele faz nascer o seu sol sobre maus e bons e vir chuvas sobre justos e injustos. Porque, se amardes os que vos amam, que recompensa tendes? Não fazem os publicanos também o mesmo? E, se saudardes80 somente os vossos irmãos, 80 O ato de saudar já é uma espécie de consideração pelo outro, que denota na cultura judaica uma certa atitude de amor. 73 que fazeis de mais? Não fazem os gentios também o mesmo? Portanto, sede vós perfeitos como perfeito é o vosso Pai celeste (Mt 5. 43-48, grifo nosso). Outrossim, ao mesmo tempo, pode-se verificar também, nesse enunciado, um outro lugar que seria o da qualidade. Constata-se que o orador argumenta em favor de um ato de amor que não seja igualado ao dos publicanos, nem ao dos gentios, mas ao do Pai celeste que é perfeito: “Portanto, sede vós perfeitos como perfeito é o vosso Pai celeste” (Mt 5. 48). A partir disso, é possível observar um ato único, a presença do lugar da essência, que diz respeito à valorização daquele “que encarna melhor um padrão, uma essência, uma função, é valorizado por isso mesmo” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 106). Neste caso, é possível verificar isso na seguinte parte do argumento utilizado por Jesus: “Portanto, sede vós perfeitos como perfeito é o vosso Pai celeste” (Mt. 5. 48). Sendo assim, a atitude de amor e de saudar as pessoas que não eram da religião é uma forma de encarnação de uma essência, a do Pai celeste, ou seja, a essência da perfeição. Em alguns argumentos seguintes, pode-se notar a presença categórica da hierarquização de alguns valores ligados à vida religiosa e à justiça do reino anunciada por Jesus. O orador diz aos seus ouvintes: “Guardai-vos de exercer a vossa justiça diante dos homens, com o fim de serdes vistos por eles; doutra sorte, não tereis galardão junto de vosso Pai celeste” (Mt 6.1). Deste modo, a hierarquia estabelecida é que a atitude do discípulo deve ser feita com a finalidade de agradar primeiramente a Deus e não aos homens, porquanto esse é o fundamento ou o acordo do mestre palestino que hierarquiza outros valores. Tais hierarquias estão nos versículos seguintes que dizem respeito ao ato de se fazer as práticas religiosas centradas não meramente no ato externo ou público (esmolas, orar, jejuar, Mt 6. 2-4, 5-8, 16-18), mas sim com a atitude do coração direcionada ao Pai celeste, sendo este o recompensador das ações humanas. Em alguns casos, cumpre apenas sumariar os exemplos dados pelo orador apontando objetivamente as respectivas referências no texto em estudo. Quanto ao valor de dar esmola (Mt 6. 2-4), Jesus reafirma-o, mas estabelece uma hierarquia diferente que dispensa a atitude de mostrar publicamente que se está praticando tal ato para meramente ser visto pelos homens: “Quando, pois, deres esmola, não toques trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas, nas sinagogas e nas ruas, para serem glorificados pelos homens. Em verdade vos digo que eles já receberam a recompensa.” (Mt 6. 2). Há, assim, a incompatibilidade entre querer ser reconhecido pelos homens como doador de esmolas e ao mesmo tempo receber o 74 reconhecimento ou a recompensa de Deus por tal ato. Portanto, por haver essa incompatibilidade que há a hierarquização, quanto a isso Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 93) asseguram isto: “sentir obrigado a hierarquizar os valores, seja qual for o resultado dessa hierarquização, provém do fato de a busca simultânea desses valores pode criar incompatibilidades, obrigar a escolhas”. De igual modo, Jesus ao ensinar sobre a oração - “E, quando orardes, não sereis como os hipócritas; porque gostam de orar em pé nas sinagogas e nos cantos das praças, para serem vistos dos homens [...]” (Mt 6. 5-8) -, a hierarquização segue a mesma lógica do exemplo anterior; bem como sobre o ato de jejuar (Mt 6. 16-18) ele dá a mesma ênfase na prática do ato com o fim de ser visto pelos homens. Quanto ao acúmulo de riquezas (tesouros) (Mt 6. 19 - 21), pode-se dizer que há também um hierarquia, apontando a necessidade de não se acumular tesouros na terra “onde a traça e a ferrugem corroem e onde ladrões escavam e roubam” (Mt 6. 19), mas, no céu, “onde traça nem ferrugem corrói, e onde ladrões não escavam nem roubam” (Mt 6. 20). Ademais, esse valor é reforçado por um lugar comum, qual seja o fato de se preferir o duradouro ao perecível, porquanto um lugar da quantidade. Jesus hierarquiza a prioridade de se buscar o reino dos céus e a sua justiça em primeiro plano do que as coisas materiais, como a comida e a bebida e a vestimenta (Mt 6. 25 – 34): “[...] buscai, pois, em primeiro lugar, o reino e a sua justiça [...]”. Para reforçar tal adesão, ao final do argumento, ele lança mão dos lugares do existente afirmando a superioridade do que existe, sobre o possível, o eventual, afirmando: “Portanto, não vos inquieteis com o dia de amanhã, pois o amanhã trará os seus cuidados; basta ao dia o seu próprio mal” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 106). Por meio da verificação da prevalência de certos lugares na argumentação jesuânica, é possível fazer uma espécie de redução desses lugares e agrupá-los mostrando quais argumentos o orador imagina serem os mais persuasivos para seu auditório, portanto uma forma de, por meio dessa imagem, caracterizar o auditório desse orador como tendo um espírito clássico ou romântico. Como prevalece o uso de lugares da quantidade no sermão em análise, esses lugares, segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005), estão ligados ao espírito clássico que, por sua vez, tende a convencer o auditório universal. No entanto, o apelo aos argumentos da 75 quantidade pode também dizer respeito à tentativa de se mudar uma ordem estabelecida (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 109). Os lugares do existente bem como os da essência utilizados no discurso em análise podem vincular-se aos lugares da quantidade. Assim, Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 111) asseguram que “o que é universal e eterno, o que é racional e comumente válido, o que é estável, duradouro, essencial, o que interessa ao maior número, será considerado superior e fundamento de valor entre os clássicos”. Os autores ainda ressaltam que é pertinente ao espírito clássico “justificar a importância que conferem aos lugares da qualidade apresentando-os como um aspecto da quantidade” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 111). Dessa maneira, esse trabalho avança na análise buscando compreender a relação entre convencimento e persuasão subjacente à questão dos auditórios particular e universal. Porquanto, por meio da análise dos efeitos da argumentação, bem como do gênero retórico do mesmo e das técnicas argumentativas elencadas por Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005) é que essa relação vai ficando mais nítida, possibilitando, por assim dizer, compreendêla melhor. 3.2.3 O GÊNERO EPIDÍCTICO E SEUS EFEITOS A Nova Retórica contempla o duplo efeito da argumentação, qual seja a adesão tanto intelectual quanto a ação, ou criar uma disposição para esta. Porquanto, a eficácia de uma argumentação dá-se quando ela consegue intensificar a adesão, de maneira que se “desencadeie nos ouvintes a ação pretendida (ação positiva ou abstenção) ou, pelo menos, crie neles uma disposição para a ação, que se manifestará no momento oportuno” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 50). Percebe-se, portanto, que o Tratado da argumentação vem romper com a cisão entre a ação sobre o entendimento e a ação sobre a vontade, como se tivesse tratando de coisas distintas, ou “a primeira como pessoal e intemporal e a segunda como totalmente irracional” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 52, 53). Por ser contrário a essa forma de conceber a argumentação, a nova retórica busca tratá-la em seus efeitos práticos: 76 “voltada para o futuro, ela se propõe provocar uma ação ou preparar para ela, atuando por meios discursivos sobre o espírito dos ouvintes” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 53), fato que contempla as duas ações, sobre o entendimento e sobre a vontade, como complementares. Logo a Nova Retórica examina sob um novo ponto de vista o gênero oratório epidíctico. Os discursos epidícticos são uma parte central na arte de persuadir, afirmar isso significa romper com a noção que os antigos tinham desse gênero vinculando-o meramente ao espetáculo, “visando ao prazer dos espectadores e à glória do autor, mediante a valorização das sutilezas de sua técnica” (PERELMAN, [1989] 2004, p. 67). Por outro lado, isso significa dizer que esse gênero também está vinculado à noção de que a intensidade da adesão que se tem de obter vai além dos resultados meramente intelectuais; destarte, o orador, ao usar o gênero epidíctico, pode não o utilizar apenas para mostrar que uma tese é mais provável que outra, contudo pode fazê-lo com a finalidade de reforçar a proposição até que a ação, que essa deveria desencadear, seja efetivada (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 54, 55). Quanto a isso, observa-se alguns elementos no discurso de Jesus em estudo que apontam a intenção do mesmo em utilizar-se de alguns argumentos para defender determinadas proposições e reforçá-las de modo a desencadear a ação pretendida nos seus ouvintes. Vê-se que, ao final do sermão, o orador faz um apelo à prudência de se ouvir suas palavras e praticálas (Mt 7. 24-27)81; por outro lado, ele aponta a insensatez de não fazê-lo. Com isso verificase que seu discurso não se destina tão somente ao intelecto, mas o orador preocupa-se com a ação de seus ouvintes a partir de seu discurso. Finalizar o discurso com tal advertência revela por parte do orador a intenção persuasiva com vistas à ação, algo inerente à argumentação e ao gênero epidíctico definido por Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005). Entretanto, esse apelo direto à ação não se dá somente no final do sermão, pois em todo o discurso o orador palestino convida seu auditório à ação. Ele diz aos seus discípulos: “Assim brilhe também a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras [...]” (Mt 81 “Todo aquele, pois, que ouve estas minhas palavras e as pratica será comparado a um homem prudente que edificou a sua casa sobre a rocha; e caiu a chuva, transbordaram os rios, sopraram os ventos e deram com ímpeto contra aquela casa, que não caiu, porque fora edificada sobre a rocha. E todo aquele que ouve estas minhas palavras e não as pratica será comparado a um homem insensato que edificou a sua casa sobre a areia; e caiu a chuva, transbordaram os rios, sopraram os ventos e deram com ímpeto contra aquela casa, e ela desabou, sendo grande a sua ruína”. 77 5. 16); ele fala sobre a necessidade da prática de uma justiça superior à dos fariseus (Mt 5. 20), sobre a qual ele passa a ensinar. No sermão em questão, percebe-se que o orador ensina como seu auditório deve ou não praticar determinadas ações, ou ele faz um convite à abstenção, ao que diz: “Guardai-vos de exercer a vossa justiça diante dos homens [...]” (Mt 6. 1); “Quando, pois, deres esmola, não toques trombeta diante de ti [...]” (Mt 6. 2); “E, quando orardes, não sereis como os hipócritas [...]. Tu, porém, quando orardes, entra no teu quarto e, fechada a porta, orarás ao teu Pai [...]” (Mt 6. 5, 6). Assim avultam as vezes que Jesus deixa perceber sua intenção de que se pratique o que ele está ensinando, tanto no sentido de uma ação positiva ou abstenção a fazer alguma coisa. Pode-se verificar que o Sermão do Monte é um discurso epidíctico. Não aquele que parecia prender-se mais à literatura do que à argumentação, mas na perspectiva de que esse gênero oratório serve para “reforçar uma disposição para a ação ao aumentar a adesão aos valores que exalta” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 55, 56). Sendo assim, o orador Jesus exalta ao mesmo tempo em que critica e completa (aprofunda) alguns valores ligados à vida de seu auditório, sendo, portanto, sobre o homicídio ou o ódio (Mt 5.21-26), sobre o adultério (Mt 5. 27-32), sobre o juramento (Mt 5. 33-34), sobre a vingança (Mt 5. 3842), sobre o amor ao próximo (Mt 5. 43-48). No entanto, não são apenas esses valores, já que há outros trabalhados em seu discurso que estão ligados à prática de dar esmolas (Mt 6. 2-4), da oração (Mt 6. 5-8), do jejum (Mt 6. 16-18) etc. Assim, no discurso epidíctico, “o orador procura criar uma comunhão em torno de certos valores reconhecidos pelo auditório, valendose do conjunto de meios que a retórica dispõe para amplificar e valorizar” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 57). Uma característica singular do orador Jesus é que ele emprega, no texto em análise, muitos procedimentos82 da arte literária em seu discurso, recursos esses pertinentes à epidíctica, dado que eles contribuem para promover a comunhão do auditório. Quanto a isso, Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 57) asseguram que “é o único gênero que, imediatamente, faz pensar na literatura [...], o que corre mais risco de virar declamação, de tornar-se retórica, no sentido pejorativo e habitual da palavra”. Quanto às características desse gênero, os proponentes da Nova Retórica dizem mais: 82 Esses elementos serão analisados mais à frente como estratégias argumentativas. 78 Não receando a contradição, nele o orador transforma facilmente em valores universais, quando não em verdades eternas, o que, graças à unanimidade social, adquiriu consistência. Os discursos epidíctico apelarão com mais facilidade a uma ordem universal, a uma natureza ou a uma divindade que seriam fiadoras dos valores incontestes e que são julgados incontestáveis. Na epidíctica, o orador se faz educador (PERELMAN; OLBRECHTSTYTECA, [1958] 2005, p. 57). O discurso epidíctico, de igual modo toda educação, visa mais ao aumento da adesão ao que já é aceito do que a mudança nas crenças. Assim, mostrou-se que Jesus parte de um acordo sobre o cumprimento ou a validez dos mandamentos da Lei (Mt 5. 17-19); pois, o que ele faz é aprofundar o entendimento de seus ouvintes a respeito dos valores provenientes desses mandamentos, ao mesmo tempo em que busca orientá-los sobre as más interpretações e aplicações ensinadas pelos fariseus, trazendo à luz uma justiça superior à praticada e à ensinada pelos rabinos da época. Mesmo que a epidíctica não seja o lugar da controvérsia, isso não significa dizer que o orador não pode tocar em assuntos que soem controversos ao seu auditório. No entanto, como educador, para fazê-lo, faz-se necessário que ele usufrua de uma confiança suficiente, procedendo, por sua vez, “com o auxílio de argumentos a que Aristóteles chama didáticos e que os ouvintes adotam porque ‘o mestre disse’” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 60). Quanto ao fato de o orador de tal gênero precisar gozar de certa confiança que advém das qualificações para tomar a palavra, já verificamos anteriormente83 que Jesus as tem, bem como ele não é inábil no uso das palavras. Destaca-se que o discurso epidíctico não visa, em primeiro plano, a valorização do orador, mas visa a criação de certa disposição entre os ouvintes, pelo que, segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 60), é possível aproximá-lo do pensamento filosófico. Perelman ([1969] 2004, p. 68) assegura que, se o gênero epidíctico coloca quem o pronuncia em destaque, isso não é mais do que uma consequência do discurso, porém “ao querer transformar isso na própria meta do discurso, corre-se o risco de expor-se ao ridículo”. Ademais, a epidíctica releva a ação exercida pelo discurso sobre a integralidade dos ouvintes. E como toda argumentação é substituta da força material, da coerção, assim também ela é “uma ação que tende sempre a modificar um estado de coisas preexistente. Isso é verdade, até 83 Na seção 2.2.1 O Contato do Orador com seu Auditório. 79 no que concerne ao discurso epidíctico” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 61). Por conseguinte, verifica-se, a partir da reação dos ouvintes ao final do sermão, que eles - em algum sentido - já não eram mais os mesmos, chegando a compararem a eficácia do discurso ouvido em relação aos discursos de outros mestres da Lei. Quanto a isso, Mateus narra que “quando Jesus acabou de proferir estas palavras, estavam as multidões maravilhadas da sua doutrina; porque ele as ensinava como quem tem autoridade e não como os escribas” (Mt 7. 28,29). Verifica-se que o discurso do orador Jesus, no Sermão do monte, tem fortes características educativas, porém isso não invalida a ênfase nova dada por ele sobre valores já consagrados socialmente que repousa sobre determinados acordos estabelecidos e aceitos por seu auditório. Por assim dizer, o que há de revolucionário, talvez, sejam as ênfases novas dadas a respeito de alguns valores, como foi explicitado na seção anterior84. 84 Seção: 3.2.2 “Acordos: convencendo e persuadindo auditórios” 80 4 AS TÉCNICAS ARGUMENTATIVAS DO ORADOR JESUS CRISTO Na análise das técnicas argumentativas, faz-se necessário separar algumas articulações que são partes integrantes de um mesmo discurso que se encaixa num processo argumentativo maior. Fazendo isso, corre-se o risco de incorrer em ambiguidades, dado que alguns argumentos estão imbricados em outros; portanto, alguns esquemas discernidos na análise são hipóteses mais ou menos prováveis (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 212). Na análise das técnicas argumentativas presentes no Sermão do monte, por uma questão de praticidade, os argumentos estão dispostos seguindo a sequência das noções apresentadas no Tratado da argumentação, sendo, dessa forma, retirados da estrutura original os dados para serem agrupados de acordo com o conceito trabalhado. Ao se reconhecer que há alguns argumentos que demandariam um trabalho de explicitação bastante denso para enquadrá-los em determinada categoria conceitual, prefere-se apresentar, nesse trabalho, os argumentos que podem ser verificados de forma mais ou menos explícita no texto analisado. 