Organização Sete de Setembro de Cultura e Ensino – LTDA Faculdade Sete de Setembro – FASETE Curso de Licenciatura em Letras (Português e Inglês) LUANA NASCIMENTO COSTA O LEGADO LENDÁRIO QUE COMPÕE O IMAGINÁRIO POPULAR DO MUNICÍPIO DE JEREMOABO/BA PAULO AFONSO – BA JUNHO - 2010 LUANA NASCIMENTO COSTA O LEGADO LENDÁRIO QUE COMPÕE O IMAGINÁRIO POPULAR DO MUNICÍPIO DE JEREMOABO/BA Monografia apresentada ao curso de Licenciatura em Letras com habilitação em Português e Inglês, da Faculdade Sete de Setembro – FASETE, como requisito para avaliação conclusiva. Sob a orientação da professora Ms. Maria do Socorro Pereira de Almeida. PAULO AFONSO- BA JUNHO – 2010 FACULDADE SETE DE SETEMBRO – FASETE CURSO DE LICENCIATURA EM LETRAS – HABILITAÇÃO PORTUGUÊS/INGLÊS PARECER DA COMISSÃO EXAMINADORA DE DEFESA DE MONOGRAFIA DE GRADUAÇÃO DE LUANA NASCIMENTO COSTA “O legado lendário que compõe o imaginário popular do imaginário do município de Jeremoabo/BA” A comissão examinadora, composta pelos professores abaixo, sob a presidência do (a) primeiro (a), considera a discente LUANA NASCIMENTO ________________. Paulo Afonso, 11 de junho de 2010. ____________________________________________ Prof. ª Maria do Socorro Pereira de Almeida, Mestre (Orientadora) ____________________________________________ Prof.º Isa Úrsole Bezerra de Brito, Especialista ____________________________________________ Prof. º Sandra Regina Leal Marcúla, Especialista COSTA Dedico este trabalho a minha mãe, estrela maior da minha vida. AGRADECIMENTOS Agradeço primeiramente a Deus que com sua mão e toque divino, a todo o momento, me amparou dando-me forças e iluminando-me para que pudesse chegar até o fim de mais uma entre tantas caminhadas. Ao meu pai Solon. E de forma muito especial, a minha mãe Maria que nunca mediu esforços para que eu pudesse chegar aonde eu cheguei, e que sempre almejou que eu tivesse um futuro brilhante não só como profissional mas também como pessoa. A meu irmão Artur que como digo ao próprio “és meu tudo e meu nada” pela paciência que dedicou a mim e, que de forma especial, sempre mostrou-se apto a ajudar-me nos momentos em que precisei. A Soraia Magna que a todo momento me incentivou e mostrou-se disponível no que fosse preciso para que este trabalho fosse realizado com êxito. A Rodrigo, Evangelista, tio Dedé, Carmelita de Dudé e Ana Rosa pela prestatividade e colaboração para realização deste trabalho. A KeiKo, Ana, Adriana e Rafaela companheiras de faculdade que durante quatro anos compartilhamos experiências, adversidades e, sobretudo, ensinamentos. A minha orientadora Socorro Almeida pelo auxílio e disponibilidade. Enfim, a todos aqueles que caminharam comigo nesta estrada durante quatro anos e que contribuíram de forma direta ou indireta para que esta fosse concluída com êxito. Não há grupo humano estável que além de ter a sua vida social, a sua sociedade, não tenha também a sua memória, a sua história, a sua cultura. Carlos Rodrigues Brandão COSTA, Luana Nascimento. O legado lendário que compõe o imaginário popular do município de Jeremoabo, BA. 2010. 59 f. Monografia (Licenciatura em Letras: Português e Inglês) – Faculdade Sete de Setembro – FASETE. Paulo Afonso, BA. Este trabalho de pesquisa visa compor o legado lendário que tem como cenário o município de Jeremoabo/Ba e que encontra-se vivo no imaginário local. A primeira parte da pesquisa é de cunho bibliográfico em que nos debruçamos sob o estudo de vários teóricos para nos embasarmos sobre alguns conceitos como cultura, literatura oral entre outros. A coleta de dados foi feita através de uma pesquisa de campo que nos permitiu colher grande parte das lendas sobre o citado município de, também foram investigados alguns dados documentais sobre a cidade. Para atingir o objetivo proposto esse trabalho se divide em três capítulos, o primeiro nos permitiu uma investigação sobre cultura, o segundo capítulo está montado sob a perspectiva da literatura popular e oral e por último nos empenhamos em apresentar as lendas. Ao final da pesquisa observou-se que a cidade de Jeremoabo é muito rica culturalmente, principalmente no que diz respeito à narrações de caráter lendário, observa-se assim, a composição de uma amostra montada por meio de narrações, em que pode-se observar intrinsecamente em seus enredos marcas sócio-culturais que retratam a sociedade e costumes locais e que permeiam o imaginário popular daqueles que habitam o município de Jeremoabo até os dias atuais. Palavras chave: lendas, imaginário popular, Jeremoabo. COSTA, Luana Nascimento. O legado lendário que compõe o imaginário popular do município de Jeremoabo, BA. 2010. 59 f. Monografia (Licenciatura em Letras: Português e Inglês) – Faculdade Sete de Setembro – FASETE. Paulo Afonso, BA. This research aims to make the legacy lendrio whose scenery of the municipality on Jeremoabo / Ba and who is living in imaginrio site. The first part of the investigation of nature in which we edged bibliogrfico under study for various Theoretically we based it on some concepts such as culture, oral literature among others. Data collection was done via a field survey that allowed us to reap most of the legends of the municipality on the aforementioned, were also investigated some documentary evidence of the city. To achieve this purpose this work is divided into three chapters, the first one allowed us Investigation on culture, the second chapter estmontado from the perspective of folk literature and oral and strive last one in presenting the legends. At the end of the study showed that the city of Jeremoabo very rich culturally, especially with regard narraes carter lendrio, there is thus the makeup of a sample mounted through narraes, where one can observe intrinsically plots in Sciocultural brands that portray the company and local customs and that permeate the popular imaginrio those living in the municipality on Jeremoabo acts of today. Keywords: legends, imaginrio popular, Jeremoabo. LISTA DE ILUSTRAÇÕES 1. Serra do Cavaleiro ou da Santa Cruz, Jeremoabo/Ba .................................. 37 2. Raso da Catarina, Jeremoabo/Ba.................................................................. 44 3. Antigo Casarão do Coronel João Sá, Jeremoabo/Ba .................................... 46 4. Igreja Matriz de São João Batista, Jeremoabo/Ba ........................................ 48 5. Cruz existente no alto da Serra da Santa Cruz, Jeremoabo/Ba .................... 49 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ..................................................................................... 10 1. CULTURA: O QUE É E COMO SE FAZ .......................................... 13 1.1 COMO A CULTURA É VISTA NOS PADRÕES SOCIAIS ............. 16 2. LITERATURA POPULAR E ORAL .................................................. 21 2.1 LITERATURA ORAL NO BRASIL ................................................... 24 2.2 AS LENDAS .................................................................................... 29 3. JEREMOABO: ASPECTOS HISTÓRICOS, GEOGRÁFICOS E SÓCIO- ECONOMICOS ....................................................................... 33 3.1 A CULTURA JEREMOABENSE ..................................................... 34 3.2 O LEGADO LENDÁRIO DE JEREMOABO .................................... 36 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................. 56 REFERÊNCIAS .................................................................................... 58 INTRODUÇÃO Diversas histórias são contadas de uma pessoa para outra em situações cotidianas: no trabalho, em momentos de lazer e em conversas entre vizinhos e amigos, em reuniões familiares onde os mais velhos contam histórias, casos para distrair e até mesmo amedrontar os mais novos. É assim, com a transmissão e retransmissão das histórias que a literatura oral ganha força e continua a perpetuar em nossas mentes. Quem não conhece ou nunca ouviu uma lenda, contos, adivinhações, travalínguas? Todas essas manifestações nos remetem à literatura, que por serem transmitidas por via oral, chamamo-las de Literatura Oral. Não se sabe ao certo quando surgia mas sabe-se que a mesma era utilizada a muito tempo a fim de transmitir ensinamentos, tradições e informações. Segundo Cascudo (1984, p. 29) “A literatura oral brasileira reúne todas manifestações da recreação popular, mantidas pela tradição”. Mas aí, resta-nos indagar se nossas tradições estão sendo realmente propagadas, transmitidas como devem ser, fazendo valer o valor semântico da palavra ou estão sendo perdidas e assim desmistificadas. É importante manter sempre vivas as tradições não só na memória, mas também na vida, no cotidiano das pessoas. É de vital importância instigar as pessoas a relembrarem, resgatarem de dentro de si histórias muitas vezes esquecidas, e compartilhá-las com outras pessoas sem dar-se conta que estão servindo como instrumento fundamental para que o ciclo natural da literatura oral se complete, dando oportunidade para que outras pessoas descubram e façam parte desse ciclo e mais, reafirmando que, ainda que inconscientemente, o lugar onde vive, ou passou, tem uma rica expressão cultural lendária que precisa ser conhecida e reconhecida por todos, especialmente pelos mais jovens para que não percam o contato com suas raízes. Compactuando e inseridas na literatura oral estão as lendas, narrativas de caráter fantasioso, contadas oralmente através dos tempos, podendo assim sofrer alterações na medida em que é divulgada e que fazem parte da expressão da realidade cultural perpetuando e ganhando vida no imaginário popular revelando e retratando a riqueza de um povo. Levando em consideração a importância de retratar a expressão cultural de um povo, será tratado neste trabalho o legado lendário que compõe o imaginário popular do município de Jeremoabo/Ba. É imprescindível que a população em geral conheça e reconheça que em seu berço existe uma rica tradição cultural oral. Que muitas lendas possuem como cenário o município do sertão baiano que foi habitado por indígenas e desbravado sob o comando de Garcia D’Ávila1 e seus descendentes, e que servia de rota e base de fugitivos e soldados que fizeram parte da Guerra de Canudos. A escolha dessa temática surgiu decorrente do interesse de compor, ainda que parcialmente, o legado lendário de Jeremoabo/Ba, visto que o município apresenta-se como cenário de muitas lendas. E atentando para o fato de que muita dessas riquezas vem sendo perdidas e esquecidas, restando na memória de poucos, surgiu com isso a necessidade de promover um levantamento oral do referencial local. Assim, este trabalho pretende abordar a cultura oral no município de Jeremoabo/Ba, através do levantamento das lendas que integram o imaginário popular local, que foram colhidas através de depoimentos e de documentos escritos. A coleta de depoimentos foi realizada por meio de equipamento de captura de áudio e por meio de consultas às fontes bibliográficas. A tarefa realizou-se através de conversas informais, que são naturalmente fonte propagadora da literatura oral. Também foram consultados livros, revistas e outros materiais a fim de identificar alguma lenda do município que já possua algum registro escrito, somando assim ao trabalho desenvolvido, e diversas fontes bibliográficas que servirão de apoio e embasamento para o desenvolvimento do trabalho, assim como, consultas de materiais bibliográficos sobre o município de Jeremoabo (história, população, economia, cultura), lendas e cultura. Além disso, o trabalho contém um pequeno acervo fotográfico a fim de ilustrar e fazer conhecer os ambientes onde algumas lendas foram desenvolvidas. Para realização desse estudo foi desenvolvido o seguinte esquema: o primeiro capítulo versará sobre a cultura no intuito de esclarecê-la conceitualmente 1 De acordo com Justinianno de Sant’anna Garcia d”Ávila, português, foi o pioneiro do bandeirismo na região das terras jeremoabenses. Veio ao Brasil em busca de aventuras impulsionado pelo seu temperamento de colonizador e homem de ação. para o leitor. Ainda nesse capítulo aborda-se como a cultura se desenvolve no âmbito social. O segundo capítulo por sua vez traz a literatura oral no intuito de aprofundar o conhecimento sobre a mesma e retificar o objetivo de nossa pesquisa. No terceiro capítulo constará algumas informações relativas ao município de Jeremoabo/ Ba assim como serão apresentadas as lendas coletadas que ilustram o legado lendário do referido município. Para fundamentar essa pesquisa percorremos teorias de várias áreas do conhecimento como a literatura, a cultura, entre outras, observando olhares de vários estudiosos como Câmara Cascudo, Roque de Barros Laraia, Marilena Chauí e Américo Pellegrini Filho. 