Organização Sete de Setembro de Cultura e Ensino – LTDA
Faculdade Sete de Setembro – FASETE
Curso de Licenciatura em Letras (Português e Inglês)
LUANA NASCIMENTO COSTA
O LEGADO LENDÁRIO QUE COMPÕE O IMAGINÁRIO POPULAR DO
MUNICÍPIO DE JEREMOABO/BA
PAULO AFONSO – BA
JUNHO - 2010
LUANA NASCIMENTO COSTA
O LEGADO LENDÁRIO QUE COMPÕE O IMAGINÁRIO POPULAR DO
MUNICÍPIO DE JEREMOABO/BA
Monografia apresentada ao curso de
Licenciatura em Letras com habilitação em
Português e Inglês, da Faculdade Sete de
Setembro – FASETE, como requisito para
avaliação conclusiva. Sob a orientação da
professora Ms. Maria do Socorro Pereira de
Almeida.
PAULO AFONSO- BA
JUNHO – 2010
FACULDADE SETE DE SETEMBRO – FASETE
CURSO DE LICENCIATURA EM LETRAS – HABILITAÇÃO PORTUGUÊS/INGLÊS
PARECER DA COMISSÃO EXAMINADORA DE DEFESA DE MONOGRAFIA DE
GRADUAÇÃO DE
LUANA NASCIMENTO COSTA
“O legado lendário que compõe o imaginário popular do imaginário do município de
Jeremoabo/BA”
A comissão examinadora, composta pelos professores abaixo, sob a presidência do
(a)
primeiro
(a),
considera
a
discente
LUANA
NASCIMENTO
________________.
Paulo Afonso, 11 de junho de 2010.
____________________________________________
Prof. ª Maria do Socorro Pereira de Almeida, Mestre (Orientadora)
____________________________________________
Prof.º Isa Úrsole Bezerra de Brito, Especialista
____________________________________________
Prof. º Sandra Regina Leal Marcúla, Especialista
COSTA
Dedico este trabalho a
minha mãe, estrela maior da
minha vida.
AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente a Deus que com sua mão e toque divino, a todo o
momento, me amparou dando-me forças e iluminando-me para que pudesse chegar
até o fim de mais uma entre tantas caminhadas.
Ao meu pai Solon. E de forma muito especial, a minha mãe Maria que nunca
mediu esforços para que eu pudesse chegar aonde eu cheguei, e que sempre
almejou que eu tivesse um futuro brilhante não só como profissional mas também
como pessoa.
A meu irmão Artur que como digo ao próprio “és meu tudo e meu nada” pela
paciência que dedicou a mim e, que de forma especial, sempre mostrou-se apto a
ajudar-me nos momentos em que precisei.
A Soraia Magna que a todo momento me incentivou e mostrou-se disponível
no que fosse preciso para que este trabalho fosse realizado com êxito.
A Rodrigo, Evangelista, tio Dedé, Carmelita de Dudé e Ana Rosa pela
prestatividade e colaboração para realização deste trabalho.
A KeiKo, Ana, Adriana e Rafaela companheiras de faculdade que durante
quatro
anos
compartilhamos
experiências,
adversidades
e,
sobretudo,
ensinamentos.
A minha orientadora Socorro Almeida pelo auxílio e disponibilidade.
Enfim, a todos aqueles que caminharam comigo nesta estrada durante quatro
anos e que contribuíram de forma direta ou indireta para que esta fosse concluída
com êxito.
Não há grupo humano estável que
além de ter a sua vida social, a
sua sociedade, não tenha também
a sua memória, a sua história, a
sua cultura.
Carlos Rodrigues Brandão
COSTA, Luana Nascimento. O legado lendário que compõe o imaginário
popular do município de Jeremoabo, BA. 2010. 59 f. Monografia (Licenciatura
em Letras: Português e Inglês) – Faculdade Sete de Setembro – FASETE. Paulo
Afonso, BA.
Este trabalho de pesquisa visa compor o legado lendário que tem como cenário o
município de Jeremoabo/Ba e que encontra-se vivo no imaginário local. A primeira
parte da pesquisa é de cunho bibliográfico em que nos debruçamos sob o estudo de
vários teóricos para nos embasarmos sobre alguns conceitos como cultura, literatura
oral entre outros. A coleta de dados foi feita através de uma pesquisa de campo que
nos permitiu colher grande parte das lendas sobre o citado município de, também
foram investigados alguns dados documentais sobre a cidade. Para atingir o objetivo
proposto esse trabalho se divide em três capítulos, o primeiro nos permitiu uma
investigação sobre cultura, o segundo capítulo está montado sob a perspectiva da
literatura popular e oral e por último nos empenhamos em apresentar as lendas. Ao
final da pesquisa observou-se que a cidade de Jeremoabo é muito rica
culturalmente, principalmente no que diz respeito à narrações de caráter lendário,
observa-se assim, a composição de uma amostra montada por meio de narrações,
em que pode-se observar intrinsecamente em seus enredos marcas sócio-culturais
que retratam a sociedade e costumes locais e que permeiam o imaginário popular
daqueles que habitam o município de Jeremoabo até os dias atuais.
Palavras chave: lendas, imaginário popular, Jeremoabo.
COSTA, Luana Nascimento. O legado lendário que compõe o imaginário
popular do município de Jeremoabo, BA. 2010. 59 f. Monografia (Licenciatura
em Letras: Português e Inglês) – Faculdade Sete de Setembro – FASETE. Paulo
Afonso, BA.
This research aims to make the legacy lendrio whose scenery of the municipality on
Jeremoabo / Ba and who is living in imaginrio site. The first part of the investigation
of nature in which we edged bibliogrfico under study for various Theoretically we
based it on some concepts such as culture, oral literature among others. Data
collection was done via a field survey that allowed us to reap most of the legends of
the municipality on the aforementioned, were also investigated some documentary
evidence of the city. To achieve this purpose this work is divided into three chapters,
the first one allowed us Investigation on culture, the second chapter estmontado from
the perspective of folk literature and oral and strive last one in presenting the
legends. At the end of the study showed that the city of Jeremoabo very rich
culturally, especially with regard narraes carter lendrio, there is thus the makeup of a
sample mounted through narraes, where one can observe intrinsically plots in Sciocultural brands that portray the company and local customs and that permeate the
popular imaginrio those living in the municipality on Jeremoabo acts of today.
Keywords: legends, imaginrio popular, Jeremoabo.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
1. Serra do Cavaleiro ou da Santa Cruz, Jeremoabo/Ba .................................. 37
2. Raso da Catarina, Jeremoabo/Ba.................................................................. 44
3. Antigo Casarão do Coronel João Sá, Jeremoabo/Ba .................................... 46
4. Igreja Matriz de São João Batista, Jeremoabo/Ba ........................................ 48
5. Cruz existente no alto da Serra da Santa Cruz, Jeremoabo/Ba .................... 49
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..................................................................................... 10
1. CULTURA: O QUE É E COMO SE FAZ .......................................... 13
1.1 COMO A CULTURA É VISTA NOS PADRÕES SOCIAIS ............. 16
2. LITERATURA POPULAR E ORAL .................................................. 21
2.1 LITERATURA ORAL NO BRASIL ................................................... 24
2.2 AS LENDAS .................................................................................... 29
3. JEREMOABO: ASPECTOS HISTÓRICOS, GEOGRÁFICOS E
SÓCIO- ECONOMICOS ....................................................................... 33
3.1 A CULTURA JEREMOABENSE ..................................................... 34
3.2 O LEGADO LENDÁRIO DE JEREMOABO .................................... 36
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................. 56
REFERÊNCIAS .................................................................................... 58
INTRODUÇÃO
Diversas histórias são contadas de uma pessoa para outra em situações
cotidianas: no trabalho, em momentos de lazer e em conversas entre vizinhos e
amigos, em reuniões familiares onde os mais velhos contam histórias, casos para
distrair e até mesmo amedrontar os mais novos. É assim, com a transmissão e
retransmissão das histórias que a literatura oral ganha força e continua a perpetuar
em nossas mentes.
Quem não conhece ou nunca ouviu uma lenda, contos, adivinhações, travalínguas? Todas essas manifestações nos remetem à literatura, que por serem
transmitidas por via oral, chamamo-las de Literatura Oral. Não se sabe ao certo
quando surgia mas sabe-se que a mesma era utilizada a muito tempo a fim de
transmitir ensinamentos, tradições e informações.
Segundo Cascudo (1984, p. 29) “A literatura oral brasileira reúne todas
manifestações da recreação popular, mantidas pela tradição”. Mas aí, resta-nos
indagar se nossas tradições estão sendo realmente propagadas, transmitidas como
devem ser, fazendo valer o valor semântico da palavra ou estão sendo perdidas e
assim desmistificadas.
É importante manter sempre vivas as tradições não só na memória, mas
também na vida, no cotidiano das pessoas. É de vital importância instigar as
pessoas a relembrarem, resgatarem de dentro de si histórias muitas vezes
esquecidas, e compartilhá-las com outras pessoas sem dar-se conta que estão
servindo como instrumento fundamental para que o ciclo natural da literatura oral se
complete, dando oportunidade para que outras pessoas descubram e façam parte
desse ciclo e mais, reafirmando que, ainda que inconscientemente, o lugar onde
vive, ou passou, tem uma rica expressão cultural lendária que precisa ser conhecida
e reconhecida por todos, especialmente pelos mais jovens para que não percam o
contato com suas raízes.
Compactuando e inseridas na literatura oral estão as lendas, narrativas de
caráter fantasioso, contadas oralmente através dos tempos, podendo assim sofrer
alterações na medida em que é divulgada e que fazem parte da expressão da
realidade cultural perpetuando e ganhando vida no imaginário popular revelando e
retratando a riqueza de um povo.
Levando em consideração a importância de retratar a expressão cultural de
um povo, será tratado neste trabalho o legado lendário que compõe o imaginário
popular do município de Jeremoabo/Ba. É imprescindível que a população em geral
conheça e reconheça que em seu berço existe uma rica tradição cultural oral. Que
muitas lendas possuem como cenário o município do sertão baiano que foi habitado
por indígenas e desbravado sob o comando de Garcia D’Ávila1 e seus
descendentes, e que servia de rota e base de fugitivos e soldados que fizeram parte
da Guerra de Canudos.
A escolha dessa temática surgiu decorrente do interesse de compor, ainda
que parcialmente, o legado lendário de Jeremoabo/Ba, visto que o município
apresenta-se como cenário de muitas lendas. E atentando para o fato de que muita
dessas riquezas vem sendo perdidas e esquecidas, restando na memória de
poucos, surgiu com isso a necessidade de promover um levantamento oral do
referencial local.
Assim, este trabalho pretende abordar a cultura oral no município de
Jeremoabo/Ba, através do levantamento das lendas que integram o imaginário
popular local, que foram colhidas através de depoimentos e de documentos escritos.
A coleta de depoimentos foi realizada por meio de equipamento de captura de
áudio e por meio de consultas às fontes bibliográficas. A tarefa realizou-se através
de conversas informais, que são naturalmente fonte propagadora da literatura oral.
Também foram consultados livros, revistas e outros materiais a fim de identificar
alguma lenda do município que já possua algum registro escrito, somando assim ao
trabalho desenvolvido, e diversas fontes bibliográficas que servirão de apoio e
embasamento para o desenvolvimento do trabalho, assim como, consultas de
materiais bibliográficos sobre o município de Jeremoabo (história, população,
economia, cultura), lendas e cultura. Além disso, o trabalho contém um pequeno
acervo fotográfico a fim de ilustrar e fazer conhecer os ambientes onde algumas
lendas foram desenvolvidas.
Para realização desse estudo foi desenvolvido o seguinte esquema: o
primeiro capítulo versará sobre a cultura no intuito de esclarecê-la conceitualmente
1
De acordo com Justinianno de Sant’anna Garcia d”Ávila, português, foi o pioneiro do bandeirismo na
região das terras jeremoabenses. Veio ao Brasil em busca de aventuras impulsionado pelo seu
temperamento de colonizador e homem de ação.
para o leitor. Ainda nesse capítulo aborda-se como a cultura se desenvolve no
âmbito social.
O segundo capítulo por sua vez traz a literatura oral no intuito de aprofundar o
conhecimento sobre a mesma e retificar o objetivo de nossa pesquisa.
No terceiro capítulo constará algumas informações relativas ao município de
Jeremoabo/ Ba assim como serão apresentadas as lendas coletadas que ilustram o
legado lendário do referido município.
Para fundamentar essa pesquisa percorremos teorias de várias áreas do
conhecimento como a literatura, a cultura, entre outras, observando olhares de
vários estudiosos como Câmara Cascudo, Roque de Barros Laraia, Marilena Chauí
e Américo Pellegrini Filho.
1. CULTURA: O QUE É E COMO SE FAZ
De acordo com Câmara Cascudo (2004) cultura, de cultum, supino de colore,
trabalho da terra, conjunto de operações próprias para obter do solo os vegetais
cultivados. Cultura vem de cultivar, plantar algo, esperar que germine por meio de
cuidados a fim de que alcance a finalidade maior de obtenção de frutos e por meio
deste ciclo garantir sua proliferação e perpetuação entre as gerações. Tal cultivo não
se restringiu apenas a elementos agrícolas mas estendeu-se para o cultivo das
letras, das artes e de outras áreas do saber humano. Assim, Ralph Linton afirma
que:
Como termo geral, cultura significa a herança social e total da
Humanidade; como termo específico, uma cultura significa
determinada variante social. Assim, cultura, como um todo, compõe-se
de um grande número de culturas, cada uma das quais é
característica de um certo grupo de indivíduos. (apud CASCUDO,
2004, p.40)
Por meio da citação acima constatamos que a cultura não pode ser
considerada única e nem observada como um todo já que a mesma é composta e
recebe influências de diversas outras culturas. Além disso, Cascudo (2004) chama
atenção pelo cuidado tido ao utilizar a palavra humanidade ao invés de civilização
garantindo assim uma melhor amplidão “a herança social e total”, não abrindo assim,
precedentes para que indivíduos sejam colocados à margem cultural, estabelecida
por um grupo da sociedade portador e dotado de civilidade, pelo fato de não serem
considerados como civilizados. Assim, a humanidade estabelece-se além da parte
civilizada por incluir a todos os indivíduos.