4.1 OS ARGUMENTOS QUASE-LÓGICOS O Tratado da argumentação filia-se a uma argumentação retórica em que a contradição pode estar presente, dado que o orador busca a intensidade da adesão do auditório. Logo, a argumentação não é coerciva, isso porque, segundo Perelman (2004, p. 77), não há coerção em retórica, diferentemente da lógica, que se poderia chamar de formal. Nisso a lógica diferencia-se da retórica, pois nessa o raciocínio é construído no interior de um sistema supostamente aceito. No entanto, na retórica, a argumentação não se desenvolve no interior de “um sistema cujas premissas e regras de dedução são unívocas e fixadas de maneira invariável” (PERELMAN, 2004, p. 77). Entretanto, isso não invalida a aproximação de possíveis comparações da argumentação com raciocínios formais, lógicos, matemáticos. Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 219) chamam os argumentos que se aproximam da lógica formal de quase-lógicos. As características comparáveis destes argumentos com a demonstração formal dar-se-ão, pois o 81 esquema formal serve de molde à construção do argumento, passando pelo processo de inserção dos dados nesse esquema, tornando-o comparável e aproximável do raciocínio lógico. A força persuasiva do argumento quase-lógico vem da aproximação dos raciocínios incontestados. Contudo, isso não significa privilegiar o raciocínio formal em detrimento da argumentação, muito pelo contrário, asseguram os proponentes do Tratado da argumentação ([1958] 2005, p. 219) que “o raciocínio formal resulta de um processo de simplificação que só é possível em condições particulares, no interior de sistemas isolados e circunscritos”, conforme dito anteriormente. O uso que o orador pode fazer da argumentação quase-lógica pode se dar de maneira mais ou menos explícita. Quando julgar necessário, ele pode utilizar dos raciocínios que se aproximam do formal prevalecendo-se do prestígio do pensamento lógico; quando não, esses podem apenas ser utilizados de forma assessória, de maneira subjacente. O orador pode utilizar de um esquema quase-lógico apresentando a incompatibilidade de um pensamento, uma atitude, ou algo semelhante por parte de quem se pretender persuadir. Segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 222), “a incompatibilidade é sempre relativa a circunstâncias contingentes, sejam estas construídas por leis naturais, fatos particulares ou decisões humanas”. Observa-se alguns usos feitos por Jesus de argumentos baseados nesse molde, até porque “algumas incompatibilidades podem resultar da aplicação em determinadas situações de várias regras morais ou jurídicas, de textos legais ou sacros” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 223). Após Jesus dizer que os perseguidos por causa da justiça e por causa dele eram (são) bemaventurados (Mt 5. 10,11), ele faz a seguinte afirmação: “Vós sois o sal da terra; ora, se o sal vier a ser insípido, como lhe restaurar o sabor? Para nada mais presta senão para, lançado fora, ser pisado pelos homens”. Nesse caso, como assegura Luz (1993, p. 312), “La metáfora ‘sal da terra’ indica solo indirectamente lo que se exige al oyente la sal no es sal para sí, sino que es condimento para el manjar. Del mismo modo, los discípulos no existen para sí mismos, sino para la tierra.”85, o que reforça o ensino de que não importa se os discípulos são 85 “A metáfora ‘sal e terra’ indica só indiretamente o que se exige ao ouvinte, o sal não é sal para si, senão que é condimento para o manjar. Do mesmo modo, os discípulos não existem para si mesmos, senão para a terra.” (tradução nossa). 82 perseguidos, eles devem ser sal para a terra. Nesse caso, apresenta-se uma incompatibilidade dos discípulos não praticarem as obras de justiça que foram chamados por Deus para fazê-las. Para reforçar a adesão ao argumento, de forma mais nítida, Jesus, em seguida, faz uso do mesmo esquema no trecho que segue: Vós sois a luz do mundo. Não se pode esconder a cidade edificada sobre um monte; nem se ascende uma candeia para coloca-la debaixo do alqueire86, mas no velador, e alumia a todos os que se encontram em casa. Assim brilhe a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem a vosso Pai que está nos céus (Mt 5. 14, 15, 16). Portanto, assim como tentar esconder uma cidade edificada em cima do monte é incompatível senão absurdo, de igual modo, acender uma lâmpada para depois abafá-la com um alqueire o é também, pois normalmente a intenção inicial de quem constrói a cidade sobre um monte não é escondê-la - caso o fosse a construiria em outro local -, nem de quem acende a candeia é imediatamente abafar a sua luz até apagar. Desse modo, a compatibilidade do discípulo com o chamado do Pai (Deus) está em ele brilhar a luz, ou seja, anunciar a justiça do reino proclamada por Jesus mesmo e apesar da perseguição -“[...] Bem-aventurados sois quando, por minha causa, vos injuriarem, e vos perseguirem, e, mentindo, disserem todo mal contra vós.” (Mt 5. 10 - 12). Dessa maneira, Jesus argumenta em favor de os discípulos não desanimarem diante da afronta, caso o façam, é incompatível com a convocação feita a eles. Em seguida, infere-se que o orador galileu prevê a objeção por parte de alguns ouvintes e defende-se da possível acusação de incompatibilidade de seu ensino com a Lei ou os Profetas: “Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas; não vim para revogar, vim para cumprir” (Mt 5. 17). Para reforçar seu argumento e continuar sua argumentação, ele estabelece um acordo com seu auditório ao confirmar a irrevogabilidade da Lei: “Porque em verdade vos digo: até que o céu e a terra passem, nem um i ou til jamais passará da Lei, até que tudo se cumpra" (Mt 5. 18). A partir desse acordo, o orador mostra de imediato certo grau de incompatibilidade em relação à Lei por parte daqueles que a violarem: “Aquele, pois, que violar um destes mandamentos, posto que dos menores, e assim ensinar aos homens, será considerado mínimo no reino dos céus; [...]” (Mt 5. 19). Desse modo, ele usa tal esquema argumentativo para 86 Recipiente de medida (LUZ, 1993, p. 313, em nota 35). 83 argumentar contra seus adversários (Mt 5. 20)87 de que ele não está sendo incompatível em relação à Lei, passando, portanto, a os acusar de incompatibilidade. Por conseguinte, em boa parte do sermão, nos capítulos 6 e 7 de Mateus, Jesus condena a atitude hipócrita dos escribas e fariseus cujo objetivo maior estava em receber recompensas (elogios etc.) dos homens ao praticarem suas obras; o que muitas vezes os colocava em conflito com a vontade do Pai celeste por preferir agradar mais aos homens com obras de justiça externas do que com atitude coerente com a justiça de Deus (Mt 6.1)88. Por conta disso, algumas vezes, o orador chama-os de hipócritas (Mt 6. 5, 16; 7. 5), termo que se enquadra na noção de incompatibilidade. Quanto à postura de hipocrisia, Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 226) fazem as seguintes considerações: O hipócrita finge adotar uma regra de conduta conforme à dos outros para evitar ter de justificar uma conduta por ele preferida ou adotada na realidade. Muitas vezes foi dito que a hipocrisia era uma homenagem que o vício presta à virtude: conviria precisar que a hipocrisia é uma homenagem a um determinado valor, aquele que se sacrifica, simulando ao mesmo tempo segui-lo, porque se recusa a confrontá-lo com outros valores. Esse mesmo orador utiliza ainda da força desse molde quase-lógico ao ensinar sobre a tentativa de buscar tanto a riqueza quanto a Deus: “Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de aborrecer-se de um e amar a outro, ou se devotará a um e desprezará ao outro. Não podeis servir a Deus e às riquezas” (Mt 6. 24). Dessa forma, esse argumento é desenvolvido de maneira que a adesão que se busca é a exposta no versículo 33 do mesmo capítulo: “buscai, pois, em primeiro lugar, o seu reino e a sua justiça [do Pai celeste] [...]”. Por fim, Jesus lança mão de mais uma metáfora para ensinar sobre o cuidado que se deve ter para não ser enganado pelos falsos profetas, portanto, ele mostra a incompatibilidade que possibilita identificá-los como tais (Mt 7. 15 – 20). Ele assegura o seguinte: “Pelos seus frutos os conhecereis. Colhem-se, porventura, uvas dos espinheiros ou figos dos abrolhos? Assim, toda árvore boa produz bons frutos, porém a árvore má produz frutos maus” (Mt 7. 16, 17). Tal incompatibilidade do falso profeta é revelada a partir das obras (frutos), que são incompatíveis com a natureza (árvore) do Pai celeste, portanto se conhece, de fato, se alguém é um falso profeta ou não a partir das obras dele. 87 Pode-se perceber que tais acusadores eram os escribas e fariseus, de igual modo estes mesmos passam a ser objeto direto dessa acusação de incompatibilidade com a Lei, dado que Jesus assegura aos seus ouvintes que a justiça deles deveria exceder a de tais mestres e religiosos (Mt 5. 20). 88 “Guardai-vos de exercer a vossa justiça diante dos homens, com o fim de serdes vistos por eles; doutra sorte, não tereis galardão junto de vosso Pai celeste”. 84 Outro esquema quase-lógico identificado no Sermão do monte é o que Perelman e OlbrechtsTyteca ([1958] 2005, p. 233) chamam de ridículo. Os autores do Tratado da argumentação asseguram que o ridículo é aquilo que merece ser confirmado pelo riso. “Uma afirmação é ridícula quando entra em conflito, sem justificação, com uma opinião aceita” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 233), tendo, também, um papel análogo ao que o absurdo desempenha na demonstração. Perelman e Olbrechts-Tyeca asseguram ([1958] 2005, p. 237) que se mede o prestígio de um chefe pela capacidade de ele impor regras que pareçam ridículas fazendo com que seus subordinados admitam-nas. Para se fazer admitir uma regra que se oponha aos fatos ou à razão, é preciso que quem o propõe tenha um prestígio elevado, sobre isso se diz que “um prestígio sobre-humano seria necessário para opor-se aos fatos ou à razão: daí o alcance do credo quia absurdum89” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 237). A partir disso, pode-se perceber que Jesus ataca o que se admitia válido, sujeito a lançar-se ao ridículo ou mesmo ao absurdo ao ensinar que não se deveria mais se exercer a vingança ensinada pelos escribas e fariseus, portanto, não sendo mais a regra “olho por olho, dente por dente90” (Mt 5. 38), ao que ele diz algo que poderia - no primeiro momento - parecer risível ou mesmo ridículo: Eu, porém, vos digo: não resistais ao perverso; mas, a qualquer que te ferir na face direita, volta-lhe também a outra; e, ao que quer demandar contigo e tirar-te a túnica, deixa-lhe também a capa. Se alguém te obrigar a andar uma milha, vai com ele duas. Dá a quem te pede e não voltes as costas ao que deseja que lhe emprestes (Mt 5. 39 - 42). É preciso que fique esclarecido que, por ser algo ensinado pelos fariseus ou meramente pela tradição (Mt 5. 38), Jesus não está se opondo à Lei, contudo aos valores ensinados por esses mestres, o que condiz com o que Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 237) afirmam: “normalmente a argumentação, obra humana, apenas se opõe ao que não é considerado objetivamente válido”. Portanto, para Jesus, e possivelmente para boa parte de seu auditório, aqueles mestres não eram inatacáveis e nem seus ensinos absolutamente indiscutíveis, assim o ensino de Jesus é uma alternativa interpretativa sobre a Lei ao ensino dos mestres de então. 89 “Creio embora seja absurdo” (Tradução nossa). Os fariseus apelavam para o que estava escrito em Êxodos 21. 24, 24 (“Olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferimento por ferimento, golpe por golpe”), que ensina que quem deve aplicar a justiça eram os tribunais civis com o fim de desencorajar a vingança privada, isso pode ser depreendido também a partir de Levíticos 24. 14. Contudo eles ensinavam o oposto, apelando para tais textos para justificar a retribuição e a vingança pessoais. 90 85 No discurso do mestre palestino do primeiro século, é possível identificar mais um recurso quase-lógico utilizado: a regra de justiça. Esse esquema ganha força por recorrer ao mesmo princípio da justiça formal. Segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 248), “a regra de justiça requer a aplicação de um tratamento idêntico a seres ou a situações que são integrados numa mesma categoria”. O uso explícito que esse orador faz da regra de justiça é parte de uma oposição que ele faz ao que era ensinado: “amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo91” (Mt 5. 43). Contrário a tal ensino, ele argumenta em favor da necessidade de amar inclusive os inimigos: “amai os vossos inimigos” (Mt 5. 44); mostra ainda que o Pai celeste “faz nascer o seu sol sobre maus e bons e vir chuvas sobre justos e injustos” (Mt 5. 45). Portanto, ao tratar do amor ao próximo (Mt 5. 43 – 48), ele ensina sobre a aplicação de tal justiça (amor) a todos e não apenas ao próximo ou aos irmãos da religião, mas a todos indistintamente, assim como o Pai celeste o faz (Mt 5. 45, 48). Ao argumentar sobre a necessidade de seus ouvintes não andarem ansiosos pela vida, pelo que comer, beber e vestir (Mt 6. 25 – 34), Jesus recorre mais uma vez à regra de justiça para ensinar o cuidado de Deus sobre a vida deles: “ora, se Deus veste assim a erva do campo, que hoje existe e amanhã é lançada no forno, quanto mais a vós outros, homens de pequena fé?” (Mt 6. 30). Com isso o orador mostra que, se Deus providencia comida para as aves do céu (Mt 6. 26) e veste os lírios do campo (Mt 6. 28), por razões ainda mais fortes aplicará tal justiça sobre os partícipes do reino dos céus. A regra de justiça é aplicada também quando esse orador ensina sobre o ato de pedir 92 alguma coisa a Deus, ao mostrar que, se um filho pedir pão ao pai, ele não o dará uma pedra, ou se pedir peixe, não o dará uma cobra (Mt 7. 9, 10), assim o orador conclui com uma pergunta retórica: “ora, se vós, que sois maus, sabeis dar boas dádivas aos vossos filhos, quanto mais vosso Pai, que está nos céus, dará boas coisas aos que lhe pedirem?” (Mt 7. 11). Isso induzindo o ouvinte a tirar suas próprias conclusões sobre a justiça do Pai celeste. Na sequência, Jesus faz uma afirmação denominada pelos teólogos de a Regra Áurea ou a regra de ouro por ser norteadora das relações interpessoais e ser chave interpretativa de muitos ditos jesuânicos, qual seja: “tudo quanto, pois, quereis que os homens vos façam, 91 Essa segunda parte “odiarás o teu inimigo” não é encontrada em nenhuma parte da Lei, portanto, Jesus está se opondo aos ensinos de alguns fariseus e mestres da época que assim ensinavam (HENDRIKSEN, 2001, p. 438). 92 Tradicionalmente se compreende como o ato de orar a Deus. 86 assim fazei-o vós também a eles, porque esta é a Lei e os Profetas” (Mt 7.12). Esta afirmação se enquadra de maneira bastante explícita na regra de justiça, dado que se pode dela depreender que o mesmo tratamento que alguém queira receber, é preciso também dar. Esse dito ainda pode ser analisado sob o ponto de vista dos argumentos de reciprocidade, os quais “visam aplicar o mesmo tratamento a duas situações correspondentes” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 250), portanto o que calca tal argumento é a noção de simetria. Quanto a isso, Perelman e Olbrechts-Tyteca asseguram que a identificação das situações aplicáveis à reciprocidade é indireta, o que diferencia da regra de justiça que tende a recorrer a situações mais diretas. Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 252), como exemplo de um argumento de reciprocidade, citam o seguinte enunciado considerado por ele como judaico-cristão: “Não faças a outrem o que não gostarias que te fizessem”; por certo, esse enunciado é semelhante ao dito jesuânico supracitado93 (Mt 7. 12), porém, na forma negativa, tal formulação é normalmente atribuída a Confúcio, que, segundo Hendriksen (2001, p. 514) citando o Mahabarata94 (XIII. 5571) é: “Nada faça ao seu próximo que em seguida você não queira que seu próximo faça a você”. Diante disso, tanto o enunciado citado pelos autores da Nova Retórica como a formulação jesuânica podem ser enquadrados na mesma categoria de argumento de reciprocidade. O princípio de reciprocidade pode servir de argumento mesmo quando a situação referida pelo orador seja apresentada como hipótese; isto se de fato o princípio estiver fundamentado numa simetria de situações. Assim, Jesus faz outro uso desse argumento ao ensinar seus ouvintes: “não julgueis, para que não sejais julgados. Pois, com o critério com que julgardes, sereis julgados; e, com a medida com que tiverdes medido, vos medirão também” (Mt 7. 1,2). Dessa maneira, o orador primeiro expõe o princípio de reciprocidade – que é não julgar sob pena de ser julgado - e em seguida ele interroga seus ouvintes “por que vês tu o argueiro no olho de 93 Por ser semelhante, tal enunciado muitas vezes é de fato confundido com o enunciado judaico-cristão de Jesus, tanto que a Igreja antiga aceitava ambas as formulações (LUZ, 1993, p. 545), contudo não há uma formulação com o início negativo no texto bíblico. Essa formulação negativa, segundo Luz (1993, p. 543), aparece em escritos judeu-helenísticos, por exemplo, na Carta de Aristeas, em Eclo (LXX), no livro de Tobias, nos Testamentos dos doze patriarcas e em Filón. Ver nota 6, em Luz (1993, p. 543). Jeremias (1974, p. 249) mostra que a versão que corria no ambiente de Jesus em sua época era de um rabino chamado Hillel (20 a.C), por sua vez, era uma versão negativa do dito. 94 É o dos maiores épicos clássicos da Índia, considerado por alguns como um dos maiores textos sagrados da Índia. 