URGÊNCIA NA SAÚDE
QUANDO A JUSTIÇA
VIRA O REMÉDIO
Decisão do Tribunal do Rio sobre o óleo de Lorenzo relembra drama da doença
que virou filme em Hollywood e levanta discussão sobre o acesso a medicamentos
TEXTO THIAGO JANSEN
“O óleo de
Lorenzo”:
filme de
1992 revelou
a história do
casal Odone,
que tentava
encontrar
uma cura
para a doença
degenerativa
de seu filho
DIVULGAÇÃO
VÍDEO
02:30
E
m 1992, a produção hollywoodiana “O óleo de Lorenzo”, estrelada por
Nick Nolte e Susan Sarandon, tornou pública a história real do casal
Odone na busca por um tratamento adequado para seu filho, Lorenzo,
vítima de uma rara doença genética e degenerativa chmada adrenoleucodistrofia (ADL). Neste mês, 20 anos depois de o filme emocionar
plateias do mundo inteiro, uma decisão judicial no Rio de Janeiro
determinou que o estado e o município forneçam para Marcos Paulo de Jesus,
de sete anos, três doses mensais de 500ml da fórmula desenvolvida pelos pais
de Lorenzo e que se encontra fora da lista de medicamentos do Sistema Único
de Saúde (SUS). O caso traz novamente à tona o drama causado pela ADL e
chama a atenção para a cada vez mais frequente intervenção da Justiça no
fornecimento de medicamentos a pacientes no Brasil.
Morador de Pedra de Guaratiba, Zona Oeste do Rio, Marcos Paulo sempre foi
uma criança normal, falante, inquieta e que costumava brincar com outras da
sua idade. Os problemas do menino começaram em março deste ano, quando
sua mãe, Beatriz de Jesus, de 23 anos, notou que o filho passou a apresentar
perda da audição. Em pouco menos de um mês, Marcos já demonstrava
dificuldade para andar e passou a não conseguir subir escadas sozinho.
— Após cerca de três meses rodando postos de saúde e hospitais públicos
para tentar descobrir qual era o problema com o meu filho, fui encaminhada ao
Hospital Universitário Antônio Pedro, em Niterói, onde ele foi diagnosticado com
adrenoleucodistrofia — conta Beatriz, que soube então do filme, mas ainda não
conseguiu encontrá-lo para assistir. — Lá, me informaram sobre a seriedade da
doença e me indicaram o tratamento com o óleo de Lorenzo.
Raquel Tavares Boy da Silva, geneticista clínica e membro do departamento
científico de genética da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), explica
que a ADL é uma doença complexa, herdada geneticamente. Rara, com
uma incidência estimada em um a cada cem mil nascimentos no Brasil, ela
afeta principalmente homens, pode se manifestar em diferentes graus e é
considerada letal por seu forte caráter neurodegenerativo. Sua progressão
provoca males como retardo mental, degeneração retinal, convulsões,
hipertrofia do fígado e músculos fracos.
— É uma doença decorrente da alteração na produção de uma proteína
envolvida no transporte celular dos ácidos graxos de cadeia longa, os AGCML. O
ADL leva ao acúmulo destes AGCML no plasma e nos tecidos do indivíduo, e à
consequente degeneração celular — afirma Raquel.
De acordo com a geneticista, por ser uma doença rara, a ADL acaba não tendo um
registro adequado no Brasil, o que leva muitas crianças a receberem um diagnóstico
A FAMÍLIA E O DRAMA DE LORENZO ODONE
Augusto e Michaela
Odone com seu filho
Lorenzo: na tentativa
de curar a doença
do filho, os dois
desenvolveram um
remédio que ajuda
no tratamento de
pacientes com ADL
FOTOS DE DIVULGAÇÃO
ARRASTE
indevido. Ela alerta que, para detectar a doença precocemente e aumentar a
efetividade de seu tratamento, os pais precisam ficar atentos ao histórico da doença
na família e, caso percebam mudanças de comportamento em seus filhos, devem
procurar um neurologista ou endocrinologista pediátrico.
— Em laboratórios especializados, a doença pode ser diagnosticada por meio
da dosagem dos AGCML no sangue — afirma.
Em Niterói, Marcos Paulo foi atendido por Alexandre Fernandez, neuropediatra e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), no ambulatório
de doenças neurometabólicas. Foi ele quem recomendou que Beatriz enviasse o
pedido do óleo de Lorenzo à Defensoria Pública, já que ela, desempregada, não
teria condição de arcar com o seu custo — no Brasil, a fórmula é comercializada
por apenas um laboratório e um frasco de 500ml custa R$ 650,20. Para seu
tratamento, Marcos Paulo precisa ingerir ao menos 40ml do óleo por dia — ou
um frasco a cada 12 dias e meio.
— Existem duas formas de tratamento para a doença, porém nenhuma delas
é definitiva: o uso do óleo, que pode retardar um pouco a evolução da ADL em
alguns casos; e o transplante de medula óssea, mas Marcos Paulo não tem mais
condição de realizar pelo estágio avançado de sua ADL — afirma Alexandre. —
É uma doença complicada, porque, quando a pessoa começa a apresentar os
sintomas, é sinal de que ela já está avançada.