Já Marilena Chauí, em Conformismo e Resistência (1989) além de relacionar
o termo cultura com o cultivo da terra acrescenta relacionando-o ao culto aos
deuses, também discorre sobre as relações entre cultura e civilização. Civilização,
termo oriundo do latim cives e civitas que faz júris ao homem civil educado
pertencente à ordem social. Civilização em sentido mais amplo que civil, implica
certo ponto da história relacionado ao desenvolvimento histórico-social.
Chauí (1989) apresenta em seu trabalho a cultura sob perspectiva do olhar de
Românticos e Ilustrados2. O Romântico vê a cultura como algo oposto a civilização,
2
Românticos, seguidores do Romantismo, corrente de ideias artísticas e literárias emergentes no
século XIX, que visualizavam o povo como simples, puro, enraizado nas tradições e no solo de sua
partindo do princípio de que a cultura seja algo natural, oriunda do interior de cada
pessoa, nascendo assim de forma espontânea, livre de contaminações exteriores
provenientes de estruturas pré-estabelecidas, enquanto a civilização vêm de traços
pré-moldados e definidos por convenções políticas e sociais nos quais os indivíduos
são enquadrados.
Já o Ilustrado não vê oposição entre cultura e civilização. Cultura acaba
sendo um meio permissivo à avaliação, comparação e classificação das civilizações,
ou seja, a cultura é vista como fonte caracterizadora de uma civilização, já que a
mesma será como um espelho que apresenta o reflexo de uma determinada
civilização. A cultura, por exemplo, acompanha a libertação e evolução intelectual do
homem.
Diante de tantas discussões e opiniões abordadas por Chauí acerca de
cultura não tomaremos com totalidade nem o partido dos Românticos e nem dos
Ilustrados. Acreditamos que a cultura seja algo natural e subjetivo de cada ser, mas
não se faz em oposição à civilização. A civilização é constituída através de diversas
culturas existentes e pode sim influenciar na formação e descaracterização cultural
intrínseca do ser humano. Faz-se necessário então que o indivíduo saiba guardar,
ou melhor, exteriorizar a cultura existente dentro de si para que não se perca ou se
dilua perante a diversidade cultural da civilização ou perante da Humanidade.
Por fim, apresento a cultura sob as palavras de Câmara Cascudo. É sob a
perspectiva definida por Cascudo que será norteado este trabalho. Cascudo (2004,
p. 41) afirma que: “A cultura compreende o patrimônio tradicional de normas,
doutrinas, hábitos, acúmulo de material herdado e acrescido pelas aportações
inventivas de cada geração.”
A cultura é constantemente volúvel, não é constante e invariável, pode sofrer
modificações com o passar do tempo de acordo com as influências recebidas de
cada geração na qual a mesma está integrada. Todo indivíduo tem poder
contribuitivo para formação de sua cultura. E uma série de fatores de ordem social,
geográfico, político, ambiental possuem poder decisivo para ocasionar tais
mudanças.
região. Opunham-se aos Ilustrados, intelectuais seguidores do Iluminismo, movimento caracterizado
pelo elitismo, pela rejeição à tradição e pela valorização e ênfase à razão.
Ruth Benedict (apud LARAIA, 2002, p. 67) “A cultura é como uma lente
através da qual o homem vê o mundo. Homens de culturas diferentes usam lentes
diversas e, portanto, têm visões desencontradas das coisas”.
Arantes (2004, p. 32) diz que “os significados culturais não são
compreendidos através da contemplação passiva do objeto significante, mas com
referencia ao universo de significados próprios de cada grupo social.”
Cada cultura pode ser identificada e diferenciada por meio de particularidades
que caracterizam o pensar, o agir, suas crenças, o modo de vestir e de falar, por
exemplo. Numa certa cultura pode ser que seja normal ou aceitável que uma mulher
ande com o rosto descoberto já em outra não. No entanto a cultura não pode ser
medida, comparada e nem avaliada em mais ou menos preciosa do que outra.
Todas possuem suas singularidades e mostram-se importantes dentro do meio no
qual são cultivadas. Apresentando pontos e fatores que as valorizem, e assim como,
em comumência com diversas outras coisas existentes no universo, outras que a
desaprovem. Isso dependerá de como e por quem será vista e julgada, de acordo
com os olhos de um indivíduo que estará inserido em determinada cultura e será
baseada nela de acordo com seus hábitos e costumes que ele irá avaliar a cultura
alheia. Assim, se a cultura estrangeira tiver algo em comum com aquela na qual o
indivíduo faz parte talvez esta não seja vista com olhar estranho ou de
desaprovação.
Na verdade a cultura deve ser vista e refletida levando em consideração a
real situação do meio na qual a mesma é desenvolvida. Mas, muitas vezes a
enxergamos sob a ótica de interesse que estabelecemos sobre a mesma.
Ninguém é capaz de participar inteiramente de todos os elementos de uma
determinada cultura. Fatores como sexo e idade são decisivos para limitar sua
participação, seja por fatores realmente biológicos ou até mesmo cultural. O
importante é que, ainda que parcialmente, todo indivíduo participa ou contribui em
alguma circunstância para a formação e concretização de determinada cultura.
Se formos encarar a cultura levando em consideração a divisão social
existente em nossa sociedade, identificando seus conhecimentos, costumes e
habilidades chegaremos em primeiro plano a classe dos cultos e incultos. Mesmo
sabendo que indiferentemente do indivíduo ser denominado culto ou não, o mesmo
possui cultura. Parte-se daí a divisão existente entre o lado culto onde teremos a
Cultura Erudita ou Letrada e do outro lado, dos incultos, da Cultura Popular.
1.1 COMO A CULTURA É VISTA NOS PADRÕES SOCIAIS
a) Cultura erudita
A cultura erudita é direcionada para a elite da sociedade, pessoas que são
tidas como detentoras de poderes econômicos, políticos e sociais mais elevados,
voltando-se assim para um público restrito. Por ser voltada para um público
exigente, instruído e acima de tudo com um alto nível de escolarização sua arte é
desenvolvida sofisticadamente e emprega forma e conteúdo de teor mais elevado.
Mas o nível intelectual não é o fator predominante que proporcionará ou não o
acesso da população à cultura erudita, o fator econômico também é determinante. O
acesso a livros, teatros, apresentações musicais, roupas de grife, etc. possuem um
alto custo financeiro.
A cultura erudita na verdade é uma cultura artificial pois é imposta, não é
adquirida de forma natural. Essa forma de cultura se encontra nas escolas e
academias, impondo aos indivíduos a aprendizagem passiva daquilo que encontrase pré-estabelecido. Essa prática é uma maneira que ilustra como determinados
grupos sociais cobram um padrão de comportamento, de linguagem em nível de
intelectualidade.
Apesar da supervalorização dada a cultura erudita, muitas vezes nós
esquecemos que a mesma possui traços provenientes da cultura popular como
indica Cascudo (1984, p. 27):
Nunca essa separação pôde ser evitada pela articulação dos dois
movimentos paralelos. Canto dança, estória, lenda, jogos infantis, todo
um equipamento intelectual, como diz Miss Charlotte – Shopie Burne,
segue sua finalidade e acompanha o próprio homem em sua batalha
pela cultura oficial, ensinada nas faculdades ou laboratórios,
modificada pela genialidade, mas sempre diversa de uma outra cultura
que sem querer e sem saber, ‘bebeu no leite da antiquidade’, como
dizia Garcilaso de la Vega.
Enquanto a cultura erudita é preparada e modelada para ser ofertada e
alinhada de acordo com padrões sociais, a cultura popular é fruto da criação e
produção do povo. O povo cria, fabrica de maneira artesanal e peculiar agregando a
ela características aproximadas de sua realidade, e ao próprio povo cabe o papel de
divulgá-la e concretizá-la no meio social resistindo ao tempo.
b) Cultura popular
Luyten (2005) afirma que “a cultura popular se dá em sociedades em que há
elite e povo participando de manifestações comuns” e afirma ainda que a maioria
das manifestações populares ocorrem de forma oral. Isso porque segundo o mesmo:
“a comunicação em nível popular na realidade significa trocas de informações,
experiências e fantasias de analfabetos e semiletrados com seus semelhantes. Aqui
é bom fazermos uma observação: analfabeto ou iletrado não quer dizer, em
absoluto, ignorante.”.
Também não se pode deixar de observar e acrescentar que “a comunicação
em nível popular na realidade significa trocas de informações, experiências e
fantasias” que podem permear também na vida de letrados.
Arantes (2004, p. 16) afirma que “Um grande número de autores pensa a
‘cultura popular’ como ‘folclore’, ou seja, um conjunto de objetos, práticas e
concepções (sobretudo religiosas e estéticas) consideradas ‘tradicionais’”.
No entanto, Arantes acredita que esta concepção de cultura popular faz
acreditar que as sucessivas mudanças ou adaptações sofridas com o passar do
tempo, nas manifestações culturais, acabam sendo encaradas como distorções ou
“empobrecimento” de tais manifestações, já que não estão sendo firmadas seguindo
totalmente o tradicionalismo que interpreta e dá sentido ao passado.
Em contrapartida à idéia de que o tradicionalismo presente na cultura popular
exista como forma de congelamento voluntário ou não, Pellegrini Filho afirma que:
Essa força de manutenção aberta a mudanças diga-se de acréscimo,
é o que no estudo de folclore se compreende por tradição: uma linha
de continuidade que, entretanto, não significa imobilidade. É tradição
viva, é um processo de continuidade que admite modificações.
(PELLEGRINI FILHO, 2000, p. 29)
Referindo-se a autores como Silvio Romero e Celso de Magalhães, Ayala
(2003) diz que de acordo com os nomes referidos anteriormente, a cultura popular é
encontrada em maior intensidade no meio rural e nas cidades interioranas. Isso
porque associa-se “ à noção de que a cultura popular é rude, rústica, ingênua, enfim,
algo que se opõe àquilo que está relacionado com o progresso [...]”
O progresso e desenvolvimento inerente na sociedade atual fazem com que
cresça o receio de que as manifestações culturais populares acabem se perdendo
em detrimento dos avanços existentes na civilização. Surge então consigo a ideia de
que seja necessário que registre-se antes que caia no esquecimento e acabe se
perdendo.
Para Ayala (2003) a cultura popular está além de limitações geográficas ou
divisões que a predominem em meio rural ou urbano. Ela encontra-se em processo
dinâmico e é reproduzida de acordo com o “processo histórico e social que lhes dá
sentido no presente” e assim ganha novos significados. Assim, a cultura popular não
deve ser vista como práticas culturais do passado que sobrevivem no presente.
A cultura popular em determinado tempo foi repreendida e desvalorizada.
Muitas vezes taxada de brega, ridícula, “coisa de velho”. Mas, quem nunca fez-se
ser atuante e participativa da mesma? É difícil encontrar alguém que nunca leu um
conto, possui e/ou acredita em alguma superstição, contou alguma lenda ou
adivinhação, dançou quadrilha ou assistiu alguma apresentação de reizado ou
bumba meu boi. Todas essas manifestações integram aquilo que chamamos de
cultura popular.
A cultura popular é autêntica, revela a essência interior que habita no povo,
está intrinsecamente ligada aos seus costumes, tradições e crendices.
Chauí (1989, p. 10) “[...] do ponto de vista oficial ou estatal, ‘popular’ costuma
designar o regional, o tradicional e o folclore”.
O povo através da cultura popular retoma e mantêm viva tradições para que
as mesmas não sejam perdidas. Promove e cultiva as relações sociais interpessoais,
já que sua transmissão é realizada de forma para que haja a interação e contato
entre as pessoas.
c) Cultura de massa
É comum hoje em dia confundir ou associar, erroneamente, a Cultura Popular
com a Cultura de Massa. Mas em que baseia-se a diferenciação entre ambas? O
que venha a ser povo e massa? Primeiramente vamos a definição do que venha a
ser povo e massa. Segundo Félix (2008):
Segundo o papa Pio XII, numa célebre radiomensagem de Natal no
ano de 1944, expressou muito bem ao conceito de ‘povo’ e de ‘massa’.
Segundo sua visão, totalmente filosófica ‘o povo é formado por
indivíduos que se movem por princípios. Ele é ativo, agindo
conscientemente de acordo com determinadas idéias fundamentais,
das quais decorrem posições definidas diante das diversas situações
em que vivem. Assim ele fala das massas como um grupo de
indivíduos que não se movem, mas que são movidos por paixões. A
massa é sempre passiva. Ela não reage racionalmente e por sua
conta, mas se alimenta de entusiasmos e idéias estáveis. É sempre
escrava das influências instáveis da maioria, das modas e dos
caprichos [...]
De acordo com as palavras de Pio XII a massa não possui identidade própria.
Sua identidade é formada espelhada naquilo que é refletido por outrem, ficando
assim a mercê de padrões e princípios predeterminados.
