Hume, Kant, Schulze e a relação entre ceticismo e filosofia
Lucas Nascimento Machado∗
RESUMO
Em nosso artigo, discutiremos a relação entre ceticismo e filosofia tal como ela se daria na
conexão entre Hume, Kant e Schulze. Nesse sentido, discutiremos de que maneiras o ceticismo
de Hume, ao problematizar a legitimidade do uso da relação de causalidade para se obter um
conhecimento racional (quer dizer, seguro e objetivo) do mundo, seria fundamental para o
projeto crítico de Kant, levando-o a conceber a necessidade da determinação dos limites da
razão teórica. A seguir, mostraremos como Schulze critica a filosofia kantiana em sua pretensão
de realizar essa determinação e mostrar como ela não dá conta de responder às objeções
humeanas, na medida em que o projeto kantiano incorreria em certa petição de princípio ao
recorrer ao uso da relação de causalidade para fundamentar-se, quando é a legitimidade da
própria que está em questão. Sendo assim, nosso artigo buscará, de uma maneira geral, expor
alguns dos aspectos de um dos momentos centrais do embate entre ceticismo e filosofia e da
discussão sobre a relação entre ceticismo e filosofia que se dá no interior do idealismo alemão.
Esperamos assim mostrar como considerações acerca do embate entre ceticismo e filosofia
nesse momento da história da filosofia, bem como acerca dos conceitos envolvidos e utilizados
nesse debate, são de grande interesse para se pensar algumas das questões mais centrais à
filosofia.
PALAVRAS-CHAVE: Ceticismo. Criticismo. Determinação.
1. Introdução
Ceticismo e filosofia parecem ter tido, desde sempre, relações muito conturbadas.
Afinal, é de se esperar que uma forma de pensar que coloca em questão o conhecimento
efetivo e definitivo dentro de qualquer área do saber filosófico seja vista com maus olhos por
aqueles para os quais a possibilidade da filosofia alcançar tal espécie de conhecimento seria
indispensável à sua própria noção do que é a filosofia e qual é a sua tarefa.
∗
Mestrando em filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Email: [email protected].
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Entretanto, essa tensão entre ceticismo e filosofia ou, para falar mais precisamente,
entre filosofias céticas e filosofias não-céticas, muito antes de ser uma oposição árida e estéril,
parece-nos ter produzido, em diversos momentos da história da filosofia, resultados muito
interessantes e significativos. Talvez um dos momentos mais dignos de atenção, nesse sentido,
seja o do idealismo alemão. Com efeito, muito diferentemente do que uma série de
preconceitos com esse momento da história da filosofia pode levar a crer, o idealismo alemão,
muito antes de se furtar do embate e da reflexão sobre o ceticismo, talvez seja um dos
períodos filosóficos que mais se debruçou sobre o ceticismo e cuja reflexão sobre o ceticismo
mais influenciou e definiu as filosofias e os sistemas filosóficos que foram constituídos nele.
Nessa apresentação, buscaremos expor brevemente apenas um dos momentos,
dentro do idealismo alemão no qual essa relação entre ceticismo e filosofia teria sido central.
Para tanto, faremos uma breve exposição das considerações humeanas sobre a relação de
causa e efeito, ligando-as, a seguir, com Kant e o seu projeto filosófico visado pela sua Crítica da
Razão Pura. Por fim, veremos como as críticas de Schulze, um cético moderno da época de
Kant, tocariam em pontos fundamentais sobre a Crítica que dizem respeito, em certo sentido,
precisamente ao quão bem sucedida ela teria sido em superar as objeções céticas. Esperamos,
dessa maneira, que sejamos capazes de indicar um sentido fundamental em que a relação entre
ceticismo e filosofia teria sido central para os desenvolvimentos e desdobramentos do
idealismo alemão.
2. Hume: Dúvidas e soluções céticas para o critério sobre questões de fato
Em seu Investigações sobre o entendimento humano, Hume faz a sua conhecida crítica
à causalidade, ao menos enquanto se pretende que essa seja um modo de conhecimento
racional – e, por conseguinte, seguro – da realidade, das coisas tal como elas existem. Nesse
sentido, o que se buscaria estabelecer, por meio de seu exame sobre a relação de causa e
efeito, não seria a inadequação de seu uso na experiência – posto que esse uso seria necessário
e inevitável em nossas vidas cotidianas – mas sim que essa relação, na medida em que não é
fruto do entendimento, mas sim unicamente de nossa experiência, não pode nos fornecer
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qualquer espécie de conhecimento acerca da natureza das coisas. Em outras palavras, a
relação de causa e efeito seria incapaz de nos fornecer um conhecimento seguro sobre a
realidade, sobre aquilo que as coisas, efetivamente, são – e buscar penetrar na natureza íntima
das coisas por meio de tal relação seria um exercício vão.
Mas, por que percurso Hume permite-se chegar a essa conclusão? Em primeiro lugar,
Hume faz uma distinção entre dois tipos diferentes de questões, ou, como se queira, dois
objetos distintos da razão ou investigação humana: as relações de ideias e as questões de fato.