O óleo de Lorenzo foi inventado por Michaela e Augusto Odone durante a
década de 1980, na tentativa de salvar seu filho, diagnosticado com ADL quando
tinha apenas seis anos de idade. Após ouvirem perspectivas céticas de médicos
sobre uma forma de deter o avanço da ADL em Lorenzo, os dois, autodidatas em
bioquímica e neurologia, desenvolveram um tipo de óleo que, incorporado à dieta
do filho, retardou os efeitos da doença — graças ao óleo, Lorenzo viveu até os 30
anos de idade, 20 a mais do que as previsões iniciais.
— Há um certo debate na comunidade médica sobre a real eficácia do óleo.
O que foi visto é que o tratamento com ele pode normalizar os níveis de ácido
graxos de cadeia muito longa no sangue em alguns casos. Nos pacientes ainda
sem sintomas neurológicos, e com ressonância magnética cerebral normal,
o tratamento com o óleo pode até mesmo prevenir alterações neurológicas
— explica Patrícia Correia, presidente do comitê de genética da Sociedade de
Pediatria do Estado do Rio de Janeiro (Soperj).
Segundo a Secretaria de Saúde do Estado do Rio, a lista de remédios do SUS
é definida por uma comissão permanente de profissionais de saúde e seus
medicamentos são escolhidos a partir das enfermidades prevalecentes na
população local. Como a ADL se trata de uma doença rara e o óleo de Lorenzo é
considerado um produto nutricional, e não um medicamento, ele não consta na
listagem, que é revisada periodicamente.
Juiz da 13ª Vara de Fazenda Pública da Capital, Ricardo Starling, responsável pela
determinação do fornecimento do remédio a Marcos Paulo, afirma ter considerado
três fatores para tomar a sua decisão.
— Primeiro, por ser uma doença rara, entendi que o SUS não teria um sistema
de entrega da fórmula. Em segundo lugar considerei o laudo médico do Hospital
Universitário Antônio Pedro, atestando que a solução é recomendada para o caso.
E, por último, o fato de ser um produto que não vai causar grande onerosidade aos
cofres públicos — afirma Ricardo, que diz conhecer a notoriedade da doença, mas
revela não ter assistido ao filme antes de tomar a sua decisão.
O caso de Marcos Paulo confirma uma tendência que, afirmam
especialistas, tem aumentado no país nos últimos anos: a utilização da Justiça
para garantir o fornecimento de medicamentos a quem precisa. Segundo
Maria Célia Delduque, doutora em saúde pública e coordenadora de Direito
Sanitário pela Fiocruz, estes casos surgem a partir do embate entre o direito
à vida, garantido pela Constituição, e a eficiência do trabalho de políticas
públicas das instâncias sanitárias do país.
— Como os cidadãos têm se informados mais, eles passam a entender que o
direito à saúde é garantido pela Constituição e, com isso, entram na Justiça para ter
acesso a remédios que, ou são muito caros para sua situação financeira, ou não são
exatamente aqueles que estão na lista do SUS. Em geral, essas ações são individuais
e, uma vez comprovada a real necessidade do medicamento, os juízes tendem a
determinar seu fornecimento — afirma Maria Célia.
O problema, explica a coordenadora da Fiocruz, é que o aumento dessas
ações judiciais tem produzido um impacto que pode inviabilizar a sustentabilidade do próprio sistema público de saúde, por conta dos custos adicionais
que são gerados. Dados do Ministério da Saúde apontam que somente em
2011 foram gastos R$ 266 milhões com o atendimento de demandas judiciais
que incluem, em sua maioria, a aquisição de medicamentos, em 12.811 ações
na Justiça Federal — os números não incluem as ações que se limitaram às
esferas estaduais e municipais. Somente os 20 medicamentos mais procurados
judicialmente em 2011 representaram aos cofres públicos o custo de mais de
R$ 189 milhões, para atender 632 pacientes.
De olho neste problema, o Superior Tribunal Federal (STF) convocou, em
abril de 2009, uma audiência pública com representantes do Ministério da
Saúde, da gestão pública, de universidades e da sociedade civil para discutir o
assunto. Nela, foi acordada a criação de fóruns regionais para tentar diminuir o
número de ações judiciais desse tipo, um caminho que Maria Célia acredita ser
o mais adequado para lidar com a questão.
— Ações para o fornecimento de remédios não vão acabar porque o acesso
à Justiça é um direito do cidadão. Mas acredito que podemos melhorar
isso a partir da mediação e atos conciliatórios. Situações como essa devem
ser resolvidas dentro do próprio SUS, porque este é um sistema de política
pública que precisa levar em consideração todos os indíviduos e não apenas
interesses particulares — afirma Maria Célia.
No Rio, um convênio firmado entre o Tribunal de Justiça, defensorias públicas,
procuradorias e secretarias estaduais prevê a criação, até dezembro, de uma câmara
de resolução de conflitos para tentar reduzir o número de demandas judiciais
relacionadas a remédios. Fabrício El-Jaick, coordenador do Núcleo de Fazenda
Pública da Defensoria do Estado, espera que, assim, o cidadão possa ter o acesso
facilitado a um atendimento qualificado e gratuito.
— Esperamos, assim, ter um contato melhor com as secretarias e que possamos
resolver questões como o fornecimento de medicamentos e até acesso a exames
médicos com menos burocracia e mais agilidade. Com isso, o resultado deverá ser
uma queda nas ações judiciais — afirma Fabrício.•
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quando a justiça vira o remédio - SOPERJ Sociedade de Pediatria