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CC 37 – Título: Gênero, Literatura e Cinema
Coordenador: Edward de Alencar Branco
Nos Divinos Salões do Segundo Reinado: uma abordagem histórica da
produção de literária de José de Alencar
Ana Carolina Eiras Coelho Soares
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História/UERJ e bolsista
CAPES.
e-mail para contato: [email protected]
A presente pesquisa busca compreender a relação entre a figura imaginária da mulher
que se apresenta na literatura romântica de José de Alencar, especificamente nos
romances urbanos Lucíola, Diva e Senhora com a discussão de alguns setores
intelectuais a respeito do estabelecimento de uma identidade nacional em meados do
século XIX.
Esta pesquisa aborda o romance a partir de uma perspectiva histórica, contextualizando
sua criação. Assim, pode-se considerar a obra literária como um “testemunho” parcial da
época histórica de sua produção.
Para tal, buscou-se um referencial teórico-
metodológico centrado nas discussões sobre as questões de gênero, o que possibilita a
apreender as ricas e significativas expressões simbólicas expressas nas relações
estabelecidas entre as personagens femininas e masculinas.
Neste trabalho, analiso especificamente o romance Diva, considerado no meio literário um dos
mais “bem-feitos retratos” de um dos espaços de sociabilidade mais significativos da época: os
salões e bailes do Segundo Reinado, cenário principal da obra.
Em 1863, ou seja um ano após a publicação de Lucíola José de Alencar escreve Diva, romance
cuja primeira edição vem a ser publicada no ano seguinte. O ponto de conexão das obras é a
preocupação persistente em delinear perfis femininos e masculinos que transitam pelas ruas e
casas do Rio de Janeiro imperial.
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Com Lúcia fica claro que o lugar da mulher é em casa, e mais que a mulher não deve ousar
buscar independência financeira, sob pena de tornar-se a mais vil das criaturas por violar seu
próprio corpo, relicário da reprodução humana, devendo permanecer sob tutela masculina para
alcançar a felicidade suprema. Além disso, os espaços físicos também estavam revestidos com
conotações morais, e freqüentar teatros, festas, salões e mesmo as ruas do centro da cidade
desacompanhada da figura masculina, significava uma certa degeneração de caráter da mulher,
sendo atitudes apenas tomadas pelas chamadas “mulheres públicas”, conseqüentemente, mulheres
que não consideradas sérias ou dignas de alcançarem os louros da instituição matrimonial. A
lição que aprende-se em Diva pode ser considerada como o “passo seguinte”: não basta que saber
reconhecer o seu lugar no mundo, é preciso agora aprender como agir nele. Emília é uma moça
considerada de “boa família”, correta para ser uma futura boa esposa. No entanto, seu
comportamento é inadequado para uma convivência matrimonial harmoniosa, uma vez que, seu
temperamento forte e suas noções de pudor são apresentados como deturpados e impedem que a
donzela reconheça sua posição de inferioridade natural. É evidente que o amor ao final da trama
resolve estas questões, e de bom grado ela aceita seu destino a felicidade de sua condição.
Dessa forma, pode-se pensar nos romances de Alencar como autênticos “manuais de
comportamento da mulher moderna”.
A trama inicia-se tal como em Lucíola. Paulo, o herói de Lúcia, novamente reporta-se a leitora
para contar-lhe agora a mais recente estória do coração de seu estimado amigo. Faz questão no
início do relaro de se reportar ao seu amor falecido, exaltando-o ao extremo.
Lúcia desenvolvera com tanto vigor em meu coração as potências do
amor, que cercava-me uma como atmosfera amante, uma evaporação do
sentimento que exuberava. Havia em meu coração tal riqueza de afeto que
chegava para distribuir a tudo quanto eu via, e sobejava-me ainda.1
1
José de Alencar, Obras Completas, op. cit., p. 461.
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Assim, sua experiência anterior era uma espécie de “virtude amante” que ensinou a este valoroso
homem a serenidade e o repouso d’alma, imprescindíveis para ser a pessoa certa para contar a
nova aventura amorosa que a leitora estava prestes a ler.
Amaral era um homem jovem, porém sensato e precocemente experiente, conforme fica bem
claro no primeiro capítulo, dedicado a descrição das feições e o comportamento da moça ainda
criança. A primorosa narrativa descritiva de Alencar desvelasse neste pequeno capítulo, pois é no
jogo do contraste da criança “feia e desengonçada” de quatorze anos, com a elegante e
absolutamente deslumbrante “Diva dos Salões”, que o autor constrói a personagem feminina que
possuía tamanho recato, que preferia a morte a ser “devassada” por um homem, mesmo que este
fosse um médico.
Perspicaz sem ser exaustivo, esta parte da trama não passa despercebido pela leitora. Emília é
atacada por uma grave enfermidade, e Amaral sendo médico e amigo da família é chamado para
atende-la. Quando este diz a D. Leocádia, dama de companhia da moça, que é necessário
“auscultar-lhe o peito”, ou seja, era preciso que sua cabeça reclinasse sobre o peito da paciente, a
mulher prontamente lhe esclarece que tal atitude deve ser tomada enquanto Emília dormia, pois
senão ele jamais conseguiria fazer tal exame. A comprovação disto ocorre na cena subseqüente
em que a moça acorda e reúne suas forças para acusa-lo de “Atrevido”, com um ódio profundo
nos olhos. É exatamente o diálogo que se sucede entre Sr. Duarte, irmão de Emília, e Amaral que
deixa evidente uma das “mensagens” políticas de José de Alencar através de seus romances.
-
Não se aflija, Sr. Duarte. Eu compreendi logo a razão do que se
passou. Sua filha não estava prevenida... acordou sobressaltada...
-
É verdade!