De maneira clara e sucinta podemos diferenciá-las dizendo que a Cultura
Popular é feita pelo povo e a Cultura de massa para o povo a fim de satisfazer as
necessidades da indústria cultural. Mas Chauí vai além:
[...] Não se trata da diferença (ainda que muito importante) entre
produtores e destinatários. Mas da diferença entre uma manifestação
cultural na qual os participantes se exprimem e se reconhecem
mutuamente em sua humanidade e em suas condições sociais,
marcando a distância e a proximidade com outras manifestações
culturais, a apropriação ou a oposição a outras expressões culturais,
de um lado, e, de outro, uma estrutura cultural na qual os indivíduos
são convidados a participar sob pena de exclusão e invalidação
sociais ou de destruição cultural. (CHAUÍ, 1989, p. 40)
A cultura de massa é proveniente da indústria cultural implantada em nossas
vidas atualmente. Somos manipulados a tal ponto que não se consegue viver sem o
seu intermédio e presença em nossas relações diárias. A alienação causada pela
mesma faz com que se torne desejável ser, ter e fazer aquilo que “todos” são, tem e
fazem tornando-se assim mais um adepto da massificação cultural promovida
principalmente pelos meios de comunicação em massa e pela indústria cultural, em
conseqüência, sobretudo, das grandes inovações tecnológicas. Assim, ela observa
que:
A expressão comunicação de massa foi criada para se referir a objetos
tecnológicos capazes de transmitir a mesma informação para um
vasto publico ou para a massa. Inicialmente, referia-se ao rádio e
cinema, pois a imprensa pressupunha pessoas alfabetizadas, o que
não era requerido pelo rádio nem pelo cinema em seus começos.
Pouco a pouco, estendeu-se para a imprensa, a publicidade ou
propaganda, a fotografia e a televisão. Esses objetos tecnológicos são
os meios por intermédio dos quais a informação é transmitida ou
comunicada. (CHAUÍ, 2006, p. 35)
Com o objetivo de atingir o maior número de pessoas possíveis, a cultura de
massa utiliza-se dos meios de comunicação em massa - como tv, revistas, jornais –
para garantir sua propagação. E em tempo onde a efemeridade e voluptuosidade
predominam esse estereotipo cultural que exige menor, ou nenhuma, criticidade,
ganha cada vez mais espaço.
[...] A cultura nos satisfaz se temos paciência para compreendê-la e
decifrá-la. Exige maturidade. Os meios de comunicação nos
satisfazem porque nada nos pedem, senão que permaneçamos para
sempre infantis. (CHAUÍ, 2006, p. 53)
Se a cultura em massa utiliza-se em maioria dos meios de comunicação em
massa, consequentemente aquilo que os mesmos transmitem nada irá exigir de nós
também. O que a indústria cultural almeja é que a cultura, por ela desenvolvida, seja
apenas consumida pelos demais, não sendo função do receptor senti-la, pensá-la
nem muito menos desenvolvê-la. Processo e finalidade oposta àquela reservada à
cultura popular onde, além de impregnar-se de forma efetiva e participativa na vida
do indivíduo, cabe ao mesmo ajudar a produzí-la e dar-lhes traços próprios.
2. LITERATURA POPULAR E ORAL
Esse trabalho busca mostrar a existência e a importância da lenda para a
sociedade e como ela se desenvolve. Assim, buscamos resgatar algumas lendas do
município de Jeremoabo/Ba para compor o corpus do trabalho. Nesse contexto, por
se tratar de uma cultura oral e fazer parte do que chamamos de Literatura popular
oral, busca-se nesse capítulo apresentar a literatura popular e a sua condição oral
para nos fazer entender pelo nosso leitor.
Segundo Luyten (2005) a literatura popular aparece no Ocidente a partir do
século XII caracterizada por possuir linguagem regional, não sendo feita em latim
língua oficial da Europa, onde eram compostas e contadas histórias com temas
adversos a assuntos eruditos e religiosos, que eram comuns na língua latina.
Naquele tempo as pessoas não tinham locomoção livre a não ser em época
de guerra ou em peregrinação. É nessa última circunstância que os poetas viviam a
contar novidades e cantar poemas e histórias aventurescas e de bravura. A literatura
popular aparece em oposição à oficial idealizada pela Igreja Católica. Nos núcleos
de peregrinação, Roma – a Santa Fé, Jerusalém – a Terra Santa e Santiago de
Compostela, deram-se início, através dos poetas nômades, a produção da cultura
regional que passou a ser transportada e divulgada por meio de menestréis,
trovadores e jograis.
Luyten (2005) afirma ainda que assim como na literatura erudita, na popular
predominam fundamentalmente duas formas: prosa e poesia. Na prosa teremos os
contos, lendas e o teatro. Podemos citar também os ditados populares e os
provérbios que podem ser ritmados também. “O teatro popular tem origem nos
chamados autos medievais”. As apresentações ocorriam geralmente em feiras e era
comum a participação dos espectadores. A Bela Adormecida e Chapeuzinho
Vermelho são exemplos de contos infantis, que os irmãos Grimm recolheram dentre
histórias populares e que tornaram-se conhecidos no mundo inteiro.
Os registros da poesia popular ocorrem em menor intensidade comparado
com a prosa. Luyten observa que existe distinção acerca da poesia que pode ser
“fixa” ou “móvel”. A poesia fixa é composta por versos “prontos” para serem
decorados e assim são transmitidos de pessoa para pessoa. São exemplos de
poesias fixas as canções de ninar, as parlendas. “Outros poemas fixos são os
‘cancioneiros’ – histórias rimadas – com forte teor emotivo e algum ensinamento”. A
poesia móvel são aquelas produzidas em um momento acompanhado do sabor de
improvisação. São exemplos da poesia móvel os repentes, produzidos por poetas
através do improviso, são geralmente cantados e produzidos por um ou mais poetas.
Quando em grupo é comum ocorrer desafios. Depois que o mote3 é definido dar-se
início ao desafio que terá como vencedor aquele que conseguir acompanhar a rima
durante mais tempo.
A literatura oral compreende todas aquelas manifestações literárias (lendas,
contos, anedotas, parlendas, repentes...) que possuem como fonte característica
transmissora a oralidade.
De acordo com Câmara Cascudo (1984) a literatura oral possui duas fontes
distintas que a mantém viva: a oral, onde suas manifestações ganham vida e
ultrapassam gerações por meio de conversas informais entre amigos, vizinhos e
familiares, em momentos de lazer e descontração, fazendo valer assim a sua
nomenclatura - literatura oral, já que a mesma é transmitida através da oralidade e a
outra fonte é a reimpressão de antigos livrinhos, um exemplo de literatura oral
impressa é a literatura de cordel. Apesar de não ser datada a sua origem, tem-se
notícia que desde o século XII em Portugal livretos já eram impressos. Dentre eles,
temos como exemplo, Carlos Magno e os Doze Pares da França, que
independentemente de ter sido impresso faz parte da literatura oral já que suas
histórias foram feitas para serem declamadas pelo povo.
Cascudo (1984, p. 23) referindo-se a literatura oral afirma que: “Sua
característica é a persistência pela oralidade. A fé é pelo ouvir, ensinava São Paulo.”
Para que se possa ter convicção da grande força existente na oralidade, do poder
que a transmissão das palavras por meio oral possui basta pensarmos naqueles
povos que viveram antes da invenção da escrita ou daqueles que não a utilizavam,
seja por não obter o domínio da língua escrita ou por qualquer outro motivo. Esses
povos independentemente de utilizarem a escrita conseguiram passar e repassar
entre as gerações seus costumes e ensinamentos através da oralidade.
Sousa e Souza afirmam o seguinte sobre a literatura oral:
3
Segundo o dicionário inFormal, mote é uma expressão ou frase, referente a um tema ou assunto
tratado, desenvolvido ou a ser tratado ou desenvolvido. Na literatura de cordel indica uma frase
metrificada ideal para o repentista (improvisador) fazer dela poesia.
A tradição oral pode ser vista como uma cacimba de ensinamentos,
saberes que veiculam e auxiliam homens e mulheres, crianças,
adultos/as velhos/as a se integrarem no tempo e no espaço e nas
tradições. Sem poder ser esquecida ou desconsiderada, a oralidade é
uma forma encarnada de registro, tão complexa quanto a escrita, que
se utiliza de gestos, da retórica, de improvisações, de canções épicas
e líricas e de danças como modos de expressão. (SOUSA e SOUZA,
2008, p.155)
Nem o processo de modernização e de inovações tecnológicas que vem
sendo incorporadas à sociedade transformando-a e inserindo novos ares e valores
fizeram com que o valor e o poder exercido pela transmissão oral fosse desfeito,
mantendo assim, sua força e existência.
Sousa e Souza (2008, p. 156) afirma ainda que: “As narrativas orais
expressam hábitos e valores cujo o compartilhamento se dá no ambiente familiar,
religioso, comunitário, escolar. Todo este patrimônio está no corpo e na mente das
pessoas, onde quer que ela esteja.” A literatura oral é parte indissociável em nossas
vidas. Todos nós de um modo ou de outro participamos, seja como transmissor ou
receptor, das tradições orais. Tradições essas que transpõem as barreiras
acadêmicas, já que não exige-se que a pessoa saiba ler e/ou escrever, e que tornase acessível principalmente por ambientes informais como a família, a comunidade,
o meio religioso e, em raras vezes, através da escola.
As narrativas orais surgem e impregnam-se na mente das pessoas
naturalmente sem que sejam impostas ou ditadas pela sociedade. O tecer das
palavras, o modo como cada narrador impõe dentro da repetição, que na verdade
transforma-se em criação, suas experiências, seus relatos, seu vício vocabular, faz
com que aquilo ganhe e seja retrato de vidas, situações corriqueiras do nosso
cotidiano que transformam-se em literatura. Assim, acontece com as lendas que
permeiam o imaginário dos grupos sociais.
Silva (2008, p. 40) afirma que: “Por isso, a literatura oral tornou-se um fato tão
universal e tão fortemente entranhado em nossas vidas que me arrisco a dizer,
comentando Câmara Cascudo, que estamos todos imersos na literatura, pois ela é
‘o nosso primeiro leite intelectual’”.
A prática oral revela-se de forma gigantesca e brutalmente presente em
nossas vidas. Embalando-nos desde criança quando começamos ao ouvir nossos
pais e pessoas que nos cercam entoar canções de ninar e parlendas, desafia-nos
com adivinhas e trava-línguas, aconselham-nos com provérbios, contam-nos contos,
lendas e mitos. Plantando e germinando assim, o gosto e a capacidade perpétua de
ser habilitado a desenvolver e passar adiante valores e exemplos que compõem a
literatura oral.
Apesar de apresentar conotação lúdica e ser associada, ainda que
inicialmente, como meros passatempos, as manifestações ligadas à literatura oral
possuem um significado e um sentido maior do que aquele explicitado. Se formos
analisá-las mais a fundo iremos perceber que cada uma possui implicitamente algo
de maior relevância, um dado, uma informação, explicação ou razão que servirá
como fundamento para sua existência, como indica Pellegrini Filho:
É característico das manifestações tradicional-populares apresentarem
uma face mais explícita e outra mais oculta. Se ficarmos atentos
apenas aos aspectos imediatos, quase todos os fatos folclóricos- e a
Literatura Oral [...] é um grupo de fatos folclóricos- podem parecer um
passatempo de quem não tem nada a fazer. Todavia se nos
detivermos em aprofundar um pouco a questão, cada uma em
particular, [...] logo perceberemos que ‘a outra face’ é muito
significativa [...] os contos populares, as adivinhas, os trava-línguas e
outras manifestações da Literatura Oral têm uma razão de ser, e
mesmo uma forte razão, que precisamos captar ainda que
inicialmente. (PELLEGRINI FILHO, 2000, p.39)
Deste modo, um trava-língua poderá servir para detectar e/ou solucionar
problemas de pronúncia ocorrentes na nossa língua, uma parlenda para facilitar a
aprendizagem e associação das crianças aos números e cores, por exemplo, assim
como, as fábulas apresentam mensagens ou missão moralística. Ou ainda como as
lendas e/ou mitos que atrelam em suas narrações explicações para a origem de
algo.
2.1 LITERATURA ORAL NO BRASIL
Nery em uma de suas obras afirma que:
Pode-se classificar três grandes categorias tudo o que se refere ao
folclore brasileiro: a primeira compreende as tradições populares de
origem européia, principalmente de origem portuguesa; a segunda
abarca aquelas que trazem sobretudo a marca africana; a terceira,
finalmente, se relaciona às tradições de origem indígena [...] (NERY,
1992, p. 35)
A literatura oral brasileira é formada por influência e colaboração de
elementos trazidos e vindos de três raças: indígenas, portugueses e africanos que
habitavam em grande quantidade o Brasil há alguns séculos atrás. O que se tem
conhecimento sobre o modo cultural é aquilo que “os brancos” registraram de forma
escrita, onde “os selvagens” e pecadores em seus costumes deveriam ser
catequizados e convertidos, ou seja, deveriam seguir as crenças e viver ao modo
determinado pelos brancos, europeus. Os portugueses foram os que mais
contribuíram para a formação da literatura oral brasileira, até porque suas
manifestações culturais acabaram permeando e contaminando os indígenas e
negros. Mas o que podemos afirmar com total certeza é que todos esses povos
contribuíram para a formação da literatura oral no Brasil.
Hoje em dia não se pode apontar a origem de uma história ou costume. Por
mais que imagine-se que determinado costume tenha sido adquirido por meio de
certo povo ou determinada região, não podemos atestar com precisão de que lugar
ou de que povo o mesmo recebeu aquele costume, não se pode determinar a
homogenidade local. Imagine quantas pessoas de diversas regiões ou de completa
adversidade cultural pode ter passado por ali e deixado vestígios culturais que
acabaram sendo incorporados e adotados por nativos locais.
Os elementos e temas encontrados em grande diversidade na literatura não
se apresentam em seus respectivos enredos de forma exclusiva, pelo contrário, são
e estão presentes em diversas manifestações e comuns em vários países e lugares
por mais distantes que estejam. São temas universais e seculares que encontram-se
espalhados por quase todo o mundo. Não existe algo que possa ser visto e
apreciado por total exclusividade temática. Animais que falam, histórias sentimentais
e/ou amorosas, heróis que amam e salvam mocinhas ou que saem em guerra e
deixam a mulher amada à espera, histórias que retratam guerras, massacres ou
festejos são comumentes encontrados. Além de temas satíricos, críticos, morais,
religiosos e até obscenos, comum às anedotas. Dessa forma nunca se soube
determinar onde termina o fato e onde começa a lenda.