87 teu irmão, porém não reparas na trave que está no teu próprio?”95 (Mt 7. 3). Disto se pode inferir que o orador esteja acusando os escribas e fariseus pela atitude de julgar os outros, ao mesmo tempo em que está ensinando seus ouvintes a não fazerem o mesmo. Na oração ensinada por Jesus, conhecida como a oração do Pai nosso (Mt 6. 9 - 15), é possível verificar o orador recorrendo ao argumento de reciprocidade ao afirmar: “porque, se perdoardes aos homens as suas ofensas, também vosso Pai celeste vos perdoará; se, porém, não perdoardes aos homens [as suas ofensas], tampouco vosso Pai vos perdoará as vossas ofensas” (Mt 6. 14, 15). Dessa maneira, ele aponta para o fato de que o perdão divino para se efetivar no homem precisa da reciprocidade do perdão do homem com seu semelhante. A reciprocidade pode ser explicitada da seguinte maneira: se Deus perdoa o homem, o homem precisa perdoar, caso contrário, Deus não o perdoará, por esse negar a passar adiante o perdão divino para com ele. De uso desse mesmo argumento quase-lógico, Jesus assegura aos seus ouvintes que, se a justiça deles não excedesse a dos escribas e fariseus, eles não entrariam no reino dos céus (Mt 5. 20). Ele identifica a simetria de situações que seus ouvintes poderiam estar, ou seja, ele alerta para o fato de que seus discípulos poderiam cair no mesmo erro dos escribas e fariseus, já que se os mestres da época eram condenáveis por determinadas motivações erradas e atitudes vinculadas a não observância coerente dos mandamentos (Mt 5. 19) que dizem respeito à prática da justiça, de igual modo, seus discípulos e ouvintes poderiam sofrer as mesmas consequências. Nota-se em: “[...] se a vossa justiça não exceder em muito a dos escribas e fariseus, jamais entrareis no reino dos céus” (Mt 5. 20). Outro argumento da categoria quase-lógica utilizado pelo mestre Jesus Cristo são os argumentos em que se pode reconhecer a transitividade. Esta, segundo Perelman e OlbrechtsTyteca ([1958] 2005, p. 257, grifo do autor), é “uma propriedade formal de certas relações que permite passar da afirmação de que existe a mesma relação entre os termos a e b e entre os termos b e c, à conclusão de que ela existe entre os termos a e c”. Assim, classificam-se como relações transitivas as de igualdade, de superioridade, de inclusão e de ascendência. A transitividade que requer demonstrações enquadra-se na estrutura dos chamados argumentos de transitividade quase-lógicos quando se exige dela adaptações, precisões ou 95 “A viga é uma pesada peça de madeira usada em construção como suporte horizontal para travar o madeiramento. A “pequena mancha” ou “argueiro” é uma pequenina farpa de palha ou madeira, e talvez uma minúscula lasca de uma viga” (HENDRIKSEN, 2001, p. 504, grifos do autor). 88 mesmo quando tal transitividade é questionada no âmbito formal. Um exemplo clássico de tal argumento é a máxima “os amigos de nossos amigos são nossos amigos”, por ser assim, a amizade configura-se como uma relação transitiva (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 257). “As relações entre valores são amiúde apresentadas como geradoras de novas relações entre valores, sem que se recorra a outra justificação que não a transitividade” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 259). Por sua vez, Jesus utiliza tal esquema para poder ensinar que merece ser julgado não apenas quem mata, mas quem tem alguma atitude de ira, que pressupõe o sentimento de ódio. A partir do dito jesuânico abaixo, pode-se depreender que o homicídio é a expressão máxima da ira, ou seja, que o homicídio normalmente tem seu nascedouro nela: Ouvistes que foi dito aos antigos: Não matarás; e: Quem matar estará sujeito a julgamento. Eu, porém, vos digo que todo aquele que sem motivo se irar contra seu irmão estará sujeito a julgamento; e quem proferir um insulto a seu irmão estará sujeito a julgamento do tribunal; e quem lhe chamar: Tolo, estará sujeito ao inferno de fogo (Mt 5. 21 – 22). Portanto, o “não matarás” (Mt 5. 21), que diz respeito ao valor sobre o homicídio, tem uma relação de transitividade com a ira, sendo esta o elemento inicial e transitivo em um processo que, perpassando pelo insulto, pelo xingamento -“chamar: Tolo [...]” - (Mt 5. 22), e numa espécie de ordem, pode-se depreender que o passo seguinte é o próprio ato homicida. Tal argumento é usado para mostrar aos seus ouvintes que não merecia ser chamado de pecado digno de julgamento somente o ato de matar, sendo este, de modo geral, apenas a consequência de algo mais profundo, a ira. Outra relação transitiva pode ser observada no discurso de Jesus, está na antítese sobre o adultério - “ouvistes que foi dito: Não adulterarás. Eu, porém, vos digo: qualquer que olhar para uma mulher com intenção impura, no coração, já adulterou com ela” (Mt 5. 27, 28, grifo nosso) -, posto que o orador mostra que o adultério não se dá apenas na prática do ato sexual, mas adultera também quem olha outra pessoa (mulher) com “intenção impura” (Mt 5. 28). Há uma relação transitiva no caso em questão, dado que o elemento de transitividade é a intenção impura no coração. A relação transitiva pode ser explicitada pela relação de implicação ou pela relação de consequência lógica, sobre a qual se fundamenta o raciocínio silogístico. Jesus encadeia três perícopes (Mt 6. 19 – 24), utilizando-se de forma mais explícita a força desse raciocínio. 89 A primeira dessas perícopes é ao ensinar sobre a necessidade de cultivar os tesouros no céu: “Não acumuleis para vós outros tesouros sobre a terra, onde a traça e a ferrugem corroem e onde ladrões escavam e roubam; mas ajuntai para vós outros tesouros no céu, onde traça nem ferrugem corrói, e onde ladrões não escavam, nem roubam; [...]” (Mt 6. 19 - 20). O orador inicia o argumento mostrando a desvantagem de se juntar tesouros na terra, qual seja o risco de a traça e a ferrugem corroerem e os ladrões roubarem. Em seguida, mostra a vantagem de juntá-los no céu, onde a traça e a ferrugem não podem corroer, nem ladrões podem roubá-los. A partir disso ele emprega a peça final do raciocínio que dá suporte aos seus ouvintes tirarem suas próprias conclusões, sendo esta última a premissa básica desse silogismo: “[...] porque, onde está o teu tesouro, aí estará também o teu coração” (Mt 6. 21). Para que fique mais nítida a presença do mecanismo silogístico no raciocínio, pode-se formular da seguinte maneira: onde está o tesouro do homem, ali está o coração dele. Ora, se ele acumula tal tesouro na terra, evidencia-se que o coração está nas coisas da terra; contudo, se o homem acumula seu tesouro no céu, evidencia-se que o coração do mesmo está nas coisas do céu. Na segunda perícope, pode-se observar de forma clara o silogismo montado a partir de uma metáfora que trata da relação dos olhos como lâmpada para o corpo: São os olhos a lâmpada do corpo [premissa maior]. Se os teus olhos forem bons [premissa menor], todo o teu corpo será luminoso [conclusão]; se, porém, os teus olhos forem maus [premissa menor], todo o teu corpo estará em trevas [conclusão]. Portanto, caso a luz que em ti há sejam trevas, que grandes trevas serão! (Mt 6. 22 , 23, grifo nosso). Disso, pode-se interpretar que o orador está partindo de um acordo com seu auditório ou de um lugar comum, explicitado por meio da metáfora “são os olhos a lâmpada do corpo”, em que os olhos são os receptores da luz, “o guia do qual todo o corpo depende para a sua iluminação e direção” (HENDRIKSEN, 2001, p. 488). Partindo desse entendimento, o olho pode ser chamado de a luz ou a lâmpada para o corpo. Desta maneira, se o olho for bom, sadio, são (aplous)96, o corpo será bem guiado, terá luz e direção; do contrário, não terá tal iluminação. Sendo assim, há um raciocínio que leva a uma conclusão, uma consequência lógica, no caso há a possibilidade de duas conclusões, ficando a cargo do ouvinte concluir a 96 O significado básico desse adjetivo é simples, singular, sem complicação. Ao que se faz a transição do significado básico, simples ou singular, para sem qualquer mistura ou defeito, sem mancha, e daí, são, saudável, bom (HENDRIKSEN, 2001, p. 488). 90 respeito da qualidade da luz dos olhos, que, por sua vez, remente metaforicamente ao discernimento espiritual. Na terceira perícope, Jesus retoma a questão das riquezas, que dialoga com a questão de juntar tesouro na terra, e assegura que “ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de aborrecer-se de um e amar ao outro, ou se devotará a um e desprezará ao outro. Não podeis servir a Deus e às riquezas” (Mt 6. 24). Dessa forma, o primeiro termo desse raciocínio é a impossibilidade de se servir a dois senhores, sendo que a consequência é agradar a um e acabar por desprezar o outro; ao que disso ele aplica utilizando-se da força do raciocínio para assegurar que não se pode servir a Deus e às riquezas. Ainda da força da consequência lógica de tal raciocínio, ele aprofunda sua argumentação em favor de servir a Deus em vez de se deixar ficar ansioso pelas riquezas ou pelas coisas da vida (Mt 6. 25 – 34). Pelo uso de tal força, pode-se ousar afirmar que o orador era consciente de tal intensidade que ele formula o enunciado seguinte, de forma a requerer a força do argumento utilizado: “Por isso, vos digo: não andeis ansiosos pela vida [...]” (Mt 6. 25). É possível observar alguns usos que poderiam entrar na categoria de argumentos de transitividade, por demandar um longo trabalho de explicitação, prefere-se aqui não abordálos no momento, dado que os mesmos textos são objetos mais explícitos de outros argumentos; ademais, por conta também de esses raciocínios serem bastante variados, como asseguram Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 261). No amplo quadro dos argumentos quase-lógicos, os raciocínios que recorrem à divisão do todo em suas partes gozam, de maneira geral, de bastante uso no discurso de Jesus, pois a compreensão do todo como a soma de suas partes serve de fundamento para vários argumentos, qualificados por Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 265) como argumentos de divisão ou de partição. No argumento por divisão, as partes devem se relacionar de modo exaustivo, no entanto, sua escolha pode ser feita de acordo com o desejo de quem o utiliza, contanto que seja possível uma reconstrução do conjunto que sofreu a partição. Um exemplo disso é o que Jesus faz ao argumentar e estabelecer um acordo com seu auditório sobre a irrevogabilidade da Lei: 91 “Porque em verdade vos digo: até que o céu e a terra passem, nem um i [iota]97 ou til [keraia]98 jamais passará da Lei, até que tudo se cumpra” (Mt 5. 18)99. Ao fazer isso, Jesus mostra que até mesmo a letra menor da Lei é importante. Dito isso, ele apresenta as consequências de se violar qualquer um dos mandamentos, bem como seus benefícios, lançando mão do raciocínio da divisão do todo em suas partes: Aquele, pois, que violar um destes mandamentos, posto que dos menores, e assim ensinar aos homens, será considerado mínimo no reino dos céus; aquele, porém, que os observar e ensinar, esse será considerado grande no reino dos céus (Mt 5. 19). Sendo assim, o ato de violar um mandamento acaba por desmerecer o todo no qual a parte está inclusa e por ir de encontro com a irrevogabilidade da Lei, por ora, ratificada pelo orador (Mt 5. 18). O argumento de divisão exige que se tenha um conhecimento das relações que as partes mantêm com o todo. Por vezes, cumpre ao orador explicitar, de alguma maneira, tal relação. Assim sendo, é isso que o orador Jesus faz ao argumentar em favor de não se fazer qualquer tipo de juramento com a finalidade de não cumprir, mesmo que não se esteja o fazendo diretamente em nome de Deus: Também ouvistes que foi dito aos antigos: Não jurarás falso, mas cumprirás rigorosamente para com o Senhor os teus juramentos. Eu, porém, vos digo: de modo algum jureis; nem pelo céu, por ser o trono de Deus; nem pela terra, por ser estrado de seus pés; nem por Jerusalém, por ser cidade do grande Rei; nem jures pela tua cabeça, porque não podes tornar um cabelo branco ou preto. Seja, porém, a tua palavra: Sim, sim; não, não. O que disto passar vem do maligno (Mt 5. 33-37, grifo nosso). Os escribas e fariseus faziam interpretações dos mandamentos100, especificamente a respeito do juramento, de forma a justificar suas atitudes equivocadas. Quanto a isso, Hendriksen (2001, p. 431) afirma que “no pensamento dos escribas e fariseus e seus precursores, um voto jurado ao “Senhor” devia ser guardado; ao contrário, um voto em relação ao qual não se 97 O iota é uma letra bem pequena em grego, que é a tradução do yodh hebraico, diz-se isso porque Antigo Testamento foi escrito em hebraico, sendo a menor letra do alfabeto desse idioma a yodh, que soa com o i (HENDRIKSEN, 2001, p. 408). 98 “A keraia é um prolongamento muito pequeno, um ínfimo sinal recurvo que distingue uma letra hebraica de outra” [...] algo que se poderia chamar de vírgula. “O significado, pois, é que nem mesmo o menor aspecto o Antigo Testamento deixará de cumprir” (HENDRIKSEN, 2001, p. 408). 99 Hendriksen (2001, p. 406) utiliza de uma tradução menos literal para o texto, que é esclarecedora: “Porque solenemente lhes declaro: até que o céu e a terra desapareçam, não desaparecerá da lei, nem mesmo a menor das letras, nem sequer uma vírgula sem que tudo se cumpra (o que ela exige) se cumpra”. 100 Levíticos 19. 12; Números 30. 2; Deuteronômio 23. 21. 92 mencionava o nome do Senhor era considerado de somenos importância”. Dessa forma, para mostrar que tudo (o céu, a terra, a Jerusalém, a cabeça) pertence a Deus, sendo este soberano, e qualquer que fosse o juramento estava fazendo em nome de Deus, mesmo sem citá-lo, Jesus recorre ao argumento de divisão, usando, portanto, a força desse raciocínio quase-lógico para condenar tal atitude hipócrita. Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 274) afirmam que “a argumentação não poderia ir muito longe sem recorrer a comparações, nas quais cotejam vários objetos para avaliá-los um em relação ao outro”, sendo esta, portanto, a característica dos argumentos de comparação. Os argumentos de comparação são os que - por meio deles - pode se comparar duas realidades entre si e são apresentados como constatações de fato, porquanto distinguem-se de um mero juízo de semelhança ou de analogia, dado que este juízo é menos suscetível de prova do que aqueles, sendo, em geral, uma pretensão do orador. Por sua vez, a comparação implica numa ideia de mediação nos enunciados, mesmo que qualquer critério para realizar a medição não esteja presente. Por ter essas características, os argumentos de comparação são quase-lógicos (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 274). Nessa categoria de comparação, as bem-aventuranças (Mt 5. 3–12) enunciadas por Jesus podem ser enquadradas como argumento de comparação, isso porque ele fala de características ou valores cultivados por alguns de seus ouvintes, e que mesmo que tais valores pudessem parecer desprezíveis na sociedade da época, eram, contudo, valorizados e tidos em grande estima no reino dos céus, tanto que os que encarnam tais valores - segundo o orador - têm a promessa de receberem benefícios futuros, sendo que para cada valor encarnado há uma recompensa futura (exemplo: “bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia (Mt 5. 7)). Porquanto, o orador compara duas realidades: a presente, terrena; e a futura, celestial. De qualquer maneira, ele fala de uma dimensão espiritual por demais valorizada para seu auditório; ademais, diz-se isso porque a promessa em relação a algo no futuro já pode gerar uma mudança no presente (COENEN; BROWN, 2000, V. I, p. 219). Além dessa característica apresentada, que coloca as bem-aventuranças na categoria de argumento de comparação, pode-se verificar que tal argumento manifesta-se também pelo uso 93 do superlativo, por destacar o que pode ser superior a todos os seres de uma espécie ou mesmo por ser incomparável (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 279). A partir dessa concepção, as bem-aventuranças (Mt 5. 3 - 11) comportam outro elemento que as fazem também serem contempladas nessa categoria quase-lógica. Isso porque a expressão bem-aventurado101 é a tradução de uma palavra que denota um estado de felicidade superior. Sendo assim, “diante do céu e pelas normas do reino, eles [os que encarnam as bemaventuranças] são realmente felizes; sim “felizes” no sentido mais elevado do termo; daí superlativamente bem-aventurados” (HENDRIKSEN, 2001, p. 369). Quanto a isso, diz-se que “não se atribui entre os exegetas mais recentes tanta importância às virtudes como à promessa da salvação que é transmitida pela expressão “bem-aventurado” no começo de cada pronunciamento” (COENEN; BROWN, 2000, v. I, p. 219). Dessa forma, considera-se que os que encarnam os valores descritos são bem-aventurados não apenas pelo que vai acontecer no futuro, mas pelo presente estado, ou seja, por terem sido abençoados por Deus ao serem declarados bem-aventurados. O uso da comparação pelo orador Jesus dá-se também quando ele, para motivar e persuadir seus discípulos a viverem a justiça do reino (Mt 5. 10, 11), mesmo sob perseguição, faz a comparação entre os seus discípulos que seriam ou eram perseguidos e os profetas que também sofreram perseguições antes deles: “regozijai-vos e exultai, porque é grande o vosso galardão nos céus; pois assim perseguiram aos profetas antes de vós” (Mt 5. 