-
Demais, eu sou para ela quase um estranho. Havia, portanto
motivos de sobra para o seu vexame. O recato é tão bela virtude para uma
menina!
-
2
Id. Ibid, p. 467.
Mas em minha filha é em tal excesso, que já me parece vício.2
4
Leia-se: é importante que diferenciar os limites entre bom comportamento e estupidez arraigada
em antigos modelos de atitudes. A figura do médico moderno é tida dentro de um valor
“dessexualizado”, e a mulher moderna reconhece o valor de seu trabalho em prol da saúde da
paciente. O vício a que se refere o pai da garota é justamente a persistência em valores coloniais
em que o recato significava total distância do sexo oposto. Assim, o médico passa a ser e a ter
uma grande influência e poder no seio da família moderna. Desta forma, Diva é uma espécie de
estória ilustrativa do ápice que poderia alcançar esta “medicalização” na sociedade brasileira ao
ponto de ser este o único homem capaz de “curar” os mimos e querelas causados pelo
temperamento voluntarioso e explosivo de Emília.
O romance urbano captou vivamente esta realidade social da grande,
média e pequena “burguesia” brasileira agitando-se, continuamente, no
clima mundano das festas privadas. (...) Em Diva, de Alencar, Emília, a
heroína adolescente, tiraniza a casa burguesa com seu mau-humor, sua
impertinência, e seus “ataques de nervos”. Os pais, impotentes, terminam
apelando para o médico, novo herói disciplinador dos costumes e único
capaz de solucionar a crise doméstica.3
A higienização das famílias, como o Jurandir mostra neste livro citado, foi imprescindível para
reorganizar a antiga estrutura colonial, adaptando os indivíduos às
regras da urbanização
moderna, que necessitava o reconhecimento dos cidadãos aos seus lugares sociais neste novo
espaço. Desta maneira, cada membro familiar deveria exercer uma função dentro da convivência
íntima e pública para que a modernização pudesse consolidar-se efetivamente.
O Brasil independente e moderno dependia portanto, do reconhecimento e da atuação dos
cidadãos dentro dos padrões estabelecidos desta nova estruturação de organização do poder do
Estado. E o romance era um veículo poderoso de disciplinarização. As idéias de modernidade que
vemos nos discursos políticos alencarianos estão assim interligadas a estas “mensagens”
evidentes em seus romances. O que aparentemente é apenas uma estória, um romance, torna-se
3
Jurandir Freire Costa, op. cit., p. 109.
5
então uma arma potente e aliada aos interesses políticos do processo de construção da nação, uma
vez que a “civilização da boa sociedade” foi uma das preocupações centrais do emergente Estado
Nacional4.
Mas voltemos ao romance. Emília, mesmo contrariada em sua vontade, é tratado pelo deferente
Amaral. Ao final do tratamento, suas atitude altiva de não querer receber o pagamento pelos seus
serviços é justificada pelo médico sentir-se como um “pai” angustiado cuidando de seu filho mais
querido. Com esta afirmação, que o coloca como um membro íntimo da família, percebe-se a
tentativa de naturalizar a importância deste profissional nesta nova configuração social. Para não
ofender o pai de Emília, firma-se um contrato de cavalheiros, em que Amaral promete se algum
dia vir-se em dificuldades financeiras procuraria de imediato o Sr. Duarte, pai da moça outrora
adoentada. E assim, Amaral parte para Europa. E que outro destino poderia ter um homem
daquela época que buscasse se aperfeiçoar em qualquer profissão! Na primeira página do
romance, quando Paulo, personagem de Lucíola, fala de Amaral pela primeira vez como um
“médico amigo seu”, já é claro que este é o “caminho natural” de todos que os jovens formados
em medicina no Brasil,
(...) ele ia a Paris fazer na capital da Europa, que é também o primeiro
hospital do mundo, o estádio obrigatório dos jovens médicos brasileiros.5
À volta do Doutor e a primeira visita feita a Emília, que agora com dezessete anos, possuía as
características de beleza tão próprias para ser considerada uma “Diva”, mereceram um capítulo
próprio. Isto pois Alencar sempre manteve em suas obras o gosto pela descrição minuciosa das
cenas e principalmente de seus personagens, com especial atenção às mulheres. Enquanto as
características dos homens são mais um exemplo de sua personalidade a partir de funções
práticas exercidas na vida, como por exemplo, o pai de Emília descrito como tendo “uma
natureza essencialmente mercantil, “predestinado ao negócio”, ou ainda “uma boa alma,
metódica e fria, como deve ser uma alma aclimatada ao balcão desde a infância”, as mulheres
4
Sobre este assunto ver: Ilmar R. de Mattos, O Tempo Saquarema. São Paulo: Hucitec, 1987 e Jurandir Freire Costa,
op. cit..
5
José de Alencar, op. cit., p. 461.