Quanto às relações de ideias, Hume nos diz que dessa espécie “são as ciências da geometria,
álgebra e aritmética, e, de modo geral, toda afirmação que seja intuitiva ou
demonstrativamente certa” (Hume, 2010, p.73). De fato, se as relações de ideias são intuitiva
ou demonstrativamente certas, isso se deve ao fato de que
Proposições dessa espécie [que dizem respeito à relação entre ideias] podem
ser descobertas pela mera operação do pensamento e independem da
existência de algo em qualquer lugar do universo. Mesmo que nunca houvesse
existido um círculo ou triângulo na natureza, as verdades demonstradas por
Euclides permaneceriam certas e evidentes (Hume, 2010, p.73).
Ora, podemos ver, desse modo, que já neste início de sua argumentação, Hume
estabelece uma distinção fundamental, pois se as relações de ideias são os objetos da
investigação humana que são intuitiva ou demonstrativamente certos, segue-se disso que os
demais objetos da investigação humana, as questões de fato, não podem ser intuitiva ou
demonstrativamente certas – de onde se segue que nenhum conhecimento certo e definitivo é
possível a respeito delas. As únicas certezas que podemos ter são a respeito da conexão entre
nossas ideias, precisamente porque tal conexão não depende de que os objetos nela pensados
existam verdadeiramente; são verdades sobre ideias, e por isso, não dependem de nada
exterior ao próprio pensamento, quer dizer, não dependem de que, para além do pensamento,
aquilo que se pensa exista de fato. Ora, mas o que se implica aqui é, naturalmente, que a partir
do momento em que o que está em questão não é mais apenas o objeto tal como ele é
pensado, mas sim em sua existência de fato, não mais seria possível ter um conhecimento
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seguro, posto a existência de fatodo objeto dependeria de algo além de apenas a forma com
que ele é pensado.
Entretanto, podemos nos perguntar: por que deveríamos considerar que aquilo que
depende unicamente do pensamento, as relações de ideias, pode ser seguramente conhecido,
enquanto as questões de fato, que não dependem unicamente do pensamento, não poderiam?
A esse respeito, Hume nos oferece a seguinte explicação: de que, enquanto as relações de
ideias não admitem os contrários, as questões de fato sim. O contrário de uma relação de ideias
não é possível, pois pensa-la de modocontrário levaria à contradição; daí a segurança e certeza
que podemos ter no que diz respeito ao nosso conhecimento da relação de ideias. O mesmo,
porém, não vale para questões de fato: pois, quando nos perguntamos sobre o que existe, é
possível tanto que algo exista quanto que não exista, tanto que aconteça quanto que não
aconteça, sem que com isso ocorra contradição. Seria absurdo pensar um triângulo equilátero
que não tivesse os ângulos iguais; pensar o seu contrário leva necessariamente à contradição.
Não seria contraditório, porém, pensar que não existe um triângulo equilátero, ou ainda que,
pelo contrário, existe um triângulo que não é equilátero. Quando falamos da existência de
algo, não entramos em contradição, pois não dizemos que algo é e não é ao mesmo tempo de
um determinado modo; dizemos, apenas, que algo existe ou não existe.
Ora, sendo assim, podemos nos perguntar: qual é a natureza da evidência que nos leva
a decidir sobre a existência ou não de algo? Se a existência de um objeto não pode ser decidida
unicamente por meio da forma como o pensamos, que outro recurso teríamos para poder
decidir a esse respeito? Para Hume, nenhum outro senão o da relação de causa e efeito. De
fato, nenhuma outra relação estaria por trás de nossa decisão sobre a existência ou não das
coisas; determinamos que algo existe precisamente na medida em que estabelecemos entre
esse algo e uma outra coisa que tomamos como existente uma relação de causa e efeito. Em
outras palavras: do fato de que algo existe, inferimos que outra coisa também existe – e
fazemos essa inferência ao ligar essas duas coisas por meio de uma relação de causa e efeito.
Como, porém, chegaríamos ao conhecimento de tal relação? De onde se origina esse
modo de relacionar objetos que nos permite decidir sobre a existência deles? Para Hume,
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em nenhum caso se alcança o conhecimento dessa relação por
raciocínios a priori, mas, pelo contrário, ele provém inteiramente da
experiência, através da qual verificamos que alguns objetos particulares,
sejam quais forem, se encontram constantemente unidos uns aos
outros (Hume, 2010, p.75).
Aqui, Hume parece querer indicar que, se o nosso conhecimento sobre a relação de
causa e efeito proviesse de raciocínios a priori, então, pelo mero conhecimento de um objeto,
poderíamos inferir quais são as suas causas ou os seus efeitos; no entanto, de acordo com o
filósofo, somos incapazes de tal inferência:
que se apresente um objeto a um homem dotado das mais vigorosas
habilidades e razão naturais, e, caso esse objeto lhe seja inteiramente
novo, nem mesmo o mais rigoroso exame de suas qualidades sensíveis o
capacitará para descobrir quaisquer de suas causas ou efeitos (Hume,
2010, p.75).