1. CULTURA: O QUE É E COMO SE FAZ De acordo com Câmara Cascudo (2004) cultura, de cultum, supino de colore, trabalho da terra, conjunto de operações próprias para obter do solo os vegetais cultivados. Cultura vem de cultivar, plantar algo, esperar que germine por meio de cuidados a fim de que alcance a finalidade maior de obtenção de frutos e por meio deste ciclo garantir sua proliferação e perpetuação entre as gerações. Tal cultivo não se restringiu apenas a elementos agrícolas mas estendeu-se para o cultivo das letras, das artes e de outras áreas do saber humano. Assim, Ralph Linton afirma que: Como termo geral, cultura significa a herança social e total da Humanidade; como termo específico, uma cultura significa determinada variante social. Assim, cultura, como um todo, compõe-se de um grande número de culturas, cada uma das quais é característica de um certo grupo de indivíduos. (apud CASCUDO, 2004, p.40) Por meio da citação acima constatamos que a cultura não pode ser considerada única e nem observada como um todo já que a mesma é composta e recebe influências de diversas outras culturas. Além disso, Cascudo (2004) chama atenção pelo cuidado tido ao utilizar a palavra humanidade ao invés de civilização garantindo assim uma melhor amplidão “a herança social e total”, não abrindo assim, precedentes para que indivíduos sejam colocados à margem cultural, estabelecida por um grupo da sociedade portador e dotado de civilidade, pelo fato de não serem considerados como civilizados. Assim, a humanidade estabelece-se além da parte civilizada por incluir a todos os indivíduos. Já Marilena Chauí, em Conformismo e Resistência (1989) além de relacionar o termo cultura com o cultivo da terra acrescenta relacionando-o ao culto aos deuses, também discorre sobre as relações entre cultura e civilização. Civilização, termo oriundo do latim cives e civitas que faz júris ao homem civil educado pertencente à ordem social. Civilização em sentido mais amplo que civil, implica certo ponto da história relacionado ao desenvolvimento histórico-social. Chauí (1989) apresenta em seu trabalho a cultura sob perspectiva do olhar de Românticos e Ilustrados2. O Romântico vê a cultura como algo oposto a civilização, 2 Românticos, seguidores do Romantismo, corrente de ideias artísticas e literárias emergentes no século XIX, que visualizavam o povo como simples, puro, enraizado nas tradições e no solo de sua partindo do princípio de que a cultura seja algo natural, oriunda do interior de cada pessoa, nascendo assim de forma espontânea, livre de contaminações exteriores provenientes de estruturas pré-estabelecidas, enquanto a civilização vêm de traços pré-moldados e definidos por convenções políticas e sociais nos quais os indivíduos são enquadrados. Já o Ilustrado não vê oposição entre cultura e civilização. Cultura acaba sendo um meio permissivo à avaliação, comparação e classificação das civilizações, ou seja, a cultura é vista como fonte caracterizadora de uma civilização, já que a mesma será como um espelho que apresenta o reflexo de uma determinada civilização. A cultura, por exemplo, acompanha a libertação e evolução intelectual do homem. Diante de tantas discussões e opiniões abordadas por Chauí acerca de cultura não tomaremos com totalidade nem o partido dos Românticos e nem dos Ilustrados. Acreditamos que a cultura seja algo natural e subjetivo de cada ser, mas não se faz em oposição à civilização. A civilização é constituída através de diversas culturas existentes e pode sim influenciar na formação e descaracterização cultural intrínseca do ser humano. Faz-se necessário então que o indivíduo saiba guardar, ou melhor, exteriorizar a cultura existente dentro de si para que não se perca ou se dilua perante a diversidade cultural da civilização ou perante da Humanidade. Por fim, apresento a cultura sob as palavras de Câmara Cascudo. É sob a perspectiva definida por Cascudo que será norteado este trabalho. Cascudo (2004, p. 41) afirma que: “A cultura compreende o patrimônio tradicional de normas, doutrinas, hábitos, acúmulo de material herdado e acrescido pelas aportações inventivas de cada geração.” A cultura é constantemente volúvel, não é constante e invariável, pode sofrer modificações com o passar do tempo de acordo com as influências recebidas de cada geração na qual a mesma está integrada. Todo indivíduo tem poder contribuitivo para formação de sua cultura. E uma série de fatores de ordem social, geográfico, político, ambiental possuem poder decisivo para ocasionar tais mudanças. região. Opunham-se aos Ilustrados, intelectuais seguidores do Iluminismo, movimento caracterizado pelo elitismo, pela rejeição à tradição e pela valorização e ênfase à razão. Ruth Benedict (apud LARAIA, 2002, p. 67) “A cultura é como uma lente através da qual o homem vê o mundo. Homens de culturas diferentes usam lentes diversas e, portanto, têm visões desencontradas das coisas”. Arantes (2004, p. 32) diz que “os significados culturais não são compreendidos através da contemplação passiva do objeto significante, mas com referencia ao universo de significados próprios de cada grupo social.” Cada cultura pode ser identificada e diferenciada por meio de particularidades que caracterizam o pensar, o agir, suas crenças, o modo de vestir e de falar, por exemplo. Numa certa cultura pode ser que seja normal ou aceitável que uma mulher ande com o rosto descoberto já em outra não. No entanto a cultura não pode ser medida, comparada e nem avaliada em mais ou menos preciosa do que outra. Todas possuem suas singularidades e mostram-se importantes dentro do meio no qual são cultivadas. Apresentando pontos e fatores que as valorizem, e assim como, em comumência com diversas outras coisas existentes no universo, outras que a desaprovem. Isso dependerá de como e por quem será vista e julgada, de acordo com os olhos de um indivíduo que estará inserido em determinada cultura e será baseada nela de acordo com seus hábitos e costumes que ele irá avaliar a cultura alheia. Assim, se a cultura estrangeira tiver algo em comum com aquela na qual o indivíduo faz parte talvez esta não seja vista com olhar estranho ou de desaprovação. Na verdade a cultura deve ser vista e refletida levando em consideração a real situação do meio na qual a mesma é desenvolvida. Mas, muitas vezes a enxergamos sob a ótica de interesse que estabelecemos sobre a mesma. Ninguém é capaz de participar inteiramente de todos os elementos de uma determinada cultura. Fatores como sexo e idade são decisivos para limitar sua participação, seja por fatores realmente biológicos ou até mesmo cultural. O importante é que, ainda que parcialmente, todo indivíduo participa ou contribui em alguma circunstância para a formação e concretização de determinada cultura. Se formos encarar a cultura levando em consideração a divisão social existente em nossa sociedade, identificando seus conhecimentos, costumes e habilidades chegaremos em primeiro plano a classe dos cultos e incultos. Mesmo sabendo que indiferentemente do indivíduo ser denominado culto ou não, o mesmo possui cultura. Parte-se daí a divisão existente entre o lado culto onde teremos a Cultura Erudita ou Letrada e do outro lado, dos incultos, da Cultura Popular. 1.1 COMO A CULTURA É VISTA NOS PADRÕES SOCIAIS a) Cultura erudita A cultura erudita é direcionada para a elite da sociedade, pessoas que são tidas como detentoras de poderes econômicos, políticos e sociais mais elevados, voltando-se assim para um público restrito. Por ser voltada para um público exigente, instruído e acima de tudo com um alto nível de escolarização sua arte é desenvolvida sofisticadamente e emprega forma e conteúdo de teor mais elevado. Mas o nível intelectual não é o fator predominante que proporcionará ou não o acesso da população à cultura erudita, o fator econômico também é determinante. O acesso a livros, teatros, apresentações musicais, roupas de grife, etc. possuem um alto custo financeiro. A cultura erudita na verdade é uma cultura artificial pois é imposta, não é adquirida de forma natural. Essa forma de cultura se encontra nas escolas e academias, impondo aos indivíduos a aprendizagem passiva daquilo que encontrase pré-estabelecido. Essa prática é uma maneira que ilustra como determinados grupos sociais cobram um padrão de comportamento, de linguagem em nível de intelectualidade. Apesar da supervalorização dada a cultura erudita, muitas vezes nós esquecemos que a mesma possui traços provenientes da cultura popular como indica Cascudo (1984, p. 27): Nunca essa separação pôde ser evitada pela articulação dos dois movimentos paralelos. Canto dança, estória, lenda, jogos infantis, todo um equipamento intelectual, como diz Miss Charlotte – Shopie Burne, segue sua finalidade e acompanha o próprio homem em sua batalha pela cultura oficial, ensinada nas faculdades ou laboratórios, modificada pela genialidade, mas sempre diversa de uma outra cultura que sem querer e sem saber, ‘bebeu no leite da antiquidade’, como dizia Garcilaso de la Vega. Enquanto a cultura erudita é preparada e modelada para ser ofertada e alinhada de acordo com padrões sociais, a cultura popular é fruto da criação e produção do povo. O povo cria, fabrica de maneira artesanal e peculiar agregando a ela características aproximadas de sua realidade, e ao próprio povo cabe o papel de divulgá-la e concretizá-la no meio social resistindo ao tempo. b) Cultura popular Luyten (2005) afirma que “a cultura popular se dá em sociedades em que há elite e povo participando de manifestações comuns” e afirma ainda que a maioria das manifestações populares ocorrem de forma oral. Isso porque segundo o mesmo: “a comunicação em nível popular na realidade significa trocas de informações, experiências e fantasias de analfabetos e semiletrados com seus semelhantes. Aqui é bom fazermos uma observação: analfabeto ou iletrado não quer dizer, em absoluto, ignorante.”. Também não se pode deixar de observar e acrescentar que “a comunicação em nível popular na realidade significa trocas de informações, experiências e fantasias” que podem permear também na vida de letrados. Arantes (2004, p. 16) afirma que “Um grande número de autores pensa a ‘cultura popular’ como ‘folclore’, ou seja, um conjunto de objetos, práticas e concepções (sobretudo religiosas e estéticas) consideradas ‘tradicionais’”. No entanto, Arantes acredita que esta concepção de cultura popular faz acreditar que as sucessivas mudanças ou adaptações sofridas com o passar do tempo, nas manifestações culturais, acabam sendo encaradas como distorções ou “empobrecimento” de tais manifestações, já que não estão sendo firmadas seguindo totalmente o tradicionalismo que interpreta e dá sentido ao passado. Em contrapartida à idéia de que o tradicionalismo presente na cultura popular exista como forma de congelamento voluntário ou não, Pellegrini Filho afirma que: Essa força de manutenção aberta a mudanças diga-se de acréscimo, é o que no estudo de folclore se compreende por tradição: uma linha de continuidade que, entretanto, não significa imobilidade. É tradição viva, é um processo de continuidade que admite modificações. (PELLEGRINI FILHO, 2000, p. 29) Referindo-se a autores como Silvio Romero e Celso de Magalhães, Ayala (2003) diz que de acordo com os nomes referidos anteriormente, a cultura popular é encontrada em maior intensidade no meio rural e nas cidades interioranas. Isso porque associa-se “ à noção de que a cultura popular é rude, rústica, ingênua, enfim, algo que se opõe àquilo que está relacionado com o progresso [...]” O progresso e desenvolvimento inerente na sociedade atual fazem com que cresça o receio de que as manifestações culturais populares acabem se perdendo em detrimento dos avanços existentes na civilização. Surge então consigo a ideia de que seja necessário que registre-se antes que caia no esquecimento e acabe se perdendo. Para Ayala (2003) a cultura popular está além de limitações geográficas ou divisões que a predominem em meio rural ou urbano. Ela encontra-se em processo dinâmico e é reproduzida de acordo com o “processo histórico e social que lhes dá sentido no presente” e assim ganha novos significados. Assim, a cultura popular não deve ser vista como práticas culturais do passado que sobrevivem no presente. A cultura popular em determinado tempo foi repreendida e desvalorizada. Muitas vezes taxada de brega, ridícula, “coisa de velho”. Mas, quem nunca fez-se ser atuante e participativa da mesma? É difícil encontrar alguém que nunca leu um conto, possui e/ou acredita em alguma superstição, contou alguma lenda ou adivinhação, dançou quadrilha ou assistiu alguma apresentação de reizado ou bumba meu boi. Todas essas manifestações integram aquilo que chamamos de cultura popular. A cultura popular é autêntica, revela a essência interior que habita no povo, está intrinsecamente ligada aos seus costumes, tradições e crendices. Chauí (1989, p. 10) “[...] do ponto de vista oficial ou estatal, ‘popular’ costuma designar o regional, o tradicional e o folclore”. O povo através da cultura popular retoma e mantêm viva tradições para que as mesmas não sejam perdidas. Promove e cultiva as relações sociais interpessoais, já que sua transmissão é realizada de forma para que haja a interação e contato entre as pessoas. c) Cultura de massa É comum hoje em dia confundir ou associar, erroneamente, a Cultura Popular com a Cultura de Massa. Mas em que baseia-se a diferenciação entre ambas? O que venha a ser povo e massa? Primeiramente vamos a definição do que venha a ser povo e massa. Segundo Félix (2008): Segundo o papa Pio XII, numa célebre radiomensagem de Natal no ano de 1944, expressou muito bem ao conceito de ‘povo’ e de ‘massa’. Segundo sua visão, totalmente filosófica ‘o povo é formado por indivíduos que se movem por princípios. Ele é ativo, agindo conscientemente de acordo com determinadas idéias fundamentais, das quais decorrem posições definidas diante das diversas situações em que vivem. Assim ele fala das massas como um grupo de indivíduos que não se movem, mas que são movidos por paixões. A massa é sempre passiva. Ela