6
ganham um colorido mais minucioso. Cada personagem feminino é observado em seus trajes,
posturas e atitudes que compõem um quadro extremamente detalhado e rico sobre a
personalidade destas figuras. Assim, interessante é o fato de que a primeira característica
ressaltada sobre Emília seja o ato dela estar lendo um livro quando Amaral a reencontra. Assim
como Lúcia, a leitura a absorvia completamente, mas diferente desta que esconde o livro ao ser
flagrada por ser uma leitura imprópria, ao se tratar de um romance sobre uma prostituta, Emília
não busca esconder seu hábito de leitura. Não há neste exemplo de mulher atitudes viciosas ou
reprováveis, apenas um defeito fruto do orgulho deve ser burilhado e remediado: esta heroína
deve aprender a obedecer ao seu coração e a subjugar-se ao homem que ela deseja como marido,
sob pena de perde-lo e passar o resto da vida infeliz. Sua tez de pétalas de magnólia, seus
contornos graciosos e sua altivez de rainha, deslumbram Amaral, mas este se sente tão
incomodado com as palavras rudes e o comportamento pouco convencional da mulher, que o
encanto da mesma de nada valem para manter o interesse do rapaz. Adiantando a ordem da
estória, pode-se afirmar que é apenas quando a moça decide desculpar-se pelas suas ofensas,
literalmente arrastando-se de joelhos pelo chão, que o homem benevolente, culto e agora com
total controle do relacionamento aceita Emília como sua mulher. O desenvolvimento deste
romance mostra, através dos bailes e dos salões, a modificação de comportamento que uma
“Diva” deve por bem de sua felicidade operar, para conseguir ter ao lado um digno e culto como
esposo. Ou melhor como descreve a própria personagem na carta que envia ao seu amado,
declarando todo seu sentimento
Sei que existo, porque te amo. Naquele momento, de joelhos a teus pés,
essa grande luz encheu meu coração. (...) A minha vida terminou; começo
agora a viver em ti.6
A preocupação com a descrição também pode ser observada em relação a cidade do Rio de
Janeiro. O local dos bailes em que Amaral e Emília desenvolvem seu relacionamento situa-se na
casa de Matilde, tia de Emília, na região de Mata-Cavalos, posicionada na parte central da cidade.
Já a casa do Sr. Duarte situa-se dentro de sua chácara, nos chamados arrabaldes do centro,
6
Id. Ibid., p. 557.
7
construída nos “amenos vales do Catumbi e Rio Comprido”, chegando próximo de Santa Teresa,
(quem sabe até perto da casa comprada por Lúcia quando decidiu deixar suas atividade no
comércio do prazer?). É neste local, que em Lucíola já fica claro que é uma região respeitável,
que Amaral decide comprar um pequeno terreno, e que por algumas vezes Emília vai visitá-lo por
ser vizinho a sua casa. E nestas visitas e nos bailes esta personagem acaba percebendo que sua
“teima infantil”, como o autor a descreve, em se comportar de forma autêntica dizendo e agindo
como lhe parece certo, e não como os adultos procuram instruí-la, acabarão por transformar sua
vida em um infortúnio certo.
A ligação entre os locais vividos e freqüentados por esta mulher excessivamente pudica e
inocente, é bastante evidente. Sua casa fica em um lugar “respeitável” assim como é também
considerada sua família. O salão que a moça freqüenta, onde aprende os traquejos da vida social é
de sua Tia Matilde, estando portanto dentro do âmbito e da observância familiar. E a mesma só
visita Amaral desacompanhada, por este ser vizinho de sua residência. Há de certa forma, na
circulação da personagem uma ligação com seu comportamento. Em instante algum, Emília
permite-se agir fora do que é considerado o chamado decoro social. Satisfazia suas vontades, por
certo, pois é uma mulher ainda criança minada e voluntariosa, mas sabia os limites do pudor e da
castidade. O tempo inteiro estas características são ressaltadas ao se tratar de Emília. Restava
apenas a este encanto de perfeição feminina, o entalhe do acabamento que a submissão do amor
seria certamente o agente ideal. Quando Amaral passa a morar vizinho à casa de Emília a moça
passa a procura-lo para passearem e conversarem, sendo esta aproximação que estrita os laços
amorosos do casal. No entanto, Alencar não deixa de alertar as suas leitoras que o passeio entre
uma mulher decente e um homem, sem que esta esteja acompanhada de uma criada ou uma
parente, é inapropriado7. Esta aparente contradição do enredo é justificada pela descrição da
moça, que tinha um aparência tão “naturalmente” pudica que qualquer pensamento impuro em
relação a mesma seria certamente um pecado. Há uma passagem no romance bastante ilustrativa
7
Basta lembrar que no romance Lucíola uma das formas de reconhecimento da profissão de prostituta exercida pela
heroína é quando Paulo recorda-se que a mesma passeava pelas ruas do Centro da cidade desacompanhada quando a
encontrou pela primeira vez.
A título de ilustração desta situação, a própria expressão “ser o cabeça da mulher”, muito utilizada em inventários da
época, (pesquisa realizada no Arquivo Nacional), ilustra bem a relação extremamente limitada que a mulher de
níveis sociais mais elevados tinha com o âmbito público da sociedade. Nesta mesma documentação, pude observar
que uma mulher só se assumia como inventariante, após declarar não ter nenhum parente masculino e nenhuma
condição financeira de pagar um advogado para realizar este papel para a mesma.
8
sobre como Alencar busca trabalhar estas questões do comportamento intrínseco a mulher
decente
Havia na sua beleza um matiz de castidade, que a resguardava melhor do
que um severo recato. (...) Não era preciso que Emília dissesse uma
palavra ou fizesse um gesto para recalcar no íntimo o pensamento ousado
que mal despontara. Uma dor íntima acusava-me de a ter ofendido, antes
que eu tivesse a consciência disso.8
A moça inclusive preferia cair e machucar-se a ser auxiliada pelo rapaz, pois a ajuda lhe custaria
ser tocada, o que ela considerava uma ofensa a sua castidade. Contraditória como toda menina
mimada que se arrisca para realizar seus desejos, Amaral encanta-se com tanta pureza. Mas
Alencar não deixa de lembrar em meio a todo este embevecimento que o comportamento era
inadequado, sendo tolerado apenas por ela ser um exemplo perfeito de pureza.