Cascudo (1898) afirma que: “Toda literatura oral se aclimata pela inclusão de
elementos locais no enredo central do conto, da anedota, da ronda infantil, da
adivinha.” O que irá diferenciar a utilização de todas essas variantes temáticas e
lançar um ar característico e singular a cada enredo será “algum modismo verbal,
um hábito, uma frase, denunciando, no espaço uma região e no tempo uma época”.
Nery em uma de suas obras afirma ainda que:
Esses três párias – um das cidades suntuosas, outro das solidões
ardentes e o terceiro das florestas virgens – têm entre si um laço em
comum: todos eles amam, e amam aquilo que está distante ou aquilo
que perderam. Seu amor se traduz nos cantos, festas, preces,
invocações, sob mil formas diferentes, pois o maior é tagarela tanto
quanto é perspicaz. (NERY, 1992, p. 35)
Os índios tinham o costume de ao final do dia se reunirem diante da fogueira
e discutir sobre a vida e rotina da tribo: dividir tarefas, planejar e discutir sobre o
plantio, o clima. Era também nessa oportunidade que os mais velhos passavam aos
mais novos os costumes, tradições e segredos, passados através das gerações, da
tribo. O pajé e os anciãos da tribo eram encarregados de dar conselhos e instruir os
moços, além de ensinar-lhes cantos e ritmos de danças, o modo de preparar
medicamentos e ritos, todos esses ensinamentos garantiam sua continuidade
através de sua transmissão e retransmissão oral. As mães contavam aos seus filhos
as suas origens, histórias maravilhosas - lendas, mitos – que envolviam a tribo e que
refletiam nos princípios nos quais os mesmos deveriam tomar como base para
nortear suas ações e vidas. Esse costume indígena, herdado por nós, permanece
até os dias atuais como indica Cascudo (1984, p. 79):
Quem viveu em qualquer parte do blackland brasileiro lembrará a
conversa na ceia, ao anoitecer, rememorando todos os incidentes da
jornada cotidiana. São verdadeiros depoimentos, prestados por todos
os membros da família, grandes e pequenos, findados pelo relatório
da dona, sumariando a conduta dos filhos pequenos, das aves
caseiras, compras ou visitantes ocasionais.
De acordo com Cascudo (1984) o tupi, língua falada pelos índios, foi a maior
divulgadora da literatura oral. E para surpresa de muitos, a maioria das histórias
indígenas que nós conhecemos e que permaneceram em nossa mente foram
divulgadas por missionários que através dos contatos com os índios acabaram
aprendendo sua língua e suas histórias e por pessoas resultantes da mistura entre
brancos e indígenas que levaram consigo diversas histórias contadas por suas mães
indígenas. A língua tupi tornou-se um elo entre indígenas e colonos, que preferiam
utilizar a referida língua, que na época até os meados do século XVIII era um idioma
legitimamente nacional, ao português. No entanto, com a popularização da língua
tupi entre os colonos, o Rei de Portugal resolveu proibir a utilização do idioma tupi
entre os colonos.
É justamente nessa época que as mulheres indígenas começaram a perder
seu espaço como amas, mucamas e outras funções domésticas para as negras
vindas da África. Assim, com a perda da proximidade dos lares e com a
miscigenação das raças, as histórias indígenas tupis foram se extinguindo mas sem
deixar de serem guardadas na memória e nos ouvidos, e assim, atravessando
gerações.
Pesquisas referentes à literatura africana apontam para que esta seja em
quase sua totalidade existencialmente oral. Comparando-se com a indígena, por
exemplo, observa-se que a mesma não pode ser vista como pura. Isso porque os
africanos sofreram intensamente influências culturais vindas da Ásia e da Europa.
A literatura oral africana em decorrência de sua vastidão, acaba “perdida” por
conta dos inúmeros dialetos falados no continente africano. Os africanos são vistos
como grandes contadores de histórias, admirados pelo prazer e emoção que
inserem a narração. Apesar de jornadas de trabalho cansativas, sempre à noite nas
senzalas cantavam, dançavam e contavam histórias.
Nery afirma que:
[...] negro [...] não chegava como conquistador, como o português.
Nem mesmo era, como o índio, um senhor despojado da terra onde
reinava absoluto. Vinha, ao contrário, vencido, contrariado e
embrutecido, transportado no fundo de um porão pelos mercadores
desumanos. Contudo, posto em contato com dois elementos, deveria
forçosamente fazer sentir sua influencia no curso dos séculos, e
transformar insensivelmente as tradições recebidas no amalgamento
com as suas próprias, adaptando-as ao seu caráter e ao seu novo
meio. (NERY, 1992, p. 58)
O modo brutal como os negros foram arrancados de sua pátria e trazidos para
uma terra distante e desconhecida na função de escravos fez com que fosse
empregado em sua produção literária o tom de tristeza e revolta, empregando
palavras rudes e que expressavam a crueldade imposta pelo destino.
Mas isso não caracterizava predominantemente sua literatura. Gêneros que
atraem o fictismo, como as fábulas, ou verídicas, como histórias relacionadas as
suas tradições históricas que revelam seus costumes e ensinamentos, que trazem
conselhos, como os provérbios, e que oferecem divertimento, como adivinhações,
são as mais comuns.
Cabia aos próprios africanos em terras brasileiras conservar e recriar na
memória fatos e histórias suas e de seus antepassados, conservando assim
lembranças de sua terra de origem. Mostrando-se também assim, o poder creditado
por eles nas palavras.
Cascudo afirma que:
No Brasil depressa a velha indígena foi substituída pela velha negra
[...] Fazia deitar as crianças, aproximando-as do sono com estórias
simples, transformadas pelo seu pavor, aumentadas na admiração dos
heróis míticos da terra negra que não havia de ver. (CASCUDO, 1984,
p. 79)
A influência africana na literatura oral deu-se principalmente por meio das
amas que tomavam conta dos filhos dos brancos. E contavam histórias simples e
contos africanos a fim de distrair ou ninar as crianças. Assim inconscientemente as
histórias africanas iam ficando registradas e presentes na mentalidade das crianças
brasileiras. Os ritos, cantos e danças africanas também ganharam popularidade no
Brasil e influenciam até hoje nas manifestações culturais brasileiras.
Após breve explanação sobre a colaboração de indígenas e africanos na
formação da literatura oral brasileira, agora discorreremos sobre a influência
daqueles que com certeza contribuíram de forma mais acentuada para a formação
da mesma: os portugueses.
Em Portugal julga-se ainda mais difícil apontar a origem dos contos ainda
aqueles tidos como mais tradicionais. Objetos e vestígios de quem habitava aquela
terra no século VIII serviram de base e deram respaldo para que apontasse como
era a sociedade daquela época. No entanto, não existe a possibilidade de saber o
que se falavam. Faz-se necessário apenas saber que as histórias portuguesas foram
transmitidas pelas gerações. Histórias que narravam ações diárias, exageros,
episódios de coragem e mentirosos, fábulas...
Em Portugal, os Autos de Gil Vicente vez ou outra chegavam aos ouvidos do
rei, faz-se presente também nos livros de literatura de cordel que apareciam em
versões desencontradas, já que cada indivíduo ao registrar em sua mente lançavalhe algo ou alguma característica particular. As mulheres eram sempre as grandes
propagadoras dessa rica fonte de literatura oral pois apresentavam dom natural,
eram narradoras de histórias para seus filhos e netos, como observa Câmara
Cascudo:
Enquanto fiavam ou rezavam, alguém contava estórias de batalhas
entre cavaleiros e dragões, bruxas e princesas, alimento do
maravilhoso, material para a abstração lírica e o haloamento fidalgo
das virtudes humanas, elevadas ao grau de heroísmo terreno.
(CASCUDO, 1984, p. 168)
Os contos populares portugueses trouxeram para o Brasil sobretudo as
histórias de caráter religioso, narravam milagres e histórias piedosas. Através de
lendas explicavam e incentivavam o culto aos santos. Outra tradição vinda de
Portugal foram as procissões e romarias que entoavam orações e cânticos
religiosos, como indica Cascudo (1989, p. 182):
Todos os mitos cristãos nos vieram de Portugal, desfigurados pela
impressão popular. Almas penadas, tesouros dados em sonho,
procissões de fantasmas, missas rezadas e assistidas por esqueletos,
almas em penitencia durante a noite, gritos, luzes, rumores de
correntes, gemidos soturnos, casas mal-assombradas, pedradas
misteriosas, sopros de vento para um único objeto, movimentos
suspeitos, barulhos inidentificáveis, aparições noturnas de mulheres
sedutoras, desaparecidas de súbito, etc, são ‘presenças’ de mitos
europeus, vindos através do colonizador.
Alguns mitos bastante conhecidos e sempre presentes no imaginário popular
brasileiro também foram trazidos de Portugal, como o lobisomen e outros como a
Moura Encantada que acabou tendo sua versão abrasileirada, conhecida como Mãe
d’água. Não podemos deixar de citar também a vinda das novelas populares
portuguesas, como a história de Merlim, que é estudada e lembrada até hoje no
Brasil.
2.2 AS LENDAS
É comum as pessoas associarem ou confundirem lendas e mitos. Claro que
não cabe nem interessa ao povo, transmissor e receptor dessas narrações,
diferenciá-las entre si, no entanto, é cabível e necessário que seja abordada essa
diferenciação no presente estudo. Pellegrini Filho difere lendas e mitos da seguinte
maneira:
Mito Narrativa popular de caráter maravilhoso, com a presença de um
personagem constante. São relatadas diferentes histórias sobre esse
personagem mitológico. Lenda Narrativa popular de caráter
maravilhoso, associada a um determinado lugar e/ou determinado
tempo passado. (PELEGRINNI FILHO, 2000, p.58)
Ambas assemelham-se pelo fato de serem manifestações do povo para
explicar algo que não pode ser explicado pela ciência, e por apresentar sempre o
elemento “maravilhoso”. No entanto, as lendas determinam um valor local. É um
elemento que fixa ou explica algo em um determinado local, “indicando a razão de
um hábito coletivo, superstição, costume transfigurado em ato religioso pela
interdependência divina” (CASCUDO 1984, pág. 105)
As lendas fazem parte da tradição oral e vem sendo contadas através dos
tempos. Isso abre um precedente para que constantemente sofra alterações ao
longo do tempo, já que são passadas oralmente e recebem a impressão e
interpretação daqueles que a propagam. Assim a pessoa a transmite de modo que
seja mais conveniente e peculiar à sua imaginação, conhecimento, meio e/ou
situação.
Câmara Cascudo (1984, p. 99) diz: “Não há, quase, lendas inúteis
desinteressadas”. As lendas possuem um propósito, um utilitarismo. Sejam elas para
oferecer explicação do surgimento de algo, para coagir as pessoas a executarem ou
não certa ação ou registrar algo ou algum acontecimento a ser lembrado.
As lendas utilizam fantasia, misturando-a com a realidade dos fatos. Usam de
fatos reais ou históricos, no entanto, está sempre presente o elemento “maravilhoso”
tornando-se assim uma narração encantadora, fascinante, com aspecto ilusório e
inventivo, retratando e revelando a riqueza do imaginário popular.
As lendas surgem justamente pelo fato e necessidade de explicar algo. Não
havendo outro meio, o povo usa da força e habilidade constituinte no seu imaginário
atrelando sua imaginação a fatores que o rodeiam e que viabilizam tornar a história
condizente com o meio social em que vivem. E, através de suas histórias
fantasiosas, sacia, ainda que imparcialmente, já que nem todos acreditam, a lacuna
existe naquilo que se refere a algo.
A tradição de explicar algo por meio de uma lenda vem desde a antiguidade.
Na Grécia Antiga já era comum utilizar de lendas para justificar o surgimento de
algo. A origem da aranha, por exemplo, é explicada por Ovídeo, poeta romano, em
sua obra Metamorfoses, como resultante do duelo entre as deusas Atena e Arachne:
Segundo o poeta, Arachne morava em Lydia; aí cresceu e
amadureceu, tornando-se conhecida em toda a Grécia. Arachne era
na verdade tão perita na arte de tecer que terminou por ser arrogante,
reivindicando que a sua habilidade rivalizava com a da deusa Atena.
Esta, na qualidade de deusa protectora dos tecedores, depressa
tomou conhecimento da existência Arachne e de imediato viajou até
Lydia a fim de se confrontar com essa mulher orgulhosa. Ao chegar, a
deusa assumiu o disfarce de um camponês idoso, e suavemente
advertiu Arachne para que não comparasse os seus talentos aos de
um ser imortal. Mas Arachne rejeitou a repreensão, e assim Atena foi
compelida a aceitar o desafio da mulher mortal. Cada uma delas
começou a elaborar uma tapeçaria. Atenas teceu a sua tapeçaria com
imagens que prediziam o destino dos humanos que se comparavam
às divindades, enquanto a tecelagem de Arachne mostrava imagens
dos amores dos deuses. Tão grande era a habilidade de Arachne que
o trabalho dela igualou o da deusa. Então Atena, subjugada por uma
raiva imensa, golpeou a mulher repetidamente. Apavorada, Arachne
tentou fugir, mas Atena transformou-a numa aranha que depressa
desapareceu sem deixar rasto.4
Com o exemplo acima, verificamos que esse costume de buscar em uma
história a explicação para algo é muito antiga. Repare que a lenda utiliza de
elementos que se relacionam como deusas, presenças constantes nas histórias da
Grécia antiga, e o ato de tecer de modo que a história tenha um fundo de lógica,
principalmente quando utiliza-se ou refere-se a tecelagem, já que as aranhas
possuem a habilidade de tecer e utiliza essa arte na construção de suas teias.