não reage racionalmente e por sua conta, mas se alimenta de entusiasmos e idéias estáveis. É sempre escrava das influências instáveis da maioria, das modas e dos caprichos [...] De acordo com as palavras de Pio XII a massa não possui identidade própria. Sua identidade é formada espelhada naquilo que é refletido por outrem, ficando assim a mercê de padrões e princípios predeterminados. De maneira clara e sucinta podemos diferenciá-las dizendo que a Cultura Popular é feita pelo povo e a Cultura de massa para o povo a fim de satisfazer as necessidades da indústria cultural. Mas Chauí vai além: [...] Não se trata da diferença (ainda que muito importante) entre produtores e destinatários. Mas da diferença entre uma manifestação cultural na qual os participantes se exprimem e se reconhecem mutuamente em sua humanidade e em suas condições sociais, marcando a distância e a proximidade com outras manifestações culturais, a apropriação ou a oposição a outras expressões culturais, de um lado, e, de outro, uma estrutura cultural na qual os indivíduos são convidados a participar sob pena de exclusão e invalidação sociais ou de destruição cultural. (CHAUÍ, 1989, p. 40) A cultura de massa é proveniente da indústria cultural implantada em nossas vidas atualmente. Somos manipulados a tal ponto que não se consegue viver sem o seu intermédio e presença em nossas relações diárias. A alienação causada pela mesma faz com que se torne desejável ser, ter e fazer aquilo que “todos” são, tem e fazem tornando-se assim mais um adepto da massificação cultural promovida principalmente pelos meios de comunicação em massa e pela indústria cultural, em conseqüência, sobretudo, das grandes inovações tecnológicas. Assim, ela observa que: A expressão comunicação de massa foi criada para se referir a objetos tecnológicos capazes de transmitir a mesma informação para um vasto publico ou para a massa. Inicialmente, referia-se ao rádio e cinema, pois a imprensa pressupunha pessoas alfabetizadas, o que não era requerido pelo rádio nem pelo cinema em seus começos. Pouco a pouco, estendeu-se para a imprensa, a publicidade ou propaganda, a fotografia e a televisão. Esses objetos tecnológicos são os meios por intermédio dos quais a informação é transmitida ou comunicada. (CHAUÍ, 2006, p. 35) Com o objetivo de atingir o maior número de pessoas possíveis, a cultura de massa utiliza-se dos meios de comunicação em massa - como tv, revistas, jornais – para garantir sua propagação. E em tempo onde a efemeridade e voluptuosidade predominam esse estereotipo cultural que exige menor, ou nenhuma, criticidade, ganha cada vez mais espaço. [...] A cultura nos satisfaz se temos paciência para compreendê-la e decifrá-la. Exige maturidade. Os meios de comunicação nos satisfazem porque nada nos pedem, senão que permaneçamos para sempre infantis. (CHAUÍ, 2006, p. 53) Se a cultura em massa utiliza-se em maioria dos meios de comunicação em massa, consequentemente aquilo que os mesmos transmitem nada irá exigir de nós também. O que a indústria cultural almeja é que a cultura, por ela desenvolvida, seja apenas consumida pelos demais, não sendo função do receptor senti-la, pensá-la nem muito menos desenvolvê-la. Processo e finalidade oposta àquela reservada à cultura popular onde, além de impregnar-se de forma efetiva e participativa na vida do indivíduo, cabe ao mesmo ajudar a produzí-la e dar-lhes traços próprios. 2. LITERATURA POPULAR E ORAL Esse trabalho busca mostrar a existência e a importância da lenda para a sociedade e como ela se desenvolve. Assim, buscamos resgatar algumas lendas do município de Jeremoabo/Ba para compor o corpus do trabalho. Nesse contexto, por se tratar de uma cultura oral e fazer parte do que chamamos de Literatura popular oral, busca-se nesse capítulo apresentar a literatura popular e a sua condição oral para nos fazer entender pelo nosso leitor. Segundo Luyten (2005) a literatura popular aparece no Ocidente a partir do século XII caracterizada por possuir linguagem regional, não sendo feita em latim língua oficial da Europa, onde eram compostas e contadas histórias com temas adversos a assuntos eruditos e religiosos, que eram comuns na língua latina. Naquele tempo as pessoas não tinham locomoção livre a não ser em época de guerra ou em peregrinação. É nessa última circunstância que os poetas viviam a contar novidades e cantar poemas e histórias aventurescas e de bravura. A literatura popular aparece em oposição à oficial idealizada pela Igreja Católica. Nos núcleos de peregrinação, Roma – a Santa Fé, Jerusalém – a Terra Santa e Santiago de Compostela, deram-se início, através dos poetas nômades, a produção da cultura regional que passou a ser transportada e divulgada por meio de menestréis, trovadores e jograis. Luyten (2005) afirma ainda que assim como na literatura erudita, na popular predominam fundamentalmente duas formas: prosa e poesia. Na prosa teremos os contos, lendas e o teatro. Podemos citar também os ditados populares e os provérbios que podem ser ritmados também. “O teatro popular tem origem nos chamados autos medievais”. As apresentações ocorriam geralmente em feiras e era comum a participação dos espectadores. A Bela Adormecida e Chapeuzinho Vermelho são exemplos de contos infantis, que os irmãos Grimm recolheram dentre histórias populares e que tornaram-se conhecidos no mundo inteiro. Os registros da poesia popular ocorrem em menor intensidade comparado com a prosa. Luyten observa que existe distinção acerca da poesia que pode ser “fixa” ou “móvel”. A poesia fixa é composta por versos “prontos” para serem decorados e assim são transmitidos de pessoa para pessoa. São exemplos de poesias fixas as canções de ninar, as parlendas. “Outros poemas fixos são os ‘cancioneiros’ – histórias rimadas – com forte teor emotivo e algum ensinamento”. A poesia móvel são aquelas produzidas em um momento acompanhado do sabor de improvisação. São exemplos da poesia móvel os repentes, produzidos por poetas através do improviso, são geralmente cantados e produzidos por um ou mais poetas. Quando em grupo é comum ocorrer desafios. Depois que o mote3 é definido dar-se início ao desafio que terá como vencedor aquele que conseguir acompanhar a rima durante mais tempo. A literatura oral compreende todas aquelas manifestações literárias (lendas, contos, anedotas, parlendas, repentes...) que possuem como fonte característica transmissora a oralidade. De acordo com Câmara Cascudo (1984) a literatura oral possui duas fontes distintas que a mantém viva: a oral, onde suas manifestações ganham vida e ultrapassam gerações por meio de conversas informais entre amigos, vizinhos e familiares, em momentos de lazer e descontração, fazendo valer assim a sua nomenclatura - literatura oral, já que a mesma é transmitida através da oralidade e a outra fonte é a reimpressão de antigos livrinhos, um exemplo de literatura oral impressa é a literatura de cordel. Apesar de não ser datada a sua origem, tem-se notícia que desde o século XII em Portugal livretos já eram impressos. Dentre eles, temos como exemplo, Carlos Magno e os Doze Pares da França, que independentemente de ter sido impresso faz parte da literatura oral já que suas histórias foram feitas para serem declamadas pelo povo. Cascudo (1984, p. 23) referindo-se a literatura oral afirma que: “Sua característica é a persistência pela oralidade. A fé é pelo ouvir, ensinava São Paulo.” Para que se possa ter convicção da grande força existente na oralidade, do poder que a transmissão das palavras por meio oral possui basta pensarmos naqueles povos que viveram antes da invenção da escrita ou daqueles que não a utilizavam, seja por não obter o domínio da língua escrita ou por qualquer outro motivo. Esses povos independentemente de utilizarem a escrita conseguiram passar e repassar entre as gerações seus costumes e ensinamentos através da oralidade. Sousa e Souza afirmam o seguinte sobre a literatura oral: 3 Segundo o dicionário inFormal, mote é uma expressão ou frase, referente a um tema ou assunto tratado, desenvolvido ou a ser tratado ou desenvolvido. Na literatura de cordel indica uma frase metrificada ideal para o repentista (improvisador) fazer dela poesia. A tradição oral pode ser vista como uma cacimba de ensinamentos, saberes que veiculam e auxiliam homens e mulheres, crianças, adultos/as velhos/as a se integrarem no tempo e no espaço e nas tradições. Sem poder ser esquecida ou desconsiderada, a oralidade é uma forma encarnada de registro, tão complexa quanto a escrita, que se utiliza de gestos, da retórica, de improvisações, de canções épicas e líricas e de danças como modos de expressão. (SOUSA e SOUZA, 2008, p.155) Nem o processo de modernização e de inovações tecnológicas que vem sendo incorporadas à sociedade transformando-a e inserindo novos ares e valores fizeram com que o valor e o poder exercido pela transmissão oral fosse desfeito, mantendo assim, sua força e existência. Sousa e Souza (2008, p. 156) afirma ainda que: “As narrativas orais expressam hábitos e valores cujo o compartilhamento se dá no ambiente familiar, religioso, comunitário, escolar. Todo este patrimônio está no corpo e na mente das pessoas, onde quer que ela esteja.” A literatura oral é parte indissociável em nossas vidas. Todos nós de um modo ou de outro participamos, seja como transmissor ou receptor, das tradições orais. Tradições essas que transpõem as barreiras acadêmicas, já que não exige-se que a pessoa saiba ler e/ou escrever, e que tornase acessível principalmente por ambientes informais como a família, a comunidade, o meio religioso e, em raras vezes, através da escola. As narrativas orais surgem e impregnam-se na mente das pessoas naturalmente sem que sejam impostas ou ditadas pela sociedade. O tecer das palavras, o modo como cada narrador impõe dentro da repetição, que na verdade transforma-se em criação, suas experiências, seus relatos, seu vício vocabular, faz com que aquilo ganhe e seja retrato de vidas, situações corriqueiras do nosso cotidiano que transformam-se em literatura. Assim, acontece com as lendas que permeiam o imaginário dos grupos sociais. Silva (2008, p. 40) afirma que: “Por isso, a literatura oral tornou-se um fato tão universal e tão fortemente entranhado em nossas vidas que me arrisco a dizer, comentando Câmara Cascudo, que estamos todos imersos na literatura, pois ela é ‘o nosso primeiro leite intelectual’”. A prática oral revela-se de forma gigantesca e brutalmente presente em nossas vidas. Embalando-nos desde criança quando começamos ao ouvir nossos pais e pessoas que nos cercam entoar canções de ninar e parlendas, desafia-nos com adivinhas e trava-línguas, aconselham-nos com provérbios, contam-nos contos, lendas e mitos. Plantando e germinando assim, o gosto e a capacidade perpétua de ser habilitado a desenvolver e passar adiante valores e exemplos que compõem a literatura oral. Apesar de apresentar conotação lúdica e ser associada, ainda que inicialmente, como meros passatempos, as manifestações ligadas à literatura oral possuem um significado e um sentido maior do que aquele explicitado. Se formos analisá-las mais a fundo iremos perceber que cada uma possui implicitamente algo de maior relevância, um dado, uma informação, explicação ou razão que servirá como fundamento para sua existência, como indica Pellegrini Filho: É característico das manifestações tradicional-populares apresentarem uma face mais explícita e outra mais oculta. Se ficarmos atentos apenas aos aspectos imediatos, quase todos os fatos folclóricos- e a Literatura Oral [...] é um grupo de fatos folclóricos- podem parecer um passatempo de quem não tem nada a fazer. Todavia se nos detivermos em aprofundar um pouco a questão, cada uma em particular, [...] logo perceberemos que ‘a outra face’ é muito significativa [...] os contos populares, as adivinhas, os trava-línguas e outras manifestações da Literatura Oral têm uma razão de ser, e mesmo uma forte razão, que precisamos captar ainda que inicialmente. (PELLEGRINI FILHO, 2000, p.39) Deste modo, um trava-língua poderá servir para detectar e/ou solucionar problemas de pronúncia ocorrentes na nossa língua, uma parlenda para facilitar a aprendizagem e associação das crianças aos números e cores, por exemplo, assim como, as fábulas apresentam mensagens ou missão moralística. Ou ainda como as lendas e/ou mitos que atrelam em suas narrações explicações para a origem de algo. 2.1 LITERATURA ORAL NO BRASIL Nery em uma de suas obras afirma que: Pode-se classificar três grandes categorias tudo o que se refere ao folclore brasileiro: a primeira compreende as tradições populares de origem européia, principalmente de origem portuguesa; a segunda abarca aquelas que trazem sobretudo a marca africana; a terceira, finalmente, se relaciona às tradições de origem indígena [...] (NERY, 1992, p. 35) A literatura oral brasileira é formada por influência e colaboração de elementos trazidos e vindos de três raças: indígenas, portugueses e africanos que habitavam em grande quantidade o Brasil há alguns séculos atrás. O que se tem conhecimento sobre o modo cultural é aquilo que “os brancos” registraram de forma escrita, onde “os selvagens” e pecadores em seus costumes deveriam ser catequizados e convertidos, ou seja, deveriam seguir as crenças e viver ao modo determinado pelos brancos, europeus. Os portugueses foram os que mais contribuíram para a formação da literatura oral brasileira, até