Que estranha e bizarra criatura, Paulo! Com que desdém ela, frágil
menina de dezessete anos, pura como um anjo, calcava aos pés todas as
considerações sociais, todos os prejuízos do mundo! Ela dava-me a maior
prova de confiança, e o fazia de forma singela e natural, apenas com uma
dignidade meiga de rainha compassiva. Arriscava por mim sua reputação,
e nem o mais leve receio lhe perpassava na fronte serena.9
É esta contradição que dava-lhe um ar tão angelical e majestoso nos salões que foi merecedor do
apelido de Diva. E era desta forma serena que a jovem comportava-se nestas reuniões. Alencar ao
falar destas festas nos salões, concentrasse nos diálogos entre os personagens principais,
priorizando a trama. Mas não deixa passar despercebido a função que estas festas exerciam na
sociedade, sendo um ponto de encontro de pessoas e de troca de informações e novidades. Ao
8
9
José de Alencar, op. cit, p. 516.
Id. Ibid., p. 518.
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descrever a roupa das senhoras, e ao recriar alguns diálogos entre elas pode-se reparar na
importância crescente dos artigos de moda, e no apresso que as mulheres passam a ter por estes
produtos agregando-lhes um valor que assegurariam às mulheres uma maior beleza, e portanto
uma melhor capacidade de seduzir um homem para realizar o grande objetivo de toda fêmea, qual
seja: o casamento e a constituição de uma família. E Emília, com seus vestidos deslumbrantes e
acessórios impecáveis não era um exceção a esta regra, apesar da moça declarar não querer nem
preocupa-se com este objetivo tamanho era o seu recato e pudor. O que o autor quer ressaltar ao
fazer esta comparação da moça com as demais que freqüentam as festas dos salões é que este
espaço embora importante para fins de encontro e estabelecimento de relações amorosas entre
casais, não deveria ser visto pelas mulheres como um lugar de “caça-maridos”. O encanto
despertado pela Diva dos salões está justamente na combinação da beleza da mulher moderna,
ornada com a última moda, e este desinteresse genuíno da moça. Os homens a cortejam com
fervor, e ela não se esquiva desta atenções, mas mantêm-se honestamente a uma distância segura
que preserve sua reputação. Consquistá-la é um desafio, pois ela é oura mesmo em suas intenções
de brilhar nos salões. A mulher não deveria portanto, encarar o amor como um negócio, e a si
mesma como parte de um acordo, pois o verdadeiro amor entre um homem e uma mulher deve
surgir, ou melhor despertar, de maneira desinteressada e assim autêntica. Como no diálogo entre
Emília e Amaral, em que ela confessa ao rapaz desesperado por achar que jamais conseguiria
corteja-la tão habilmente quanto alguns de seus rivais, que seus sentimentos por ele nada tem a
ver com o tratamento dos salões mas pela gratidão por ele ter tratado de sua enfermidade,
cuidando dela com tanto carinho e tanta atenção.
Emília dança, ri, conversa e transita pelos salões graciosamente, mas novamente a heroína não é
feliz. Porque não é completa. Falta-lhe um homem, um marido que dê sentido a sua existência,
que preencha seu coração feminino naturalmente sedento de amor. E no embate entre os desejos
da moça, e a virilidade do rapaz, percebe-se que para que esta seja plena deverá curvar-se ao
homem, não lhe respondendo mais de forma ríspida ou contrariando suas vontades, por força de
perder a oportunidade de ser a esposa de Amaral, mais um herói redentor de José de Alencar.
Wanderley Pinho, no seu famoso livro Salões e Damas do Segundo Reinado, faz\ alusão a este
romance afirmando que o mesmo seria uma espécie de vingança literária pelo escritor ter sido
preterido por uma dama que conhecera no salão de Nabuco que Alencar freqüentava no Rio de
10
Janeiro. Dona Francisca Calmon Nogueira Vale da Gama, teria preferido casar-se com um outro
pretendente, um o nobre futuro terceiro Conde de Penamacor, e Alencar de coração partido teria
escrito Diva de forma a “punir”, pelo menos em ficção, sua amada que o havia abandonado10.
Não é de todo improvável que Alencar tenha impregnado seu romance do ressentimento de
abandono, no entanto a grande preocupação do escritor estava em “educar” suas leitoras para
transitar nestes novos espaços que surgiam no país. Se sua experiência pessoal contribuiu para
perceber que as damas utilizavam os salões como uma forma de “atrair maridos”, perdendo assim
o encanto da inocência e da decência, tanto melhor para o enriquecimento elaboração da trama.
Mas a preocupação do autor era instruir as melhores atitudes a serem adotadas pelos brasileiros,
qual seja a de saber assimilar as importações de costumes, traduzindo-os e adaptando-os aos
modos brasileiros, como deixa expresso Alencar em seu pós-escrito.
O autor deste volume e do que precedeu com o título de Lucíola sente a
necessidade de confessar um pecado seu: gosta do progresso em tudo, até
mesmo na língua que fala. (...) A língua é a nacionalidade do pensamento
como a pátria é a nacionalidade do povo. (...) Não é obrigando-a a
estacionar que hão de manter e polir as qualidades que porventura ornem
uma língua qualquer; mas sim fazendo que acompanhe o progresso das
idéias e se molde às novas tendências do espírito, sem contudo perverter a
sua índole e abastardar-se.11
Esta mesma mensagem está expressa no romance. A mulher deve adaptar-se as novas modas,
mas não deve perverter suas ações e a pura inata ao seu coração, ao aumentar o convívio social
através das redes de sociabilidade que os novos padrões europeus dos “salões” possibilitavam as
mesmas.
10
Ver Wanderley Pinho, Salões e Damas do Segundo Reinado, o capítulo intitulado “O Salão de Nabuco – um
namoro de José de Alencar”.
11
Id. Ibid., p. 559.