Nenhum objeto pode, por meio de suas qualidades sensíveis, nosmostrar os poderes
ocultos por meio dos quais ele foi produzido ou por meio dos quais ele produz a outros, o que
impossibilita que, por meio de uma mera operação racional a partir das qualidades sensíveis
dos objetos – unicamente as quais nos são acessíveis – possamos chegar a uma conclusão certa
e segura sobre suas causas e efeitos. Sendo assim, é preciso concluir que nosso conhecimento
sobre a relação de causa e efeito não provém de raciocínios a priori sobre os objetos, mas sim
de nossa experiência da conjunção constante de objetos diferentes entre si; é por meio dessa
conjunção, unicamente, que estabelecemos relações de causa e efeito entre objetos. Desse
modo, vemos que nosso modo de decisão ou raciocínio sobre questões de fato se fundamenta
na relação de causa e efeito que, por sua vez, se fundamenta na experiência.
Entretanto, poderíamos nos perguntar ainda: qual é o fundamento de todas as
conclusões a que chegamos por meio da experiência, quer dizer, o que nos leva a, por meio da
experiência, estabelecer relações de causa e efeito entre objetos? Mais uma vez, para Hume,
não poderíamos dizer que esse fundamento seria o raciocínio; pois por meio de que raciocínio
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eu chegaria à conclusão de que, por dois objetos terem estado constantemente juntos em
minha experiência, eles devem se encontrar em uma relação de causa e efeito? Igualmente,
não poderíamos colocar a probabilidade como fundamento dessas conclusões, na medida em
que isso seria incorrer em uma petição de princípio: pois é só pela relação de causa e efeito e
pelas conclusões a que chegamos por meio dela que decidimos sobre essa probabilidade, e são
justamente as conclusões a que chegamos pela experiência ao estabelecer relações de causa e
efeito que estão em questão. Queremos saber por que a experiência nos leva a estabelecer
relações de causa e efeito entre os objetos, e não podemos, para tanto, usar o estabelecimento
dessas próprias relações a que queremos explicar.
Em que se fundariam, então, as nossas conclusões tiradas a partir da experiência? Ora,
Hume nos diz, como estabelecemos uma relação de causa e efeito entre objetos na medida em
que esses objetos se seguem constantemente uns aos outros na experiência, podemos dizer
que o fundamento dessas conclusões não é outro senão o hábito, o costume. De tanto termos a
experiência desses objetos seguindo uns aos outros, nos acostumamos a, imediatamente, ao
termos a experiência de um objeto, passarmos da ideia desse objeto à ideia do objeto que
frequentemente o seguiu ou o antecedeu na experiência e atribuirmos também a esse último a
existência, mesmo que não tenhamos a experiência dele. O fundamento das nossas conclusões
obtidas a partir da experiência, que estabelecem ligações de causa e efeito entre os objetos,
não é, portanto, um fundamento racional; não é por argumentos que chegamos a ligar objetos
entre si por meio de uma relação de causa e efeito, mas sim por hábito: por nos acostumarmos
a experienciar que dois objetos frequentemente aparecem em sequência na experiência,
passamos a trata-los como se um fosse causa do outro, porque somos levados a esperar que,
uma vez existindo um deles, também existirá o outro. Não haveria raciocínio nesse processo;
apenas o mero impulso da imaginação que, depois de muito experienciarmos uma sucessão
entre dois objetos, imediatamente nos leva, da ideia de um desses objetos, à outra ideia.
A fim de compreendermos melhor a natureza dessa decisão sobre a existência ou não
de um objeto a que somos levados pelo hábito, Hume nos oferece ainda uma explicação
ulterior. Se somos levados a crer na existência de um objeto, mesmo que não o
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experienciemos, isso não se deve ao fato ligarmos a esse objeto uma ideia qualquer, por meio
da qual atribuímos a ele existência; nesse caso, bastaria que, a qualquer ideia que tivéssemos,
conectássemos essa ideia que atribui existência, e, dessa maneira, poderíamos acreditar até
mesmo nas nossas mais desvairadas imaginações. O que quer que nos leve a crer na existência
de um objeto não pode, portanto, ser uma ideia; resta, por conseguinte, que deve ser um
sentimento ou sensação, que não depende de nossa vontade, mas sim da natureza. A esse
sentimento, Hume chama, precisamente, de crença, crença que nada mais seria “do que uma
concepção mais vívida, vigorosa, indeclinável, firme e constante de um objeto do que a
imaginação é capaz de obter por si só” (Hume, 2010, p.97). Assim, se a relação de causa e efeito
nos leva a crer na existência de um objeto, mesmo que não tenhamos a experiência desse, isso
se deve ao fato de que, ao ligarmos o objeto experienciado ao objeto a ele associado por meio
dessa relação, a crença que temos necessariamente no objeto experienciado é transferida ao
objeto associado.