porque suas manifestações culturais acabaram permeando e contaminando os indígenas e negros. Mas o que podemos afirmar com total certeza é que todos esses povos contribuíram para a formação da literatura oral no Brasil. Hoje em dia não se pode apontar a origem de uma história ou costume. Por mais que imagine-se que determinado costume tenha sido adquirido por meio de certo povo ou determinada região, não podemos atestar com precisão de que lugar ou de que povo o mesmo recebeu aquele costume, não se pode determinar a homogenidade local. Imagine quantas pessoas de diversas regiões ou de completa adversidade cultural pode ter passado por ali e deixado vestígios culturais que acabaram sendo incorporados e adotados por nativos locais. Os elementos e temas encontrados em grande diversidade na literatura não se apresentam em seus respectivos enredos de forma exclusiva, pelo contrário, são e estão presentes em diversas manifestações e comuns em vários países e lugares por mais distantes que estejam. São temas universais e seculares que encontram-se espalhados por quase todo o mundo. Não existe algo que possa ser visto e apreciado por total exclusividade temática. Animais que falam, histórias sentimentais e/ou amorosas, heróis que amam e salvam mocinhas ou que saem em guerra e deixam a mulher amada à espera, histórias que retratam guerras, massacres ou festejos são comumentes encontrados. Além de temas satíricos, críticos, morais, religiosos e até obscenos, comum às anedotas. Dessa forma nunca se soube determinar onde termina o fato e onde começa a lenda. Cascudo (1898) afirma que: “Toda literatura oral se aclimata pela inclusão de elementos locais no enredo central do conto, da anedota, da ronda infantil, da adivinha.” O que irá diferenciar a utilização de todas essas variantes temáticas e lançar um ar característico e singular a cada enredo será “algum modismo verbal, um hábito, uma frase, denunciando, no espaço uma região e no tempo uma época”. Nery em uma de suas obras afirma ainda que: Esses três párias – um das cidades suntuosas, outro das solidões ardentes e o terceiro das florestas virgens – têm entre si um laço em comum: todos eles amam, e amam aquilo que está distante ou aquilo que perderam. Seu amor se traduz nos cantos, festas, preces, invocações, sob mil formas diferentes, pois o maior é tagarela tanto quanto é perspicaz. (NERY, 1992, p. 35) Os índios tinham o costume de ao final do dia se reunirem diante da fogueira e discutir sobre a vida e rotina da tribo: dividir tarefas, planejar e discutir sobre o plantio, o clima. Era também nessa oportunidade que os mais velhos passavam aos mais novos os costumes, tradições e segredos, passados através das gerações, da tribo. O pajé e os anciãos da tribo eram encarregados de dar conselhos e instruir os moços, além de ensinar-lhes cantos e ritmos de danças, o modo de preparar medicamentos e ritos, todos esses ensinamentos garantiam sua continuidade através de sua transmissão e retransmissão oral. As mães contavam aos seus filhos as suas origens, histórias maravilhosas - lendas, mitos – que envolviam a tribo e que refletiam nos princípios nos quais os mesmos deveriam tomar como base para nortear suas ações e vidas. Esse costume indígena, herdado por nós, permanece até os dias atuais como indica Cascudo (1984, p. 79): Quem viveu em qualquer parte do blackland brasileiro lembrará a conversa na ceia, ao anoitecer, rememorando todos os incidentes da jornada cotidiana. São verdadeiros depoimentos, prestados por todos os membros da família, grandes e pequenos, findados pelo relatório da dona, sumariando a conduta dos filhos pequenos, das aves caseiras, compras ou visitantes ocasionais. De acordo com Cascudo (1984) o tupi, língua falada pelos índios, foi a maior divulgadora da literatura oral. E para surpresa de muitos, a maioria das histórias indígenas que nós conhecemos e que permaneceram em nossa mente foram divulgadas por missionários que através dos contatos com os índios acabaram aprendendo sua língua e suas histórias e por pessoas resultantes da mistura entre brancos e indígenas que levaram consigo diversas histórias contadas por suas mães indígenas. A língua tupi tornou-se um elo entre indígenas e colonos, que preferiam utilizar a referida língua, que na época até os meados do século XVIII era um idioma legitimamente nacional, ao português. No entanto, com a popularização da língua tupi entre os colonos, o Rei de Portugal resolveu proibir a utilização do idioma tupi entre os colonos. É justamente nessa época que as mulheres indígenas começaram a perder seu espaço como amas, mucamas e outras funções domésticas para as negras vindas da África. Assim, com a perda da proximidade dos lares e com a miscigenação das raças, as histórias indígenas tupis foram se extinguindo mas sem deixar de serem guardadas na memória e nos ouvidos, e assim, atravessando gerações. Pesquisas referentes à literatura africana apontam para que esta seja em quase sua totalidade existencialmente oral. Comparando-se com a indígena, por exemplo, observa-se que a mesma não pode ser vista como pura. Isso porque os africanos sofreram intensamente influências culturais vindas da Ásia e da Europa. A literatura oral africana em decorrência de sua vastidão, acaba “perdida” por conta dos inúmeros dialetos falados no continente africano. Os africanos são vistos como grandes contadores de histórias, admirados pelo prazer e emoção que inserem a narração. Apesar de jornadas de trabalho cansativas, sempre à noite nas senzalas cantavam, dançavam e contavam histórias. Nery afirma que: [...] negro [...] não chegava como conquistador, como o português. Nem mesmo era, como o índio, um senhor despojado da terra onde reinava absoluto. Vinha, ao contrário, vencido, contrariado e embrutecido, transportado no fundo de um porão pelos mercadores desumanos. Contudo, posto em contato com dois elementos, deveria forçosamente fazer sentir sua influencia no curso dos séculos, e transformar insensivelmente as tradições recebidas no amalgamento com as suas próprias, adaptando-as ao seu caráter e ao seu novo meio. (NERY, 1992, p. 58) O modo brutal como os negros foram arrancados de sua pátria e trazidos para uma terra distante e desconhecida na função de escravos fez com que fosse empregado em sua produção literária o tom de tristeza e revolta, empregando palavras rudes e que expressavam a crueldade imposta pelo destino. Mas isso não caracterizava predominantemente sua literatura. Gêneros que atraem o fictismo, como as fábulas, ou verídicas, como histórias relacionadas as suas tradições históricas que revelam seus costumes e ensinamentos, que trazem conselhos, como os provérbios, e que oferecem divertimento, como adivinhações, são as mais comuns. Cabia aos próprios africanos em terras brasileiras conservar e recriar na memória fatos e histórias suas e de seus antepassados, conservando assim lembranças de sua terra de origem. Mostrando-se também assim, o poder creditado por eles nas palavras. Cascudo afirma que: No Brasil depressa a velha indígena foi substituída pela velha negra [...] Fazia deitar as crianças, aproximando-as do sono com estórias simples, transformadas pelo seu pavor, aumentadas na admiração dos heróis míticos da terra negra que não havia de ver. (CASCUDO, 1984, p. 79) A influência africana na literatura oral deu-se principalmente por meio das amas que tomavam conta dos filhos dos brancos. E contavam histórias simples e contos africanos a fim de distrair ou ninar as crianças. Assim inconscientemente as histórias africanas iam ficando registradas e presentes na mentalidade das crianças brasileiras. Os ritos, cantos e danças africanas também ganharam popularidade no Brasil e influenciam até hoje nas manifestações culturais brasileiras. Após breve explanação sobre a colaboração de indígenas e africanos na formação da literatura oral brasileira, agora discorreremos sobre a influência daqueles que com certeza contribuíram de forma mais acentuada para a formação da mesma: os portugueses. Em Portugal julga-se ainda mais difícil apontar a origem dos contos ainda aqueles tidos como mais tradicionais. Objetos e vestígios de quem habitava aquela terra no século VIII serviram de base e deram respaldo para que apontasse como era a sociedade daquela época. No entanto, não existe a possibilidade de saber o que se falavam. Faz-se necessário apenas saber que as histórias portuguesas foram transmitidas pelas gerações. Histórias que narravam ações diárias, exageros, episódios de coragem e mentirosos, fábulas... Em Portugal, os Autos de Gil Vicente vez ou outra chegavam aos ouvidos do rei, faz-se presente também nos livros de literatura de cordel que apareciam em versões desencontradas, já que cada indivíduo ao registrar em sua mente lançavalhe algo ou alguma característica particular. As mulheres eram sempre as grandes propagadoras dessa rica fonte de literatura oral pois apresentavam dom natural, eram narradoras de histórias para seus filhos e netos, como observa Câmara Cascudo: Enquanto fiavam ou rezavam, alguém contava estórias de batalhas entre cavaleiros e dragões, bruxas e princesas, alimento do maravilhoso, material para a abstração lírica e o haloamento fidalgo das virtudes humanas, elevadas ao grau de heroísmo terreno. (CASCUDO, 1984, p. 168) Os contos populares portugueses trouxeram para o Brasil sobretudo as histórias de caráter religioso, narravam milagres e histórias piedosas. Através de lendas explicavam e incentivavam o culto aos santos. Outra tradição vinda de Portugal foram as procissões e romarias que entoavam orações e cânticos religiosos, como indica Cascudo (1989, p. 182): Todos os mitos cristãos nos vieram de Portugal, desfigurados pela impressão popular. Almas penadas, tesouros dados em sonho, procissões de fantasmas, missas rezadas e assistidas por esqueletos, almas em penitencia durante a noite, gritos, luzes, rumores de correntes, gemidos soturnos, casas mal-assombradas, pedradas misteriosas, sopros de vento para um único objeto, movimentos suspeitos, barulhos inidentificáveis, aparições noturnas de mulheres sedutoras, desaparecidas de súbito, etc, são ‘presenças’ de mitos europeus, vindos através do colonizador. Alguns mitos bastante conhecidos e sempre presentes no imaginário popular brasileiro também foram trazidos de Portugal, como o lobisomen e outros como a Moura Encantada que acabou tendo sua versão abrasileirada, conhecida como Mãe d’água. Não podemos deixar de citar também a vinda das novelas populares portuguesas, como a história de Merlim, que é estudada e lembrada até hoje no Brasil. 2.2 AS LENDAS É comum as pessoas associarem ou confundirem lendas e mitos. Claro que não cabe nem interessa ao povo, transmissor e receptor dessas narrações, diferenciá-las entre si, no entanto, é cabível e necessário que seja abordada essa diferenciação no presente estudo. Pellegrini Filho difere lendas e mitos da seguinte maneira: Mito Narrativa popular de caráter maravilhoso, com a presença de um personagem constante. São relatadas diferentes histórias sobre esse personagem mitológico. Lenda Narrativa popular de caráter maravilhoso, associada a um determinado lugar e/ou determinado tempo passado. (PELEGRINNI FILHO, 2000, p.58) Ambas assemelham-se pelo fato de serem manifestações do povo para explicar algo que não pode ser explicado pela ciência, e por apresentar sempre o elemento “maravilhoso”. No entanto, as lendas determinam um valor local. É um elemento que fixa ou explica algo em um determinado local, “indicando a razão de um hábito coletivo, superstição, costume transfigurado em ato religioso pela interdependência divina” (CASCUDO 1984, pág. 105) As lendas fazem parte da tradição oral e vem sendo contadas através dos tempos. Isso abre um precedente para que constantemente sofra alterações ao longo do tempo, já que são passadas oralmente e recebem a impressão e interpretação daqueles que a propagam. Assim a pessoa a transmite de modo que seja mais conveniente e peculiar à sua imaginação, conhecimento, meio e/ou situação. Câmara Cascudo (1984, p. 99) diz: “Não há, quase, lendas inúteis desinteressadas”. As lendas possuem um propósito, um utilitarismo. Sejam elas para oferecer explicação do surgimento de algo, para coagir as pessoas a executarem ou não certa ação ou registrar algo ou algum acontecimento a ser lembrado. As lendas utilizam fantasia, misturando-a com a realidade dos fatos. Usam de fatos reais ou históricos, no entanto, está sempre presente o elemento “maravilhoso” tornando-se assim uma narração encantadora, fascinante, com aspecto ilusório e inventivo, retratando e revelando a riqueza do imaginário popular. As lendas surgem justamente pelo fato e necessidade de explicar algo. Não havendo outro meio, o povo usa da força e habilidade constituinte no seu imaginário atrelando sua imaginação a fatores que o rodeiam e que viabilizam tornar a história condizente com o meio social em que vivem. E, através de suas histórias fantasiosas, sacia, ainda que imparcialmente, já que nem todos acreditam, a lacuna existe naquilo que se refere a algo. A tradição de explicar algo por meio de uma lenda vem desde a antiguidade. Na Grécia Antiga já era comum utilizar de lendas para justificar o surgimento de algo. A origem da aranha, por exemplo, é explicada por Ovídeo, poeta romano, em sua obra Metamorfoses, como resultante do duelo entre as deusas Atena e Arachne: Segundo o poeta, Arachne