11
Assim, seus romances tomam ares de escritos exemplares. E novamente é o amor romântico o
agente primordial que guiará o homem e a mulher modernos no caminho do progresso, do
casamento e da felicidade plena. Ao término de Diva, a leitora percebe que não basta ser recatada
e saber transitar pelos salões do Segundo Reinhado, ela deve ser uma mistura exata entre pureza,
recato, e obediência ao homem que por ventura invada e conquiste seu coração. Amaral, o herói
sabe certamente o que é melhor para sua amada Emília, assim como o homem moderno e
civilizado saberá dar o melhor de si para a sociedade, sua família e sua esposa. Em Lucíola fica
claro os riscos do vício do prazer impuro e das transgressões às convenções sociais, onde apenas
o amor puro e ilibado é capaz de proporcionar a salvação, que infelizmente só pode ser alcançada
com a morte da heroína . Em Diva aprende-se que o amor tem regras, sociais e naturais, e deve-se
respeita-las para preservar a reputação feminina e principalmente, para que a mesma alcance o
posto mais elevado que uma mulher pode desejar socialmente: ser esposa de um cidadão
brasileiro honesto moderno.
Ao analisar o romance a partir de uma abordagem histórica, pode-se encontrar uma maior
compreensão, portanto, da escrita literária dentro de um papel político e ideológico na sociedade.
Definidora e modeladora de papéis, identidades e comportamentos, esta nova possibilidade de
análise crítica da produção literária, como um texto que pode ser encarado como material de
produção histórica do homem de seu tempo, amplia imensamente, a meu ver, o campo de
reflexões acadêmicas sobre a História e a Literatura Nacional.
12
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
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ROCHA, João Cezar de Castro. Literatura e Cordialidade. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1998.
HISTÓRIA E LITERATURA. MITO E CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADE –
A MULHER NA OBRA DE JORGE AMADO.
13
SANTOS, Elisângela Sales
O fato da escrita da História ter-se concentrado por muito tempo, quase que
exclusivamente, em mãos de homens que privilegiavam as fontes administrativas, diplomáticas,
políticas, econômicas e militares(lugares negados às mulheres) fizeram com que elas pouco
aparecessem nesta História. Só com as novas propostas teórico-metodológicas introduzidas na
historiografia pela Escola dos Annales, principalmente a partir dos anos 70, como resultado da
intensificação do movimento feminista é que a mulher foi elevada à categoria de sujeito/objeto da
História, desenvolvendo vários campos temáticos para rastrear sua participação na construção do
processo histórico.
A história das mentalidades e a história cultural reforçam os avanços nas abordagens do
feminino, apoiando-se na interdisciplinaridade como forma de obter uma visão mais completa do
objeto, além de serem utilizadas para preencher as lacunas deixadas pela falta das fontes. Assim,
literatura, lingüistica, psicanálise e antropologia são chamadas com o intuito de apreender as
várias dimensões do objeto.
As diversas possibilidades abertas pela historiografia da segunda metade do século XX1
nos permite lançar mão de uma gama maior de temas e fontes, formas de interpretação e
perspectivas para análise de objetos eleitos para estudo. Estes objetos viram-se deslocados dos
seus cenários “oficializados”(economia e política) para campos dantes não explorados, como:
vida privada, história de gênero, de etnia, da sexualidade, entre outros. Recentes e controvertidas
são também as discussões mais sistematizadas sobre a literatura, enquanto fonte para construção
de um discurso histórico social – verossímil.
A literatura tem se mostrado um campo privilegiado para o estudo das construções
mentais sobre a sociedade em determinado momento histórico. O estudo de como Jorge Amado,
e, consequentemente, como a sociedade baiana, criou as duas personagens eleitas para análise:
Gabriela e Dona Flor, criando também uma concepção de mulher, é o que se pretende com este
trabalho.2
PRESSUPOSTOS TEÓRICO METODOLÓGICO
14
O descrédito nos modelos explicativos gerais da realidade abre caminhos para uma
reavaliação de alguns conceitos caros à história. As fontes(sua matéria-prima) não são mais vistas
como a expressão da verdade, são antes indiciarias, uma representação do acontecido. A própria
busca pela verdade foi abdicada e a idéia de verossimilhança: “de um possível passado
efetuado”(LEENHARDT & PESAVENTO, 1998, p. 12),
parece mais condizente com os
pressupostos teóricos da atualidade.
A passeidade ou o “real” acontecido, distingue-se da narrativa histórica: “ o discurso ou
texto elaborado pelo historiador sobre aquela passeidade”(IBIDEM, p, 10) ao tempo que se
assemelha com a narrativa literária, a qual também é uma recriação do real, porém com algumas
diferenças nos métodos. Enquanto a primeira visa construir conhecimento científico e por isso o
rigor no trato com as fontes é acentuado, a outra tem também como ponto de partida um conjunto
de informações, no entanto, seu compromisso com elas é mais leve e a liberdade criadora muito
maior. Todavia, ambas são medidas pelo critério da representação, ambas “têm o caráter de
anunciar, pôr-se no lugar de, estabelecendo uma semelhança que permita a identificação e
reconhecimento do representante com o representado”(PESAVENTO, 1998, p. 19). Em outras
palavras, para obter o reconhecimento, a aceitação do público é necessário tanto para o discurso
histórico quanto para o literário(com divergências no grau e na forma) que este possua um
sentido que permita ao leitor uma identificação.
Na realização deste trabalho, além da observância destas reflexões, um aspecto particular
nos interessa. As duas disciplinas
visam obter comportamento e formas de pensar desejados, fornecendo uma
exemplaridade e jogando com as estratégias da convicção, da verossimilhança, da
credibilidade e da autoridade da fala. Nesse sentido, literatura e história contribuem para
atribuição de uma identidade, social e individual, provocando modelos de
comportamento.(LEENHARDT & PESAVENTO, 1998, p. 14).