Dessa forma, temos uma explicação detalhada de por que processos e fundamentos
decidimos sobre as questões de fato, sobre a existência ou não de objetos. Contudo, como
vimos, as conclusões a que Hume chega derivam de uma série de considerações que, em
concordância com o próprio filósofo, poderíamos chamar de céticas; não por outro motivos, as
duas sessões em que desenvolve essas considerações, as seções 4 e 5 do livro, são chamadas,
respectivamente, de Dúvidas céticas sobre as operações do entendimento e solução céticas
para essas dúvidas. Se as dúvidas da seção quatro são céticas, isso se deveria ao fato de
colocarem em questão a possibilidade de um conhecimento certo, seguro e racional sobre as
questões de fato, sobre aquilo que existe. Pois, na medida em que, em questões de fato, o
contrário de um objeto sempre é possível, não seria possível, apenas pelo raciocínio, pelo
pensamento, determinar com certeza absoluta aquilo que existe e que não existe; muito pelo
contrário, o nosso critério para determinar o que existe e o que não existe não se fundamenta
em nossa razão, mas sim na relação de causa e efeito, que tem sua origem inteiramente na
experiência e se fundamenta não na razão, mas sim no hábito e na crença. Sendo assim, as
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dúvidas céticas colocam em questão a possibilidade das operações do entendimento serem
capazes de decidir sobre questões de fato.
Por outro lado, se a seção cinco, a da solução cética, é, por um lado, chamada de
soluçãoe, por outro, chamada de cética, isso se deveria, sobretudo, há dois motivos. Em
primeiro lugar, se é solução, é porque ela indica efetivamente os processos e fundamentos
pelos quais decidimos sobre questões de fato: a relação de causa e efeito, a experiência que a
fundamenta, o hábito que nos leva a, pela experiência, estabelecer essas relações. Em segundo
lugar, se essa solução, contudo, é cética, isso se deve ao fato de que, por meio dela, nenhum
conhecimento seguro sobre questões de fato é obtido; com efeito, ela chegaria até mesmo a
vedar toda a possibilidade de se obter tal conhecimento, na medida em que afirmaria que as
nossas decisões sobre questões de fato não se fundamentam no entendimento, na razão e,
portanto, não podem nos fornecer nenhum conhecimento certo e definitivo acerca do que
existe; por mais que estejamos acostumados a ver o sol nascer toda a manhã, é possível, que
um dia, ele não nasça mais. A relação de causa e efeito não nos fornece um critério de
conhecimento seguro das questões de fato; ela nos oferece apenas um critério prático, que
usamos por ser necessário em nossa vida cotidiana: não poderíamos nos conduzir em nossa
vida sem estabelecer relações de causa e efeito e, contudo, as relações que estabelecemos são
meramente prováveis, não nos oferecem um conhecimento seguro sobre a natureza, sobre o
poder oculto dos objetos, sobre se, mais do que serem ligados, por uma questão de costume,
em uma relação de causa e efeito, eles possuem de fato, essa ligação. O critério da causa e
efeito é um critério falível, e por isso, a solução de Hume quanto ao problema do critério para
nossas decisões sobre questões de fato é uma solução cética; ao mesmo tempo em que indica
que critério seria esse, nos lembra de que esse critério é, irremediavelmente, falível.
3.
Kant e o ceticismo como censura
É exaustivamente conhecida a importância que Kant atribui a Hume, por tê-lo
despertado de seu “sono dogmático”, graças às suas críticas à lei da causalidade. Igualmente
conhecido é o fato de que a Crítica da Razão Pura tenha como um de seus principais objetivos
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responder a essa objeção cética. Afinal, como vimos, a crítica de Hume tinha um resultado
fundamental: a saber, o de que, no que diz respeito às questões de fato, isso é, no que diz
respeito àquilo que existe, àquilo que se dá na experiência, nenhum conhecimento seguro e
infalível era possível. Nenhum conhecimento sobre questões de fato pode ser fundando pela
razão, pelo entendimento e, por isso mesmo, se mostra falível. Nenhum conhecimento seguro
sobre o mundo, sobre a realidade, está assegurado, pois aquilo que é da ordem do real, aquilo
que é da ordem do fato não pode ser conhecido de maneira puramente racional e, portanto,
não pode ser objeto de um conhecimento certo e seguro. Ora, isso equivale a dizer que não
podemos ter nenhum conhecimento seguro sobre aquilo que as coisas realmente são, aquilo
que são na realidade; não podemos, a partir daquilo que experienciamos sobre as coisas, ter
um conhecimento seguro do que elas sejam de fato. A experiência não é capaz de nos fornecer
um conhecimento definitivo sobre aquilo que se encontra para além dela, os poderes secretos
dos objetos a que Hume se referia. E, no entanto, ela seria a nossa única maneira de obter
algum conhecimento sobre a realidade das coisas – realidade que, contudo, se situa para além
dela. Se a relação de causa e efeito, por ter fundamento na experiência, é, na melhor das
hipóteses, um critério irremediavelmente falível para a decisão sobre questões de fato, ela
seria, no entanto, também o único critério disponível para esse tipo de decisão. Motivo pelo
qual estaríamos rendidos à impossibilidade de ter um conhecimento efetivo sobre a realidade
que ultrapasse a experiência e que, precisamente por ultrapassá-la, não fosse vítima de sua
necessária falibilidade. Sendo assim,temos que aceitarque, ao menos dentro de uma das
esferas da investigação humana, a falibilidade de nossos juízos acerca do objeto investigado é
irremediável. Mais do que isso; é preciso admitir que uma parte fundamental de nosso
relacionamento com o mundo não tem e não pode ter como seu fundamento a razão, mas sim
unicamente a crença e o hábito, fontes irracionais para o estabelecimento de nossos juízos
sobre e de nossa relação com o mundo.