morava em Lydia; aí cresceu e amadureceu, tornando-se conhecida em toda a Grécia. Arachne era na verdade tão perita na arte de tecer que terminou por ser arrogante, reivindicando que a sua habilidade rivalizava com a da deusa Atena. Esta, na qualidade de deusa protectora dos tecedores, depressa tomou conhecimento da existência Arachne e de imediato viajou até Lydia a fim de se confrontar com essa mulher orgulhosa. Ao chegar, a deusa assumiu o disfarce de um camponês idoso, e suavemente advertiu Arachne para que não comparasse os seus talentos aos de um ser imortal. Mas Arachne rejeitou a repreensão, e assim Atena foi compelida a aceitar o desafio da mulher mortal. Cada uma delas começou a elaborar uma tapeçaria. Atenas teceu a sua tapeçaria com imagens que prediziam o destino dos humanos que se comparavam às divindades, enquanto a tecelagem de Arachne mostrava imagens dos amores dos deuses. Tão grande era a habilidade de Arachne que o trabalho dela igualou o da deusa. Então Atena, subjugada por uma raiva imensa, golpeou a mulher repetidamente. Apavorada, Arachne tentou fugir, mas Atena transformou-a numa aranha que depressa desapareceu sem deixar rasto.4 Com o exemplo acima, verificamos que esse costume de buscar em uma história a explicação para algo é muito antiga. Repare que a lenda utiliza de elementos que se relacionam como deusas, presenças constantes nas histórias da Grécia antiga, e o ato de tecer de modo que a história tenha um fundo de lógica, principalmente quando utiliza-se ou refere-se a tecelagem, já que as aranhas possuem a habilidade de tecer e utiliza essa arte na construção de suas teias. Referindo-se ao Brasil, muitas lendas indígenas voltam-se para explicar a origem da agricultura, o surgimento do milho e mandioca, por exemplo, assim como para explicar a origem de astros como as estrelas, sol e lua. Teschauer apud Cascudo exemplifica a lenda da origem do milho de acordo com a variante encontrada entre os índios Parecis: Um grande chefe pareci, dos primeiros tempos, da tribo, Ainotaré, sentindo que a morte se aproximava, chamou seu filho Kaleitôe e lhe ordenou que o enterrasse no meio da roça assim que seus dias terminassem. Avisou que três dias depois da inumação brotaria de sua cova uma planta que algum tempo depois rebentaria em sementes, disse que não comessem; guardassem-nas para a replanta, e a tribo ganharia um recurso precioso. Assim se fez e o milho apareceu entre eles. (apud CASCUDO, 1984, p. 100) 4 Extraída do site http://pauloamador.bloguepessoal.com/23836/Aranha/ acesso em 20/04/10 A lenda transcrita acima é apenas uma dentre as inúmeras lendas indígenas que indicam a origem de frutas, rios, do fogo e de outros elementos. Lendas essas, que confirmando uma de suas características, eram sempre associadas a algo específico e mantinham “identificação geográfica e personalização tribal”. As lendas relacionadas à religiosidade existentes aqui no Brasil, em sua grande maioria, tiveram influência dos portugueses, como indica Cascudo (1984, p. 179): “As lendas que envolvem aparições de imagens ou visões divinas, hagiofanias, têm, em maior percentagem, procedência portuguesa.” Muitas lendas possuem caráter religioso, sua narração envolve santos, igrejas, aparições e imagens. Aqui no Brasil, podemos citar como exemplo, a lendária história de Nossa Senhora Aparecida que estando no fundo do rio Itaguaçu foi encontrada na rede de pescadores. 3. JEREMOABO: ASPECTOS HISTÓRICOS, GEOGRÁFICOS E SOCIO-ECONÔMICOS De acordo com dados fornecidos pelo IBGE5, a região onde situa-se o município de Jeremoabo era primitivamente habitada por duas tribos: Mongorús e Cariaçás, descendentes dos tupinambás. Há notícias de que, no início do século XVII, uma religiosa fundou aldeamento ao redor de uma ermida dedicada à Nossa Senhora de Brotas, dando lugar à catequese dos índios de Jeremoabo e das regiões vizinhas, promovida pelos padres João de Barros e Jacob Roland. Chegado à Bahia com Tomé de Souza em 1549, Garcia d'Ávila, com temperamento forte de bandeirante, exerceu grande influência no desbravamento do nordeste baiano, capturando índios, já que a mão de obra africana não estava mais atendendo as suas necessidades, e fundando currais para criação de gado bovino. Garcia d’Ávila, recebeu do rei D. João III, uma grande sesmaria, doação de terra na qual cabe ao recebedor cuidar e cultivar conforme sua vontade, calculada em 60 léguas quadradas, que percorreu com suas bandeiras. Grandes divergências surgiram entre Garcia d'Ávila e seus descendentes e os missionários, que se opunham à escravização dos índios e sua utilização nos trabalhos agrícolas, tendo em vista a escassês de pretos importados da África. As divergências chegaram inclusive ao ponto em que, por represália aos jesuítas, Francisco Dias d’Ávila incendiou Jeremoabo, cronstruindo-a depois em face da intervenção do Papa ou do próprio Governo Colonial. Em 1718, por Alvará Régio de 11 de abril, de D. Sebastião Monteiro da Vide, criou-se a freguesia com a invocação de São João Batista de Jeremoabo do Sertão de Cima, representando mais tarde um termo de Itapicuru, com os mesmos limites paroquiais. Por decreto em 25 de outubro de 1831 tornou-se vila de São João Batista de Jeremoabo, depois simplismente Jeremoabo, ganhando posição de cidade em 6 de julho de 1925. Jeremoabo é palavra indígena que significa, entre outras coisas, "plantação de abóboras", já que na região havia grande cultura de abóbora mantida pelos índios. Em função da sua grande extensão territorial várias povoações desmenbraram-se de Jeremoabo a fim de constituir outras cidades, como por 5 Informações cedidas pela Agência do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística do município de Jeremoabo/Ba e pelo site do órgão em 09 de abr. de 2010. exemplo: Monte Santo em 1790; Cícero Dantas em 1817, Tucano em 1837, Ribeira do Pombal em 1837, e, mais recentemente, Santa Brigida em 1962, Coronel João Sá e Pedro Alexandre em 1962, Sitio do Quinto em 1989. Localizada no nordeste do estado da Bahia, com uma área de 4.761 Km² e densidade demográfica de 7.81 habitantes por Km², isso em função da sua vasta extensão semi-árida pouco habitada, o município de Jeremoabo é formado por dois distritos: de Jeremoabo e do Canché. De acordo com a contagem populacional realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas – IBGE em 2007, o município possui 37.195 habitantes. Sendo que a maior parte da população vive na zona rural: 20.498 mil habitantes, enquanto 16.697 habitantes encontram-se na zona urbana. Estima-se que a população referente ao ano de 2009 foi de 39.302 mil habitantes. O clima em Jeremoabo é caracterizado como semi-árido predominantemente seco. Tendo como vegetação característica o cerrado – Caatinga. Quanto ao seu relevo, em sua formação destaca-se a Serra do Cavaleiro ou Serra da Santa Cruz que rodeia a área urbana da cidade sede. O principal curso d’água do município é o Rio Vaza Barris que nasce na Serra da Canabrava no município de Uauá e seguindo seu percurso deságua no Oceano Atlântico no estado de Sergipe. Euclides da Cunha, em Os Sertões (2000, p.18), diz: “[...] o Vaza Barris, o Irapiranga dos tapuias, cujo trecho de Jeremoabo para as cabeceiras é uma fantasia de cartógrafo [...]”, fazendo uma alusão a sua situação de quase inexistência já que a maior parte do rio que banha o município é transitório não chegando a secar, mas pelo seu baixo volume de água. Um dos seus afluentes o Rio Vermelho, antigo Rio Jeremoabo, em estado degradativo também compõe a rede hidrográfica do município de Jeremoabo. Referindo-se a economia, a administração pública possui o maior peso na economia do município. Isso se deve ao fato de que o setor público é responsável pelo emprego da maioria das pessoas. A outra fonte de renda do município é oriunda das atividades agrícolas e da criação de animais. 3.1 A CULTURA JEREMOABENSE Jeremoabo tem como maior expressão cultural e religiosa a festa de São João Batista. Durante o mês de junho milhares de turistas visitam a cidade para celebrar o santo mais popular do Nordeste. Em sua parte sagrada louva o padroeiro local, através de novenas, missas e procissões. No lado profano destaca-se como uma das melhores festas juninas da região tendo como abertura uma alvorada quando milhares de foliões invadem as principais ruas e avenidas para brindar a chegada da maior festa da região. Na véspera do São João ocorre o tradicional casamento do matuto, vindos dos mais distantes pontos do município e cidades circunvizinhas, os cavalos e cavaleiros são as atrações principais do evento. Em Jeremoabo é realizada também o Reisado, festa de origem portuguesa, feita para celebrar e homenagear o nascimento de Jesus na época natalina. Com figurinos alegres, pandeiros, ganzás e maracás. Sob coordenação de Carmelita o grupo realiza o festejo sempre no intuito de resgatar esta tradição e trazer alegria à comunidade. As apresentações acontecem geralmente em igrejas, praças e escolas. Outra manifestação cultural realizada pelo grupo é a Folia de Reis. A Serra do Cavaleiro ou Serra da Santa Cruz é cenário de muitas histórias e romarias. Durante a quaresma em especial na Semana Santa, milhares de romeiros sobem a Serra como forma de penitência e em busca de consolo espiritual. A Serra é tida como uma fonte de entretenimento, além de possuir uma belíssima e panorâmica visão da cidade obtida do seu alto. Justiniano (1944, p. 40) diz: “Quando a passarada desperta na orgia louca da natureza agreste, o nosso homem rural levanta faz o ‘pelo sinal’ e vai cumprir o seu dever, nessa vida afanosa, na labuta cotidiana da vaquejada.” Nas comunidades rurais, a tradicional Missa do Vaqueiro mobiliza o interesse da população que faz a festa em vários povoados para celebrar e exaltar a figura do vaqueiro: ser presente e marcante no cenário e cotidiano do agreste jeremoabense que com sua singularidade e força, conquista e vê que através da própria luta diária e da missão honrosa que lhe é incumbida, germina a satisfação de ter a oportunidade de com o seu trabalho vencer mais um dia e com a ajuda e força divina torna-se capaz de começar e viver um novo dia. A cavalgada de São Jorge, tendo sido realizada sua quarta edição no corrente ano, já se tornou um evento expressivo e encontra-se marcada e presente no calendário de atividades existentes de festividades local. 3.2 O LEGADO LENDÁRIO DE JEREMOABO Chegamos agora ao objetivo principal deste trabalho que é compor, narrar algumas lendas que compõem o imaginário popular do município de Jeremoabo. Diégues Junior (1986) afirma que “Luís da Câmara Cascudo assinala que os mais antigos versos de nossa poesia popular são justamente aqueles que descrevem cenas e episódios da pecuária”. A afirmação é válida também no que diz respeito ao âmbito lendário. Escutam-se inúmeras lendas, principalmente no Norte e Nordeste brasileiro, onde se narram histórias de glorificações, perseguições e relações entre boi e vaqueiro. Bois que desafiam a habilidade dos vaqueiros, que surgem e ressurgem em terras na qual cumpriu a sua existência ou ainda aqueles, que por algum motivo, merece a exaltação e/ou a admiração de todos. Jeremoabo como um autêntico município do sertão baiano que possui exaltação pela figura do vaqueiro não poderia deixar de ter uma história relacionada a este homem guerreiro que dedica a sua vida a cuidar de seu rebanho realizando muitas peripécias. a) Lenda do Cavaleiro A lenda que será apresentada a seguir, a do Cavaleiro, foi contada por Soraia Magna6 e vem justamente contar as peripécias de um boi bravo indomável na qual todos tentam dominá-lo sem êxito, até o dia em que o vaqueiro Chico Gato coloca um ponto final nessa perseguição: Jeremoabo é um lugar privilegiado tem muitas histórias, Foto: Soraia Magna, 2007. tem uma cultura muito rica. E nos chama atenção uma lenda em especial: a lenda do cavaleiro. Ela começa assim: Há muitos anos, havia muitos Figura 1: Serra do Cavaleiro, Jeremoabo/ Ba 6 vaqueiros em nossa região. Dentre Soraia Magna, turismóloga, atua como professora e reside em Jeremoabo há 25 anos. eles havia um que se destacava pela sua coragem, pela sua bravura chamado Chico Gato. E um dia, Chico Gato e seus companheiros de profissão, outros vaqueiros, se reuniram na região para poderem descobrir qual a forma melhor que eles adotariam pra poder capturar um touro que estava muito tempo já aterrorizando toda cidade. E foi aí, que reuniram-se sessenta vaqueiros em uma madrugada e resolveram fazer um cerco aquele boi pra ver se acabava com todo o sofrimento da população que já estava sofrendo por muito tempo com os ataques daquele touro que todos chamavam de: “Boi Valente” . E então Chico Gato resolveu se despedir da sua amada Maria para poder sair junto com os seus amigos e enfrentar este boi valente. Foi aí, que na despedida a sua amada Maria deu-lhe um forte abraço e junto com esse forte abraço entregou a ele uma linda flor de jurema para que ele nunca se esquecesse do seu grande amor. E ele então, como prova também do seu amor, da sua bravura, disse pra Maria que ele não voltaria jamais sem que estivesse com esse touro sendo pego por ele. E ele disse que iria pegar esse touro nem que fosse à unha[...] Então Chico Gato junto com os outros vaqueiro da região: “-Chegou a hora né?” Na madrugada fizeram um cerco todos se posicionaram e como sentiram que o boi estava passando, foram correndo atrás dele, só