Perceber como as obras de Jorge Amado contribuíram na atribuição de uma identidade
feminina, assim como, provocaram modelos de comportamentos é uma das tarefas cruciais
colocadas neste trabalhos, que possivelmente não serão respondidas aqui, no entanto algumas
hipóteses serão levantadas com intuito de ir ao encontro das respostas.
15
Outra possibilidade utilizada foi a análise semântica do personagem(ou melhor das
personagens) nos critérios estabelecidos por Laurence Bardin e discutidos por Ciro Flamarion
Cardoso, estabelecendo as características e os atributos conferido as mulheres nos romances
selecionados(traços físicos, morais e de caráter, papel, posição social, etc.).
Devido a filiação político e literária de Jorge Amado em boa parte de sua carreira o texto
amadiano nos oferece algumas características que dificultam a identificação das barreiras que
separam o real da ficção. A prosa regionalista traz consigo um neo-realismo e um neonaturalismo que pretendia denunciar a “realidade” do abandono do nordeste às mazelas da seca e
o realismo socialista objetivava “a reprodução fiel da vida em seu desenvolvimento
revolucionário”(LUCAS, 1997,p.104).
Existem ainda escritores, como acreditamos ser o
caso de Jorge Amado, que utilizam-se de mecanismos capazes de produzir deliberadamente uma
impressão de real, complicando ainda mais a análise de suas narrativas, confundindo seus
leitores.
Maria Tereza de Freitas ao analisar os romances, sobre a Revolução Chinesa de
André Malraux consegue identificar alguns destes mecanismos, são eles: o uso de datação
precisa; citação de locais com existência concreta; citação de documentos e de fragmentos de
realidade.
A conclusão chegada por Maria Tereza de Freitas é que o emprego destes mecanismos
imprime ao texto um caráter documental. As pessoas tendem a acreditar mais, a dar maior
credibilidade a textos datados, demonstram também a intenção do autor em produzir efeito de
real, bem como a citação de documentos atribui ao narrador o papel do historiador que sempre
procura provar a veracidade do que diz.
Para tentar elucidar a relação entre realidade e metáfora na obra amadiana, cabe aceitar o
conselho de Chalhoub e recorrer ao interrogatório de como o autor representa para si mesmo a
relação entre aquilo que diz e o real. Em resposta ao questionamento de Lília Moritz Shwarcz
sobre : De que maneira realidade e ficção, cotidiano e metáfora convivem em seu projeto
artístico, Jorge Amado responde que:
Convivem sempre, não é? Uma coisa nunca está separada da outra. Elas se encontram,
se desenvolvem juntas e assim seguem em frente. Nesse sentido, eu não acredito na
idéia de uma ficção pura.3
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Evidenciando sua percepção das frágeis ou inexistentes barreiras que as separam em sua
obra, ambas se misturam no intuito de elaborar uma nova síntese.
Enquadradas na categoria da recriação/representação do real as narrativas históricas e
literárias constróem
uma reordenação da realidade conferindo a esta um sentido, que
(principalmente a literatura), pautada numa releitura sensibilizada povoada de elementos
simbólicos, estabelece com o leitor laços de impatia e identificação facilitando a obtenção de
comportamentos e formas de pensar desejados contribuindo para a atribuição de uma identidade
para determinada sociedade ou segmento social.
Uma identidade é definida sempre em relação a um “nós” que se diferencia dos “outros”,
criando um padrão de referência identitária que fixa estereótipos e constróem estigmas
determinando papéis e pautando procedimentos. Em casos especiais, este padrão identitário
criado transcende de tal forma, que apropriando-se das angústias, pulsões e aspirações
subconscientes individuais ou de uma coletividade institui um mito.
Isto é o que se acredita ter ocorrido com a mulher baiana nas obras de Jorge Amado. Ao
longo de seus trabalhos e de maneira mais sistematizada nos dois romances em questão(Gabriela
e Dona Flor) há uma enumeração e ordenação de características comportamentais quase sempre
recorrentes) atribuídas ao sexo feminino que se apresenta como sendo específica à Bahia.
O crítico literário Massaud Moisés, afirma que: o que se sabe hoje da Bahia, e
provavelmente o que se saberá no futuro, é nas suas obras que aprendemos, visto que este autor
ao longo de seus mais de setenta anos de carreira atraiu para si a atribuição de escritor popular e
de profundo conhecedor das coisas da Bahia. Assim, seus discursos medidos pelos leitores por
critérios de credibilidade e autoridade da fala funciona como uma representação do real bastante
verossímil e como tal possuidora(para quem lê) de profunda intimidade com a realidade
representada.
Desta forma, se não é Jorge Amado o criador de um padrão de identificação da mulher
baiana como sexualmente irresistível e insaciável, possuidora de um “cheiro e sabor” próprio;
dengosas e portadoras de um carisma e calor sem igual4; entre outras coisas, ele é, pelo menos, o
principal responsável pela socialização desta memória.
17
GABRIELA E DONA FLOR EM DEBATE
Jorge Amado afirma que o romance Gabriela cravo e canela nos conta a história do amor
entre Gabriela e seu Nacib, mas, será que foi mesmo a história destes dois personagens o tema
central deste livro?
Ao referir-se a esta obra a historiadora Maria de Lourdes Mônaco Janotti diz: “No
romance de Jorge Amado, Gabriela, cravo e canela, a ação principal enfatiza as rivalidades entre
o coronel Ramiro Bastos e o exportador de cacau, Mundinho Falcão.”(JANOTTI, 1992, p. 69).
Concorda-se em parte com esta afirmativa. A ação principal realmente enfatiza as
rivalidades entre o coronel Ramiro Bastos e o exportador Mundinho Falcão, mas não é uma
rivalidade qualquer. É uma briga do “velho” contra o “novo”. Do atraso contra o progresso.
Este romance está dividido em quatro capítulos, mais um prefácio e um post-scriptum.