Entretanto, é justamente essa conclusão que Kant não pode aceitar. Pois, de fato, isso
significaria dizer que a filosofia é incapaz de produzir conhecimentos sobre os objetos da
experiência que, no entanto, ultrapassem a essa ou, em outras palavras, de possuir algum
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conhecimento sobre os objetos da experiência que não seja falível e possa fornecer um
fundamento racional para o nosso modo de relacionarmo-nos com e compreendermos o
mundo. E, no entanto, para Kant, é precisamente com isso que a filosofia se ocupa: em
conhecer aquilo que, estando além da experiência, é, ao mesmo tempo, o seu
fundamentoracional, quanto ao tal não seria possível ter dúvidas. A filosofia busca conhecer os
objetos da experiência por meio do seu fundamentoracional que estaria para além dela,
precisamente porque, enquanto fundamento, não poderia estar submetido à incerteza e
insegurança característica de tudo aquilo que permanece nos limites da experiência. Para a
filosofia, portanto, é preciso fundamentar racionalmente a experiência; caso contrário, seria
necessário admitir que ao menos uma área de nossas investigações não pode adquirir a
segurança de uma ciência, estando excluída da racionalidade que, ao ver da filosofia, deve estar
necessariamente no fundamento de todas as nossas investigações, a fim de que seja possível
legitimarmos nossos juízos sobre o mundo e impedirmos dogmatismos incapazes de se
justificarem adequadamente.1
Porém, isso não leva Kant a considerar que seja necessário refutar integralmente
Hume; muito pelo contrário, tratar-se-ia de mostrar aquilo em que o filósofo estava correto e
aquilo em que se equivocou, precisamente por não compreender em que consistia a
pertinência de sua crítica. Com efeito, o ceticismo humeano, para Kant, estaria correto em
afirmar que, por meio da experiência, não podemos conhecer aquilo que as coisas são em si,
quer dizer, aquilo que elas são independentemente da experiência. Nesse sentido, Hume
estava certo em afastar o uso transcendente de princípios da razão pura, negando a
possibilidade de se conhecer as coisas tal como elas são em simesmas por meio meramente de
puros raciocínios acerca do objeto. E, se ele estava certo, isso se deveria, pelo menos, a dois
fatos: o primeiro, o de que só temos acesso às coisas por meio de nossas intuições, que
condicionam o objeto às nossas formas de intuição e, portanto, não nos dão acesso ao que ele
seria independentemente delas. O segundo, o de que mesmo aquilo que conhecemos sobre os
objetos que é independente da experiência, se refere, no entanto, unicamente aos objetos de
1
Cf. Kant, 1999, p.36.
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que temosexperiência, e não ao que esse eles são fora dela. Nesse sentido, a censura que o
ceticismo empreende é sempre bem-vinda, na medida em que mostra para a razão que ela
possui um limite.
No entanto, qual limite? É por não responder a essa pergunta que Hume se extravia do
caminho correto para a avaliação do conhecimento humano. O ceticismo, ainda que um passo
fundamental da filosofia (de fato, o segundo passo desta), na medida em que faz a razão
despertar de seu dogmatismo (o primeiro passo da filosofia), é insuficiente, posto que ele “só
restringe o nosso entendimento sem o limitar” (Kant, 1999, p.459) – limitação que seria
característica do terceiro passo da filosofia: o criticismo. O ceticismo pára na censura; por isso,
só enxerga a restrição do entendimento, sem enxergar o seu alcance; ele se extravia porque
apenas restringe, mostrando que há um limite, quando deveria limitar, apontando qual seja
esse.
Mas o que significa dizer que Hume apenas restringiu, quando deveria limitar?
Lembremos: para Hume, o critério para decidir sobre a realidade das coisas não é um critério
racional, pois a relação de causalidade teria sua origem na experiência e se fundamentaria no
hábito e na crença; sendo assim, o uso de tal relação não poderia nos fornecer nenhuma
espécie de conhecimento seguro a respeito do que os objetos são em si mesmos. A restrição
que Hume impõeà razão, ou, em outras palavras, ao entendimento, portanto, seria essa: a de
que não podemos conhecer, por meio dele, aquilo que as coisas são em si mesmas, e isso seria
demonstrado pelo fato de que a relação de causalidade não nos fornece nenhum
conhecimento seguro a esse respeito.