12, grifo nosso). O caráter comparativo de tal situação se dá porque, ao se comparar, colocam-se ambos no mesmo grupo. Ora se os profetas eram estimados por terem sido perseguidos, os discípulos também o seriam. A comparação pode ser efetuada tanto para associar de forma positiva, como para desqualificar alguém. Sendo assim, usar a força dessa associação para persuadir o ouvinte, de modo que a não adesão à tese por parte deste tenha como consequência a associação do mesmo a um grupo inferior, por certo, é valer-se da força do argumento quase-lógico de comparação. 101 (grego makarios; hebraico ´asrê). O uso dessa expressão (makarios) normalmente aparece em literaturas antigas associada a uma benção superior. Na linguagem poética dos gregos ela aparecia como descrição da condição dos deuses e dos seus adoradores que compartilhavam da existência feliz deles. No judaísmo helenístico dizia que somente a divindade atinge a bem-aventurança, os homens compartilham disso à medida que a natureza divina penetra a criação. Na época de Jesus as bem-aventuranças eram também vistas como veículo para transmitir virtudes que Deus ordena aos homens (COENEN; BROWN, 2000, v. I, p. 217, 219). 94 Esse procedimento é feito por Jesus ao dizer que a justiça de seus ouvintes deveria exceder a dos escribas e fariseus - e mais uma vez verifica-se isso num dito já enquadrado em outros argumentos. -: “[...] se a vossa justiça não exceder a dos escribas e fariseus, jamais entrareis no reino dos céus” (Mt 5. 20). Isso é uma condição para eles serem comparados ou ao grupo dos escribas e fariseus ou aos dos pertencentes ao reino de Deus. Procedimento semelhante dá-se quando esse orador tenta persuadir seu auditório sobre o valor de amar ao próximo, sendo esse próximo, inclusive, os inimigos (Mt 5. 43). Para tanto, ele recorre à possível comparação de determinadas atitudes condenadas por ele, comparando-as com as atitudes dos publicanos102 e dos gentios, fechando seu argumento, exortando seus ouvintes a terem atitudes que pudessem fazê-los comparáveis com o Pai celeste (Mt 5. 46 – 48), portanto não com as atitudes dos grupos mencionados: Porque, se amardes aos que vos amam, que recompensa tendes? Não fazem os publicanos também o mesmo? E, se saudardes somente vossos irmãos, que fazeis de mais? Não fazem os gentios também o mesmo? Portanto, sede vós perfeitos como perfeito é o vosso Pai celeste (Mt 5. 46 – 48). Esse procedimento de buscar a força do argumento quase-lógico para induzir o ouvinte a aderir à tese proposta sob pena de ser comparado com grupos desprezíveis é, em alguns momentos, utilizado por Jesus no Sermão do monte, na maioria das vezes, em referência aos escribas e fariseus, designados como hipócritas. Nos exemplos a seguir, essa comparação é feita por meio do operador argumentativo como: Quando, pois, deres esmola, não toques trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas, nas sinagogas e nas ruas, para serem glorificados pelos homens [...]. E, quando orardes, não sereis como os hipócritas [...]. E, orando, não useis de vãs repetições, como os gentios [...]. Quando jejuardes, não vos mostreis contristados como os hipócritas (Mt 6. 2, 5, 7, 16, grifo nosso). Ao final de seu discurso, Jesus utiliza a noção de comparação tanto para associar aos que ouvem e praticam suas palavras com um homem sensato, como para associar aos que apenas ouvem suas palavras e não as põem em prática com um homem insensato: Todo aquele, pois, que ouve estas minhas palavras e as pratica será comparado a um homem prudente que edificou a sua casa sobre a rocha; e caiu a chuva, transbordaram os rios, sopraram os ventos e deram com ímpeto contra aquela casa, que não caiu, porque fora edificada sobre a rocha. E todo aquele que ouve estas minhas palavras e não as pratica será comparado a 102 Os publicanos eram os cobradores de impostos que, por suas funções, eram considerados pecadores e traidores da nação judia, porque eles que normalmente eram judeus serviam ao Império Romano como instrumento de opressão (HENDRIKSEN, 2001, p. 443). 95 um homem insensato que edificou a sua casa sobre a areia; e caiu a chuva, transbordaram os rios, sopraram os ventos e deram com ímpeto contra aquela casa, e ela desabou, sendo grande a sua ruína (Mt 7. 24 – 27, grifo nosso). Nesse caso, há uso explícito do elemento de comparação grifado em negrito. Observa-se que o orador coloca os ouvintes numa situação de escolha, portanto eles podem fazer uma boa escolha (ouvir e praticar) ou fazer uma má escolha (ouvir e não praticar). Isso porque “a própria ideia de escolha, de boa escolha, implica sempre comparação”, afirmam Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 280). Ademais, com tal procedimento, Jesus coloca seus ouvintes entre a escolha de fazerem parte de um grupo de pessoas sensatas ou de pessoas insensatas. O que vai determinar em qual grupo o ouvinte vai pertencer é o comportamento deste em relação ao discurso do orador. Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 281) apontam que a argumentação pelo sacrifício é parte dos argumentos de comparação, sendo o mais utilizado deste o que alega certo sacrifício a que se está disposto a sujeitar-se para obter determinado resultado. O uso dessa argumentação é presente em todos os sistemas de trocas, seja referente ao escambo, à venda ou mesmo ao contrato de prestação de serviços. É importante notar que “na argumentação pelo sacrifício, este deve medir o valor atribuído àquilo por que se faz o sacrifício” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA [1958] 2005, p. 281). Por ter certa relação com os argumentos de comparação, as perícopes, no Sermão do monte, nas quais podem ser identificados de maneira mais explícita argumentos pelo sacrifício, podem coincidir com as já analisadas anteriormente, contudo cabe mostrar os elementos que permitem enquadrá-los na categoria em questão. Dessa forma, verifica-se a presença dessa estrutura quase-lógica quando Jesus assegura serem “bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça [...]” (Mt 5. 10), e diz mais: “bemaventurados sois quando, por minha causa, vos injuriarem, e vos perseguirem, e, mentindo, disserem todo mal contra vós. Regozijai-vos e exultai, porque é grande o vosso galardão nos céus [...]” (Mt 5. 11, 12). O que fica explícito no argumento é que o sacrifício vale a pena por ser declarado bem-aventurado quem o faz, além de galardões a serem recebidos, ou mesmo de eles serem comparados aos profetas (Mt 5. 12), como já foi demonstrado. Portanto, há um mérito nisso, o que, de alguma maneira, está em jogo certa troca que envolve o sacrifício. 96 Jesus faz uma argumentação que utiliza esse apelo ao sacrifício, ao assegurar aos seus ouvintes que, se a justiça deles não exceder a dos escribas e fariseus, eles não entrariam no reino dos céus (Mt 5.20). Esse sacrifício é, em certa medida, não ter atitudes de hipócrita como o tinham tais mestres, de maneira que Jesus passa a contrapor o ensinamento deles mostrando seus equívocos e convidando seus ouvintes a não praticarem o mesmo. Às vezes ele faz isso de maneira implícita, outras tantas de maneira direta. A partir dessa compreensão, pode-se perceber que o argumento pelo sacrifício, de alguma maneira, é norteador do sermão, pois a noção de sacrifício é inferida do fato de os ouvintes de Jesus se esforçarem para não terem atitudes semelhantes as dos escribas e fariseus. Para tanto, o orador passa a ensinar como praticar tal justiça, ao que tais práticas envolvem sacrifícios, ou de algum modo, ele passa a ensinar como não ter atitudes semelhantes aos hipócritas, que denota sacrifício de renúncia. Sendo assim, pode-se observar que o ensino sobre o homicídio (Mt 5. 21-26), sobre o adultério (Mt 5. 27 – 32), sobre os juramentos (Mt 33 – 37), sobre a vingança (Mt 5. 38 – 42), sobre o amor ao próximo (Mt 43 – 48), ou seja, a seção conhecida como a das antíteses (5. 21 – 48), são um apelo ao sacrifício, seja para deixar de fazer alguma coisa como, por exemplo, não fazer juramentos (Mt 5. 34), seja para praticar o amor para com os inimigos (Mt 5. 44). Após essa seção, pode-se ver que uma forma de sacrifício é exigida: “guardai-vos de exercer a vossa justiça diante dos homens, com o fim de serdes vistos por eles; doutra sorte, não tereis galardão junto de vosso Pai celeste” (Mt 6.1). Por certo, é uma forma de troca que se faz, uma escolha, entre receber a honra dos homens ou a de Deus. Jesus diz isso e passa a dar exemplos que demostram como os hipócritas fazem ao exercerem sua justiça diante dos homens para serem honrados por eles, mostrando, por outro lado, como os seus ouvintes devem proceder se quiserem receber a recompensa de Deus. Assim ele fala do ato de dar esmolas (Mt 6. 2 – 4), sendo que o sacrifício está em não anunciar que se dará esmola; isso porque se fazia apenas com a finalidade de ser visto pelos homens. Ele discorre ainda sobre como orar de forma a receber a recompensa não dos homens, mas de Deus (Mt 6. 5 – 8) e ensina como jejuar de maneira a não manter uma aparência apenas para mostrar aos homens que se está jejuando (Mt 6. 16 – 18). Jesus ainda discorre sobre a ansiedade pela vida, dado que ele diz: “não andeis ansiosos pela vida [...]” (Mt 6. 25 – 34). O ato de não viver ansioso já é um sacrifício a ser feito. O mestre 97 galileu fala da ansiedade causada pela preocupação sobre o que comer, beber e vestir, fato que Jesus argumenta em favor de que se busque em primeira instância não essas coisas, contudo o reino e a sua justiça (Mt 6. 33). Nisso está o sacrifício que implica uma troca: deixar de buscar em primeiro lugar as coisas da vida, que implica ansiedade, para buscar, em primeiro plano, o reino dos céus, que implica uma não ansiedade. De forma explícita, pode-se ainda verificar o uso do argumento pelo sacrifício quando Jesus discorre sobre as duas portas, uma que leva à perdição e outra à vida: Entrai pela porta estreita (larga é a porta, e espaçoso, o caminho que conduz para a perdição, e são muitos os que entram por ela), porque estreita é a porta que conduz para a vida, e são poucos os que acertam com ela (Mt 7. 13, 14). Desse modo, vê-se que o sacrifício de entrar pela porta estreita está vinculado à recompensa de se poder encontrar a vida e não a perdição. No quadro (1) gráfico abaixo, pode-se observar a quantidade de cada um dos oito argumentos explicitados no Sermão do monte na categoria de argumentos quase-lógicos. Quadro 1 Incompatibilidade; 8 O Ridículo; 1 A argumentação pelo sacrifício; 13 Comparação; 19 A regra de justiça; 5 Reciprocidade; 4 Trasitividade; 5 A divisão do todo em suas partes; 3 Pode-se, portanto, constatar que o orador Jesus Cristo lançou mão, de maneira mais explícita, de 58 argumentos enquadrados na categoria de quase-lógicos. O que, de fato, é uma quantidade significativa de argumentos. 98 4.2 OS ARGUMENTOS BASEADOS NA ESTRUTURA DO REAL Os argumentos fundados na estrutura do real não mais se apoiam na lógica, e sim na experiência, nos elos reconhecidos entre as coisas. Desta maneira, “argumentar não é implicar, é explicar: ‘O adversário diz isso porque tem interesse em dizê-lo’” (REBOUL, 2004, p. 173, grifo do autor). Assim, o argumento é apenas provável. Pode-se argumentar utilizando-se do vínculo causal. Este desempenha um papel fundamental dentre as ligações de sucessão, sendo seus efeitos múltiplos e variados. Perelman e OlbrechtsTyteca ([1958] 2005, p. 300) pontuam a respeito de três argumentações decorrentes desse vínculo: primeiro, as que - por meio de um vínculo causal - podem relacionar dois acontecimentos sucessivos dados entre eles; segundo, as que - a partir de um acontecimento tendem a desvendar a existência de uma causa a fim de determiná-lo; e terceiro, as que - a partir de um acontecimento - buscam evidenciar o efeito que dele deve resultar. Os autores do Tratado da argumentação, em primeira instância, tratam dos dois últimos argumentos acima apontados, deixando para abordar o primeiro na categoria relacionada aos argumentos pelo exemplo ou de raciocínio indutivo. Pela intervenção do vínculo causal, pode-se buscar “a partir de um dado acontecimento, a aumentar ou a diminuir a crença na existência de uma causa que o explicaria ou de um efeito que dele resultaria” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 300). O vínculo causal trata da relação entre um princípio e suas consequências. Dessa maneira, essa relação remete a uma ligação de sucessão constituinte da estrutura do real. De porte dessa noção, é possível verificar o uso de argumentos no sermão de Jesus no monte como tendo características que podem ser explicitadas de modo a considerá-los como pertencentes à categoria do vínculo causal. Assim, Jesus, ao assegurar: “bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus. Bem-aventurados sois quando, por minha causa, vos injuriarem, e vos perseguirem, e, mentindo, disserem todo mal contra vós (Mt 5. 10,11)”, está alicerçando seu argumento sobre a estrutura de ligação de sucessão, pois o orador evidencia ser a justiça, e o vínculo de seus seguidores com ele mesmo, a causa de estes serem perseguidos. Porém, por seus seguidores estarem associados a tal causa, esta é a razão de eles serem bem-aventurados. Desta forma, pode-se perceber que, se de um lado há um efeito negativo por se ter o vínculo 99 com a justiça, de outro há um efeito positivo que é o fato de serem declarados bemaventurados. Isso é complementado com a declaração de recompensa: “regozijai e exultai porque é grande o vosso galardão nos céus [...]”; além, é claro, de os mesmos serem comparados aos honrados profetas: “[...] pois assim perseguiram os profetas que viveram antes de vós” (Mt 5. 12). Jesus, ao dizer “[...] se a vossa justiça não exceder em muito a dos escribas e fariseus, jamais entrareis no reino dos céus” (Mt 5. 20), está recorrendo à noção do vínculo causal, porquanto evidenciando as consequências de uma causa, ao que tal causa está associada à prática de atitudes ou de uma justiça semelhante a dos mestres da época. Nas duas primeiras perícopes em que trata sobre o homicídio e sobre o adultério (Mt 5. 21 – 32), é possível verificar, de maneira mais explícita, Jesus mostrando a causa tanto do homicídio, quanto do adultério. Como já se lançou mão dessas perícopes antes, cumpre apenas apresentar elementos suficientes para enquadrá-las no argumento em estudo. Deste modo, ao se referir ao “não matarás”, Jesus utiliza-se da estrutura do real para demonstrar que o ato de matar é motivado pela ira, ou sentimento de ódio, mas não somente o ato de matar, mas a ira é também a causa do insulto, do xingamento, bem como do litígio: Se, pois, ao trazeres ao altar a tua oferta, ali te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa perante o altar a tua oferta, vai primeiro reconciliar-te com teu irmão; e, então, voltando, faze a tua oferta. Entra em acordo sem demora com o teu adversário, enquanto estás com ele a caminho, para que o adversário não te entregue ao juiz, o juiz, ao oficial de justiça, e sejas recolhido à prisão (Mt 5. 23-25). Dessa maneira, vê-se que o uso de tal recurso, ou seja, do vínculo causal, é para demonstrar que o homicídio é um problema, tanto que ele merece julgamento - “Quem matar está sujeito a julgamento” -, fato que Jesus não discorda, contudo tentar mostrar que o homicídio não é a fonte do problema, discorda, portanto, da ênfase dada pelos antigos. Assim, ele recorre também à estrutura do real para explicitar que o problema está na ira, que é o princípio sustentador de boa parte dos litígios, insultos, xingamentos e homicídios. Sendo assim, o ato a ser combatido não é, em primeira instância, o homicídio, mas a ira, destarte, todo ato de ira merece um tipo de julgamento por ser a causa de vários problemas. Quanto ao adultério, vê-se que, de igual maneira, na tentativa de dar uma nova hierarquização a esse valor, Jesus recorre à explicitação da causa, mostrando, por seu turno, que “[...] qualquer que olhar para uma mulher com intenção impura, no coração, já adulterou com ela 100 (Mt 5. 28, grifo nosso)”. Sendo assim, Jesus explicita que existe uma causa da qual o adultério é apenas uma consequência. Tanto é que ele recorre a outro molde de argumento para ensinar a combater o mal na sua origem ou causa: “se o teu olho direito te faz tropeçar, arranca-o e lança-o de ti [...]. E, se a tua mão direita te faz tropeçar, corta-a e lança-a de ti [...]” (Mt 5. 29, 30). No bojo da relação causa-efeito e efeito-causa está o argumento pragmático, deste modo, utilizá-lo é levar em consideração um ato ou acontecimento de acordo com suas consequências futuras, sejam elas favoráveis ou desfavoráveis. Pode-se dizer que a transferência do valor das consequências para a causa se dá mesmo sem ser percebido, por conseguinte, esse argumento desenvolve-se sem muita dificuldade (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 303). Pode-se observar que Jesus faz uso do argumento pragmático ao ensinar, utilizando-se de metáforas que remetem a coisas preciosas, valiosas, e mesmo ao ato de dar conselhos a quem não está interessado em ouvir: “Não deis aos cães o que é santo, nem lanceis ante os porcos as vossas pérolas, para que não as pisem com os pés e, voltando-se, vos dilacerem” (Mt 7. 6). Dar algo não comestível a um cão ou a um porco (coisas santas, pérolas) quando estão famintos é assumir o risco de ser atacado pelos mesmos, logo, há uma transferência das consequências para a causa. Desta forma, os culpados pelo ataque não são os animais, mas quem lhes ofereceu tais objetos. Um acontecimento pode ser interpretado de diferentes maneiras de acordo com a natureza deliberada ou involuntária que se pode ter de suas consequências. Disso Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005) chamam de o vínculo causal como relação de um fato com sua consequência ou de um meio com um fim. Quanto a isto se diz que, conforme se conceba a sucessão causal, a relação fato-consequência ou meio-fim pode ser estabelecida de acordo com a ênfase que se queira dar. É com o manuseio de argumentos mobilizadores de estratégias semelhantes que Jesus argumenta contra os fariseus de sua época apresentando os atos dos mesmos como meio-fim, ou seja, como se os tais tivessem a finalidade de, por meio dos atos religiosos (esmolas, oração, jejum; respectivamente (Mt 6. 