Cada capítulo é aberto com uma epígrafe, organizando-se da seguinte maneira:
Capítulo primeiro – Título: O langor de Ofenísia.
Epígrafe: Neste ano de impetuoso progresso5( de um jornal de Ilhéus, em 1925).
Capítulo segundo – Título: A solidão de Glória.
Epígrafe: Atrasados e ignorantes, incapazes de compreender os tempos novos, o
progresso, a civilização, esse homens já não podem governar...(de um artigo do Doutor no Diário
de Ilhéus).
Capítulo terceiro – Título: O segredo de Malvina.
Epígrafe: A moral se enfraquece, os costumes degeneram, aventureiros vindos de
fora...(de um discurso do Dr. Maurício Caires).
Capítulo quarto – Título: O luar de Gabriela.
Epígrafe: Transformaram-se não apenas a cidade, o porto, as vilas e povoados.
Modificaram-se também os costumes, evoluíram os homens...( da acusação do Dr. Ezequiel
Prado, no Júri do Coronel Jesuíno Mendonça).
Curiosamente cada capítulo é aberto fazendo referência a uma personagem feminina,
contudo, elas pouco aparecem nestes capítulos(com exceção de Gabriela), e mesmo Gabriela para
quem titula o livro sua presença não é destacada. Ela só aparece no romance a partir da página
113, o que significa dizer que em quase um terço do livro(a 83 edição aqui trabalhada possui 363
páginas) ela sequer existe enquanto personagem.
18
Defende-se que a ação principal do romance está contida nas epígrafes e não no título.
Estas epígrafes tematizam o vertiginoso progresso porque passava Ilhéus naquele período. Disto
trata o romance do prefácio ao post-scriptum, a todo o tempo o autor ressalta o quanto a cidade e
as pessoas estavam mudando. O embate entre Mundinho Falcão e o coronel Ramiro Bastos é
exemplar nesse sentido. É o embate entre o velho sistema coronelístico e as novas “exigências do
capitalismo internacional”(JANOTTI, 1992, p. 83), mesmo a importância atribuída pelo autor ao
amor de Gabriela e Nacib quando este rompe com a lei de Ilhéus6 e não mata a esposa liga-se as
mudanças ocorridas: “Acho que você fez muito bem, matar por ciúmes é uma barbaridade. Só
mesmo em ilhéus isso ainda acontece. Ou entre gente muito pouco civilizada.” (AMADO,
Gabriela...,2000, p. 315).
Indo um pouco mais longe diríamos que seu Nacib não rompe com a lei de Ilhéus, muito
pelo contrário, ele a cumpre a risca. Ao encontrar a solução de anular o casamento de Gabriela e
seu Nacib após este a pegar na cama com outro, João Fulgêncio coloca a questão da seguinte
maneira: “Pois fique sabendo que você não tem nenhum motivo para ir embora, Gabriela, perante
a lei, nunca passou de sua rapariga”(Ibidem, p. 315). E sendo assim, algumas pancadas bastavam
pela lei de Ilhéus para limpar sua honra.
O que realmente rompe com a dura lei de Ilhéus é o resultado do julgamento do coronel
Jesuíno Mendonça. Foi um julgamento longo. O advogado de defesa do coronel faz seu discurso
citando a Bíblia e enfatizando moral e devassidão. O tema da acusação foi a civilização e o
progresso. Ganhou o segundo, e “Pela primeira vez, na história de Ilhéus, um coronel do cacau
viu-se condenado à prisão por haver assassinado esposa adúltera e seu amante.”(ibidem, 2000, p.
363).
***
Durante a narrativa de Dona Flor e seus dois maridos, três tendências são percebidas. A
acentuação do metodismo do dr. Teodoro, segundo marido de Flor, é utilizado para contrastar
com a espontaneidade do personagem Vadinho, o primeiro marido. Narrador e personagens
procuram sempre justificar e desculpar as atitudes de Vadinho, e há um ressaltamento da
incapacidade de Dona Flor em viver sem seu primeiro marido.
O personagem Teodoro Madureira é construído em flagrante oposição ao personagem
Vadinho. Enquanto este era alegre, brincalhão, sempre a sorrir, jogador inveterado, brincando
19
sempre com a sorte, possuidor de um carisma e lábia capaz de enganar qualquer um, de vida
desregrada, maltratando dona Flor, o outro era sitemático, metódico, inimigo do improviso e de
surpresas, direito, bom, de fina educação, equilibrado, ordeiro, tratando a esposa muito bem,
oferecendo-lhe segurança.
Por mais que dona Flor se policiasse dava sempre uma escorregadela e acabava
comparando seus dois maridos. Quando ela não o faz o narrador se encarrega de fazer. Seja
dizendo que o segundo casamento teve tudo que o primeiro não teve ou enfatizando a forma
excessivamente comedida do comportamento sexual de um, em contraposição ao vigor
desmedido do outro.
A vida de casada de dona Flor com Teodoro é feliz, mas monótona, nada acontece,
sempre a mesma vidinha sem novidade”, isto dito pela própria Flor. Com Vadinho não, a vida era
agitada colorida, ela nunca sabia o que iria acontecer no dia seguinte. A vida sexual não conhecia
regras, métodos, era sempre intensa, a qualquer dia ou hora.