Referindo-se ao Brasil, muitas lendas indígenas voltam-se para explicar a
origem da agricultura, o surgimento do milho e mandioca, por exemplo, assim como
para explicar a origem de astros como as estrelas, sol e lua. Teschauer apud
Cascudo exemplifica a lenda da origem do milho de acordo com a variante
encontrada entre os índios Parecis:
Um grande chefe pareci, dos primeiros tempos, da tribo,
Ainotaré, sentindo que a morte se aproximava, chamou seu
filho Kaleitôe e lhe ordenou que o enterrasse no meio da roça
assim que seus dias terminassem. Avisou que três dias depois
da inumação brotaria de sua cova uma planta que algum tempo
depois rebentaria em sementes, disse que não comessem;
guardassem-nas para a replanta, e a tribo ganharia um recurso
precioso. Assim se fez e o milho apareceu entre eles. (apud
CASCUDO, 1984, p. 100)
4
Extraída do site http://pauloamador.bloguepessoal.com/23836/Aranha/ acesso em 20/04/10
A lenda transcrita acima é apenas uma dentre as inúmeras lendas indígenas
que indicam a origem de frutas, rios, do fogo e de outros elementos. Lendas essas,
que confirmando uma de suas características, eram sempre associadas a algo
específico e mantinham “identificação geográfica e personalização tribal”.
As lendas relacionadas à religiosidade existentes aqui no Brasil, em sua
grande maioria, tiveram influência dos portugueses, como indica Cascudo (1984, p.
179): “As lendas que envolvem aparições de imagens ou visões divinas, hagiofanias,
têm, em maior percentagem, procedência portuguesa.” Muitas lendas possuem
caráter religioso, sua narração envolve santos, igrejas, aparições e imagens. Aqui no
Brasil, podemos citar como exemplo, a lendária história de Nossa Senhora
Aparecida que estando no fundo do rio Itaguaçu foi encontrada na rede de
pescadores.
3. JEREMOABO: ASPECTOS HISTÓRICOS, GEOGRÁFICOS E
SOCIO-ECONÔMICOS
De acordo com dados fornecidos pelo IBGE5, a região onde situa-se o
município de Jeremoabo era primitivamente habitada por duas tribos: Mongorús e
Cariaçás, descendentes dos tupinambás. Há notícias de que, no início do século
XVII, uma religiosa fundou aldeamento ao redor de uma ermida dedicada à Nossa
Senhora de Brotas, dando lugar à catequese dos índios de Jeremoabo e das regiões
vizinhas, promovida pelos padres João de Barros e Jacob Roland. Chegado à Bahia
com Tomé de Souza em 1549, Garcia d'Ávila, com temperamento forte de
bandeirante, exerceu grande influência no desbravamento do nordeste baiano,
capturando índios, já que a mão de obra africana não estava mais atendendo as
suas necessidades, e fundando currais para criação de gado bovino. Garcia d’Ávila,
recebeu do rei D. João III, uma grande sesmaria, doação de terra na qual cabe ao
recebedor cuidar e cultivar conforme sua vontade, calculada em 60 léguas
quadradas, que percorreu com suas bandeiras.
Grandes divergências surgiram entre Garcia d'Ávila e seus descendentes e os
missionários, que se opunham à escravização dos índios e sua utilização nos
trabalhos agrícolas, tendo em vista a escassês de pretos importados da África.
As divergências chegaram inclusive ao ponto em que, por represália aos
jesuítas, Francisco Dias d’Ávila incendiou Jeremoabo, cronstruindo-a depois em face
da intervenção do Papa ou do próprio Governo Colonial.
Em 1718, por Alvará Régio de 11 de abril, de D. Sebastião Monteiro da Vide,
criou-se a freguesia com a invocação de São João Batista de Jeremoabo do Sertão
de Cima, representando mais tarde um termo de Itapicuru, com os mesmos limites
paroquiais. Por decreto em 25 de outubro de 1831 tornou-se vila de São João
Batista de Jeremoabo, depois simplismente Jeremoabo, ganhando posição de
cidade em 6 de julho de 1925. Jeremoabo é palavra indígena que significa, entre
outras coisas, "plantação de abóboras", já que na região havia grande cultura de
abóbora mantida pelos índios.
Em
função
da
sua
grande
extensão
territorial
várias
povoações
desmenbraram-se de Jeremoabo a fim de constituir outras cidades, como por
5
Informações cedidas pela Agência do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística do município de
Jeremoabo/Ba e pelo site do órgão em 09 de abr. de 2010.
exemplo: Monte Santo em 1790; Cícero Dantas em 1817, Tucano em 1837, Ribeira
do Pombal em 1837, e, mais recentemente, Santa Brigida em 1962, Coronel João
Sá e Pedro Alexandre em 1962, Sitio do Quinto em 1989.
Localizada no nordeste do estado da Bahia, com uma área de 4.761 Km² e
densidade demográfica de 7.81 habitantes por Km², isso em função da sua vasta
extensão semi-árida pouco habitada, o município de Jeremoabo é formado por dois
distritos: de Jeremoabo e do Canché. De acordo com a contagem populacional
realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas – IBGE em 2007, o
município possui 37.195 habitantes. Sendo que a maior parte da população vive na
zona rural: 20.498 mil habitantes, enquanto 16.697 habitantes encontram-se na zona
urbana. Estima-se que a população referente ao ano de 2009 foi de 39.302 mil
habitantes.
O clima em Jeremoabo é caracterizado como semi-árido predominantemente
seco. Tendo como vegetação característica o cerrado – Caatinga. Quanto ao seu
relevo, em sua formação destaca-se a Serra do Cavaleiro ou Serra da Santa Cruz
que rodeia a área urbana da cidade sede.
O principal curso d’água do município é o Rio Vaza Barris que nasce na Serra
da Canabrava no município de Uauá e seguindo seu percurso deságua no Oceano
Atlântico no estado de Sergipe. Euclides da Cunha, em Os Sertões (2000, p.18), diz:
“[...] o Vaza Barris, o Irapiranga dos tapuias, cujo trecho de Jeremoabo para as
cabeceiras é uma fantasia de cartógrafo [...]”, fazendo uma alusão a sua situação de
quase inexistência já que a maior parte do rio que banha o município é transitório
não chegando a secar, mas pelo seu baixo volume de água. Um dos seus afluentes
o Rio Vermelho, antigo Rio Jeremoabo, em estado degradativo também compõe a
rede hidrográfica do município de Jeremoabo.
Referindo-se a economia, a administração pública possui o maior peso na
economia do município. Isso se deve ao fato de que o setor público é responsável
pelo emprego da maioria das pessoas. A outra fonte de renda do município é
oriunda das atividades agrícolas e da criação de animais.
3.1 A CULTURA JEREMOABENSE
Jeremoabo tem como maior expressão cultural e religiosa a festa de São
João Batista. Durante o mês de junho milhares de turistas visitam a cidade para
celebrar o santo mais popular do Nordeste. Em sua parte sagrada louva o padroeiro
local, através de novenas, missas e procissões. No lado profano destaca-se como
uma das melhores festas juninas da região tendo como abertura uma alvorada
quando milhares de foliões invadem as principais ruas e avenidas para brindar a
chegada da maior festa da região. Na véspera do São João ocorre o tradicional
casamento do matuto, vindos dos mais distantes pontos do município e cidades
circunvizinhas, os cavalos e cavaleiros são as atrações principais do evento.
Em Jeremoabo é realizada também o Reisado, festa de origem portuguesa,
feita para celebrar e homenagear o nascimento de Jesus na época natalina. Com
figurinos alegres, pandeiros, ganzás e maracás. Sob coordenação de Carmelita o
grupo realiza o festejo sempre no intuito de resgatar esta tradição e trazer alegria à
comunidade. As apresentações acontecem geralmente em igrejas, praças e escolas.
Outra manifestação cultural realizada pelo grupo é a Folia de Reis.
A Serra do Cavaleiro ou Serra da Santa Cruz é cenário de muitas histórias e
romarias. Durante a quaresma em especial na Semana Santa, milhares de romeiros
sobem a Serra como forma de penitência e em busca de consolo espiritual. A Serra
é tida como uma fonte de entretenimento, além de possuir uma belíssima e
panorâmica visão da cidade obtida do seu alto.
Justiniano (1944, p. 40) diz: “Quando a passarada desperta na orgia louca da
natureza agreste, o nosso homem rural levanta faz o ‘pelo sinal’ e vai cumprir o seu
dever, nessa vida afanosa, na labuta cotidiana da vaquejada.”
Nas comunidades rurais, a tradicional Missa do Vaqueiro mobiliza o interesse
da população que faz a festa em vários povoados para celebrar e exaltar a figura do
vaqueiro: ser presente e marcante no cenário e cotidiano do agreste jeremoabense
que com sua singularidade e força, conquista e vê que através da própria luta diária
e da missão honrosa que lhe é incumbida, germina a satisfação de ter a
oportunidade de com o seu trabalho vencer mais um dia e com a ajuda e força divina
torna-se capaz de começar e viver um novo dia.
A cavalgada de São Jorge, tendo sido realizada sua quarta edição no corrente
ano, já se tornou um evento expressivo e encontra-se marcada e presente no
calendário de atividades existentes de festividades local.
3.2 O LEGADO LENDÁRIO DE JEREMOABO
Chegamos agora ao objetivo principal deste trabalho que é compor, narrar
algumas lendas que compõem o imaginário popular do município de Jeremoabo.
Diégues Junior (1986) afirma que “Luís da Câmara Cascudo assinala que os
mais antigos versos de nossa poesia popular são justamente aqueles que
descrevem cenas e episódios da pecuária”. A afirmação é válida também no que diz
respeito ao âmbito lendário. Escutam-se inúmeras lendas, principalmente no Norte e
Nordeste brasileiro, onde se narram histórias de glorificações, perseguições e
relações entre boi e vaqueiro. Bois que desafiam a habilidade dos vaqueiros, que
surgem e ressurgem em terras na qual cumpriu a sua existência ou ainda aqueles,
que por algum motivo, merece a exaltação e/ou a admiração de todos.
Jeremoabo como um autêntico município do sertão baiano que possui
exaltação pela figura do vaqueiro não poderia deixar de ter uma história relacionada
a este homem guerreiro que dedica a sua vida a cuidar de seu rebanho realizando
muitas peripécias.
a) Lenda do Cavaleiro
A lenda que será apresentada a seguir, a do Cavaleiro, foi contada por Soraia
Magna6 e vem justamente contar as peripécias de um boi bravo indomável na qual
todos tentam dominá-lo sem êxito, até o dia em que o vaqueiro Chico Gato coloca
um ponto final nessa perseguição:
Jeremoabo
é
um
lugar
privilegiado tem muitas histórias,
Foto: Soraia Magna, 2007.
tem uma cultura muito rica. E nos
chama atenção uma lenda em
especial: a lenda do cavaleiro.
Ela começa assim:
Há muitos anos, havia muitos
Figura 1: Serra do Cavaleiro, Jeremoabo/ Ba
6
vaqueiros em nossa região. Dentre
Soraia Magna, turismóloga, atua como professora e reside em Jeremoabo há 25 anos.
eles havia um que se destacava pela sua coragem, pela sua bravura chamado Chico
Gato. E um dia, Chico Gato e seus companheiros de profissão, outros vaqueiros, se
reuniram na região para poderem descobrir qual a forma melhor que eles adotariam
pra poder capturar um touro que estava muito tempo já aterrorizando toda cidade.
E foi aí, que reuniram-se sessenta vaqueiros em uma madrugada e
resolveram fazer um cerco aquele boi pra ver se acabava com todo o sofrimento da
população que já estava sofrendo por muito tempo com os ataques daquele touro
que todos chamavam de: “Boi Valente” .
E então Chico Gato resolveu se despedir da sua amada Maria para poder sair
junto com os seus amigos e enfrentar este boi valente. Foi aí, que na despedida a
sua amada Maria deu-lhe um forte abraço e junto com esse forte abraço entregou a
ele uma linda flor de jurema para que ele nunca se esquecesse do seu grande amor.
E ele então, como prova também do seu amor, da sua bravura, disse pra Maria que
ele não voltaria jamais sem que estivesse com esse touro sendo pego por ele. E ele
disse que iria pegar esse touro nem que fosse à unha[...]
Então Chico Gato junto com os outros vaqueiro da região:
“-Chegou a hora né?”
Na madrugada fizeram um cerco todos se posicionaram e como sentiram que
o boi estava passando, foram correndo atrás dele, só que no meio da mata não é
todo mundo que vai aguentar a caatinga. Ela tem muitas surpresas e aí somente
aqueles que são mais audaciosos é que realmente conseguem se aventurar e
conseguem levar até o fim a caçada.
E Chico Gato foi este. Essa única pessoa que correu atrás do boi valente. E
sem perceber ele estava subindo a serra que hoje leva o nome de Serra do
Cavaleiro. E nessa luta entre boi e homem, o touro começou a andar na direção do
precipício e foi aí que no seu instinto de animal feroz percebendo que iria ser pego
realmente, porque Chico Gato não ia desistir, era muito corajoso, o boi jogou-se do
precipício. Chico Gato por sua vez correndo atrás do boi montado a cavalo, é claro,
também ficou na beira do precipício, por ser um cavaleiro muito experiente ele
poderia retroceder nessa beira do precipício porque o animal no qual ele estava
montado estava com as patas traseiras no chão e as dianteiras estavam já sobre o
ar. E aí, ele já iria retroceder, mas foi quando ele sentiu o cheiro, o aroma perfumado
da flor de jurema que existe em grande quantidade na serra, e ele se lembrou da
promessa que tinha feito a sua amada “que jamais voltaria sem que tivesse pego
aquele boi ainda que fosse à unha”. Lembrando-se do seu tão grande amor, ele não
resistiu, jogou-se precipício abaixo.