Se, para Kant, Hume, desse modo, só restringe ao entendimento, sem delimitá-lo,
poderíamos dizer que isso se deve ao fato de Kant considerar que a exposição dos limites do
entendimento humano de Hume não é uma exposição sistemática, quer dizer, não é uma
exposição que, partindo de um princípio seguro, deduz o entendimento como um todo e
exaustivamente, traçando definitivamente tanto o seu domínio quanto as suas fronteiras.
Hume simplesmente aponta que há algo que o entendimento não é capaz de nos fornecer, a
saber, o conhecimento das coisas, tal como elas são em si; no entanto, isso não decorre de
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Hume oferecer uma dedução por princípios da faculdade do entendimento, pela qual essa seria
plena e exaustivamente determinada; apenas se aponta que o entendimento é incapaz de algo,
sem se determinar suficientemente o porquê. Para que Hume, mais do que restringir ao
entendimento, tivesse-o limitado, seria necessário que ele tivesse exposto o entendimento em
todas as suas capacidades, já que, só pela determinação exaustiva daquilo de que o
entendimento é capaz, se poderia decidir, de maneira igualmente exaustiva, aquilo de que ele
não é.
Não por outro motivo, Hume teria caído no engano de pensar que, porque o
entendimento não pode nos fornecer nenhum conhecimento seguro sobre o que as coisas são
em si mesmas, também não pode nos fornecer um conhecimento que, referindo-se aos objetos
da experiência – e, nesse sentido, à realidade -, seja, porém, seguro e necessário. Pois, não
tomando uma atitude crítica de limitar o entendimento, Hume foi levado a concluir que, por
não podermos ter um conhecimento seguro sobre o que os objetos são independentemente da
experiência, também não podermos ter qualquer conhecimento seguro sobre os objetos da
experiência – ou, em outras palavras, dos fenômenos - que, no entanto, não dependa dela.
O erro de Hume, e de seu ceticismo, nesse caso, não teria sido diferente do erro dos
dogmáticos: o de julgar que o fundamento da experiência seja as coisas tal como elas são em si
mesmas. O que o criticismo vem mostrar, porém, é precisamente que essa é uma
pressuposição errônea; ao lançar-se à determinação dos limites da razão pura (teórica) por
meio da sua dedução exaustiva a partir de princípios, o criticismo mostraria que se, por um
lado, o entendimento ou, de forma mais geral, a razão teórica pura, não pode conhecer o
objeto tal como ele é para além da experiência, ela é, contudo, condição de possibilidade da
experiência. Sendo assim, nosso conhecimento dos objetos da experiência não se regula por
esses mesmos objetos, mas, muito pelo contrário, são os objetos da experiência que se regulam
pelo nosso conhecimento.2Por esse motivo, é perfeitamente possível, a partir da razão pura, ter
conhecimentos seguros sobre os objetos da experiência que, no entanto, não dependem dela;
em outras palavras, ainda que não seja possível ter um conhecimento das coisas em si, é
2
Cf. idem ibid., p. 39.
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possível ter um conhecimento objetivo das coisas, tal como fenômenos.3 Isso se deveria ao fato
de que não são as coisas tais como elas são em si mesmas que estão no fundamento de nossa
experiência, mas sim nós mesmos, enquanto sujeitos transcendentais que, por meio de suas
faculdades da razão pura teórica, dão as condições de toda experiência possível. Dessa forma, o
criticismo recupera a possibilidade de se constituir uma ciência dos objetos da experiência, uma
ciência dos fenômenos, ainda que não da coisa em si, pela qual seríamos capazes de ter
conhecimentos a priori desses. Nesse sentido, a lei da causalidade seria apenas uma das muitas
categorias que são recuperadas como fontes de conhecimento seguro sobre a experiência, ao
mostrar-se que, muito antes de se originarem da experiência, essas categorias são condição de
possibilidade dela e, portanto, fornecem-nos um conhecimento seguro e necessário, ou em
outras palavras, um conhecimento a priori dos objetos da experiência.
Assim, para Kant, é apenas pelo ceticismo humeano não abranger o entendimento e as
suas sínteses a priori como um todo que ele não compreende que as suas objeções referem-se
unicamente ao uso transcendente das categorias do entendimento, àquele que é feito para
determinar os objetos tal como eles são em si. Dessa forma, Hume não teria compreendido, tal
como o criticismo o faz, que suas objeções não têm lugar em relação ao uso destas categorias
em relação ao fenômeno, já que a delimitação clara das formas a priori da intuição e do
entendimento, presentes no sujeito transcendental, mostra que elas são condição de toda
experiência possível. O criticismo, por meio da Crítica da Razão Pura, se prestaria a fazer
precisamente aquilo que o cético não teria alcançado com a sua censura: determinar os limites
do conhecimento humano. O criticismo, ao estabelecer a distinção entre fenômeno e coisa em
si, afirmando que as categorias do entendimento só são aplicáveis ao primeiro, daria o lugar
apropriado às objeções céticas: o alcance delas é o uso transcendente das categorias do
entendimento, quer dizer, o dogmatismo. Para além da censura ao dogmatismo, porém, elas
perderiam a sua validade, na medida em que se mostraria a necessidade das formas a priori da
intuição e da sensibilidade do sujeito transcendental para que toda e qualquer experiência seja
possível. Não apenas restringindo o conhecimento humano, mas sim o limitando, ou,
3
Cf. idem ibid., p.37
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poderíamos dizer, determinando os seus limites, o criticismo proveria, igualmente, a limitação
apropriada das objeções céticas: não cabe questionar o uso das categorias do entendimento
em relação a nossas representações, porque elas são condição a priori destas mesmas.