que no meio da mata não é todo mundo que vai aguentar a caatinga. Ela tem muitas surpresas e aí somente aqueles que são mais audaciosos é que realmente conseguem se aventurar e conseguem levar até o fim a caçada. E Chico Gato foi este. Essa única pessoa que correu atrás do boi valente. E sem perceber ele estava subindo a serra que hoje leva o nome de Serra do Cavaleiro. E nessa luta entre boi e homem, o touro começou a andar na direção do precipício e foi aí que no seu instinto de animal feroz percebendo que iria ser pego realmente, porque Chico Gato não ia desistir, era muito corajoso, o boi jogou-se do precipício. Chico Gato por sua vez correndo atrás do boi montado a cavalo, é claro, também ficou na beira do precipício, por ser um cavaleiro muito experiente ele poderia retroceder nessa beira do precipício porque o animal no qual ele estava montado estava com as patas traseiras no chão e as dianteiras estavam já sobre o ar. E aí, ele já iria retroceder, mas foi quando ele sentiu o cheiro, o aroma perfumado da flor de jurema que existe em grande quantidade na serra, e ele se lembrou da promessa que tinha feito a sua amada “que jamais voltaria sem que tivesse pego aquele boi ainda que fosse à unha”. Lembrando-se do seu tão grande amor, ele não resistiu, jogou-se precipício abaixo. Então morreram o boi, o cavaleiro, o cavalo e o fiel amigo do cavaleiro um cachorrinho de estimação que ele tinha já há muitos anos. Infelizmente não foi uma história que teve lá o seu final feliz, mas fica o exemplo da bravura de um homem que soube honrar sua palavra: Chico Gato, que deu nome hoje a Serra do Cavaleiro, e vale a pena conhecer. Essa é a lenda mais conhecida da cidade. Se indagarmos se alguém conhece alguma lenda local a grande maioria, quase que absoluta, vai citar primeiramente a Lenda do Cavaleiro ou de Chico Gato como é também popularmente conhecida. Inclusive algumas pessoas afirmam e defendem que com certeza absoluta a narrativa que envolve Chico Gato e o boi valente não é lenda e sim uma história verídica. Cabe a cada indivíduo fazer a sua interpretação dos fatos apresentados. O que constata-se, com certeza, é que na narração acima, a bravura do vaqueiro é exaltada a todo momento, assim como o sentimento amoroso que Chico gato nutria pela sua amada Maria. O desfecho trágico ocorre justamente pela vontade e honra que o vaqueiro possui em fazer valer suas palavras. Cabe ressaltar que o episódio explica a origem de um dos nomes dados a serra: Serra do Cavaleiro, em homenagem a Chico Gato. Assim como, dedica a construção da capela existente no alto da serra ao herói Chico Gato. b) Lenda do Boi Remetedor do Caritá Como exemplo de história onde o boi é exaltado e venerado pela comunidade, temos a lenda do Boi Remetedor do Caritá, contada pela depoente Carmelita de Dudé7: [...] A fazenda Caritá é um local muito rico em terras e água, que João Sá foi e se apossou e construiu uma das mais belas fazendas da nossa região, [...] então ficou a fazenda Caritá muito falada porque era de João Sá e tinha engenho, tinha muita coisa bonita. 7 Maria do Carmo, conhecida como Carmelita de Dudé, reside em Jeremoabo desde que nasceu e coordena algumas manifestações culturais no município como o Reisado. E diziam os mais antigos que era mal assombrada, que aconteciam muitas coisas e o povo tinha medo de chegar até perto da fazenda por causa das assombrações as quais eu não sei te dizer, agora quanto ao folclore e as histórias que se contavam também a minha bisavó contava que existia um boi muito valente que pertencia a um grande fazendeiro do Caritá que não era João Sá. Outro antes de João Sá [...] Esse boi era muito valente, essa viúva tinha ficado com ele porque era presente do esposo, lembrança do marido, que por nada na vida ela vendia este boi. Mas este boi era de uma maneira que não deixava ninguém do povoado fazer uma festa que ele se incomodava. Quando ele via barulho de festa, ele pulava cerca invadia tudo, quebrava tudo, chegava no lugar da festa acabava com tudo, quebrava, remetia o povo, batia em tudo, quebrava mesa, ele acabava (interrupção de pensamento) deixava tudo no chão. Então, todas as vezes que aconteciam eventos nessa vila, lá no Caritá, esse boi fazia esses danos. Até que o povo não agüentaram mais e foram pedir a viúva para matar o boi e ela com muita pena, fez tudo para não acontecer, porque era de estimação. Aí o povo começou a pedir, a cobrar as despesas muito altas, ai ela achou que era melhor matar o boi e repartir, a cada um dar um pedaço, porque era só como eles também podiam ficar satisfeitos: era com um pedacinho [do boi] pra ele largar de ser tão danado né? Então, minha vó dizia assim: que ela [a viúva] tinha uma cozinheira que era muito experiente que sabia rezar e fazer muitas mágicas, muitas coisas muito sabida ela dizia assim era uma cozinheira sabida sabia fazer orações, uma pessoa passava por ela e ela fazia as orações e ninguém via ela era muito inteligente essa Iaiá, chamava-se Iaiá. Então ela disse [a viúva]: -Iaiá, vamos ter que matar o boi corredor. Então tinha que matar o remetedor porque ninguém podia dar uma festa, e ela não tinha mais dinheiro, se ela vendesse a fazenda ela não pagava as despesas. E eles disseram [os moradores da vizinhança] que ficavam satisfeitos de cada um comer um pedaçinho que é pra ficarem vingados. Aí a Iaiá queimou ruim porque era de estimação, porque gostava do boi. O menino do patrão ai ficou triste. Mas nós temos que matar o boi porque esse boi ta nos dando prejuízo. Aí [a viúva] chamou o vaqueiro e mandou matar o boi e mandou chamar o povo pra pegar cada um suas partes. Quando o pessoal chegaram para pegar as partes a cozinheira Iaiá disse: “-Antes que reparta o boi eu vou fazer a minha homenagem de despedida.” Aí ela vai, pega um lençol perfumado, muitos laços de fita, muitas flores e cobre ele [o boi] com um lençol bem colorido e coloca perfume, amarra as fitas nas pontas, deixe ele bem bonito pra colocar flores em cima [...] Então ela fez como uma despedida: deu um beijo no boi e começou a abraçar e começou a chorar e se ajoelhou e começou a fazer as orações, as conversas, os versinhos, cantou uma música, uma música de excelência, ungiu com perfumes colocou rosas. E aí, cada vez que ela se movimentava, apertava, ele ia se estremecendo. Ele já tava morto. Então ela abraçava e ele ia se estremecendo. Aí ela começou a abraçar ele e ele começou a se estremecer. Ela foi e começou a bater palma, aí ele foi se levantando, aí o povo foi batendo palma também, aí ele foi se levantando e começou a se requebrar e começou a dançar, dançar, dançar... E ali começou uma festa todos aplaudindo e ele dançando, se requebrando. Então, foi aí que as pessoas entenderam que quando ele ouvia os barulhos de festa, ele não queria acabar com a festa, ele queria participar! Então daí, a viúva e o boi, e a Iaiá, ficaram pessoas mais altas lá no povoado e todas as festas que faziam a primeira pessoa a ser convidada era o boi. A lenda transcrita acima confunde-se quanto o seu real cenário, transitando entre a sede da Fazenda Caritá e a povoação do Caritá. Acontece que há alguns anos atrás toda a extensão de terra que engloba as duas aglomerações pertenciam a ao município de Jeremoabo. No entanto, recentemente definiu-se que a sede da Fazenda Caritá passaria a ocupar o território pertencente ao município do Sítio do Quinto. A fazenda Caritá foi palco de importantes decisões políticas do século XIX e início do século XX, tendo em vista que o seu proprietário na época, o Coronel João Sá, era uma figura muito influente no cenário político estadual. Apesar dessa incerteza, o que pode ser comum a manifestações folclóricas, quanto a exatidão da posse geográfica do verdadeiro cenário onde a lenda desenvolve-se, devido a reinterpretação de fronteiras municipais, resolve-se por bem, tê-la como presente no cenário Jeremoabense por até pouco tempo a sede da Fazenda Caritá ter sido pertencente ao município e principalmente pelo fato do Povoado Caritá ainda pertencer ao referido município. c) Lenda do Aboio do boi A lenda do Cavaleiro, apresentada anteriormente neste trabalho, estende-se e seus personagens servem de origem para outra lenda: a do aboio do boi. Misturando aspectos da relação boi vaqueiro e questões que envolvem visagens ou escutas de almas. Iremos conhecê-la a seguir também de acordo com a versão de Carmelita de Dudé: Na época que eu era pequena se fazia em Jeremoabo a fogueira de lenha de candeia. Essa lenha de candeia era difícil de encontrar nas roças porque as roças eram devastadas. Então nós temos essa serra aí, a Serra da Santa Cruz, que era assim: não era habitada, nem movimentada. Aí foi descoberta a lenha de candeia. Então, o povo de Jeremoabo dava preferência [a lenha de candeia] e aquele pessoal que trabalhava na roça iam buscar as candeias no pé da Serra pra fazer as fogueiras. E nessa época, ninguém tinha fogão de gás, cozinhava de lenha. E os pobres iam buscar e os ricos compravam. Minha mãe trabalhava na roça e a gente ia buscar a lenha no pé da Serra, principalmente quando chegava o São João. Então em umas épocas do São João, a minha mãe com a família tiveram que sair as pressas do pé da serra. Por que essas pressas? Porque quando chegava o ponto de meio-dia elas ouviam um aboio. Não sei se você vai entender o que é aboio, aboiar é uma palavra do linguajar simples do vaqueiro, aboiar é cantar o gado, aboio é cantar o gado. Então, ouvia-se meio-dia em ponto [...] um aboio de um vaqueiro. Quando terminava o aboio aí dava um vento forte e vinha aquele vento forte, como que vinha um cavalo correndo atrás de um boi esbagaçando toda a mata [...] Então as mulheres, inclusive minha mãe, disse que a primeira vez elas não tiveram medo, ficaram assustadas sem entender, aí quando viram que vinha uma pessoa mesmo trazendo o boi a toda carreira, aí elas correram passaram por debaixo do arame, se rasgaram toda, até se acidentaram. Se cortaram, muitas passaram mal e voltaram pra casa sem as lenhas só com as cordas e as rodilhas nas mãos. Então esse é um fato muito interessante e todo mundo viu essas rasgadas [...] Passou-se o tempo. Quando foi outra vez, elas foram tentar ver se era fantasia, se era imaginação e muitas duvidaram. E foram muitas senhoras buscar essa lenha e eu acompanhei era menina tinha na base de 10 a 12 anos [...] Minha mãe disse: - Fique aqui no rancho! Você não vai subir aqui não, na hora que o vaqueiro vim correndo atrás do boi você já tá perto do arame. Aí eu disse: -Que nada! [...] isso é mentira, é fantasia. -Você vai achar que a sua mãe tá mentindo minha filha? Ai daqui a pouco eu vi o pau quebrar. Aí fazia êôôôôô, êôôôôô três vezes. Aí quando fez assim êôôô três vezes, aí eu vi o vento soprar bem forte. Aí corre Carmelita, corre minha filha! Aí eu corri, me piquei debaixo do arame [...] rasguei o vestido e fiquei ansiosa. Aí elas entraram no arame, já tinham a posição de passagem, mas já tinham cortado a lenha. Então pegaram a lenha e jogaram pro outro lado do arame, foi a sorte [...] Aí ficamos debaixo de uma árvore tudo com medo juntamos todas e ficamos assim. Aí de repente, foi só suavizando, suavizando, suavizando e acalmou. Quando ficou tudo calmo algumas delas disseram assim: -Ambrósia (que era minha mãe), vamo buscar a lenha? Aí ela disse: -Eu vou nada, dessa vez eu não vou nunca mais lá. Aí eu falei: -Eu mesmo não vou lá! Aí mãe disse: -Eu já vou m’imbora. -Deixe de ser mole mulher, vamo buscar a lenha, não já passou o vento? Não já ta com a lenha do lado de cá? Só parece que tem alguém que não gosta que a gente tire lenha dessa Serra. Então ficamos assim: onde fica esse boiadeiro? Esse cavaleiro? Aí quando nós chegamos em casa e fomos contar a história, aí o pessoal mais velho disseram: -Só se é a alma de Chico Gato, da história de Jeremoabo, porque muitos contam que é lenda e outros dizem que foi verdade [...] Como dito anteriormente a lenda do aboio vem de uma alusão à lenda do Cavaleiro já que acredita-se que o aboio, o adentrar e o rasgado da caatinga ouvido ao pé da Serra associa-se ao do vaqueiro Chico Gato em perseguição ao Boi Valente. A narração também retrata as condições sociais de uma época em que a lenha era o combustível utilizado para a preparação dos alimentos. Podemos interpretar o fato de ouvir ruídos e vozes da alma do vaqueiro e do boi como uma forma de afastar as pessoas que adentravam Serra adentro em busca da lenha de candeia muito utilizada para acender o fogo. Evitando assim que a flora local fosse devastada como, de acordo com a narrativa, já acontecia na região, visto que na serra era o local que mais se encontrava a referida madeira. Tanto é que depois da ocorrência desse episódio as pessoas passaram a ter receio em extrair a lenha nas imediações da Serra. Observando por este ângulo, a narrativa surge como forma de amedrontar e afastar as pessoas para que não ocorresse a devastação ambiental na área da Serra do Cavaleiro ou da Santa Cruz. d) Lenda da Alma de Catarina Já que começamos a tratar de assuntos relacionados a almas, suas manifestações e aparições, apresentaremos agora a lenda da alma de Catarina extraída da Revista Marie Clarie: A primeira parte do nome, Raso, se deve ao relevo Foto: Soraia Magna, 2006. predominante plano e à vegetação rasteira. A segunda, Catarina, parece ter origem na Fazenda Figura 2: Raso da Catarina da Catarina, que existe até hoje. Segundo dizem os antigos moradores