2, 5, 16), serem vistos pelos homens e, não tendo, por sua vez, a finalidade de agradar a Deus: 101 Quando, pois, deres esmola, não toques trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas, nas sinagogas e nas ruas, para serem glorificados pelos homens, [...]. E, quando orardes, não sereis como os hipócritas; porque gostam de orar em pé nas sinagogas e nos cantos das praças, para serem vistos dos homens [...]. Quando jejuardes, não vos mostreis contristados como os hipócritas; porque desfiguram o rosto com o fim de parecer aos homens que jejuam [...] (Mt 6. 2, 5, 16, grifo nosso). Sendo assim, o orador argumenta em favor de que os seus ouvintes tenham atitudes contrárias aos hipócritas: “Guardai-vos de exercer a vossa justiça diante dos homens, com o fim de serdes vistos por eles; doutra sorte, não tereis galardão junto de vosso Pai celeste” (Mt 6. 1). Quanto à atitude do que se deve buscar, como objetivo maior na vida, Jesus argumenta em favor de não se buscar a comida, a bebida e a vestimenta. Tal busca - como finalidade primeira - segundo o orador, é que leva à ansiedade: “[...] não andeis ansiosos pela vossa vida [...]. Não vos inquieteis, dizendo: Que comeremos? Que beberemos? Ou: Com que nos vestiremos? Porque os gentios é que procuram todas estas coisas [...]” (Mt 6. 25, 31,32). Ao dizer isso, ele argumenta em favor de seus ouvintes abandonarem a busca dessas coisas com a finalidade principal da vida e arrazoa em favor de eles buscarem o reino de Deus e a sua justiça com a finalidade maior da vida deles, deixando essas coisas como consequência da relação deles com o reino e a justiça. Assim o orador assegura: “Buscai, pois, em primeiro lugar, o seu reino e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas” (Mt 6. 33). Diferentes das ligações de sucessão em que os termos estão num mesmo plano, as ligações de coexistência relacionam duas realidades de níveis diferentes, cuja diferença remete para o fato de uma ser mais fundamental que outra. Enquanto nas ligações de sucessão a ordem temporal é mais importante, nas de coexistência, contudo, o que está em questão é o caráter mais estruturado dos termos, ou melhor, caracteriza-se por relacionar uma essência com suas manifestações (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 333). Essa relação pode sair do meramente teórico e ser percebida nas relações entre uma pessoa e seus atos. Quanto a isso, Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 334) asseguram que a construção da pessoa humana está ligada aos seus atos de maneira que se pode fazer uma distinção entre o que é considerado “importante, natural, próprio de quem fala, e o que se considera transitório, manifestação exterior do sujeito”. Dessa maneira, pela repetição de um ato, pode-se reconstruir a pessoa, bem como reafirmar a adesão à construção anterior. Pode-se chamar atenção para o fato de que a concepção de pessoa está sujeita a variar conforme as épocas e a metafísica preferida. Isso significa dizer que os acordos entram em 102 questão ao se construir uma pessoa, o que implica que os acordos podem ser limitados, precários, particulares a um determinado grupo, podendo ser revisados a depender da concepção religiosa, filosófica ou científica que se adote como novo parâmetro. Isso leva a dizer que a noção de pessoa carrega um elemento de estabilidade, ao que, segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 334), “todo argumento sobre a pessoa explicita essa estabilidade: presumimo-la, ao interpretar o ato em função da pessoa, deploramos que essa estabilidade não tenha sido respeitada”. Essa estabilização pode ser comparável ao objeto que é definido a partir de suas propriedades, de igual modo, a pessoa o é a partir de seus atos, que, por vezes, são transformados em virtudes, integrando assim uma essência invariável dessa pessoa. Contudo, a pessoa possui a capacidade de transformar-se, de converter-se - o que é fundamental para ser educada - para abandonar o passado. “Como sujeito livre, a pessoa possui essa espontaneidade, esse poder de mudar e de se transformar, essa possibilidade de ser persuadida e de resistir à persuasão”, asseguram Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 336). De alguma maneira, a pessoa cultiva certa relação com seus atos ao mesmo tempo em que ela tem dele uma independência relativa. Deste modo, a não ser numa metafísica, o mérito de uma pessoa não está dissociado de seus atos, e mesmo que se tente fazer uma dissociação entre o ato e a pessoa, tal dissociação é apenas parcial e precária. A interação entre o ato e a pessoa diz respeito ao fato de que a reação do ato sobre o agente leva que se modifique a imagem que se tem da pessoa. Assim, por ato, Perelman e OlbrechtsTyteca ([1958] 2005, p. 339) entendem “tudo quanto pode ser considerado emanação da pessoa, sejam eles ações, modos de expressão, reações emotivas, cacoetes involuntários ou juízos”. De posse da noção de que o ato age sobre a pessoa ao mesmo tempo em que revela a sua essência, é que se pode observar que Jesus acusa os escribas e fariseus como sendo hipócritas (Mt 6. 2, 5, 16; 7. 5). Ele constrói imagens dos gentios como sendo, por vezes, ansiosos (Mt 6. 32), e que saúdam os que apenas o saúdam (Mt 5. 47); constrói imagens dos publicanos como sendo aqueles que amam a quem os ama (Mt 5. 46); ao mesmo tempo em que convida seus ouvintes a terem atitudes de modo a serem perfeitos como perfeito é o Pai celeste (Mt 5. 48), bem como a não serem como os hipócritas (Mt 6) e a praticarem atos de justiça que excedam 103 o dos escribas e fariseus (Mt 5. 20). Ainda é possível observar que esse orador argumenta em favor de seus discípulos praticarem determinados atos, pois estes serviriam para glorificar a Deus: “Assim brilhe a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem a vosso Pai que está nos céus” (Mt 5. 16). Nessa caracterização entre ato e pessoa, Jesus aponta para o fato de que determinados atos tendem a revelar a intenção das pessoas, ou seja, revelar o que há no coração ou mesmo o que elas realmente são. Assim é que o orador alerta a respeito dos falsos profetas: “Acautelai-vos dos falsos profetas que se vos apresentam disfarçados em ovelhas, mas por dentro são lobos roubadores” (Mt 7. 15). Por certo, nesse alerta feito por Jesus, está implicada toda uma interação entre ato e pessoa discutida conceitualmente por Perelman e Olbrechts-Tyteca. Sendo assim, o orador Jesus diz, utilizando-se de expressões metafóricas, que, por meio dos atos, pode-se saber identificar um falso profeta: “Pelos seus frutos os conhecereis.”. Desse modo ele usa a metáfora do fruto e da árvore que pode caracterizar a relação entre a essência da pessoa e seu ato: “Colhem-se, porventura, uvas [frutos nobres] dos espinheiros [ervas daninhas] ou figos [muito preciosos] dos abrolhos [uma praga]? Assim, toda árvore boa produz bons frutos, porém a árvore má produz frutos maus. Não pode a árvore boa produzir frutos maus, nem a árvore má produzir frutos bons” (Mt 7. 16-18). Esses falsos profetas têm certa relação com o objeto de acusação anterior de Jesus, os escribas e fariseus que agiam hipocritamente, ao que Jesus está mostrando essa relação entre os atos deles e a essência, ao mesmo tempo em que está falando de sua intenção, pois eles parecem ser ovelhas, contudo “por dentro são lobos roubadores” (Mt 7. 25), querem apenas se servir das pessoas. Quanto a isso, Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 343) asseguram: “Não sendo a intenção alheia conhecida diretamente, só se pode presumi-la pelo que se sabe da pessoa no que ela tem de duradouro. Por vezes, a intenção é revelada em virtude de atos repetidos e concordantes [...]”. Por isso Jesus alerta a seus ouvintes, utilizando-se de uma estrutura do real para o fato de se identificar um pseudoprofeta por meio de seus atos, de seus frutos; a lembrar da metáfora da árvore. Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 350) asseguram que o argumento de prestígio mais caracterizado é o argumento de autoridade, o qual utiliza como meio de prova atos ou juízos de uma pessoa ao buscar a adesão de seu auditório. Como não se pode reduzir toda 104 prova à verdade científica, desta forma, o argumento de autoridade goza de utilidade em praticamente toda argumentação. Sendo assim, é preciso que se diga que às vezes “o argumento de autoridade, em vez de construir a única prova, vem completar uma rica argumentação. Uma mesma autoridade é valorizada ou desvalorizada conforme coincida ou não com a opinião dos oradores” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA [1958] 2005, p. 350). Jesus, de alguma maneira, ao mesmo tempo em que firma um acordo a partir da Lei, recorre à autoridade da mesma e dos Profetas para fundamentar sua argumentação de maneira que, a partir de uma nova interpretação da Lei, ele se opõe à autoridade dos antigos, de cuja concordância participavam os escribas e os fariseus. Assim, de alguma maneira Jesus recorre à autoridade da Lei e dos Profetas para combater a autoridade e os valores cultivados e ensinados pelos escribas e fariseus, que se vinculavam à tradição, ou seja, aos antigos. Isso fica claro ao observar que o orador apresenta os ditos dos antigos e contrapõe sua interpretação a esses: “Ouvistes que foi dito aos [pelos] antigos: Não matarás; [...] Eu, porém, vos digo que [...]” (Mt 5. 22, grifo nosso). Assim é feito repetidas vezes na seção conhecida como das antíteses (Mt 5.27, 26, 31,32, 33, 34, 38, 39, 43, 44). Ademais, quase ao final do sermão, Jesus recorre de forma explícita à autoridade da Lei e dos Profetas para reforçar sua proposição: “Tudo quanto, pois, quereis que os homens vos façam, assim fazei-o vós também a eles; porque esta é a Lei e os Profetas” (Mt 7. 12, grifo nosso). Da mesma forma, é importante considerar que, ao invocar uma autoridade, o orador que o faz vincula-se a ela de alguma maneira. Essa autoridade pode ser desde a opinião comum, a ciência, a filosofia, os profetas e até mesmo a bíblia (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA [1958] 2005, p. 350). Ao falar do recurso ao argumento de autoridade que Jesus lança mão, cumpre mencionar uma pertinente citação de Bossuet103 feita por Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 351): ... Um mestre [Jesus] em quem aparece tanta autoridade, conquanto sua doutrina seja obscura, bem merece que se creia em sua palavra: ipsum audite. ... Podeis reconhecer sua autoridade ao considerar o respeito que lhe prestam Moisés e Elias; ou seja, a lei e os profetas, como expliquei. ... Não busquemos as razões das verdades que ele nos ensina: toda a razão é que ele falou. (grifo nosso). 103 BOSSUET. Sermons. vol. II: Sur la submission due à la parole de Jésus-Christ, pp. 117, 120, 121. 105 Dentro dessa categoria de argumentos de ligações de coexistência, o discurso como ato do orador compreende uma das características bem pertinente à argumentação, característica essa que a distingue e a faz oposta à demonstração. Isso porque o discurso, compreendido como ato do orador, é a manifestação por excelência da pessoa, e mesmo que esse não faça uso diretamente das ligações do tipo ato-pessoa, ele corre o risco de, por parte de seus ouvintes, ser vinculado ao seu ato discursivo. Essa interação entre discurso e orador importa ser considerada porque, segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 361), “a pessoa é o contexto mais precioso para a apreciação do sentido e do alcance de uma afirmação”. Disso se diz que o prestígio ou a falta deste influencia na interpretação do enunciado proferido pelo orador, assim, observa-se que “mesmo as palavras alheias, reproduzidas pelo orador, mudam de significação, pois quem as repete sempre toma para com elas uma posição, de certa maneira nova, ainda que seja pelo grau de importância que lhes concede” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 361). Portanto, há um contexto novo a partir do qual o ouvinte interpreta o enunciado. É a partir da interação do orador com seu discurso, e do que o ouvinte julga dessa relação que os antigos mestres da retórica recomendavam aos oradores darem boa impressão de si, atraindo a estima, a benevolência e a simpatia de seu auditório, ou seja, diz-se que é preciso que o orador inspire confiança, sem a qual seu discurso não merece crédito. Em contrapartida, o orador pode se aproveitar dessa relação para agir em direção ao seu adversário, por isso pode usar argumentos para desvalorizá-lo colocando a confiança deste em questão, bem como suas intenções. De alguma maneira, Jesus lança mão desse recurso para atacar seus supostos adversários - os escribas e fariseus - apontando suas intenções que granjeavam recompensas humanas e os faziam hipócritas (Mt 6). Por isso, Jesus de forma explícita os chama de falsos profetas e lobos roubadores (Mt 7. 15), atacando, por sua vez, a confiança que os mesmos tinham diante de todos. Tal recurso, chamado de ataque ad personam, pode ser usado para desqualificar uma testemunha, bem como um orador religioso. Deste modo, se essa pessoa for um preletor de prédicas edificantes, a desqualificação lhe causa bastante prejuízo já que ele precisa do 106 prestígio para dar força a sua preleção (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 363). Pode-se verificar que o recurso de ataque ad personam utilizado por Jesus foi de alguma maneira eficaz, dado que, ao final do sermão, Mateus descreve a reação da multidão mostrando que esta fez uma comparação entre o ensino de Jesus e o dos escribas: “[...] porque ele [Jesus] as ensinava como quem tem autoridade e não como os escribas” (Mt 7. 29). Por meio dessa descrição, pode ainda ser verificado que o que os antigos chamam de “etos oratório” que, segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 363, grifo do autor) pode ser resumido como a “impressão que o orador, por suas palavras, dá de si mesmo”. Logo, o discurso se constitui o meio pelo qual a imagem do orador é construída perante seu auditório e, estando ligada ao prestígio, essa pode variar a depender de como o discurso é produzido; quanto a isso os proponentes do Tratado da argumentação discorrem: Por causa da interação constante entre o juízo que se faz do orador e aquele que se faz de seu discurso, quem argumenta expõe constantemente, até certo ponto, o seu prestígio, que cresce ou decresce consoante os efeitos da argumentação. Uma argumentação vergonhosa, fraca ou incoerente, só pode prejudicar o orador; o vigor do raciocínio, a clareza e a nobreza do estilo predisporão, em contrapartida, a seu favor (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 364, grifo nosso). Além de se poder afirmar que Jesus obteve, de algum modo, sucesso em seu discurso, também pode se assegurar que no discurso proferido por Jesus não faltou um nível razoável de clareza, coerência e estilo sofisticado. Observa-se isso a partir do que o narrador do sermão descreveu a respeito do auditório jesuânico: “Quando Jesus acabou de proferir estas palavras, estavam as multidões maravilhadas da sua doutrina; porque ele as ensinava como quem tem autoridade e não como os escribas” (Mt 7. 28, 29). Porquanto, o maravilhamento e a comparação só poderiam ser possíveis se o discurso desse orador tivesse certo nível de clareza e este gozasse, ao final de sua prédica, de prestígio. Junta-se à categoria dos argumentos que se pressupõem vínculos de coexistência a relação que se pode estabelecer entre o grupo e seus membros. Essa relação tem como protótipo a ligação entre a pessoa e seus atos, porquanto se pode afirmar que, assim como a expressão da pessoa é o ato, de igual maneira os membros são a manifestação do grupo ao qual fazem parte. Desta forma, diz-se que “os indivíduos influem sobre a imagem que temos dos grupos aos quais pertencem e, inversamente, o que achamos do grupo nos predispõe a certa imagem 107 daqueles que dele fazem parte” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 366). Pelo fato de a noção de grupo ser um tanto indeterminada e, também, por uma pessoa normalmente pertencer a vários grupos, faz com que a argumentação referente aos membros e seu grupo situe-se em um nível de complexidade superior ao concernente à pessoa e a seus atos. Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 367) asseguram que “certos grupos - nacionais, familiares, religiosos, profissionais - serão reconhecidos por todos, até mesmo por instituições, mas outros nascem ao sabor do comportamento de seus membros”. De posse dessa perspectiva, nota-se que Jesus argumenta em favor de se formar um grupo que seja diferenciado por suas atitudes como reflexo da essência de filho de Deus (Mt 5. 45), portanto, por ter atitudes condizentes com os valores do reino dos céus. Isso pode ser visto em todo o sermão em que o orador estima alguns valores afirmando ser bem-aventurados os que os encarnam (5. 3-11). De igual modo, ele argumenta em favor de se cultivar determinados valores e não outros (Mt 5. 20 – 48), condena algumas atitudes hipócritas ensinando seus ouvintes a não fazerem o mesmo (Mt 6). Jesus faz isso a ponto de assegurar como critério para ser partícipe do grupo reino dos céus a prática de atos de justiça superiores aos dos escribas e fariseus (Mt 5. 