Então morreram o boi, o cavaleiro, o cavalo e o fiel amigo do cavaleiro um
cachorrinho de estimação que ele tinha já há muitos anos. Infelizmente não foi uma
história que teve lá o seu final feliz, mas fica o exemplo da bravura de um homem
que soube honrar sua palavra: Chico Gato, que deu nome hoje a Serra do Cavaleiro,
e vale a pena conhecer.
Essa é a lenda mais conhecida da cidade. Se indagarmos se alguém conhece
alguma lenda local a grande maioria, quase que absoluta, vai citar primeiramente a
Lenda do Cavaleiro ou de Chico Gato como é também popularmente conhecida.
Inclusive algumas pessoas afirmam e defendem que com certeza absoluta a
narrativa que envolve Chico Gato e o boi valente não é lenda e sim uma história
verídica. Cabe a cada indivíduo fazer a sua interpretação dos fatos apresentados.
O que constata-se, com certeza, é que na narração acima, a bravura do
vaqueiro é exaltada a todo momento, assim como o sentimento amoroso que Chico
gato nutria pela sua amada Maria. O desfecho trágico ocorre justamente pela
vontade e honra que o vaqueiro possui em fazer valer suas palavras.
Cabe ressaltar que o episódio explica a origem de um dos nomes dados a
serra: Serra do Cavaleiro, em homenagem a Chico Gato. Assim como, dedica a
construção da capela existente no alto da serra ao herói Chico Gato.
b) Lenda do Boi Remetedor do Caritá
Como exemplo de história onde o boi é exaltado e venerado pela
comunidade, temos a lenda do Boi Remetedor do Caritá, contada pela depoente
Carmelita de Dudé7:
[...] A fazenda Caritá é um local muito rico em terras e água, que João Sá foi e
se apossou e construiu uma das mais belas fazendas da nossa região, [...] então
ficou a fazenda Caritá muito falada porque era de João Sá e tinha engenho, tinha
muita coisa bonita.
7
Maria do Carmo, conhecida como Carmelita de Dudé, reside em Jeremoabo desde que nasceu e
coordena algumas manifestações culturais no município como o Reisado.
E diziam os mais antigos que era mal assombrada, que aconteciam muitas
coisas e o povo tinha medo de chegar até perto da fazenda por causa das
assombrações as quais eu não sei te dizer, agora quanto ao folclore e as histórias
que se contavam também a minha bisavó contava que existia um boi muito valente
que pertencia a um grande fazendeiro do Caritá que não era João Sá. Outro antes
de João Sá [...]
Esse boi era muito valente, essa viúva tinha ficado com ele porque era
presente do esposo, lembrança do marido, que por nada na vida ela vendia este boi.
Mas este boi era de uma maneira que não deixava ninguém do povoado fazer uma
festa que ele se incomodava. Quando ele via barulho de festa, ele pulava cerca
invadia tudo, quebrava tudo, chegava no lugar da festa acabava com tudo,
quebrava, remetia o povo, batia em tudo, quebrava mesa, ele acabava (interrupção
de pensamento) deixava tudo no chão.
Então, todas as vezes que aconteciam eventos nessa vila, lá no Caritá, esse
boi fazia esses danos. Até que o povo não agüentaram mais e foram pedir a viúva
para matar o boi e ela com muita pena, fez tudo para não acontecer, porque era de
estimação. Aí o povo começou a pedir, a cobrar as despesas muito altas, ai ela
achou que era melhor matar o boi e repartir, a cada um dar um pedaço, porque era
só como eles também podiam ficar satisfeitos: era com um pedacinho [do boi] pra
ele largar de ser tão danado né?
Então, minha vó dizia assim: que ela [a viúva] tinha uma cozinheira que era
muito experiente que sabia rezar e fazer muitas mágicas, muitas coisas muito sabida
ela dizia assim era uma cozinheira sabida sabia fazer orações, uma pessoa passava
por ela e ela fazia as orações e ninguém via ela era muito inteligente essa Iaiá,
chamava-se Iaiá.
Então ela disse [a viúva]:
-Iaiá, vamos ter que matar o boi corredor. Então tinha que matar o remetedor
porque ninguém podia dar uma festa, e ela não tinha mais dinheiro, se ela vendesse
a fazenda ela não pagava as despesas. E eles disseram [os moradores da
vizinhança] que ficavam satisfeitos de cada um comer um pedaçinho que é pra
ficarem vingados.
Aí a Iaiá queimou ruim porque era de estimação, porque gostava do boi. O
menino do patrão ai ficou triste. Mas nós temos que matar o boi porque esse boi ta
nos dando prejuízo. Aí [a viúva] chamou o vaqueiro e mandou matar o boi e mandou
chamar o povo pra pegar cada um suas partes.
Quando o pessoal chegaram para pegar as partes a cozinheira Iaiá disse:
“-Antes que reparta o boi eu vou fazer a minha homenagem de despedida.”
Aí ela vai, pega um lençol perfumado, muitos laços de fita, muitas flores e
cobre ele [o boi] com um lençol bem colorido e coloca perfume, amarra as fitas nas
pontas, deixe ele bem bonito pra colocar flores em cima [...]
Então ela fez como uma despedida: deu um beijo no boi e começou a abraçar
e começou a chorar e se ajoelhou e começou a fazer as orações, as conversas, os
versinhos, cantou uma música, uma música de excelência, ungiu com perfumes
colocou rosas.
E aí, cada vez que ela se movimentava, apertava, ele ia se estremecendo. Ele
já tava morto. Então ela abraçava e ele ia se estremecendo. Aí ela começou a
abraçar ele e ele começou a se estremecer. Ela foi e começou a bater palma, aí ele
foi se levantando, aí o povo foi batendo palma também, aí ele foi se levantando e
começou a se requebrar e começou a dançar, dançar, dançar... E ali começou uma
festa todos aplaudindo e ele dançando, se requebrando.
Então, foi aí que as pessoas entenderam que quando ele ouvia os barulhos
de festa, ele não queria acabar com a festa, ele queria participar! Então daí, a viúva
e o boi, e a Iaiá, ficaram pessoas mais altas lá no povoado e todas as festas que
faziam a primeira pessoa a ser convidada era o boi.
A lenda transcrita acima confunde-se quanto o seu real cenário, transitando
entre a sede da Fazenda Caritá e a povoação do Caritá. Acontece que há alguns
anos atrás toda a extensão de terra que engloba as duas aglomerações pertenciam
a ao município de Jeremoabo. No entanto, recentemente definiu-se que a sede da
Fazenda Caritá passaria a ocupar o território pertencente ao município do Sítio do
Quinto.
A fazenda Caritá foi palco de importantes decisões políticas do século XIX e
início do século XX, tendo em vista que o seu proprietário na época, o Coronel João
Sá, era uma figura muito influente no cenário político estadual.
Apesar dessa incerteza, o que pode ser comum a manifestações folclóricas,
quanto a exatidão da posse geográfica do verdadeiro cenário onde a lenda
desenvolve-se, devido a reinterpretação de fronteiras municipais, resolve-se por
bem, tê-la como presente no cenário Jeremoabense por até pouco tempo a sede da
Fazenda Caritá ter sido pertencente ao município e principalmente pelo fato do
Povoado Caritá ainda pertencer ao referido município.
c) Lenda do Aboio do boi
A lenda do Cavaleiro, apresentada anteriormente neste trabalho, estende-se e
seus personagens servem de origem para outra lenda: a do aboio do boi. Misturando
aspectos da relação boi vaqueiro e questões que envolvem visagens ou escutas de
almas. Iremos conhecê-la a seguir também de acordo com a versão de Carmelita de
Dudé:
Na época que eu era pequena se fazia em Jeremoabo a fogueira de lenha de
candeia. Essa lenha de candeia era difícil de encontrar nas roças porque as roças
eram devastadas. Então nós temos essa serra aí, a Serra da Santa Cruz, que era
assim: não era habitada, nem movimentada. Aí foi descoberta a lenha de candeia.
Então, o povo de Jeremoabo dava preferência [a lenha de candeia] e aquele pessoal
que trabalhava na roça iam buscar as candeias no pé da Serra pra fazer as
fogueiras.
E nessa época, ninguém tinha fogão de gás, cozinhava de lenha. E os pobres
iam buscar e os ricos compravam. Minha mãe trabalhava na roça e a gente ia
buscar a lenha no pé da Serra, principalmente quando chegava o São João.
Então em umas épocas do São João, a minha mãe com a família tiveram que
sair as pressas do pé da serra. Por que essas pressas? Porque quando chegava o
ponto de meio-dia elas ouviam um aboio. Não sei se você vai entender o que é
aboio, aboiar é uma palavra do linguajar simples do vaqueiro, aboiar é cantar o
gado, aboio é cantar o gado.
Então, ouvia-se meio-dia em ponto [...] um aboio de um vaqueiro. Quando
terminava o aboio aí dava um vento forte e vinha aquele vento forte, como que vinha
um cavalo correndo atrás de um boi esbagaçando toda a mata [...]
Então as mulheres, inclusive minha mãe, disse que a primeira vez elas não
tiveram medo, ficaram assustadas sem entender, aí quando viram que vinha uma
pessoa mesmo trazendo o boi a toda carreira, aí elas correram passaram por
debaixo do arame, se rasgaram toda, até se acidentaram. Se cortaram, muitas
passaram mal e voltaram pra casa sem as lenhas só com as cordas e as rodilhas
nas mãos.
Então esse é um fato muito interessante e todo mundo viu essas rasgadas [...]
Passou-se o tempo. Quando foi outra vez, elas foram tentar ver se era
fantasia, se era imaginação e muitas duvidaram. E foram muitas senhoras buscar
essa lenha e eu acompanhei era menina tinha na base de 10 a 12 anos [...]
Minha mãe disse:
- Fique aqui no rancho! Você não vai subir aqui não, na hora que o vaqueiro
vim correndo atrás do boi você já tá perto do arame.
Aí eu disse:
-Que nada! [...] isso é mentira, é fantasia.
-Você vai achar que a sua mãe tá mentindo minha filha?
Ai daqui a pouco eu vi o pau quebrar. Aí fazia êôôôôô, êôôôôô três vezes. Aí
quando fez assim êôôô três vezes, aí eu vi o vento soprar bem forte.
Aí corre Carmelita, corre minha filha!
Aí eu corri, me piquei debaixo do arame [...] rasguei o vestido e fiquei ansiosa.
Aí elas entraram no arame, já tinham a posição de passagem, mas já tinham cortado
a lenha. Então pegaram a lenha e jogaram pro outro lado do arame, foi a sorte [...]
Aí ficamos debaixo de uma árvore tudo com medo juntamos todas e ficamos
assim.
Aí de repente, foi só suavizando, suavizando, suavizando e acalmou.
Quando ficou tudo calmo algumas delas disseram assim:
-Ambrósia (que era minha mãe), vamo buscar a lenha?
Aí ela disse:
-Eu vou nada, dessa vez eu não vou nunca mais lá.
Aí eu falei:
-Eu mesmo não vou lá!
Aí mãe disse:
-Eu já vou m’imbora.
-Deixe de ser mole mulher, vamo buscar a lenha, não já passou o vento? Não
já ta com a lenha do lado de cá?
Só parece que tem alguém que não gosta que a gente tire lenha dessa Serra.
Então ficamos assim: onde fica esse boiadeiro? Esse cavaleiro?
Aí quando nós chegamos em casa e fomos contar a história, aí o pessoal
mais velho disseram:
-Só se é a alma de Chico Gato, da história de Jeremoabo, porque muitos
contam que é lenda e outros dizem que foi verdade [...]
Como dito anteriormente a lenda do aboio vem de uma alusão à lenda do
Cavaleiro já que acredita-se que o aboio, o adentrar e o rasgado da caatinga ouvido
ao pé da Serra associa-se ao do vaqueiro Chico Gato em perseguição ao Boi
Valente.
A narração também retrata as condições sociais de uma época em que a
lenha era o combustível utilizado para a preparação dos alimentos.
Podemos interpretar o fato de ouvir ruídos e vozes da alma do vaqueiro e do
boi como uma forma de afastar as pessoas que adentravam Serra adentro em busca
da lenha de candeia muito utilizada para acender o fogo. Evitando assim que a flora
local fosse devastada como, de acordo com a narrativa, já acontecia na região, visto
que na serra era o local que mais se encontrava a referida madeira. Tanto é que
depois da ocorrência desse episódio as pessoas passaram a ter receio em extrair a
lenha nas imediações da Serra.
Observando por este ângulo, a narrativa surge como forma de amedrontar e
afastar as pessoas para que não ocorresse a devastação ambiental na área da
Serra do Cavaleiro ou da Santa Cruz.
d) Lenda da Alma de Catarina
Já que começamos a tratar de assuntos relacionados a almas, suas
manifestações e aparições, apresentaremos agora a lenda da alma de Catarina
extraída da Revista Marie Clarie:
A
primeira
parte
do
nome, Raso, se deve ao relevo
Foto: Soraia Magna, 2006.
predominante
plano
e
à
vegetação rasteira. A segunda,
Catarina, parece ter origem na
Fazenda
Figura 2: Raso da Catarina
da
Catarina,
que
existe
até
hoje.
Segundo
dizem
os
antigos
moradores
do
lugar,
Catarina teria fundado sua própria fazenda em uma terra hostil. Contam que ela
lutou contra a seca durante anos, mas foi derrotada pelo clima e por uma nuvem de
gafanhotos que não deu trégua as suas lavouras de milho e feijão. Acabou
enlouquecendo e, solitária, perdeu-se naqueles ermos. Dizem que até hoje vaga por
ali, ajudando vaqueiros a achar animais perdidos e cuidando da lavoura minguada
de seus conterrâneos.