do lugar, Catarina teria fundado sua própria fazenda em uma terra hostil. Contam que ela lutou contra a seca durante anos, mas foi derrotada pelo clima e por uma nuvem de gafanhotos que não deu trégua as suas lavouras de milho e feijão. Acabou enlouquecendo e, solitária, perdeu-se naqueles ermos. Dizem que até hoje vaga por ali, ajudando vaqueiros a achar animais perdidos e cuidando da lavoura minguada de seus conterrâneos. O Raso da Catarina é uma Estação Ecológica que abriga exemplares raríssimos da flora e fauna brasileira. A alma de Catarina é mais um elemento que ajuda as pessoas que habitam na região a cuidar de seus animais e plantações. Há aqueles que afirmam que Catarina é como uma auxiliadora ao combate da degradação e destruição da reserva. Já que muitos afirmam que a sua alma vaga pelo Raso também como forma de afastar todos aqueles malfeitores que tentam destruí-lo. E que não são poucos, pois apesar de ser considerada uma terra hostil para o cultivo de certos produtos agrícolas e para a criação de gado, nela abrigam-se inúmeras espécies da flora e fauna raríssimas, como por exemplo, a arara-azul-de-lear espécie encontrada praticamente apenas no Raso da Catarina. e) Lenda das Almas do Caritá A alma de Catarina não é a única que de acordo com o imaginário popular vaga por Jeremoabo. Existem também as Almas do Caritá, história contada pelo depoente Dedé8: O pessoal mais velho conta que antigamente quando iam pro Sítio do Quinto aqui pelas estradas do Caritá, quando eles iam passando pelas matas do Caritá, ouvia aquelas vozes gritando: “-Traga minha cabeça, traga minha cabeça, traga minha cabeça!” Segundo a lenda, era a cabeça das alma penando, que no tempo que Lampião passou por aqui, cortava as cabeças das pessoas. E aí, ficava ficou as almas penando naquela região ai por isso que ouvia aquelas vozes: 8 Dedé é agricultor e reside desde que nasceu no Povoado Feira Nova, zona rural de Jeremoabo. “-Traga minha cabeça, traga minha cabeça, traga minha cabeça!” A história transcrita acima vem justamente colocar em evidência o nome de um grande mito nordestino: Lampião. Indaga-se, comenta-se muito sobre a passagem e/ou estadia de Lampião no município de Jeremoabo. O próprio Euclides da Cunha em Os Sertões relata a passagem das tropas de Lampião e da Guarda Nacional. Mas sobre a passagem de Lampião apenas especula-se, até porque como o mesmo trafegava sempre em fugas e às escondidas ninguém pode ao certo afirmar sobre essa questão. f) Lenda do Antigo casarão do Coronel João Sá Outra narrativa revela que a alma de uma pessoa muito influente de Jeremoabo anda vagando a visitar a sua antiga propriedade, dando ares de mal assombrada a mesma. A lenda do Casarão de João Sá foi narrada por Carmelita de Dudé que inclusive reside em frente ao antigo Casarão: A casa de Coronel João Sá... Há 25 anos que nós Foto: Luana Costa, 2010. estamos residindo aqui em frente e eu nunca presenciei fantasma, sinceramente. Mas quando minha eu mãe tinha 17 anos comprou uma casinha lá no Entroncamento, Figura 3: Antigo Casarão do Cel João Sá, Jeremoabo/Ba. onde tinha a igrejinha de São Cristóvão. Minha mãe comprou o terreno, foi a primeira casa a ser construída do outro lado, lá naquela Rua de São Cristóvão [...] Então dessa casa, que fica numa parte mais alta do terreno, o povo contavam que todas as noites via um carro subir aqui na casa de João Sá. O carro subia e descia. E nós ficávamos assim: ouvindo as conversas, sem querer acreditar. Quando foi uma noite, nós ficamos mesmo de propósito olhando na posição do terreno que de lá ficava uma posição muito boa [...] de lá também a gente olha e vê a casa de João Sá [...] Então nós ficamos no terreiro da casa observando daqui a pouco meu pai diz: “-Ó o carro vai subindo! Vai subindo um carro lá na pista de João Sá!” Aí falei: “- Que nada, isso é conversa.” E não acreditando nisso, minha mãe disse: “-É mesmo, vamo ver se voltar é verdade.” Aí, nós vimos aquele farol subindo... depois apagou o farol. Aí ficamos esperando, daqui a pouco tornou a acender o farol, fez uma curva e desceu até o ponto da cancela. E esse fato ficou acontecendo quase todas as noites [...] de vez em quando a gente via esse carro subir e descer nesse mesmo horário. Então, a única coisa que eu posso contar que eu sei da casa de João Sá é essa visão que nós tivemos do entroncamento desse carro que subia e descia, eles [o povo] diziam que era João Sá que ia visitar todas as noites a mansão. O Coronel João Sá foi uma importante figura política do município, chegando inclusive, a ser Presidente da Assembléia Estadual da Bahia. Dentre algumas de suas propriedades, aquela referida na narrativa acima se localiza em área urbana do município de Jeremoabo e é considerada ainda que não legalmente, patrimônio histórico do município. Por ser uma construção muito antiga composta do o casarão sede, capela e o antigo engenho, em ruínas. Recentemente, o terreno que engloba o casarão foi revendido pela herdeira causando inclusive discussões e desentendimentos à cerca do destino que os atuais proprietários pretendem ou pretendiam dar ao local e as históricas construções. No entanto, o fato da propriedade ter passado muito tempo em completo estado de abandono, talvez as pessoas associaram-na a ideia de que a mesma fosse mal-assombrada. Além do depoimento que indica que foram vistos faróis que designavam ser do carro de João Sá que em alma teria vindo visitar o casarão. Outras pessoas afirmam terem ouvido conversas, portas batendo sozinhas, atribuindo tais manifestações como vindas do além. Contribuindo assim, para que confirme-se cada vez mais no imaginário popular, que o Casarão seja mal assombrado. g) Lenda da Baleia A presença de traços que remetem à questão e crença religiosa também é constante nas narrações lendárias. Temos viva no imaginário popular jeremoabense, a lenda da baleia que encontra-se enterrada debaixo do altar da Igreja Matriz da cidade. De acordo com as palavras do depoente Evangelista9: Foto: Artur Costa, 2008. A igreja de São João Batista acumula muitas Figura 4: Igreja de São João Batista, Jeremoabo/Ba lendas, inclusive as pessoas dizem, eu não sei muito, a questão da baleia que existe debaixo do altar no subterrâneo da igreja. Água, que eles dizem, que corria um mar do rio Jordão, um braço do rio Jordão por essa região e eles acreditam que Figura 4: Igreja Matriz de São João Batista debaixo da [pensamento suspenso]... Hoje tá até se passando essa concepção, não é muito viva como antigamente. Mas antigamente, se dizia que debaixo da casa de João batista, no altar, existia uma baleia ali, que nunca poderia tirar São João Batista daquele altar porque se tirasse a água subia. Realmente, Jeremoabo é muito propício a água. Se você cavar você logo, logo vai ver que a água já está minando, mas as pessoas se aproveitaram dessa região, dessas situações, pra trabalhar essa questão da lenda, entendeu? O fato de o município apresentar facilidade na descoberta de água nos seus lençóis subterrâneos fez com que houvesse a predisposição para o surgimento da narração. Destaca-se também a predominância expressa da religiosidade: as águas que afirmam correr é de um rio bíblico - o Jordão, no qual João Batista, primo de Jesus, batizava as pessoas. Nota-se aí, como as pessoas dão asas à imaginação: o rio São Francisco tão mais próximo ou o Vaza Barris que banha o município, no entanto, o escolhido foi o rio Jordão. Temos também a questão do animal escolhido ser a baleia: mamífero referido na bíblia por ter engolido Jonas. Mais uma vez ressalta-se a questão religiosa a lenda possui como cenário a igreja matriz da cidade e surge para oferecer “proteção” a São João Batista, já que a narrativa traz a ideia de punição caso a imagem de São João Batista seja retirada do 9 Evangelista reside no município de Jeremoabo desde que nasceu e atua como professor. altar. É uma forma de impor respeito e fazer reverência à imagem do padroeiro da cidade: São João Batista. h) Lenda do Cruzeiro da Santa Cruz A lenda do Cruzeiro da Santa Cruz também evidencia a fé popular. A mesma será apresentada de acordo com a versão de Ana Rosa10. A lenda mais conhecida pra mim, mas não para o povo de Jeremoabo, é a lenda do caçador que pra alimentar a sua família ele subia a serra de três em três dias pra matar Foto: Artur Costa, 2009. mocó na época da seca [...] p E aí quando ele sentou debaixo de uma árvore para comer a sua farofa, que ele passava o dia inteirinho, ele viu refletida no sol uma cruz fincada no chão. E aí, ele tirou a Figura 5: Cruz existente no alto da Serra da Santa Cruz, Jeremoabo/ Ba. cruz, colocou no seu alforje, desceu a serra e procurou o vigário na paróquia pra entregar, só que quando chegou na igreja o vigário muito ocupado em atender os fiéis, pediu para que ele colocasse no balcão. E assim ele fez, colocou em cima do balcão e foi para a casa. Passando os três dias, ele retornou ao local que ele costumava a caçar mocó, e aí, quando sentou novamente debaixo da árvore pra comer a sua farofa, que ele passava o dia inteiro, ele tornou a ver a mesma cruz fincada no mesmo local e refletindo a luz do sol. Ele novamente tirou a cruz sem dificuldade nenhuma, colocou no alforje e levou para o padre. Chegando lá ele disse ao padre: “-Que negócio é esse? Eu trouxe a cruz pro senhor e essa cruz voltou para o local onde eu achei lá em cima da serra uns 2 km.” Aí o padre: “-Você tá de brincadeira.” 10 Ana Rosa, 50 anos, é professora e reside em Jeremoabo desde que nasceu. E não acreditou na história do caçador: “-Você tá de brincadeira, você levou a cruz de volta e agora ta dizendo que trouxe. Pois me dê ela aqui!” e pegou a cruz enrolou no tecido, e colocou debaixo do balcão. O caçador já meio desconfiado agradeceu e voltou pra sua casa. Passado os três dias ele retornou a serra onde ele caçava e aí ele foi por um outro caminho, mas sempre sentava à beira, debaixo da árvore pra comer a sua farofa. E aí, quando ele sentou, ele ficou sem querer nem olhar de novo para o local onde se encontrava a cruz, mas a tentação foi grande, ele foi virando e de repente quando olhou estava lá a cruz fincada no chão. E era um dia chuvoso esse dia e ele teve dificuldade de tirar a cruz do lugar. Então, cada dia que ele tirava a cruz, é como se a cruz ao invés de tirar, ela fincava no chão, e aí ele chegou até a se cortar. Pegou a cruz colocou no alforje chegou todo sujinho, só que o padre ainda estava atendendo os seus fiéis, ele dessa vez não quis entregar na sacristia foi pela janela porque ele estava sujo de lama. E quando o padre acabou de atender os fieis ele chamou o vigário. Aí o vigário: “-Você aqui de novo? Que história é essa? Não me diga que trouxe outra cruz?” “-Não, eu queria ver a que eu trouxe.” Testando assim o padre né? E aí, quando o padre olhou debaixo do balcão, ele não tinha entrado na sacristia estava na janela fora da igreja, o padre verificou que a cruz não estava, aí ele disse: “-Você pegou a cruz daqui?” Ele disse: “-Não padre, eu não entrei nem na igreja. Nem na sua sacristia, eu estou aqui de fora.” Aí ele disse [o padre]: “-Mas a cruz não está aqui!” Ele disse: “-Realmente a cruz não está, eu encontrei a cruz infincada no chão, e dessa vez tive dificuldade de tirar que até me cortei.” E mostrou as mãos, os cortes que existiam na mão por ter tirado a cruz. E o padre então percebeu que o que ele tava contando não era uma história comum. Então, pegou a cruz, abriu um armário que ele tinha lá na sacristia, fechou e colocou a chave no bolso. Aí, passando os três dias ele subiu a serra novamente, porque a caça era o único alimento que ele podia dar a seus filhos, e era muito seco nessa época aqui em Jeremoabo, e chegando lá ele dessa vez não quis se distrair, não quis ter medo e foi diretamente ao local onde a cruz estava. E chegando lá, ele encontrou novamente a cruz dessa vez ele sentiu mais dificuldade ainda de se retirar, então ele não tirou, deixou a cruz lá e foi pra sacristia olhar: “Se o padre trancou, então ela deve tá [na sacristia]” e que já seria uma outra cruz. Chegando lá, ele chamou o padre e perguntou: “-Padre me deu saudade eu queria ver aquela cruz. O senhor não queria me mostrar não?” E o padre abriu o armário, tirou a chave do bolso abriu o armário e quando abriu só estava o pano. Então daí em diante o padre percebeu que era um chamado, era alguma coisa de muita fé, uma coisa diferente que não era um momento bobo, e nem que aquele pobre caçador estaria inventando. Então, ele, passado o tempo, ele foi com o caçador visitou o local. Realmente a cruz estava fincada no chão e nenhum dos dois conseguiu tirar. Aí o que foi que aconteceu, ali começou a ser um lugar visitado, um local santo onde as pessoas faziam suas promessas e conseguiam suas graças [...] Se tivesse qualquer problema numa perna, braço qualquer parte do corpo, fazia uma promessa e pra alcançar sua graça levaria em forma de madeira a parte do corpo e lá pagaria a promessa com reza, com fitas, com velas. Subia 2 Km, tinha gente que subia até de joelhos. [...] Ali ficou considerado um lugar santo e muito tempo depois construíram a capelinha e o cruzeiro existente até hoje. No alto da Serra da Santa Cruz existe uma cruz onde as pessoas depositam objetos como pernas e braços de madeira, amarram fitas e acendem velas em forma de agradecimento por graças alcançadas. É referindo-se a essa cruz que a narrativa desenvolve. O fato de agradecer