20). Quanto à formação do grupo, é preciso que fique claro: não significa que este seja institucionalizado, no entanto, pode-se reconhecer a pertença de determinadas pessoas no grupo pelos valores e atitudes praticados. Sendo assim, tal reconhecimento pode se dá por terceiros, asseguram Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 367, 368): Estes tendem a considerar que há um grupo social cada vez que eles têm um comportamento diferenciado para com seus membros, servindo a noção de grupo para descrever, para explicar ou para justificar esse comportamento diferenciado [...]. Notemos que esse cuidado da argumentação explica a tendência a constituir em grupo, a fim de torna-los solidários, todos aqueles em quem se observar uma mesma atitude, os adversários ou os partidários de certo ponto de vista, de certa pessoa ou de certa maneira de agir. (grifo nosso). 108 Nessa categoria das ligações de coexistência, ainda se pode pontuar a relação que há entre o ato e a essência. Mesmo que já se tenha dito isso em relações anteriores104, cumpre observar o que Perelman e Olbrechts-Tyteca arrazoam sobre a questão de maneira específica. Diz-se que por meio de uma categoria gramatical, um verbo, um adjetivo ou mesmo uma expressão, podem-se estabilizar os atos de uma pessoa de maneira a formar essência de quem os pratica, por isso se pode chamar alguém de o jogador, o patriota, a mãe etc. Essa relação é estabelecida mais frequentemente quando o ato é intencional (PERELMAN; OLBRECHTSTYTECA, [1958] 2005, p. 374). Dessa maneira, verifica-se que Jesus caracteriza os escribas e fariseus como sendo hipócritas (Mt 6. 2, 5, 16; 7. 5), justamente por praticarem atos que evidenciam tal essência105, por vezes, atos intencionais. A ligação simbólica, de acordo com os autores do Tratado da argumentação, é passível de aproximação da ligação de coexistência. Segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca, o símbolo possui um significado e um valor representativo que eles chamam de relação de participação. O que diferencia a ligação simbólica das ligações de sucessão e de coexistência é justamente seu valor irracional, no sentido de ser de natureza quase mágica. Isso porque o vínculo simbólico, ao fazer parte do real como as outras ligações, não faz referência a uma estrutura definida deste. Pelo fato de o símbolo e o simbolizado não fazerem parte da mesma camada do real, a relação entre eles poderia ser entendida como analógica, no entanto, asseguram Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 378) que tal relação “destruiria o que há de impressionante na ligação simbólica, pois, para que ela desempenhe seu papel é preciso que símbolo e simbolizado estejam integrados numa mesma realidade mítica ou especulativa”. Na relação simbólica acontece a transferência entre o símbolo e o simbolizado. Essa transferência não é necessariamente aceita por todos, contudo pode se dá apenas na comunhão do grupo, dizendo respeito apenas a uma ligação reconhecida pelos membros do grupo. Importa, pois, na argumentação, saber em que medida uma coisa, e tudo o que lhe toca, é provida dessa natureza simbólica. Ora, é possível, dado o caráter objetivamente indeterminado e indefinido da ligação simbólica, conferir um valor simbólico, modificando-lhe, assim, o significado e a importância. O aspecto simbólico de um ato será tanto mais facilmente aceito quanto menos plausível for qualquer outra interpretação (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 380). 104 105 Tal análise é feita no tópico em que é analisada a interação entre o ato e a pessoa. Ver melhor a relação no tópico a interação entre o ato e a pessoa. 109 Desse modo, pode se dizer que tal relação simbólica é traçada por Jesus ao ensinar que os discípulos são sal e luz do mundo: “Vós sois o sal106 da terra [...] (Mt 5. 13, 14) . Vós sois a luz do mundo”. Mesmo que se tenha uma relação metafórica, que pode ser enquadrada em outra categoria, pode-se considerar que o fato de os discípulos serem considerados sal da terra pode remeter a uma ideia de que eles poderiam ser considerados como o elemento de conservação dos valores de Deus, já que conservar era uma das funções principais do sal na época. O sentido do termo luz na cultura judaica é bastante amplo e remente tanto à glória de Deus quanto ao conhecimento do mesmo, além de remeter à noção de sabedoria, de amor etc. (HENDRIKSEN, 2001, p. 397). Portanto, esta relação pode ser compreendida também como relação simbólica em que os discípulos simbolizam a luz para o mundo ao mesmo tempo em que a luz seja símbolo dos partícipes do reino dos céus. O argumento de hierarquia dupla pode ser bastante utilizado na argumentação em que uma hierarquia discutida faz correlação com uma hierarquia aceita. Deste modo, a hierarquia dupla entra no processo argumentativo não necessariamente como ponto de partida ou acordo como o faz os valores e as hierarquias propriamente. Por trás de uma hierarquia, vê-se delinear de alguma maneira outra hierarquia, por isso podese assegurar que o argumento de hierarquia dupla está muitas vezes implícito. Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 384) asseguram que “esse recurso é natural e ocorre espontaneamente porque nos damos conta de que é assim que o interlocutor decerto tentaria sustentar sua afirmação”. Ainda se pode afirmar que “a hierarquia dupla exprime normalmente uma ideia de proporcionalidade, direta ou inversa, ou pelo menos um vínculo entre termo e termo” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 384). Servem para ligar duas hierarquias e fundar o argumento de hierarquia dupla todas as ligações fundadas na estrutura do real, quais sejam as ligações de sucessão ou de coexistência. Assim Perelman e Olbrechts-Tyteca afirmam que “um ser racional tem de conformar-se a essa hierarquia dupla” e apresentam um argumento de Leibniz baseado em uma perícope (Mt 6. 26) do Sermão do monte: “... zelando pelos passarinhos, ele [Deus] não descuidará das criaturas racionais que lhe são infinitamente mais caras...” 106 O sal na época era um elemento valioso, tanto que os soldados romanos recebiam seu salário em sal. Ele era utilizado como condimento, como conservante, como fertilizante e mesmo como remédio. Contudo, o mais provável era a referência a ideia de conservante com valor preventivo (RICHARDS, 2008, p. 25). 110 Cumpre mostrar algumas hierarquias duplas mais explícitas no texto em análise. Deste modo, pode-se verificar uma hierarquia dupla quando Jesus ensina sobre a ansiedade da vida: “Ora, se Deus veste assim a erva do campo, que hoje existe e amanhã é lançada no forno, quanto mais a vós outros, homens de pequena fé?” (Mt 6. 30). Este trecho do texto é posterior, no sermão, a que Leibniz faz referência acima. Um argumento baseado na mesma estrutura do argumento acima é mais uma vez utilizado por Jesus: “Ora, se vós, que sois maus, sabeis dar boas dádivas aos vossos filhos, quanto mais vosso Pai, que está nos céus, dará boas coisas aos que lhe pedirem?” (Mt 7. 11). Assim, vê-se que se existe uma bondade para com os filhos por aqueles que são maus, com maior razão, o Pai do céu, que é bom, agirá com bondade dando coisas boas aos seus filhos. Há, portanto, uma hierarquia dupla dado que o orador entrelaça duas realidades, a humana - pais maus que sabem dar boas coisas aos filhos - e a divina - o Pai celestial sendo solícito aos filhos que o pedem alguma coisa. Mais argumentos de hierarquia dupla podem ser verificados no discurso de Jesus e podem ser enquadrados nas ligações de sucessão, pois recorre a certa noção de ordem ou mesmo de causa e consequência. A ocasião do argumento é quando Jesus está ensinando para que não se julgue para não ser julgado, ao que ele assegura: “Hipócrita! Tira primeiro a trave do teu olho e, então, verás claramente para tirar o argueiro do olho de teu irmão” (Mt 7. 5). De maneira mais explícita, Jesus, ao ensinar sobre o cuidado de se desperdiçar tempo com quem não quer ouvir determinadas coisas, recorre à noção de causa e consequência em argumento de hierarquia dupla: “Não deis aos cães o que é santo, nem lanceis ante aos porcos as vossas pérolas, para que não as pisem com os pés e, voltando-se, vos dilacerem” (Mt 7.6). O orador Jesus recorre à noção de meio-fim e apresenta outro argumento sob a forma de hierarquia dupla: “Tudo quanto, pois, quereis que os homens vos façam, assim fazei-o vós também a eles; porque esta é a Lei e os Profetas” (Mt. 7. 12). As ligações de coexistência servem para fundamentar uma hierarquia dupla, essas ligações dizem respeito à pessoa e seus atos. Desta forma, pode-se observar o uso do argumento de hierarquia dupla quando Jesus ensina seus discípulos a orar: e perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós temos perdoado aos nossos devedores; [...] Porque, se perdoardes aos homens as suas ofensas, também vosso Pai celeste vos perdoará; se porém, não perdoardes aos homens [as 111 suas ofensas], tampouco vosso Pai vos perdoará as vossas ofensas (Mt 6. 12, 14,15). Por certo, outras hierarquias duplas poderiam ser identificadas, porém demandaria um trabalho de explicitação maior, além de que algumas perícopes que poderiam ser enquadradas nessa categoria podem aparecer também em outras. Até por essa razão que se optou por analisar somente as mais explícitas. Assim, pode-se observar, no Quadro (2) abaixo, a quantidade de ocorrência de cada argumento explicitado na categoria dos argumentos baseados na estrutura do real. Quadro 2 Hierarquia dupla; 7 A ligação simbólico; 2 O ato e a essência; 4 Vínculo Causal; 4 O vínculo causal como relação de um fato com sua Pragmático; 1 consequência ou de um meio com um fim; 4 Interação entre o ato e a pessoa; 11 O grupo e seus membros; 8 O discurso como ato do orador; 3 Autoridade; 2 Desta maneira, pode-se constatar que o orador Jesus Cristo faz uso de 46 argumentos baseados na estrutura do real. 4.3 AS LIGAÇÕES QUE FUNDAMENTAM A ESTRUTURA DO REAL Alguns argumentos podem ser analisados recorrendo-se às ligações que fundamentam o real pelo caso particular. Nesta categoria, Perelman e Olbrechts-Tyteca enquadram três ligações que são, aqui, suporte para a análise: a argumentação pelo exemplo, a ilustração e o 112 modelo/antimodelo. As outras ligações são estruturadas sob o raciocínio por analogia, que compreende a metáfora. A argumentação pelo exemplo é normalmente utilizada para fundamentar uma regra nova ou sobre a qual não há ainda acordo explícito. Por isso que o exemplo apresentado, pelo menos de maneira provisória, deve usufruir estatuto de fato, devendo o ouvinte não ter motivo para pô-lo em dúvida (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 402). Isso porque ele deve servir como ponto de partida para uma generalização. Jesus utiliza do exemplo para reforçar uma tese ou regra; tal exemplo é do sal e da luz: Vós sois o sal da terra; ora, se o sal vier a ser insípido, como lhe restaurar o sabor? Para nada mais presta senão para, lançado fora, ser pisado pelos homens. Vós sois a luz do mundo. Não se pode esconder a cidade edificada sobre um monte; nem se acende uma candeia para colocá-la debaixo do alqueire, mas no velador, e alumia a todos os que se encontram na casa. Assim brilhe também a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem a vosso Pai que está nos céus (Mt 5. 13-16, grifo nosso). O exemplo é utilizado para sustentar, em primeira instância, a afirmação de que os discípulos são o sal da terra e a luz do mundo. Para reforçar a primeira, ele apresenta um fato que acontecia ao sal, que passava por um processo de deterioração e, ao entrar em contato com outras substâncias, tornava-se insípido (HENDRIKSEN, 2001). Para reforçar a segunda afirmação, “vós sois a luz do mundo” (Mt 5. 14), Jesus encadeia dois exemplos que tratam da impossibilidade de esconder uma cidade edificada sobre um lugar alto; fala ainda de algo que não era normal se fazer, acender uma lâmpada com o propósito de iluminar e imediatamente apagar não a deixando cumprir sua função para a qual foi acesa. Nessa sequência de exemplos apresentada, pode-se observar que os exemplos servem para o orador aplicar uma regra ou mesmo uma generalização: a primeira, referente ao sal, que não pode deixar de cumprir sua função básica, e a outra, que os discípulos, como a lâmpada, brilhem diante dos homens de modo a glorificar a Deus. Jesus, ao dar um novo enfoque sobre o valor referente ao homicídio, utiliza-se de um exemplo para fundamentar sua tese de que se deve reconciliar com o irmão o mais rápido possível, (Mt 5. 25, 26): Entra em acordo sem demora com o teu adversário, enquanto estás com ele a caminho, para que o adversário não te entregue ao juiz, o juiz, ao oficial 113 de justiça, e sejas recolhido à prisão. Em verdade te digo que não sairás dali, enquanto não pagares o último centavo (grifo nosso). Outros exemplos são utilizados por Jesus para fundamentar suas afirmações, desse modo, cumpre observar apenas os mais explícitos. Ao ensinar sobre o não jurar, ele enumera alguns exemplos, que para o judeu constituem-se como fato: “de modo algum jureis; nem pelo céu, por ser o trono de Deus; nem pela terra, por ser estrado de seus pés; nem por Jerusalém, por ser cidade do grande Rei; nem jures pela tua cabeça, porque não podes tornar um cabelo branco ou preto” (Mt 5. 34 – 36). Jesus, ao falar sobre a necessidade de amar até o inimigo, dá o exemplo de como Deus age de maneira igual com todas as pessoas (Mt 5. 45): “Para que vos torneis filhos do vosso Pai celeste, porque ele faz nascer o seu sol sobre maus e bons e vir chuvas sobre justos e injustos”. Jesus, para fundamentar a mesma tese, faz outras ligações que fundamentam pelo caso particular, contudo, cabe considerar que elas já se encaixariam na categoria de ilustração, porque constituem apenas um reforço à adesão à tese sustentada pelo exemplo, portanto analisar-se-á mais a frente. Jesus utiliza de exemplos para argumentar em favor de que seus ouvintes não vivam ansiosos pela vida (Mt 6. 26-30): Observai as aves do céu: não semeiam, não colhem, nem ajuntam em celeiros; contudo, vosso Pai celeste as sustenta. Porventura, não valeis vós muito mais do que as aves? Qual de vós, por ansioso que esteja, pode acrescentar um côvado ao curso da sua vida? E por que andais ansiosos quanto ao vestuário? Considerai como crescem os lírios do campo: eles não trabalham, nem fiam. Eu, contudo, vos afirmo que nem Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles. Ora, se Deus veste assim a erva do campo, que hoje existe e amanhã é lançada no forno, quanto mais a vós outros, homens de pequena fé? (grifo nosso). Pode-se observar que há um encadeamento de exemplos para reforçar uma tese geral, que é reforçada com um exemplo: Observa-se que, no primeiro exemplo, o qual trata das aves do céu, há uma aplicação por meio de dois questionamentos levando o ouvinte a uma possível conclusão: “não valeis vós muito mais do que as aves? Qual de vós, por ansioso que esteja, pode acrescentar um côvado ao curso da sua vida?”. O segundo exemplo é introduzido com um questionamento: “E por que andais ansiosos quanto ao vestuário?” (Mt 6. 28). O orador cita um exemplo de que Deus veste os lírios dos campos, o que para o judeu é um fato tal feitura de Deus. Logo em seguida, ele reforça a adesão ao exemplo, assegurando que “[...] nem Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como 114 qualquer deles” (lírios) (Mt 6. 29). Este reforço pode ser considerado uma ilustração, já que a função desta é reforçar a tese aceita e conhecida. Desse modo, o orador faz isso para confirmar sua tese, ao mesmo tempo em que procede a generalização, ou seja, a aplicação da regra. Jesus, para ensinar sobre o ato de pedir ou de orar, utiliza-se da força de dois exemplos, que recorre ao acordo de que pais normalmente dão boas coisas aos filhos, para reforçar a tese de que Deus, cuja bondade é maior do que a dos homens, dará coisas boas aos que lhe pedem (Mt 7. 9-11): Ou qual dentre vós é o homem que, se porventura o filho lhe pedir pão, lhe dará pedra? Ou, se lhe pedir um peixe, lhe dará uma cobra? Ora, se vós, que sois maus, sabeis dar boas dádivas aos vossos filhos, quanto mais vosso Pai, que está nos céus, dará boas coisas aos que lhe pedirem? Jesus, ao alertar seus ouvintes a respeito do perigo dos falsos profetas, utiliza de exemplos para reforçar de que os falsos profetas não são o que dizem ser por seus atos não condizerem com sua essência. Para tanto ele assegura (Mt 7. 16 - 20): Colhem-se, porventura, uvas dos espinheiros ou figos dos abrolhos? Assim, toda árvore boa produz bons frutos, porém a árvore má produz frutos maus. Não pode a árvore boa produzir frutos maus, nem a árvore má produzir frutos bons. Toda árvore que não produz bom fruto é cortada e lançada ao fogo. Assim, pois, pelos seus frutos os conhecereis. Dessa maneira, percebe-se que o uso de exemplos feitos por Jesus é abundante, servindo para sustentar determinadas teses. Por certo não dá para mensurar quão fortes eram os exemplos utilizados por ele, dado que a força de cada exemplo depende do acordo que se tem sobre o mesmo, mas tais exemplos não eram menos persuasivos para os ouvintes do orador. A ilustração faz parte de uma das ligações que fundamentam o caso particular. Essa tem a função de reforçar a adesão à tese ou à regra aceita e conhecida, cumprindo um estatuto de dar mais presença à regra geral na consciência do ouvinte. Diferentemente do exemplo, a ilustração pode não gozar do estatuto de fato, no entanto, deve despertar a imaginação do ouvinte para redobrar-lhe a atenção. As ilustrações utilizadas por Jesus, em seu discurso, são empregadas normalmente após um exemplo como forma de reforço da tese que, pela força do exemplo, tem consistência para ser aceita pelo ouvinte. Assim, o orador, ao ensinar sobre o ato de amar, inclusive o inimigo (Mt 5. 