O Raso da Catarina é uma Estação Ecológica que abriga exemplares
raríssimos da flora e fauna brasileira.
A alma de Catarina é mais um elemento que ajuda as pessoas que habitam
na região a cuidar de seus animais e plantações. Há aqueles que afirmam que
Catarina é como uma auxiliadora ao combate da degradação e destruição da
reserva. Já que muitos afirmam que a sua alma vaga pelo Raso também como forma
de afastar todos aqueles malfeitores que tentam destruí-lo. E que não são poucos,
pois apesar de ser considerada uma terra hostil para o cultivo de certos produtos
agrícolas e para a criação de gado, nela abrigam-se inúmeras espécies da flora e
fauna raríssimas, como por exemplo, a arara-azul-de-lear espécie encontrada
praticamente apenas no Raso da Catarina.
e) Lenda das Almas do Caritá
A alma de Catarina não é a única que de acordo com o imaginário popular
vaga por Jeremoabo. Existem também as Almas do Caritá, história contada pelo
depoente Dedé8:
O pessoal mais velho conta que antigamente quando iam pro Sítio do Quinto
aqui pelas estradas do Caritá, quando eles iam passando pelas matas do Caritá,
ouvia aquelas vozes gritando:
“-Traga minha cabeça, traga minha cabeça, traga minha cabeça!”
Segundo a lenda, era a cabeça das alma penando, que no tempo que
Lampião passou por aqui, cortava as cabeças das pessoas. E aí, ficava ficou as
almas penando naquela região ai por isso que ouvia aquelas vozes:
8
Dedé é agricultor e reside desde que nasceu no Povoado Feira Nova, zona rural de Jeremoabo.
“-Traga minha cabeça, traga minha cabeça, traga minha cabeça!”
A história transcrita acima vem justamente colocar em evidência o nome de
um grande mito nordestino: Lampião. Indaga-se, comenta-se muito sobre a
passagem e/ou estadia de Lampião no município de Jeremoabo. O próprio Euclides
da Cunha em Os Sertões relata a passagem das tropas de Lampião e da Guarda
Nacional. Mas sobre a passagem de Lampião apenas especula-se, até porque como
o mesmo trafegava sempre em fugas e às escondidas ninguém pode ao certo
afirmar sobre essa questão.
f) Lenda do Antigo casarão do Coronel João Sá
Outra narrativa revela que a alma de uma pessoa muito influente de
Jeremoabo anda vagando a visitar a sua antiga propriedade, dando ares de mal
assombrada a mesma. A lenda do Casarão de João Sá foi narrada por Carmelita de
Dudé que inclusive reside em frente ao antigo Casarão:
A casa de Coronel João
Sá... Há 25 anos que nós
Foto: Luana Costa, 2010.
estamos residindo aqui em
frente e eu nunca presenciei
fantasma, sinceramente. Mas
quando
minha
eu
mãe
tinha
17
anos
comprou
uma
casinha lá no Entroncamento,
Figura 3: Antigo Casarão do Cel João Sá, Jeremoabo/Ba.
onde tinha a igrejinha de São
Cristóvão. Minha mãe comprou o terreno, foi a primeira casa a ser construída do
outro lado, lá naquela Rua de São Cristóvão [...]
Então dessa casa, que fica numa parte mais alta do terreno, o povo contavam
que todas as noites via um carro subir aqui na casa de João Sá. O carro subia e
descia. E nós ficávamos assim: ouvindo as conversas, sem querer acreditar.
Quando foi uma noite, nós ficamos mesmo de propósito olhando na posição
do terreno que de lá ficava uma posição muito boa [...] de lá também a gente olha e
vê a casa de João Sá [...] Então nós ficamos no terreiro da casa observando daqui a
pouco meu pai diz:
“-Ó o carro vai subindo! Vai subindo um carro lá na pista de João Sá!”
Aí falei:
“- Que nada, isso é conversa.”
E não acreditando nisso, minha mãe disse:
“-É mesmo, vamo ver se voltar é verdade.”
Aí, nós vimos aquele farol subindo... depois apagou o farol. Aí ficamos
esperando, daqui a pouco tornou a acender o farol, fez uma curva e desceu até o
ponto da cancela. E esse fato ficou acontecendo quase todas as noites [...] de vez
em quando a gente via esse carro subir e descer nesse mesmo horário.
Então, a única coisa que eu posso contar que eu sei da casa de João Sá é
essa visão que nós tivemos do entroncamento desse carro que subia e descia, eles
[o povo] diziam que era João Sá que ia visitar todas as noites a mansão.
O Coronel João Sá foi uma importante figura política do município, chegando
inclusive, a ser Presidente da Assembléia Estadual da Bahia. Dentre algumas de
suas propriedades, aquela referida na narrativa acima se localiza em área urbana do
município de Jeremoabo e é considerada ainda que não legalmente, patrimônio
histórico do município. Por ser uma construção muito antiga composta do o casarão
sede, capela e o antigo engenho, em ruínas.
Recentemente, o terreno que engloba o casarão foi revendido pela herdeira
causando inclusive discussões e desentendimentos à cerca do destino que os atuais
proprietários pretendem ou pretendiam dar ao local e as históricas construções.
No entanto, o fato da propriedade ter passado muito tempo em completo
estado de abandono, talvez as pessoas associaram-na a ideia de que a mesma
fosse mal-assombrada.
Além do depoimento que indica que foram vistos faróis que designavam ser
do carro de João Sá que em alma teria vindo visitar o casarão. Outras pessoas
afirmam terem ouvido conversas, portas batendo sozinhas, atribuindo tais
manifestações como vindas do além. Contribuindo assim, para que confirme-se cada
vez mais no imaginário popular, que o Casarão seja mal assombrado.
g) Lenda da Baleia
A presença de traços que remetem à questão e crença religiosa também é
constante nas narrações lendárias. Temos viva no imaginário popular jeremoabense,
a lenda da baleia que encontra-se enterrada debaixo do altar da Igreja Matriz da
cidade. De acordo com as palavras do depoente Evangelista9:
Foto: Artur Costa, 2008.
A igreja de São João Batista acumula muitas
Figura 4: Igreja de São João Batista,
Jeremoabo/Ba
lendas, inclusive as pessoas dizem, eu não sei
muito, a questão da baleia que existe debaixo do
altar no subterrâneo da igreja. Água, que eles
dizem, que corria um mar do rio Jordão, um braço
do rio Jordão por essa região e eles acreditam que
Figura 4: Igreja Matriz de São João Batista
debaixo da [pensamento suspenso]... Hoje tá até
se passando essa concepção, não é muito viva como antigamente. Mas
antigamente, se dizia que debaixo da casa de João batista, no altar, existia uma
baleia ali, que nunca poderia tirar São João Batista daquele altar porque se tirasse a
água subia.
Realmente, Jeremoabo é muito propício a água. Se você cavar você logo,
logo vai ver que a água já está minando, mas as pessoas se aproveitaram dessa
região, dessas situações, pra trabalhar essa questão da lenda, entendeu?
O fato de o município apresentar facilidade na descoberta de água nos seus
lençóis subterrâneos fez com que houvesse a predisposição para o surgimento da
narração. Destaca-se também a predominância expressa da religiosidade: as águas
que afirmam correr é de um rio bíblico - o Jordão, no qual João Batista, primo de
Jesus, batizava as pessoas. Nota-se aí, como as pessoas dão asas à imaginação: o
rio São Francisco tão mais próximo ou o Vaza Barris que banha o município, no
entanto, o escolhido foi o rio Jordão. Temos também a questão do animal escolhido
ser a baleia: mamífero referido na bíblia por ter engolido Jonas.
Mais uma vez ressalta-se a questão religiosa a lenda possui como cenário a
igreja matriz da cidade e surge para oferecer “proteção” a São João Batista, já que a
narrativa traz a ideia de punição caso a imagem de São João Batista seja retirada do
9
Evangelista reside no município de Jeremoabo desde que nasceu e atua como professor.
altar. É uma forma de impor respeito e fazer reverência à imagem do padroeiro da
cidade: São João Batista.
h) Lenda do Cruzeiro da Santa Cruz
A lenda do Cruzeiro da Santa Cruz também evidencia a fé popular. A mesma
será apresentada de acordo com a versão de Ana Rosa10.
A lenda mais conhecida pra mim, mas
não para o povo de Jeremoabo, é a lenda do
caçador que pra alimentar a sua família ele
subia a serra de três em três dias pra matar
Foto: Artur Costa, 2009.
mocó na época da seca [...]
p
E aí quando ele sentou debaixo de uma
árvore para comer a sua farofa, que ele
passava o dia inteirinho, ele viu refletida no sol
uma cruz fincada no chão. E aí, ele tirou a
Figura 5: Cruz existente no alto da Serra da
Santa Cruz, Jeremoabo/ Ba.
cruz, colocou no seu alforje, desceu a serra e
procurou o vigário na paróquia pra entregar, só
que quando chegou na igreja o vigário muito ocupado em atender os fiéis, pediu
para que ele colocasse no balcão. E assim ele fez, colocou em cima do balcão e foi
para a casa.
Passando os três dias, ele retornou ao local que ele costumava a caçar mocó,
e aí, quando sentou novamente debaixo da árvore pra comer a sua farofa, que ele
passava o dia inteiro, ele tornou a ver a mesma cruz fincada no mesmo local e
refletindo a luz do sol. Ele novamente tirou a cruz sem dificuldade nenhuma, colocou
no alforje e levou para o padre.
Chegando lá ele disse ao padre:
“-Que negócio é esse? Eu trouxe a cruz pro senhor e essa cruz voltou para o
local onde eu achei lá em cima da serra uns 2 km.”
Aí o padre:
“-Você tá de brincadeira.”
10
Ana Rosa, 50 anos, é professora e reside em Jeremoabo desde que nasceu.
E não acreditou na história do caçador:
“-Você tá de brincadeira, você levou a cruz de volta e agora ta dizendo que
trouxe. Pois me dê ela aqui!” e pegou a cruz enrolou no tecido, e colocou debaixo do
balcão.
O caçador já meio desconfiado agradeceu e voltou pra sua casa.
Passado os três dias ele retornou a serra onde ele caçava e aí ele foi por um
outro caminho, mas sempre sentava à beira, debaixo da árvore pra comer a sua
farofa. E aí, quando ele sentou, ele ficou sem querer nem olhar de novo para o local
onde se encontrava a cruz, mas a tentação foi grande, ele foi virando e de repente
quando olhou estava lá a cruz fincada no chão. E era um dia chuvoso esse dia e ele
teve dificuldade de tirar a cruz do lugar. Então, cada dia que ele tirava a cruz, é
como se a cruz ao invés de tirar, ela fincava no chão, e aí ele chegou até a se cortar.
Pegou a cruz colocou no alforje chegou todo sujinho, só que o padre ainda estava
atendendo os seus fiéis, ele dessa vez não quis entregar na sacristia foi pela janela
porque ele estava sujo de lama. E quando o padre acabou de atender os fieis ele
chamou o vigário. Aí o vigário:
“-Você aqui de novo? Que história é essa? Não me diga que trouxe outra
cruz?”
“-Não, eu queria ver a que eu trouxe.” Testando assim o padre né?
E aí, quando o padre olhou debaixo do balcão, ele não tinha entrado na
sacristia estava na janela fora da igreja, o padre verificou que a cruz não estava, aí
ele disse:
“-Você pegou a cruz daqui?”
Ele disse:
“-Não padre, eu não entrei nem na igreja. Nem na sua sacristia, eu estou aqui
de fora.”
Aí ele disse [o padre]:
“-Mas a cruz não está aqui!”
Ele disse:
“-Realmente a cruz não está, eu encontrei a cruz infincada no chão, e dessa
vez tive dificuldade de tirar que até me cortei.”
E mostrou as mãos, os cortes que existiam na mão por ter tirado a cruz. E o
padre então percebeu que o que ele tava contando não era uma história comum.
Então, pegou a cruz, abriu um armário que ele tinha lá na sacristia, fechou e colocou
a chave no bolso.
Aí, passando os três dias ele subiu a serra novamente, porque a caça era o
único alimento que ele podia dar a seus filhos, e era muito seco nessa época aqui
em Jeremoabo, e chegando lá ele dessa vez não quis se distrair, não quis ter medo
e foi diretamente ao local onde a cruz estava. E chegando lá, ele encontrou
novamente a cruz dessa vez ele sentiu mais dificuldade ainda de se retirar, então ele
não tirou, deixou a cruz lá e foi pra sacristia olhar:
“Se o padre trancou, então ela deve tá [na sacristia]” e que já seria uma outra
cruz.
Chegando lá, ele chamou o padre e perguntou:
“-Padre me deu saudade eu queria ver aquela cruz. O senhor não queria me
mostrar não?”
E o padre abriu o armário, tirou a chave do bolso abriu o armário e quando
abriu só estava o pano.
Então daí em diante o padre percebeu que era um chamado, era alguma
coisa de muita fé, uma coisa diferente que não era um momento bobo, e nem que
aquele pobre caçador estaria inventando. Então, ele, passado o tempo, ele foi com o
caçador visitou o local. Realmente a cruz estava fincada no chão e nenhum dos dois
conseguiu tirar.
Aí o que foi que aconteceu, ali começou a ser um lugar visitado, um local
santo onde as pessoas faziam suas promessas e conseguiam suas graças [...] Se
tivesse qualquer problema numa perna, braço qualquer parte do corpo, fazia uma
promessa e pra alcançar sua graça levaria em forma de madeira a parte do corpo e
lá pagaria a promessa com reza, com fitas, com velas. Subia 2 Km, tinha gente que
subia até de joelhos. [...] Ali ficou considerado um lugar santo e muito tempo depois
construíram a capelinha e o cruzeiro existente até hoje.