ao pé da cruz é explicado pelo fato de a mesma ser considerada Santa. Explica-se assim também o fato de existirem romarias, que acontecem em especial e com um grande número de pessoas na Sexta-feira da Paixão, na Serra e também um de seus nomes: Serra da Santa Cruz. Além de ser uma narrativa de cunho religioso. i) Lenda da Praga do padre A próxima narração conta a história de um capuchinho que em momento de fúria lança uma praga sobre Jeremoabo. Iremos conhecê-la na versão do depoente Solon11: Sabe-se que antigamente a igreja exercia grande poder sobre a sociedade, existia aquele negócio que os seus representantes afirmavam que tinham o poder de influenciar e decidir quem ia pro céu. E também tinha a questão do poder de querer impor as coisas. Aqui em Jeremoabo também era assim. E cansados dessa situação de imposição os índios se enraivaram e fizeram o seguinte: Certo dia, os índios quando o padre capuchinho estava celebrando a missa, pegaram o padre expulsaram da igreja e montaram o padre a força em cima de um cavalo, mandando que ele fosse embora e dizendo que lá [ na igreja da vila de Jeremoabo] ele não celebraria mais uma missa. Aí então, conta a história, que revoltado e indignado com a atitude dos índios o padre sacudiu as sandálias e na ocasião rogou uma praga contra a vila de Jeremoabo. É por isso que o pessoal diz que Jeremoabo não vai pra frente: por causa a praga jogada pelo capuchinho. A lenda desenvolve-se justamente através de outra manifestação da literatura oral: o provérbio. Quem nunca ouviu dizer que “praga que padre roga, pega”? Pois é, por conta da fé existente em tal crendice popular é que afirma-se que Jeremoabo não é uma cidade desenvolvida por conta da maldição lançada pelo capuchinho. Muita gente credita o retardamento do desenvolvimento social e econômico do município à praga do padre, que na ocasião viu-se tão enfurecido pelo fato de ter sido expulso da igreja, e pode-se dizer da cidade, que proferiu algumas palavras de mal goro. 11 José Solon, 57 anos, é vendedor autônomo e reside há oito anos em Jeremoabo. Encontra-se na Agência do IBGE do município de Jeremoabo uma carta de relato de algumas informações e acontecimentos enviada pelo Pe. Januário, pároco da vila na época, à Corte, onde encontra-se um episódio semelhante a narração transcrita, no qual acredita-se referir-se ao mesmo [...] O 4º e 5º da mesma forma, chegando a tal excesso, que lhes entrarão pela Caza emquanto estava dizendo Missa e lhe tirarão o cavallo da estrebaria, e pondo-o na porta da Igreja cellado mandarão que nelle montasse e se fora embora, que o não querião mais por Parocho. Algumas pessoas apresentam descrença para tal brutalidade cometida pelos nativos da cidade. Apesar de conter registro escrito de tal acontecimento, acreditase que o Pe. Januário, autor do documento teria fortes motivos, como representante da Igreja, em exaltá-la e passar o rótulo de selvagens aos índios nativos que devido à colonização foram catequizados e obrigados a serem convertidos ao cristianismo. E já que o poder do registro escrito era atribuído à Igreja, paira aí a incerteza de até que ponto a história é verossímil. Independentemente da incredulidade depositada por alguns a história, já podemos considerá-la lendária pelo fato das pessoas associarem o atraso do desenvolvimento do município à praga na qual dizem ter sido proferida pelo padre. j) Lenda do Fogo corredor Tem-se conhecimento da existência de diversas histórias que relatam aparições do “fogo corredor”. No entanto, cabe lembrar que um dos aspectos que caracterizam as narrações lendárias é que o seu enredo desenvolve-se em um ponto fixo, sendo única e aderindo traços de exclusividade para cada cenário onde a mesma se desenvolve. Jeremoabo também vislumbra e serve de cenário para uma narrativa que envolve o fogo corredor. Vejamos o que a depoente Carmelita de Dudé relatou: Também no pé da serra, existe uma várzea a qual está sendo invadida por casas, infelizmente, mas era muito bonita a várzea nesses tempos. Agora, a saída de março as fechadas das águas, enchia aquela várzea. Aquela coisa mais linda, até peixe se pegava que vinha da barragem. Aí vinha água da barragem invadia a várzea e ficava um lago muito bonito ao pé da serra era uma paisagem belíssima porque no pé da serra, tinha as quixabeiras que contornava, Manoel d’Chico que tem umas pinturas. Então quando as águas secavam que ninguém ficava, que ninguém podia passar, a não ser por umas pedras que faziam passarela para a Santa Cruz, e quando as pessoas não movimentavam todas as noites o povo viam os faróis azuis. Umas luzes azuis pular da serra, pulava aquele bloco azul, pulava da Serra na mesma direção do cavaleiro, não era do lado de lá do arame, era do lado de cá. Pulava aquela bola azul, daí vinha outra. Quando ele pulava aquela bola azul, que vinha a outra do outro lado, elas ficavam avermelhadas aí ficavam pulando na várzea. Uma ia lá, outra vinha cá. Pulando como bolinhas de globo de bingo, ficavam brincando aquelas bolas. E o povo tudo assistindo... Aí, quando elas batiam uma na outra caía aqueles fachos de fogo, brilhava, chega doía a vista da gente, aí saía voando um pra lá outro para cá, o povo gritando: “-Olhe o fogo corredor! O fogo corredor é o compadre mais a comadre! Se eles se encontrarem o pau vai quebrar!” Então, todo mundo saía de dentro de casa para assistir o fogo corredor. Aí, eles ficavam voando e desapareciam então quando eles desapareciam, todo mundo ficava dizendo é o fogo corredor, a gente ficava acostumado a acreditar em lenda fábulas, histórias de trancoso, como contava os antepassados. Aí, a gente dizendo que era o compadre e a comadre quando morriam que eles na vida material eles tinham pacto amoroso era o compadre e comadre quando morriam iam virar fogo corredor [...] É comum ouvir narrativas que nos contam histórias de pessoas que afirmam terem visto “bolas de fogo” assim como descrito na lendária narrativa transcrita acima. Hoje em dia cientistas explicam que a possível existência de aparições de tais “bolas de fogo” ocorrem por conta de alguns gases. Encontramos a seguinte explicação científica para o fenômeno: Fogo-fátuo (ignis fatuus em latim), também chamado de Fogo tolo ou, no interior do Brasil, Fogo corredor ou João-galafoice, é uma luz azulada que pode ser avistada em cemitérios, pântanos, brejos, etc. É a inflamação espontânea do gás dos pântanos (metano), resultante da decomposição de seres vivos: plantas e animais típicos do ambiente. Quando um corpo orgânico começa a entrar em putrefação, ocorre a emissão do gás fósfina (PH3). Os fogos-fátuos são produtos da combustão da fosfina gerados pela decomposição de substâncias orgânicas, ou a fosforescência natural dos sais de cálcio presentes nos ossos enterrados.12 O que ocorre é que antigamente, e até hoje, muitas pessoas não possuem o conhecimento da explicação dada pelos cientistas. É por isso que as pessoas utilizam do poder imaginário e por meio dele criam suas próprias explicações. Confirmando assim, a caracterização da ideia de que as lendas surgem, por exemplo, para esclarecer aquilo que não possui ou não se tem conhecimento de uma explicação científica. Na lenda transcrita acima acredita-se que as “bolas de fogo” sejam oriundas da alma de casais que verdadeiramente nutriam o sentimento amoroso com tamanha intensidade que, em pacto, depois da morte voltam em forma de bolas de fogo para que possam se reencontrar. Tendo assim em evidência no desenrolar da história o sentimento amoroso. l) Lenda da Origem da palavra Jeremoabo Apresentaremos agora a lenda que explica a origem do nome “Jeremoabo” contada pela depoente Carmelita de Dudé: A origem da palavra Jeremoabo vem do fato de que antigamente as terras que formavam o município era povoado por indígenas. E certa vez no aldeamento nasceu uma índia. Ela era tão bonita que seu pai falou: -Vou colocar seu nome de Jerimum. Jerimum Cabocla. Jerimum é um tipo de abóbora. É que na época o lugar tinha muitas plantações de abóbora e a jerimum era o melhor tipo de abóbora. E na época o que se tinha era abóbora, peixe, milho e mandioca. E como a índia era muito bonita o pai colocou o nome de Jerimum que era a melhor e mais bonita espécie de abóbora. Mas com o passar do tempo a Jerimum Cabocla começou a ficar triste, deprimida e acabou adoecendo e morrendo. 12 Extraído do site 02/05/10. http://www.sobrenatural.org/noticia/detalhar/10578/fantasma_x_fogo_fatuo/ em Aí em homenagem a índia Jerimum colocaram o nome da povoação Jerimum Ba de Bahia. Aí passaram a chamar de Jerimumba e com o passar do tempo passou a se chamar Geremoabo com “G” e por último Jeremoabo com “J” que é como chamam até hoje. A origem da palavra Jeremoabo tem ligação com os nativos indígenas. Estando assim associada ao fato das terras jeremoabenses serem habitadas por índios na época em que Garcia d’Ávila e seus descendentes começaram a desbravá-la. O fato de existir condições favoráveis para o cultivo de abóbora, fez com que a leguminosa fosse cultivada em grande quantidade, em especial, a Jerimum, tida a melhor das espécies e que de acordo com a lenda, deu origem primeiramente ao nome de uma índia, que por causa de sua beleza fascinante e morte prematura, posteriormente, serviu de inspiração para o nome da povoação. Assim, o nome Jeremoabo deriva da palavra jerimum que de acordo com informações coletadas, e citadas anteriormente neste trabalho, significa plantação de abóboras. A narrativa ainda explica algumas variações ocorridas na formação da palavra até chegar àquela que temos atualmente: Jeremoabo. Encerra-se assim esta etapa do trabalho destinada a compor as lendas que permeiam o imaginário popular e que possuem como cenário o município de Jeremoabo. É de suma importância destacar que esta é apenas uma amostra na qual fui agraciada em poder coletar e organizar a fim de que fosse firmada como parte constituinte deste trabalho. CONSIDERAÇÕES FINAIS Pensemos em cultura como um conjunto de costumes, crenças e tradições herdadas e transmitidas através das gerações. Mas não como uma tradição estática, imóvel, mas aquela que foi adquirida através do tempo, que será repassada e que também permite que seja incorporada em si aspectos e traços característicos de cada geração. Diversas manifestações orais fazem parte da cultura e da tradição popular. E inseridas nas manifestações orais estão as lendas que mergulham e permeiam o imaginário popular. A lenda nasce da pureza do imaginário e da alma popular movimentada pelo impulso da criação e da necessidade de comunicar-se e transmitir algo relacionado às origens, tradições e costumes de um povo. Observando-se assim que a história não surge do nada, há sempre uma motivação e/ou ligação com algum fator histórico, social ou cultural. A máxima de que as manifestações folclóricas orais são disseminadas por meio do povo utilizando-se da oralidade e suas relações interpessoais foram claramente constatadas durante a execução deste trabalho. Cada pessoa procurada afim de que pudesse dar uma contribuição particular por meio do relato e da coleta de depoimento de uma determinada lenda, ao final do procedimento, sempre indicava outro indivíduo que afirmava ser conhecedor de outra narração que serviria para ser alocada ao presente estudo. As lendas apesar de possuírem caráter maravilhoso e fantasioso, ilustram traços histórico-sociais de um povo. As narrativas surgem dotadas de particularidades que registram ideologias, crendices e o poder imaginário que caracterizam certo agrupamento humano envolvendo assuntos religiosos e amorosos, histórias que trazem assombrações e exaltações do homem e de animais, exemplificando assim, algumas temáticas encontradas nas narrações lendárias. Todas as narrações lendárias trazem consigo ainda que implicitamente um propósito seja de explicar a origem ou surgimento de algo, como a Lenda do Fogo Corredor, de amedrontar as pessoas em defesa de algo, como na Lenda do Aboio do Boi ou para registrar e explicar a fé popular, como na Lenda do Cruzeiro da Santa Cruz. Confirmando assim, o utilitarismo defendido por Cascudo e deixando de lado a ideia de que as lendas são apenas histórias inventadas pelo imaginário popular sem propósito algum. Os narradores incumbidos de transmitir as lendas, assim como os seus ouvintes, em sua grande maioria, possuem respeito pelas mesmas e as enxergam como algo sagrado. Há ainda aqueles que acreditam e que defendem com tamanha veemência, apesar de ser uma história fantasiosa, a veracidade do conteúdo. O modo como cada um conta a história, apesar de ser desenvolvida por meio de um mesmo fato central, faz com que a mesma desdobre-se em inúmeras variações. Isso porque cada ser inclui e deixa marcas pessoais, inserindo à narração um vocabulário próprio e acrescentando ou retirando detalhes da narrativa de acordo com aquilo que lhe for mais peculiar. O município de Jeremoabo/Ba, escolhido para delimitar e figurar um cenário para as lendas nas quais pudessem compor este trabalho, mostrou-se ser um apto representante por ser um rico expoente cultural, expressando e ilustrando muito bem a verdadeira essência lendária. REFERÊNCIAS ANDRADE, Maria Margarida de. Introdução à metodologia do trabalho científico: elaboração de trabalhos na graduação. 4 ed. São Paulo: Atlas, 1999. ARANTES, Antônio Augusto. O que é cultura popular. São Paulo: Brasiliense, 2004. 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