43-46), adiciona duas ilustrações para reforçar e esclarecer a tese supracitada: “Porque, se 115 amardes os que vos amam, que recompensa tendes? Não fazem os publicanos também o mesmo? E, se saudardes somente os vossos irmãos, que fazeis de mais? Não fazem os gentios também o mesmo?” (Mt 5. 46, 47). Essas duas ilustrações podem ser compreendidas como forma de o orador explicar em detalhes como se dá a prática do amor ao inimigo. Como já dito anteriormente, Jesus, para ampliar a presença na mente dos ouvintes de que Deus veste os lírios dos campos, lança mão da ilustração seguinte: “[...] nem Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles” (lírios) (Mt 6. 29). Portanto, essa ilustração cumpre a função de reforçar uma tese supostamente aceita, trabalhando por meio do reforço do exemplo anterior. Em outra perícope, Jesus, para esclarecer o que havia dito sobre os falsos profetas, tem sua tese ancorada em um exemplo, pois mostra que, assim como a árvore que não produz bons frutos é cortada pelo agricultor e lançada fora (Mt 7. 19), para esclarecer o que está dizendo e aplicar de forma mais explícita a regra que deseja generalizar, ele trabalha uma ilustração (Mt 7. 21-23): Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai, que está nos céus. Muitos, naquele dia, hão de dizer-me: Senhor, Senhor! Porventura, não temos nós profetizado em teu nome, e em teu nome não expelimos demônios, e em teu nome não fizemos muitos milagres? Então, lhes direi explicitamente: nunca vos conheci. Apartai-vos de mim, os que praticais a iniqüidade. Observa-se que, do exemplo referente à árvore que é cortada pelo agricultor por não produzir bons frutos, (Mt 7. 19) o orador passa à amplificação de tal exemplo contando aos ouvintes uma ilustração com vigor imaginativo (Mt 7. 21-23), reforçando a adesão provocada por tal exemplo. Pode-se observar, portanto, a relação entre o exemplo e a ilustração em que, assim como a árvore é cortada por não produzir bons frutos, os falsos profetas ouvirão: “Nunca vos conheci. Apartai-vos de mim, os que praticais a iniquidade (Mt 7. 22, grifo nosso)”. Isto, por sua vez, configura-se como uma forma de corte, de rejeição por parte do Senhor aos falsos profetas. Dessa maneira, a ilustração aqui é uma forma de aplicação ou generalização da regra que o exemplo ajuda a ganhar a adesão. O modelo e o antimodelo são parte do fundamento pelo caso particular. Quanto ao modelo, pode-se dizer que ele serve mais do que simplesmente fundamento ou ilustração para uma regra geral, já que pode ser utilizado como estímulo a uma imitação. 116 Não é qualquer pessoa que pode servir de modelo, isso porque, para servir de modelo, faz-se necessário que se tenha certo prestígio. Por isso, Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 414) asseguram que “podem servir de modelo pessoas ou grupos cujo prestígio valoriza os atos”. No Sermão do monte, de maneira explícita, os profetas, ao mesmo tempo em que servem de elemento de comparação, servem de modelo a serem seguidos pelos discípulos de Jesus que poderiam passar por perseguições semelhantes a dos antigos profetas: “[...], pois assim perseguiram os profetas que viveram antes de vós” (Mt 5. 12). Deus, o Pai celeste, é utilizado como modelo a ser seguido em relação a amar ao próximo: “[...] sede vós perfeitos como perfeito é vosso Pai celeste” (Mt 5. 45, 48). Neste caso, não há nenhum inconveniente quanto ao modelo dado - o próprio Deus - no qual se acredita não haver nenhuma imperfeição. Quanto à noção de antimodelo, Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 417) asseguram que “se a referência a um modelo possibilita promover certas condutas, a referência a um contraste, a um antimodelo permite afastar-se delas” (grifo do autor), portanto, de maneira geral, o que é dito sobre o modelo - guardadas as devidas adequações - pode ser dito em relação ao antimodelo. No final de seu discurso, Jesus lança mão de um modelo e um antimodelo (Mt 7. 24 – 27), respectivamente, referindo-se ao homem prudente e ao homem insensato. O modelo do que ouve as palavras de Jesus e as pratica é o homem prudente que construiu a sua casa sobre a rocha. Já o antimodelo é o homem insensato que construiu a sua casa sobre a areia, vindo a desmoronar por conta das circunstâncias adversas: Todo aquele, pois, que ouve estas minhas palavras e as pratica será comparado a um homem prudente que edificou a sua casa sobre a rocha; e caiu a chuva, transbordaram os rios, sopraram os ventos e deram com ímpeto contra aquela casa, que não caiu, porque fora edificada sobre a rocha. E todo aquele que ouve estas minhas palavras e não as pratica será comparado a um homem insensato que edificou a sua casa sobre a areia; e caiu a chuva, transbordaram os rios, sopraram os ventos e deram com ímpeto contra aquela casa, e ela desabou, sendo grande a sua ruína (Mt 7. 24 – 27, grifo nosso). Pode-se afirmar que o sermão é transpassado pela argumentação baseada no antimodelo. Jesus apresenta atitudes que são deploráveis e mostra que algumas pessoas praticam tais atitudes, 117 devendo seus ouvintes, portanto, não adotarem comportamento semelhante, pois essas pessoas servem de antimodelo por praticarem determinadas ações. Pouco depois do início do sermão, Jesus apresenta os escribas e fariseus como tendo uma conduta que seus ouvintes deveriam superá-la (Mt 5. 20). Desta forma, vê-se logo que esses são tidos como antimodelos, cuja prática de justiça não deveria ser imitada pelos ouvintes do orador Jesus. É o que ele aconselha. Ao prosseguir seu discurso, Jesus chama os escribas e fariseus de hipócritas (Mt 6. 2, 5, 16), ensinando aos seus ouvintes não imitarem tais mestres, sendo estes antimodelos à prática de dar esmola, da oração e do jejum. Outra designação é dada para os hipócritas, que incluem os referidos escribas e fariseus, pois são chamados de falsos profetas (Mt 7. 15-20), porquanto, em relação a estes, Jesus mostra ser necessário acautelar-se deles. Servindo-se dos hipócritas como antimodelo, de maneira direta, Jesus coloca os gentios também como antimodelos em relação à prática das vãs repetições ao orar: “E, orando, não useis de vãs repetições, como os gentios [...] Não vos assemelheis, pois, a eles [...]” (Mt 6. 7,8). Jesus também utiliza a noção de antimodelo para argumentar sobre algumas questões específicas. Assim o publicano e o gentio servem, de maneira implícita, como antimodelo no que se refere, respectivamente, ao amor ao inimigo e a saudar os irmãos: “Porque, se amardes os que vos amam, que recompensa tendes? Não fazem os publicanos também o mesmo? E, se saudardes somente os vossos irmãos, que fazeis de mais? Não fazem os gentios também o mesmo?” (Mt 5. 46, 47). Mais uma vez, o gentio é, implicitamente, antimodelo, desta vez referente à ansiedade pelas coisas da vida, atitude esta não aconselhada por Jesus a seus ouvintes: “[...] não vos inquieteis, dizendo: Que comeremos? Que beberemos? Ou: Com que nos vestiremos? Porque os gentios é que procuram todas estas coisas; pois vosso Pai celeste sabe que necessitais de todas elas” (Mt 6. 31, 32). Dessa maneira, verifica-se a importância das noções de modelo e antimodelo na argumentação jesuânica. Quanto ao antimodelo, vê-se que há aquele que é foco da argumentação, os hipócritas, e aqueles que servem apenas em algumas situações, de maneira implícita, como antimodelo, os publicanos e os gentios. 118 A analogia é a relação que se pode estabelecer entre tema e foro, em que os termos A e B podem ser chamados de tema, recaindo sobre eles a conclusão; assim o conjunto de termos C e D podem ser chamados de foro, que servem para estribar o raciocínio. “Normalmente, o foro é bem mais conhecido que o tema cuja estrutura ele deve esclarecer, ou estabelecer o valor, seja valor de conjunto, seja valor respectivo dos termos” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 424, 425). A analogia diferencia-se da noção de semelhança porque não é uma relação de semelhança, mas uma semelhança de relação. Existe analogia quando tema e foro pertencem a áreas diferentes, do contrário são apenas raciocínio comparável ao exemplo e à ilustração. Por certo, são muitas as possibilidades de analogias, cumpre observar de fácil explicitação no discurso de Jesus. Uma analogia feita por Jesus, em seu discurso no monte, dá-se quando ele fala sobre os falsos profetas: “Acautelai-vos dos falsos profetas, que se vos apresentam disfarçados em ovelhas, mas por dentro são lobos roubadores” (Mt 7. 15). Pode-se notar a presença do foro, ovelhas e lobos roubadores, e a presença de um dos termos do tema, falsos profetas, ficando o outro termo subtendido que poderia ser entendido como verdadeiros profetas. Afirma-se ainda que se tem aí uma analogia de três termos, havendo uma relação entre o foro - que é da âmbito da vida animal - e o tema do âmbito da religião. A metáfora, no Tratado da argumentação, é concebida como uma analogia condensada, portanto não pode ser considerada como simplesmente ornamento, nem tão somente substituição de um termo por outro. Contudo, pode-se entender a metáfora como uma forma de interação de um termo com outro. Salutar ressaltar também que a fusão metafórica acrescenta um significado a outro e, para compreender o significado resultante, é preciso estar a par do contexto discursivo. Sendo a metáfora uma espécie de analogia condensada, compreende certa “fusão de um elemento do foro com um elemento do tema” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 453). Desta forma, o tema é o que se busca provar e foro é o elemento que serve para provar. Vale considerar o que Sardinha (2007, p. 13, 14) assegura sobre as metáforas: As metáforas são meios econômicos de expressar uma grande quantidade de informação. Ao mesmo tempo, são um modo simples de expressar um rico conteúdo de idéias, que não poderia ser bem expresso sem elas. As 119 metáforas também criam uma relação de proximidade com o ouvinte, o leito ou a platéia, pois ao ‘entender’ a metáfora, o leitor passa a ser cúmplice do falante. Jesus utilizou bastantes metáforas para tentar persuadir seu auditório, no entanto algumas dessas não são fáceis de serem verificados nesse estudo porque isso demandaria um trabalho mais denso e bastante específico, por isso apresentam-se aqui as metáforas mais explícitas empregadas por Jesus. O orador Jesus assegura que bem-aventurados são “os humildes de espírito”107 ou pobres de espírito (Mt 5. 3). Por não ser fácil de determinar o sentido que o orador queria que esta expressão assumisse, então cumpre colocá-la à disposição de um sentido metafórico. Isso porque a palavra para pobre utilizada é ptochoí, em grego, a qual, em seu sentido básico, refere-se ao mendigo, ao miserável, alguém que depende de outro para ser sustentado, aos oprimidos, subjugados (LUZ, 1993). Disso se pode concluir que o tema está para a palavra espírito e o foro está para a palavra pobre, que pode remeter à ideia que se traduz normalmente como humilde de espírito ou miserável de espírito ou mesmo espiritualmente dependente de outrem etc. Outra possível metáfora é quando ele assegura ser bem-aventurado “os que têm fome e sede de justiça” (Mt 5. 6), sendo o foro fome e sede, e justiça pode ser considerado como o tema. Isso para expressar a ideia de um desejo de justiça comparado à fome e à sede que sente o ser humano. Ainda nas bem-aventuranças, ele assegura ser bem-aventurados os “limpos de coração”108 ou de coração limpo (Mt 5. 8). Como na linguagem judaica coração não significa uma esfera interna do homem ou o órgão do corpo, mas o centro do querer, pensar e sentir humano (LUZ, 1993), logo é uma realidade cognoscível ou conceitual, porém, pode-se afirmar que coração é o tema, sendo o termo limpo o foro. Contudo, os dois termos, a depender do ponto de vista que se adote, podem estar no âmbito metafórico. Mas como a palavra limpo ou puro remete à ideia de limpeza ligada à prática judaica de cerimônias ritualísticas de purificação relacionadas ao culto judeu, então limpo pode ser entendido como o foro. Observa-se mais uma interação metafórica quando Jesus diz aos seus ouvintes ou aos discípulos: “Vós o sal da terra”. Desta forma, o tema são os discípulos e o foro o sal da terra. 107 108 ptochoí to pneúmati. katharoí te kardía. 120 Com isso se pode observar também que sal da terra pode ser, a depender do ponto de vista que se assuma, compreendido como metáfora, pois terra remete ao sentido de humanidade. Talvez haja, neste caso, uma metáfora mais sofisticada em que sal seja um termo que coteje uma relação metafórica tanto para os discípulos como para terra. De igual modo, o orador assegura “Vós sois a luz do mundo” (Mt 7. 14), sendo o tema os discípulos e o foro a luz. Há, portanto, uma interação entre termos de naturezas diferentes; no primeiro caso, de natureza mineral com os discípulos e, no outro caso, de natureza física com esses mesmos. O orador Jesus, ao ensinar sobre o ato de dar esmola, usa a expressão “não toques trombeta diante de ti” (Mt 6. 2). Toques trombeta como metáfora de anunciar, gritar, dizendo respeito ao ato de se dar esmola e dizer a todos que o fez. Jesus, ao falar de não se acumular “tesouros sobre a terra”, usa a mesma palavra para falar de se juntar “tesouros no céu” (Mt 6. 19), sendo esta última possível de verificação de haver uma metáfora, dado que o tema seria céu, a realidade transcendente, e tesouros do âmbito das riquezas materiais. Há, portanto, a fusão de duas realidades representadas pelos termos apontados. O orador Jesus emprega outra metáfora afirmando que são “os olhos a lâmpada do corpo” (Mt 6. 22). Busca em um objeto de uso cotidiano, a lâmpada, o foro para a metáfora que tem como tema os olhos. Assim, tal metáfora dá fundamento ao desenvolvimento de outro raciocínio que serve à argumentação do orador palestino, qual seja, a relação que se tem com o ato de servir às riquezas ou a Deus. Outro uso metafórico empregado por Jesus está ao ensinar sobre “servir a Deus e às riquezas” (Mt 6. 24), sendo o uso do verbo servir a Deus no sentido comum do termo, cujo ato é de uma pessoa servir a outra (Deus), mas já ao ser empregado no sentido de “servir às riquezas”, o termo servir reveste-se de valor metafórico, pois a riqueza está em uma dimensão não-pessoa. Destarte, pode-se considerar a palavra riqueza o tema e o verbo servir o foro. Jesus utiliza algumas metáforas ao falar sobre a ansiedade pela vida. Desse modo, ao dar uma ilustração de que “nem Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles [lírios do campo]. Ora, se Deus veste assim a erva do campo [...]” (Mt 6. 29, 30), o orador está empregando uma metáfora em que faz a fusão de duas realidades: a de atitudes humanas de vestir roupa, com o florescimento da erva do campo. 121 Ao falar sobre o ato de jugar, Jesus usa duas metáforas: “Por que vês o argueiro no olho do teu irmão, porém não reparas na trave que está no teu próprio?” (Mt 7. 3). Assim, “argueiro [cisco, farpa de palha ou madeira] no olho” pode ser tomado como metafórico, contudo com mais força a expressão “trave no olho”, cujo significado de trave pode remeter à ideia de uma viga ou peça daquelas de madeira utilizadas em construção como suporte horizontal para travar o madeiramento (HENDRIKSEN, 2001, p. 505). Quando Jesus assegura que pelos frutos se conhecem os falsos profetas, ele está se servindo de uma metáfora: “[...] pelos seus frutos os conhecereis [os falsos profetas]” (Mt 7. 20). Há duas realidades fundidas, a do âmbito natural e a do humano. Por fim, constata-se que o orador Jesus Cristo fez uso, de forma mais explícita, de 39 argumentos que fundamentam a estrutura do real. Vê-se a quantidade de cada argumento no Quadro (3) abaixo: Quadro 3 Ademais, pode-se assegurar que as perícopes analisadas aqui poderiam, sob outra perspectiva, serem analisadas e delas se obter conclusões diferentes. Isso porque as conclusões de todos os raciocínios, como os analisados à luz do Tratado da argumentação, podem ser submetidos sempre a uma nova prova, podendo ser refutados ou superados, ou mesmo porque a prova retórica é utilizada para justificar fatos e não para demonstrá-los. 122 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Se Cristo foi apenas um personagem humano, ele de fato foi um personagem humano muito complexo e contraditório. [...]. O que ele dizia era sempre inesperado, mas era sempre inesperadamente magnânimo e inesperadamente moderado. [...] Cristo é onisciente em outro sentido: ele não apenas sabe, mas sabe que sabe (CHESTERTON, 2010, p. 216, 217). Esse trabalho possibilitou ampliar a compreensão sobre as técnicas argumentativas de uma emblemática figura milenar, Jesus Cristo. Sob o olhar do Tratado da argumentação, pôde-se perceber o uso consciente e abundante que esse orador faz de técnicas com vistas ao convencimento/persuasão de seu auditório. Portanto, vê-se que o Sermão do monte abunda em estratégias argumentativas, sendo, por assim dizer, construção de um orador habilidoso e versátil retoricamente. Viu-se que a Nova Retórica contempla tanto a adesão intelectual quanto a ação, ou criar uma disposição para esta. Logo, a eficácia de uma argumentação está vinculada à intensidade da adesão que ela consegue obter, ou, pelo menos, crie uma disposição para a ação em tempo oportuno, possibilitando desencadear nos ouvintes a ação pretendida, que pode ser positiva ou mesmo uma abstenção. Para tanto, viu-se que o orador pode utilizar as mais diferentes técnicas argumentativas para obter o resultado pretendido por meio de seu discurso. Essas técnicas podem visar tanto a ação sobre a vontade como sobre o intelecto. A partir dessas noções, verifica-se com esse estudo que o orador Jesus Cristo explora muito bem essas possibilidades, tanto que se pôde enquadrar o Sermão do monte como gênero retórico epidíctico, na acepção de Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005). Como já dito, os discursos epidícticos, para Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005), são uma parte central na arte de persuadir. Isso significa dizer que os resultados da adesão não contemplam somente o intelecto, ou apenas para mostrar que uma tese é mais provável que outra, porém, para reforçar a proposição até que a ação seja efetivada. Quanto a isso, pôde-se observar que o orador Jesus, em várias partes do sermão, mostra preocupar-se com a ação de seus ouvintes a partir de seu discurso proferido, tanto que, ao final da prédica, ele deixa bem categórico: “Todo aquele, pois, que ouve estas minhas palavras e as pratica será comparado a um homem prudente [...]”, quem faz o contrário ele compara a um homem insensato (Mt 7. 