No alto da Serra da Santa Cruz existe uma cruz onde as pessoas depositam
objetos como pernas e braços de madeira, amarram fitas e acendem velas em forma
de agradecimento por graças alcançadas. É referindo-se a essa cruz que a narrativa
desenvolve. O fato de agradecer ao pé da cruz é explicado pelo fato de a mesma ser
considerada Santa. Explica-se assim também o fato de existirem romarias, que
acontecem em especial e com um grande número de pessoas na Sexta-feira da
Paixão, na Serra e também um de seus nomes: Serra da Santa Cruz. Além de ser
uma narrativa de cunho religioso.
i) Lenda da Praga do padre
A próxima narração conta a história de um capuchinho que em momento de
fúria lança uma praga sobre Jeremoabo. Iremos conhecê-la na versão do depoente
Solon11:
Sabe-se que antigamente a igreja exercia grande poder sobre a sociedade,
existia aquele negócio que os seus representantes afirmavam que tinham o poder de
influenciar e decidir quem ia pro céu. E também tinha a questão do poder de querer
impor as coisas.
Aqui em Jeremoabo também era assim. E cansados dessa situação de
imposição os índios se enraivaram e fizeram o seguinte:
Certo dia, os índios quando o padre capuchinho estava celebrando a missa,
pegaram o padre expulsaram da igreja e montaram o padre a força em cima de um
cavalo, mandando que ele fosse embora e dizendo que lá [ na igreja da vila de
Jeremoabo] ele não celebraria mais uma missa.
Aí então, conta a história, que revoltado e indignado com a atitude dos índios
o padre sacudiu as sandálias e na ocasião rogou uma praga contra a vila de
Jeremoabo. É por isso que o pessoal diz que Jeremoabo não vai pra frente: por
causa a praga jogada pelo capuchinho.
A lenda desenvolve-se justamente através de outra manifestação da literatura
oral: o provérbio. Quem nunca ouviu dizer que “praga que padre roga, pega”? Pois
é, por conta da fé existente em tal crendice popular é que afirma-se que Jeremoabo
não é uma cidade desenvolvida por conta da maldição lançada pelo capuchinho.
Muita gente credita o retardamento do desenvolvimento social e econômico
do município à praga do padre, que na ocasião viu-se tão enfurecido pelo fato de ter
sido expulso da igreja, e pode-se dizer da cidade, que proferiu algumas palavras de
mal goro.
11
José Solon, 57 anos, é vendedor autônomo e reside há oito anos em Jeremoabo.
Encontra-se na Agência do IBGE do município de Jeremoabo uma carta de
relato de algumas informações e acontecimentos enviada pelo Pe. Januário, pároco
da vila na época, à Corte, onde encontra-se um episódio semelhante a narração
transcrita, no qual acredita-se referir-se ao mesmo
[...] O 4º e 5º da mesma forma, chegando a tal excesso, que
lhes entrarão pela Caza emquanto estava dizendo Missa e lhe
tirarão o cavallo da estrebaria, e pondo-o na porta da Igreja
cellado mandarão que nelle montasse e se fora embora, que o
não querião mais por Parocho.
Algumas pessoas apresentam descrença para tal brutalidade cometida pelos
nativos da cidade. Apesar de conter registro escrito de tal acontecimento, acreditase que o Pe. Januário, autor do documento teria fortes motivos, como representante
da Igreja, em exaltá-la e passar o rótulo de selvagens aos índios nativos que devido
à colonização foram catequizados e obrigados a serem convertidos ao cristianismo.
E já que o poder do registro escrito era atribuído à Igreja, paira aí a incerteza de até
que ponto a história é verossímil.
Independentemente da incredulidade depositada por alguns a história, já
podemos considerá-la lendária pelo fato das pessoas associarem o atraso do
desenvolvimento do município à praga na qual dizem ter sido proferida pelo padre.
j) Lenda do Fogo corredor
Tem-se conhecimento da existência de diversas histórias que relatam
aparições do “fogo corredor”. No entanto, cabe lembrar que um dos aspectos que
caracterizam as narrações lendárias é que o seu enredo desenvolve-se em um
ponto fixo, sendo única e aderindo traços de exclusividade para cada cenário onde a
mesma se desenvolve. Jeremoabo também vislumbra e serve de cenário para uma
narrativa que envolve o fogo corredor. Vejamos o que a depoente Carmelita de Dudé
relatou:
Também no pé da serra, existe uma várzea a qual está sendo invadida por
casas, infelizmente, mas era muito bonita a várzea nesses tempos. Agora, a saída
de março as fechadas das águas, enchia aquela várzea. Aquela coisa mais linda,
até peixe se pegava que vinha da barragem. Aí vinha água da barragem invadia a
várzea e ficava um lago muito bonito ao pé da serra era uma paisagem belíssima
porque no pé da serra, tinha as quixabeiras que contornava, Manoel d’Chico que
tem umas pinturas.
Então quando as águas secavam que ninguém ficava, que ninguém podia
passar, a não ser por umas pedras que faziam passarela para a Santa Cruz, e
quando as pessoas não movimentavam todas as noites o povo viam os faróis azuis.
Umas luzes azuis pular da serra, pulava aquele bloco azul, pulava da Serra na
mesma direção do cavaleiro, não era do lado de lá do arame, era do lado de cá.
Pulava aquela bola azul, daí vinha outra. Quando ele pulava aquela bola azul,
que vinha a outra do outro lado, elas ficavam avermelhadas aí ficavam pulando na
várzea. Uma ia lá, outra vinha cá. Pulando como bolinhas de globo de bingo,
ficavam brincando aquelas bolas. E o povo tudo assistindo...
Aí, quando elas batiam uma na outra caía aqueles fachos de fogo, brilhava,
chega doía a vista da gente, aí saía voando um pra lá outro para cá, o povo gritando:
“-Olhe o fogo corredor! O fogo corredor é o compadre mais a comadre! Se
eles se encontrarem o pau vai quebrar!”
Então, todo mundo saía de dentro de casa para assistir o fogo corredor. Aí,
eles ficavam voando e desapareciam então quando eles desapareciam, todo mundo
ficava dizendo é o fogo corredor, a gente ficava acostumado a acreditar em lenda
fábulas, histórias de trancoso, como contava os antepassados. Aí, a gente dizendo
que era o compadre e a comadre quando morriam que eles na vida material eles
tinham pacto amoroso era o compadre e comadre quando morriam iam virar fogo
corredor [...]
É comum ouvir narrativas que nos contam histórias de pessoas que afirmam
terem visto “bolas de fogo” assim como descrito na lendária narrativa transcrita
acima.
Hoje em dia cientistas explicam que a possível existência de aparições de tais
“bolas de fogo” ocorrem por conta de alguns gases. Encontramos a seguinte
explicação científica para o fenômeno:
Fogo-fátuo (ignis fatuus em latim), também chamado de Fogo tolo ou,
no interior do Brasil, Fogo corredor ou João-galafoice, é uma luz
azulada que pode ser avistada em cemitérios, pântanos, brejos, etc. É
a inflamação espontânea do gás dos pântanos (metano), resultante da
decomposição de seres vivos: plantas e animais típicos do ambiente.
Quando um corpo orgânico começa a entrar em putrefação, ocorre a
emissão do gás fósfina (PH3).
Os fogos-fátuos são produtos da combustão da fosfina gerados pela
decomposição de substâncias orgânicas, ou a fosforescência natural
dos sais de cálcio presentes nos ossos enterrados.12
O que ocorre é que antigamente, e até hoje, muitas pessoas não possuem o
conhecimento da explicação dada pelos cientistas. É por isso que as pessoas
utilizam do poder imaginário e por meio dele criam suas próprias explicações.
Confirmando assim, a caracterização da ideia de que as lendas surgem, por
exemplo, para esclarecer aquilo que não possui ou não se tem conhecimento de
uma explicação científica.
Na lenda transcrita acima acredita-se que as “bolas de fogo” sejam oriundas
da alma de casais que verdadeiramente nutriam o sentimento amoroso com
tamanha intensidade que, em pacto, depois da morte voltam em forma de bolas de
fogo para que possam se reencontrar. Tendo assim em evidência no desenrolar da
história o sentimento amoroso.
l) Lenda da Origem da palavra Jeremoabo
Apresentaremos agora a lenda que explica a origem do nome “Jeremoabo”
contada pela depoente Carmelita de Dudé:
A origem da palavra Jeremoabo vem do fato de que antigamente as terras
que formavam o município era povoado por indígenas. E certa vez no aldeamento
nasceu uma índia. Ela era tão bonita que seu pai falou:
-Vou colocar seu nome de Jerimum. Jerimum Cabocla.
Jerimum é um tipo de abóbora. É que na época o lugar tinha muitas
plantações de abóbora e a jerimum era o melhor tipo de abóbora. E na época o que
se tinha era abóbora, peixe, milho e mandioca. E como a índia era muito bonita o pai
colocou o nome de Jerimum que era a melhor e mais bonita espécie de abóbora.
Mas com o passar do tempo a Jerimum Cabocla começou a ficar triste,
deprimida e acabou adoecendo e morrendo.
12
Extraído do site
02/05/10.
http://www.sobrenatural.org/noticia/detalhar/10578/fantasma_x_fogo_fatuo/ em
Aí em homenagem a índia Jerimum colocaram o nome da povoação Jerimum
Ba de Bahia. Aí passaram a chamar de Jerimumba e com o passar do tempo passou
a se chamar Geremoabo com “G” e por último Jeremoabo com “J” que é como
chamam até hoje.
A origem da palavra Jeremoabo tem ligação com os nativos indígenas.
Estando assim associada ao fato das terras jeremoabenses serem habitadas por
índios na época em que Garcia d’Ávila e seus descendentes começaram a
desbravá-la.
O fato de existir condições favoráveis para o cultivo de abóbora, fez com que
a leguminosa fosse cultivada em grande quantidade, em especial, a Jerimum, tida a
melhor das espécies e que de acordo com a lenda, deu origem primeiramente ao
nome de uma índia, que por causa de sua beleza fascinante e morte prematura,
posteriormente, serviu de inspiração para o nome da povoação.
Assim, o nome Jeremoabo deriva da palavra jerimum que de acordo com
informações coletadas, e citadas anteriormente neste trabalho, significa plantação
de abóboras.
A narrativa ainda explica algumas variações ocorridas na formação da palavra
até chegar àquela que temos atualmente: Jeremoabo.
Encerra-se assim esta etapa do trabalho destinada a compor as lendas que
permeiam o imaginário popular e que possuem como cenário o município de
Jeremoabo.
É de suma importância destacar que esta é apenas uma amostra na qual fui
agraciada em poder coletar e organizar a fim de que fosse firmada como parte
constituinte deste trabalho.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pensemos em cultura como um conjunto de costumes, crenças e tradições
herdadas e transmitidas através das gerações. Mas não como uma tradição estática,
imóvel, mas aquela que foi adquirida através do tempo, que será repassada e que
também permite que seja incorporada em si aspectos e traços característicos de
cada geração.
Diversas manifestações orais fazem parte da cultura e da tradição popular. E
inseridas nas manifestações orais estão as lendas que mergulham e permeiam o
imaginário popular.
A lenda nasce da pureza do imaginário e da alma popular movimentada pelo
impulso da criação e da necessidade de comunicar-se e transmitir algo relacionado
às origens, tradições e costumes de um povo. Observando-se assim que a história
não surge do nada, há sempre uma motivação e/ou ligação com algum fator
histórico, social ou cultural.
A máxima de que as manifestações folclóricas orais são disseminadas por
meio do povo utilizando-se da oralidade e suas relações interpessoais foram
claramente constatadas durante a execução deste trabalho. Cada pessoa procurada
afim de que pudesse dar uma contribuição particular por meio do relato e da coleta
de depoimento de uma determinada lenda, ao final do procedimento, sempre
indicava outro indivíduo que afirmava ser conhecedor de outra narração que serviria
para ser alocada ao presente estudo.
As lendas apesar de possuírem caráter maravilhoso e fantasioso, ilustram
traços
histórico-sociais
de
um
povo.
As
narrativas
surgem
dotadas
de
particularidades que registram ideologias, crendices e o poder imaginário que
caracterizam certo agrupamento humano envolvendo assuntos religiosos e
amorosos, histórias que trazem assombrações e exaltações do homem e de
animais, exemplificando assim, algumas temáticas encontradas nas narrações
lendárias.
Todas as narrações lendárias trazem consigo ainda que implicitamente um
propósito seja de explicar a origem ou surgimento de algo, como a Lenda do Fogo
Corredor, de amedrontar as pessoas em defesa de algo, como na Lenda do Aboio
do Boi ou para registrar e explicar a fé popular, como na Lenda do Cruzeiro da Santa
Cruz. Confirmando assim, o utilitarismo defendido por Cascudo e deixando de lado a
ideia de que as lendas são apenas histórias inventadas pelo imaginário popular sem
propósito algum.
Os narradores incumbidos de transmitir as lendas, assim como os seus
ouvintes, em sua grande maioria, possuem respeito pelas mesmas e as enxergam
como algo sagrado. Há ainda aqueles que acreditam e que defendem com tamanha
veemência, apesar de ser uma história fantasiosa, a veracidade do conteúdo.
O modo como cada um conta a história, apesar de ser desenvolvida por meio
de um mesmo fato central, faz com que a mesma desdobre-se em inúmeras
variações. Isso porque cada ser inclui e deixa marcas pessoais, inserindo à narração
um vocabulário próprio e acrescentando ou retirando detalhes da narrativa de
acordo com aquilo que lhe for mais peculiar.
O município de Jeremoabo/Ba, escolhido para delimitar e figurar um cenário
para as lendas nas quais pudessem compor este trabalho, mostrou-se ser um apto
representante por ser um rico expoente cultural, expressando e ilustrando muito bem
a verdadeira essência lendária.
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