4.
Schulze – A réplica cética a Kant
Tal perspectiva, porém, será fortemente criticada por um dos mais proeminentes
céticos modernos, Schulze. Este cético, altamente influenciado por Hume, afirmará, em seu
Aenesidemus, que a Crítica da Razão Pura falhou em responder às objeções deste filósofo, na
medida em que tomou por pressuposto justamente aquilo que era questionado.
De que maneira isso se daria? Para Schulze, a Crítica operaria da seguinte maneira: sei
que tenho certas representações em minha consciência; ora, não posso pensar como essas
representações poderiam existir, senão pela existência de uma mente que contém as formas a
priori dessas representações que são a condição de sua possibilidade; consequentemente, essa
mente, com suas formas a priori da sensibilidade e do entendimento, existe objetivamente
como fundamento de minhas representações.4
Elaboremos. Lembremo-nos do que dissemos anteriormente: para Kant, a
determinação dos limites do conhecimento humano, quer dizer, a determinação da razão
teórica pura, viria mostrar que ela é condição de possibilidade da experiência; no entanto, de
que maneira isso seria mostrado? Para Schulze, de nenhuma outra forma, senão pelo seguinte
raciocínio: tenho representações em minha mente, cuja possibilidade não consigo conceber
sem pensar em um sujeito transcendental que seja condição de possibilidade dessas
representações. Ora, essas representações existem; por conseguinte, o sujeito transcendental
deve também, necessariamente, existir.
A segurança de tal maneira de proceder, entretanto, seria justamente aquilo que
Hume colocaria em questão: pois como passaríamos, de uma mera necessidade subjetiva de
ligar as nossas representações a um sujeito transcendental, para a necessidade objetiva de,
dada a existência de nossas representações, existir também o sujeito transcendental? Em
4
Cf. Schulze, 2000, p.116
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outras palavras, o argumento de Kant para estabelecer o sujeito transcendental como
fundamento seguro de nossa experiência seria, basicamente, uma inferência da existência de
nossas representações para a existência do sujeito transcendental. Entretanto, é precisamente
a segurança da inferência da existência de uma coisa a partir da existência de outra que Hume
colocava em questão, de tal forma que Kant, ao recorrer a essa mesma inferência para
responder às objeções humeanas sobre a relação de causa e efeito, incorre em petição de
princípio. Para responder a Hume, Kant teria pressuposto justamente aquilo que está em
questão, afirmando que, como nossas representações existem, e como não podemos pensar
sua existência sem pensar a existência de nossa mente com suas formas a priori do
entendimento e da intuição, temos que concluir que esta mente existe objetivamente.5Dada
aexistência de algo em nossa experiência, Kant infere a existência de algo que não se oferece na
experiência, julgando que haveria uma ligação necessária entre os objetos de que temos
experiência e um objeto de que não temos, o sujeito transcendental; mas era precisamente
essa inferência da existência de algo de que temos experiência para algo outro de que não
temos que Hume questionava no que concerne à sua segurança, e, mais do que isso, que Kant
negava, por meio de sua crítica, que fosse possível.
Sem dúvida, para Schulze, é verdade, como é para Kant, que o alcance da objeção
cética diz respeito única e simplesmente à pretensão de se conhecer as coisas tal como elas são
em si. Porém, Kant não teria se mantido dentro dos limites que ele mesmo impôs, pois, para
estabelecer a mente como fundamento de nossas representações, teria pretendido ser possível
conhecer um objeto que estaria para além da experiência, a saber, o sujeito transcendental.
Desse modo, ser coerente com aquilo que a crítica estabelece seriaadmitir que, até o presente
momento, não fomos capazes de ultrapassar os limites de nossas representações e que,
portanto, não podemos afirmar que qualquer fundamento seja absolutamente certo, na
medida em que isso equivaleria a afirmar sua objetividade, quando a representação só diz
respeito à sua validade subjetiva. A crítica não se coloca acima das objeções céticas e, por isso
mesmo, não fornece um fundamento seguro e indubitável para o conhecimento dos objetos da
5
Cf. Schulze, 2000, p. 116 e p.117
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experiência, mantendo em aberto a questão sobre a possibilidade de se encontrar tal
fundamento – motivo pelo qual nada restaria a fazer senão suspender o juízo acerca dessa
possibilidade até que de algum modo fosse demonstrada a possibilidade ou impossibilidade de
encontrá-lo.