24 – 27). 123 Como resultado de pesquisa, pode-se afirmar que o discurso de Jesus pretende um efeito sobre a integralidade dos ouvintes. Isso se verifica pelo bom uso que esse orador faz da epidíctica. Para assegurar isso, seria preciso verificar que há o uso abundante tanto de argumentos quaselógicos, quanto de argumentos que dizem respeito à estrutura do real. Esses argumentos, por sua vez, são utilizados a partir de acordos que são, respectivamente, referentes ao real e ao preferível. Destarte, cabe ressaltar que a Nova Retórica é um aporte teórico de análise privilegiada para a compreensão de um discurso como o estudado, pois possibilita uma análise integradora das faculdades humanas. Assim, nesse trabalho, foi possível observar que o orador Jesus parte de acordos que dizem respeito tanto ao preferível - pois utiliza-se de valores ligados ao auditório particular - a exemplo das bem-aventuranças (Mt 5. 3 – 10), como também argumenta a partir do objeto de acordo referente ao real, no caso um fato, a Lei (Mt 5. 18). Deste modo, o orador inicia seu discurso com as bem-aventuranças, que exprimem os valores do reino dos céus, estabelece um acordo com o auditório particular por meio desses valores, mas logo cuida também de estabelecer um acordo que versa sobre um fato, constituindo-o como premissa central do sermão. Nesse trabalho, por sua vez, pôde-se observar que há certa habilidade de tal orador de transitar entre argumentos referentes ao real e ao preferível. Para tanto, ele faz bem a harmonização da ação sobre o intelecto e sobre a emoção (vontade) pertinente ao gênero epidíctico. Sendo assim, ele concebe o auditório particular para o qual dirigia seu discurso também como encarnação do auditório universal. No sermão, o uso que orador faz de valores universais (Mt 5. 21 – 48) aponta essa relação em que o auditório particular, por vez, é encarnação do universal. Vale lembrar o que Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p. 86) disseram quanto a isso: “O auditório real poderá considerar tanto mais próximo de um auditório universal quanto mais o valor particular parecer apagar-se ante ao valor universal por ele determinado”. Os valores particulares podem servir para especificar os valores universais. Disso se pode concluir que, quando Jesus utiliza especificações dos valores, ele o faz como estratégia para persuadir seu auditório real, que é heterogêneo. Em seu discurso, o orador argumenta em favor de se viver uma justiça superior aos dos escribas e fariseus, enquanto argumenta contra práticas hipócritas de tais representantes religiosos da época; sendo assim, ele ensina seus ouvintes a não viverem com os tais. Para tanto, o orador lança mão da força de abundantes argumentos quase-lógicos (58 argumentos), 124 argumentos baseados na estrutura do real (46 argumentos) e argumentos que fundamentam a estrutura do real (39 argumentos). Apesar de os argumentos que dizem respeito ao preferível (baseados e que fundamentam a estrutura do real) superarem quantitativamente os argumentos referentes ao real (quaselógicos), isso não significa que os mesmos sejam menos importantes, mas porque há menos categorias teóricas para estes, além de que os mesmos são fundamentais para o orador, no sermão, desenvolver sua argumentação a partir do acordo central que é sobre um fato, a Lei. Sendo assim, conclui-se que a relação entre convencimento e persuasão é, de fato, bastante tênue, e que o orador Jesus, ao argumentar para um auditório heterogêneo, consegue articular argumentos tanto do âmbito do real quanto do preferível, para justificar suas proposições. Por certo, o estudo aqui realizado no Sermão do monte alarga um importante caminho para outros tantos estudos argumentativos sobre tal discurso, que, certamente, se faz necessário dado à riqueza argumentativa de tal texto. Como o Tratado da Argumentação pressupõe-se que as conclusões dos raciocínios sempre podem ser submetidas a uma nova prova - podendo ser superadas ou refutadas -, não deve ser diferente em relação às analises procedidas nesse trabalho, pois a análise retórica não trabalha para demonstrar fatos, mas para justificá-los. 125 REFERÊNCIAS ANGLADA, P. R. B. A teoria de Westcott e Hort e o texto grego do Novo Testamento: Um ensaio em Manuscritologia Bíblica. Fides Reformata, São Paulo: 1996. 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ANEXO O Sermão do Monte109 5 Vendo Jesus as multidões, subiu ao monte, e, como se assentasse, aproximaram-se os seus discípulos; 2 e ele passou a ensiná-los, dizendo: 3 Bem-aventurados os humildes de espírito, porque deles é o reino dos céus. 4 Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados. 5 Bem-aventurados os mansos, porque herdarão a terra. 6 Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão fartos. 7 Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia. 8 Bem-aventurados os limpos de coração, porque verão a Deus. 9 Bem-aventurados os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus. 10 Bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus. 11 Bem-aventurados sois quando, por minha causa, vos injuriarem, e vos perseguirem, e, mentindo, disserem todo mal contra vós. 12 Regozijai-vos e exultai, porque é grande o vosso galardão nos céus; pois assim perseguiram aos profetas que viveram antes de vós. 13 Vós sois o sal da terra; ora, se o sal vier a ser insípido, como lhe restaurar o sabor? Para nada mais presta senão para, lançado fora, ser pisado pelos homens. 14 Vós sois a luz do mundo. Não se pode esconder a cidade edificada sobre um monte; 15 nem se acende uma candeia para colocá-la debaixo do alqueire, mas no velador, e alumia a todos os que se encontram na casa. 16 Assim brilhe também a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas 109 Capítulos referentes ao Sermão do Monte contido no evangelho de Mateus. Versão João Ferreira de Almeida, Revista e Atualizada, 2011. obras e glorifiquem a vosso Pai que está nos céus. 17 Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas; não vim para revogar, vim para cumprir. 18 Porque em verdade vos digo: até que o céu e a terra passem, nem um i ou um til jamais passará da Lei, até que tudo se cumpra. 19 Aquele, pois, que violar um destes mandamentos, posto que dos menores, e assim ensinar aos homens, será considerado mínimo no reino dos céus; aquele, porém, que os observar e ensinar, esse será considerado grande no reino dos céus. 20 Porque vos digo que, se a vossa justiça não exceder em muito a dos escribas e fariseus, jamais entrareis no reino dos céus. 21 Ouvistes que foi dito aos antigos: Não matarás; e: Quem matar estará sujeito a julgamento. 22 Eu, porém, vos digo que todo aquele que sem motivo110 se irar contra seu irmão estará sujeito a julgamento; e quem proferir um insulto a seu irmão estará sujeito a julgamento do tribunal; e quem lhe chamar: Tolo, estará sujeito ao inferno de fogo. 23 Se, pois, ao trazeres ao altar a tua oferta, ali te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti, 24 deixa perante o altar a tua oferta, vai primeiro reconciliar-te com teu irmão; e, então, voltando, faze a tua oferta. 25 Entra em acordo sem demora com o teu adversário, enquanto estás com ele a caminho, para que o adversário não te entregue ao juiz, o juiz, ao oficial de justiça, e sejas recolhido à prisão. 26 Em verdade te digo que não sairás dali, enquanto não pagares o último centavo. 27 Ouvistes que foi dito: Não adulterarás. 110 Nesta e nas demais transcrições, termos e frases grafados em itálico indicam incerteza quanto à sua originalidade no texto grego. Alguns preferem coloca-los em colchetes. 28 Eu, porém, vos digo: qualquer que olhar para uma mulher com intenção impura, no coração, já adulterou com ela. 29 Se o teu olho direito te faz tropeçar, arranca-o e lança-o de ti; pois te convém que se perca um dos teus membros, e não seja todo o teu corpo lançado no inferno. 30 E, se a tua mão direita te faz tropeçar, corta-a e lança-a de ti; pois te convém que se perca um dos teus membros, e não vá todo o teu corpo para o inferno. 31 Também foi dito: Aquele que repudiar sua mulher, dê-lhe carta de divórcio. 32 Eu, porém, vos digo: qualquer que repudiar sua mulher, exceto em caso de relações sexuais ilícitas, a expõe a tornarse adúltera; e aquele que casar com a repudiada comete adultério. 33 Também ouvistes que foi dito aos antigos: Não jurarás falso, mas cumprirás rigorosamente para com o Senhor os teus juramentos. 34 Eu, porém, vos digo: de modo algum jureis; nem pelo céu, por ser o trono de Deus; 35 nem pela terra, por ser estrado de seus pés; nem por Jerusalém, por ser cidade do grande Rei; 36 nem jures pela tua cabeça, porque não podes tornar um cabelo branco ou preto. 37 Seja, porém, a tua palavra: Sim, sim; não, não. O que disto passar vem do maligno. 38 Ouvistes que foi dito: Olho por olho, dente por dente. 39 Eu, porém, vos digo: não resistais ao perverso; mas, a qualquer que te ferir na face direita, volta-lhe também a outra; 40 e, ao que quer demandar contigo e tirarte a túnica, deixa-lhe também a capa. 41 Se alguém te obrigar a andar uma milha, vai com ele duas. 42 Dá a quem te pede e não voltes as costas ao que deseja que lhe emprestes. 43 Ouvistes que foi dito: Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo. 44 Eu, porém, vos digo: amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem; 45 para que vos torneis filhos do vosso Pai celeste, porque ele faz nascer o seu sol sobre maus e bons e vir chuvas sobre justos e injustos. 46 Porque, se amardes os que vos amam, que recompensa tendes? Não fazem os publicanos também o mesmo? 47 E, se saudardes somente os vossos irmãos, que fazeis de mais? Não fazem os gentios também o mesmo? 48 Portanto, sede vós perfeitos como perfeito é o vosso Pai celeste. 6 Guardai-vos de exercer a vossa justiça diante dos homens, com o fim de serdes vistos por eles; doutra sorte, não tereis galardão junto de vosso Pai celeste. 2 Quando, pois, deres esmola, não toques trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas, nas sinagogas e nas ruas, para serem glorificados pelos homens. Em verdade vos digo que eles já receberam a recompensa. 3 Tu, porém, ao dares a esmola, ignore a tua mão esquerda o que faz a tua mão direita; 4 para que a tua esmola fique em secreto; e teu Pai, que vê em secreto, te recompensará. 5 E, quando orardes, não sereis como os hipócritas; porque gostam de orar em pé nas sinagogas e nos cantos das praças, para serem vistos dos homens. Em verdade vos digo que eles já receberam a recompensa. 6 Tu, porém, quando orares, entra no teu quarto e, fechada a porta, orarás a teu Pai, que está em secreto; e teu Pai, que vê em secreto, te recompensará. 7 E, orando, não useis de vãs repetições, como os gentios; porque presumem que pelo seu muito falar serão ouvidos. 8 Não vos assemelheis, pois, a eles; porque Deus, o vosso Pai, sabe o de que tendes necessidade, antes que lho peçais. 9 Portanto, vós orareis assim: Pai nosso, que estás nos céus, santificado seja o teu nome; 10 venha o teu reino; faça-se a tua vontade, assim na terra como no céu; 11 o pão nosso de cada dia dá-nos hoje; 12 e perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós temos perdoado aos nossos devedores; 13 e não nos deixes cair em tentação; mas livra-nos do mal pois teu é o reino, o poder e a glória para sempre. Amém! 14 Porque, se perdoardes aos homens as suas ofensas, também vosso Pai celeste vos perdoará; 15 se, porém, não perdoardes aos homens as suas ofensas, tampouco vosso Pai vos perdoará as vossas ofensas. 16 Quando jejuardes, não vos mostreis contristados como os hipócritas; porque desfiguram o rosto com o fim de parecer aos homens que jejuam. Em verdade vos digo que eles já receberam a recompensa. 17 Tu, porém, quando jejuares, unge a cabeça e lava o rosto, 18 com o fim de não parecer aos homens que jejuas, e sim ao teu Pai, em secreto; e teu Pai, que vê em secreto, te recompensará. 19 Não acumuleis para vós outros tesouros sobre a terra, onde a traça e a ferrugem corroem e onde ladrões escavam e roubam; 20 mas ajuntai para vós outros tesouros no céu, onde traça nem ferrugem corrói, e onde ladrões não escavam, nem roubam; 21 porque, onde está o teu tesouro, aí estará também o teu coração. 22 São os olhos a lâmpada do corpo. Se os teus olhos forem bons, todo o teu corpo será luminoso; 23 se, porém, os teus olhos forem maus, todo o teu corpo estará em trevas. Portanto, caso a luz que em ti há sejam trevas, que grandes trevas serão! 24 Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de aborrecer-se de um e amar ao outro, ou se devotará a um e desprezará ao outro. Não podeis servir a Deus e às riquezas. 25 Por isso, vos digo: não andeis ansiosos pela vossa vida, quanto ao que haveis de comer ou beber; nem pelo vosso corpo, quanto ao que haveis de vestir. Não é a vida mais do que o alimento, e o corpo, mais do que as vestes? 26 Observai as aves do céu: não semeiam, não colhem, nem ajuntam em celeiros; contudo, vosso Pai celeste as sustenta. Porventura, não valeis vós muito mais do que as aves? 27 Qual de vós, por ansioso que esteja, pode acrescentar um côvado ao curso da sua vida? 28 E por que andais ansiosos quanto ao vestuário? Considerai como crescem os lírios do campo: eles não trabalham, nem fiam. 29 Eu, contudo, vos afirmo que nem Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles. 30 Ora, se Deus veste assim a erva do campo, que hoje existe e amanhã é lançada no forno, quanto mais a vós outros, homens de pequena fé? 31 Portanto, não vos inquieteis, dizendo: Que comeremos? Que beberemos? Ou: Com que nos vestiremos? 32 Porque os gentios é que procuram todas estas coisas; pois vosso Pai celeste sabe que necessitais de todas elas; 33 buscai, pois, em primeiro lugar, o seu reino e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas. 34 Portanto, não vos inquieteis com o dia de amanhã, pois o amanhã trará os seus cuidados; basta ao dia o seu próprio mal. 7 Não julgueis, para que não sejais julgados. 2 Pois, com o critério com que julgardes, sereis julgados; e, com a medida com que tiverdes medido, vos medirão também. 3 Por que vês tu o argueiro no olho de teu irmão, porém não reparas na trave que está no teu próprio? 4 Ou como dirás a teu irmão: Deixa-me tirar o argueiro do teu olho, quando tens a trave no teu? 5 Hipócrita! Tira primeiro a trave do teu olho e, então, verás claramente para tirar o argueiro do olho de teu irmão. 6 Não deis aos cães o que é santo, nem lanceis ante os porcos as vossas pérolas, para que não as pisem com os pés e, voltando-se, vos dilacerem. 7 Pedi, e dar-se-vos-á; buscai e achareis; batei, e abrir-se-vos-á. 8 Pois todo o que pede recebe; o que busca encontra; e, a quem bate, abrir-se-lhe-á. 9 Ou qual dentre vós é o homem que, se porventura o filho lhe pedir pão, lhe dará pedra? 10 Ou, se lhe pedir um peixe, lhe dará uma cobra? 11 Ora, se vós, que sois maus, sabeis dar boas dádivas aos vossos filhos, quanto mais vosso Pai, que está nos céus, dará boas coisas aos que lhe pedirem? 12 Tudo quanto, pois, quereis que os homens vos façam, assim fazei-o vós também a eles; porque esta é a Lei e os Profetas. 13 Entrai pela porta estreita (larga é a porta, e espaçoso, o caminho que conduz para a perdição, e são muitos os que entram por ela), 14 porque estreita é a porta, e apertado, o caminho que conduz para a vida, e são poucos os que acertam com ela. 15 Acautelai-vos dos falsos profetas, que se vos apresentam disfarçados em ovelhas, mas por dentro são lobos roubadores. 16 Pelos seus frutos os conhecereis. Colhem-se, porventura, uvas dos espinheiros ou figos dos abrolhos? 17 Assim, toda árvore boa produz bons frutos, porém a árvore má produz frutos maus. 18 Não pode a árvore boa produzir frutos maus, nem a árvore má produzir frutos bons. 19 Toda árvore que não produz bom fruto é cortada e lançada ao fogo. 20 Assim, pois, pelos seus frutos os conhecereis. 21 Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai, que está nos céus. 22 Muitos, naquele dia, hão de dizer-me: Senhor, Senhor! Porventura, não temos nós profetizado em teu nome, e em teu nome não expelimos demônios, e em teu nome não fizemos muitos milagres? 23 Então, lhes direi explicitamente: nunca vos conheci. Apartai-vos de mim, os que praticais a iniqüidade. 24 Todo aquele, pois, que ouve estas minhas palavras e as pratica será comparado a um homem prudente que edificou a sua casa sobre a rocha; 25 e caiu a chuva, transbordaram os rios, sopraram os ventos e deram com ímpeto contra aquela casa, que não caiu, porque fora edificada sobre a rocha. 26 E todo aquele que ouve estas minhas palavras e não as pratica será comparado a um homem insensato que edificou a sua casa sobre a areia; 27 e caiu a chuva, transbordaram os rios, sopraram os ventos e deram com ímpeto contra aquela casa, e ela desabou, sendo grande a sua ruína. 28 Quando Jesus acabou de proferir estas palavras, estavam as multidões maravilhadas da sua doutrina; 29 porque ele as ensinava como quem tem autoridade e não como os escribas.