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O adorável companheiro
Isabel Lustosa
ANÍSIO TEIXEIRA ESTÁ NA NOTA DE CR$ 1.000. É VERDADE que é um Anísio bem diferente
daquele outro. Um Anísio como ficam, não sei por que problema técnico, as figuras retratadas
nas notas, parecendo assim um parente distante do próprio figurado. De qualquer maneira,
apesar da fugacidade - pois, com o ritmo alucinante da inflação brasileira, a nota mais valiosa
vira, em pouco tempo, uma nota chinfrina, uma destas notas que mal dão para o cafezinho vale a homenagem a este tão injustiçado educador brasileiro.
Tenho esbarrado constantemente nas minhas pesquisas com a figura de Anísio. Figura
franzina, metida nuns ternos grandões, com os cabelos muito lisos, fixados pela força da
gomalina, o rosto magro escondido atrás dos óculos de grau. Imagem típica de intelectual
latino.
É o jovem Anísio que tenho encontrado com mais freqüência. Aquele Anísio recémchegado da América do Norte, cheio de idéias arrojadas sobre educação. Aquele Anísio que
encontrou na vocação radicalmente democrática do prefeito Pedro Ernesto um aliado
corajoso para a implementação de seu projeto educacional. Este mesmo Anísio que aparece
nas dezenas de fotos arquivadas no CPDOC da Fundação Getúlio Vargas, inaugurando
escolas em Bangu, Campo Grande, Olaria, Marechal Hermes. Realizando, enfim, pela
primeira vez na História do país, um projeto de efetiva democratização do ensino. O Anísio
corajoso e meio blasé que não entendeu o recado violento da reação e recusou-se a
implementar, por considerá-la avessa ao projeto de uma escola democrática e laica, a
obrigatoriedade do ensino religioso nas escolas, pela qual se batiam os setores mais
conservadores da Igreja Católica.
Curiosamente, o Anísio que brigava com a igreja nos anos 30, quase se tornara seu
sacerdote nos anos 20. Estudante de um colégio jesuíta na Bahia, ele logo se revelava pedra
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de primeira grandeza, diamante a ser lapidado. Intensa campanha travam os padres pela
conquista da alma e do espírito do jovem de tradicional família baiana. Do outro lado,
puxando-o para a mundanidade das intrigas políticas, a família Teixeira procurava fazer do
filho mais talentoso personagem da provinciana política da "mulata velha".
Existe, na biblioteca da PUC do Rio, uma tese em que se produziu a arqueologia do
processo de formação do homem e do intelectual Anísio Teixeira. Nela a professora Clarice
Nunes narra, de forma magistral, o drama íntimo do jovem Anísio, o conflito em que se
debate a sua alma entre as atrações do mundo da política e a vida sacerdotal. Narra
também o choque que foi para ele, no final da década de 20, a descoberta da América.
Choque que eliminou o sacerdócio como alternativa mas que revelou o caminho para um
outro sacerdócio, a serviço da educação. Educação para a democracia.
Em Nova York, Anísio tornou-se íntimo de Monteiro Lobato - então adido comercial do
Brasil nos Estados Unidos - e de sua família. Pela correspondência que mantêm, depois do
retorno de Anísio, percebe-se que ele se tornou algo assim como o darling de toda a família
Lobato. Todos morrem de saudade dele. Todos relembram o companheiro insubstituível,
sua prosa admirável.
É assim também que dele se recordam os filhos de Pedro Ernesto: Odilon e Iolanda Baptista.
Em fotos do álbum de família aparecem o jovem e atlético Odilon ao lado do franzino
Anísio. Os dois, de calção, jogam nas águas do mar do Recife uma rede que a
incompetência dos pescadores teima em trazer vazia. Foi durante uma viagem, naquele
fatídico ano de 35. Pedro Ernesto, então prestigiadíssimo, foi com a família e alguns
secretários assistir à posse do governador de Pernambuco, Carlos de Lima Cavalcanti. A
bordo, nas fotos da viagem, aparece o grupo bronzeado e alegre: Pedro Ernesto, sua
mulher, d. Evangelina, Iolanda, Odilon, Anísio e Emília. São fotos de uma gente feliz.
Durante a viagem, o navio foi sobrevoado pelo dirigível Hindemburgo, numa homenagem
ao prefeito do Rio.
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Quando se pergunta a d. Iolanda de onde vinha a força daquele Anísio tão jovem, tão
míope e tão franzino ela diz: "Ah, mas quando ele começava a falar, todo mundo parava
para ouvir..."
Em meados de 35, aquele rapaz que todos paravam para ouvir, marcava o seu tento mais
ambicioso, coroava a sua obra inaugurando a Universidade do Distrito Federal. Uma
universidade sem prédio, sem instalações adequadas e que, no entanto, tinha em seu
quadro importantes professores de universidades estrangeiras, além da prata da cada:
Gilberto Freyre, Sergio Buarque de Holanda, Heitor Villa-Lobos, Cândido Portinari, Di
Cavalcanti, José Maria Bello, Jorge de Lima, Álvaro Vieira Pinto, José de Castro, Afonso
Arinos de Melo Franco, Arnaldo Estrela, Lúcio Costa...
A UDF tinha um currículo absolutamente inédito para os padrões da universidade brasileira:
cursos de urbanismo, arquitetura paisagista, drama e cinema, arquitetura cenográfica,
bailados, além de outros mais sisudos, porém igualmente inovadores como os de filosofia e
história do pensamento, filologia, literatura e sua história, jornalismo e publicidade,
biblioteconomia e arquivo. A contratação de professores comunistas como Hermes Lima,
Castro Rabelo e Leônidas Rezende, contribuiu para reforçar a identificação de Anísio como
comunista e forneceu o motivo para a perseguição que sofreria depois.
As conseqüências do desastrado levante comunista de novembro de 35 foram trágicas para
os que, naquela década, não somavam com as correntes mais conservadoras. Em 2 de
dezembro, Anísio Teixeira, Afrânio Peixoto (então reitor da UDF) e boa parte de seus
colaboradores, que haviam se transformado no alvo predileto dos que queriam derrubar
Pedro Ernesto, apresentaram suas cartas de demissão. Alguns foram imediatamente presos.
No lugar de Anísio, assumiu a Secretaria de Educação o ex-ministro Francisco Campos. Era
o fim do sonho.
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Durante os dez anos seguintes em que se prolongaria o primeiro Governo Vargas, Anísio
permaneceria internado nos sertões da Bahia, empresário e fazendeiro improvisado,
destilando nas cartas aos amigos a amargura do exílio. Exílio de si mesmo.
Foi com Anísio Teixeira que se difundiram as bibliotecas de bairro e que se criou a EscolaRádio, dirigida por Roquette Pinto. Foram construídas então, no Rio de Janeiro, 28 escolas,
cada uma com capacidade para mil alunos. Espalhadas por todo o município, suas
localizações foram definidas após cuidadosos estudos, privilegiando as áreas mais pobres.
Em 1933, a primeira escola construída numa favela foi inaugurada no Morro da Mangueira.
O Instituto de Educação formou, durante aqueles quatro anos, 800 novos professores
dentro do espírito da Escola Nova. A sofisticação dos cursos do Instituto era tanta que se
chegava a exigir pleno conhecimento de francês e inglês dos futuros professores primários.
O nível destes, com o aprimoramento dos cursos do Instituto de Educação, alcançou padrão
universitário.
Anísio Teixeira era um destes homens que o Brasil não fabrica mais. Daí, talvez, a
dificuldade do desenhista em apreender-lhe a essência na imagem da nota.
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