Certamente, o modo como Schulze elabora suas objeções à Crítica da Razão pura pode
ser objetada de diversos modos; no entanto, mesmo que elas não sejam feita de um modo não
de todo feliz, acreditamos que elas sejam uma tentativa de apontar e atacar precisamente uma
das maiores dificuldades da Crítica kantiana: que fundamento se pode fornecer para a crítica
em sua delimitação e determinação da razão pura especulativa, se unicamente podemos
conhecer fenômenos?
6
Se só podemos conhecer os objetos da experiência, de que maneira
ainda seria possível a determinação dos limites daquilo que podemos conhecer teoricamente,
se a razão pura especulativa não pode, por uma exigência do próprio projeto crítico, ser
conhecida teoricamente, já que só podemos ter um conhecimento teórico de fenômenos?7 Se
não é possível conhecê-la, como seria possível determiná-la em sua possibilidade, em seus
limites, em seu alcance?8 Como seria possível fundamentar tal determinação, na medida em
que nenhum conhecimento teórico do objeto a ser determinado pode ser efetivamente obtido?
A partir deste questionamento, as críticas de Schulze, em seu Aenesidemus, à filosofia crítica,
parecem-nos ser mais profundamente esclarecidas, já que Schulze esforça-se minuciosamente
para mostrar como a Crítica não forneceria subsídios ou instrumentos para a fundamentação
dos limites que estabelece, na medida em que suas ferramentas não permitiriam o
conhecimento de nada que se situe para além da experiência (o que seria o caso precisamente
do sujeito transcendental e de sua razão pura especulativa). Assim, não sendo possível o
conhecimento teórico do objeto da Crítica da Razão Pura através das ferramentas que ela
mesma fornece, não seria possível a ela também fundamentar a determinação que faz de seu
objeto, na medida em que tal fundamentação só seria possível, ao menos na perspectiva de
Schulze, se este objeto pudesse efetivamente ser conhecido. Deste modo, na medida em que o
6
Cf. Kant,1999, p.40.
Cf. idem ibid., p.43.
8
Cf. idem ibid., p. 44.
7
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objeto da Crítica da Razão pura seria uma coisa em si, sua tentativa de conhecê-la falharia
necessariamente devido à natureza do próprio projeto da crítica, falhando, portanto, em
responder às objeções céticas, inclusive aquelas que mais teriam motivado o projeto crítico, as
de Hume.
5.
Considerações Finais
De uma forma geral, parece-nos possível traçar as seguintes considerações: para
responder às objeções humeanas, Kant julgou que fosse necessário determinar os limites do
conhecimento humano. Entretanto, uma dificuldade se impõe a essa determinação; afinal,
como determinar os limites do conhecimento humano, se esses limites, eles mesmos, não
podem ser conhecidos? Como determinar o limite da razão pura, se ela, precisamente por não
poder ser objeto da experiência, não poderia ser conhecida? Como determinar o limite do que
pode ser determinado, se ele mesmo não se encontra dentro desse limite? Schulze – assim
como outros filósofos de seu tempo – não deixou de notar essa dificuldade. Por isso, propôs
que uma filosofia crítica verdadeiramente coerente com os seus princípios, muito antes de
dever superar as objeções céticas, deve, pelo contrário, reconhece-las em todo o seu poder – a
tal ponto de que a filosofia verdadeiramente crítica só poderia ser uma filosofia cética. Em
certo sentido, poderíamos dizer que o desafio cético à filosofia é o de exigir que ela seja capaz
de determinar plenamente o seu objeto, quando isso, para o cético, parece impossível ou, no
mínimo, problemático. Hume coloca em questão a possibilidade de se determinar os objetos de
investigação que dizem respeito às questões de fato, quer dizer, de determinar o que existe e o
que não existe; Kant, por sua vez, busca dar conta das objeções de Hume por meio da
determinação da razão pura teórica; mas, mais uma vez, a determinação aparece como
problemática para o cético, e, na verdade, exatamente pelos mesmos motivos de antes: como
determinar aquilo que está além da experiência? É essa a questão fundamental que o cético –
quer ele seja Hume, quer ele seja Schulze – coloca para os proponentes ou continuadores da
filosofia crítica e do seu projeto – e esse é precisamente um dos principais motivos por que a
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relação entre ceticismo e filosofia, e a reflexão e a discussão extensas sobre essa relação,
desempenharão um papel fundamental no percurso do idealismo alemão.
Referências Bibliográficas
HUME, David. Investigações sobre o entendimento humano. Tradução de Alexandre Amaral
Rodrigues. São Paulo: Editora Hedra, 2010.
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Tradução de Valério Rohden e Udo Baldur Moosburger.
In: Os Pensadores. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1999.
SCHULZE, G. E. Aenesidemus. Tradução de H. S. Harris.In: DI GIOVANNI, George; HARRIS,
H.S.Between Kant and Hegel: texts in the development of post-kantian idealism. 2 ed.
Cambridge: Hackett Publishing Company, 2000.
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Lucas Nascimento Machado