A tendência de desculpar Vadinho é perceptível em várias passagens do texto. Durante a
viuvez quando todos os seus parentes, amigos e vizinhos diziam ter sido melhor assim, ela se
irritava, porque ninguém
defendia o falecido só lembrando do seu lado ruim. Uma das
personagens do romance, dona Gisa, com suas fumaças de psicologia, definia-o como um
excepcional, alguém que não cabia nas medidas habituais nem se podia prender nos limites de um
cotidiano medíocre e monótono, cabia a dona Flor aceitar e entendê-lo. As repetidas infidelidades
conjugais de seu primeiro esposo não foram rememoradas como traições e sim como prova de
que ele sempre a preferia, pois sempre voltava para ela. Mesmo quando em um de seus arroubos
violentos ele a espancara para tirar-lhe dinheiro para jogar ela consegue perdoá-lo. “ Como dizer
torvo destino para quem era assim alegre jogador, a sorrir na sorte e no azar, cheio de alegria de
viver?” (AMADO, Dona Flor...,2000, p. 113), (palavras do narrador).
Isto tudo aliado a repetição de que sem ele não poderia nem saberia viver. A presença de
Vadinho seria o perfume e a graça de sua vida, um compensador da monotonia. Se este romance
propõe-se contar a vida de dona Flor, e se ele é a graça e o perfume de sua existência, logo é a
graça e o perfume da história narrada no romance. O que queremos dizer com isso é que o
personagem Vadinho é o epicentro da narrativa. Ele pratica as ações, dona Flor apenas(com
poucas exceções) as sofre. Ou para dizê-lo nas palavras do autor “Vadinho é personagem
importante, herói situado em primeiro plano.”(Ibidem, 2000, p. 24).
20
O ENCONTRO ENTRE GABRIELA E DONA FLOR.
Nestes dois romances, se questionamos o fato de as personagens que os titulam serem ou
não suas personagens principais, não poderemos nos furtar em dizer que quando estas aparecem,
suas caracterizações físicas e psicológicas fazem com que elas quase saltem das páginas. Ambas
são alegres, bonitas, sensuais, dengosas, seus andares de requebro hipnotizam os homens.
Gabriela é descrita ora como morena, ora como mulata, boca de pitanga, riso sem motivo,
cabelos longos encaracolados, cheiro de cravo, gosto de canela. Dela dizem: “Nunca vi morena
tão bonita”(AMADO,Gabriela..., 2000, p. 132) ou “Quando ela ri, seu Tonico, até tonteia a
gente”(Ibibem, p. 133).
Dona Flor era bonita, agradável de se ver. Pequena e rechonchuda , de uma gordura sem
banhas, a cor bronzeada de cabo verde, os liso cabelos tão negros a ponto de parecerem azulados,
olhos de requebro e os lábios grossos um tanto quanto aberto sobre os dentes alvos. Apetitosa,
seios rijos, bunda formosa. Mesmo sendo uma respeitosa senhora casada, não escapa aos
comentários de admiração : “de regresso à sala dos homens, o portenho Bernabó, com sua
fraqueza um tanto incivil, comentou a elegância de dona Flor, cujo vestido matava de inveja
todas as mulheres presentes(...) Dona Flor hoje está abusando...”(AMADO, Dona Flor...,2000,
p.342)
Noutro aspecto as duas personagens também se encontram: a passividade em relação ao
homem amado. Gabriela cedia sempre para não magoar seu Nacib, fazia tudo para não ofendê-lo.
Ele estava sempre certo, ela é que era ruim. Mesmo toda roxa pela surra tomada após seu marido
a descobrir com outro, ela insistia que a culpa era sua. Seu Nacib era moço bom, dera-lhe apenas
uma surra.
Com dona Flor não é diferente, a relação de inferioridade e submissão é perceptível com
os dois maridos. A Vadinho não conseguia resistir, não era senhora de sua vontade. Aceitava até
gritos, violência e vilania como hábitos. Era sua sina gostava dele não poderia fazer nada, sem ele
não saberia, nem poderia viver. Sem seu marido e dono não valeria a pena viver. A relação com o
segundo marido Teodoro Madureira, apesar de oposta, neste aspecto se assemelhava. Flor vivia
afirmando que não o merecia, que ele era bom demais e ela ruim não sabia valorizá-lo. Teodoro
com seu jeito metódico, muda seus hábitos, interfere na arrumação de sua casa, de sua escola,
21
decide por ela guardar no banco o dinheiro dela que ficava sob o colchão, mesmo não gostando
da idéia, aceitava pois cabia a esposa moldar-se à forma do marido. Em suas divagações Flor
acreditava não ter trazido ou acrescentado nada ao segundo marido. “Sou tão pequena para tua
altura, Teodoro.”(Ibidem, 2000, p. 337).
De onde podemos concluir que estas personagens possuíam uma baixa estima e um
sentimento de submissão psicológica diante de seus amados.
TERRITÓRIOS FEMININOS
“Gabriela servia para cozinhar,
a casa arrumar, a roupa lavar, com homem
deitar”(AMADO, Gabriela...,2000, p. 183).
Esta frase de Gabriela nos insere num assunto que está nestes romances bastante
imbricado: o apetite alimentar e o apetite sexual dos personagens masculinos.
Tanto Gabriela quanto dona Flor são cozinheiras excepcionais. Cuja fama corre longe. Ao
seus temperos não tem igual. Os demais personagens não se cansam de elogiá-las. Quem prova
de seus quitutes achará todos os outros insossos.
Cozinhar é lidar com o instinto da fome, com impulsos, com algo fundamental a vida. É
está envolvido num ambiente de gulodices, de cheiros, sabores, de exacerbação dos instintos
tanto da “fome” alimentar quanto sexual, pois conforme nos assinala a crença popular a culinária
baiana é rica em temperos e ingredientes afrodisíacos.
O ato de cozinhar está ligado ao despertar da gula, um dos sete pecados capitais e não nos
esqueçamos que tanto dona Flor quanto Gabriela são, essencialmente, cozinheiras de guloseimas.
Não é uma cozinha do trivial é uma cozinha do sabor de dar água na boca.
O reconhecimento profissional recebido pelas duas personagens acontece desde muito
cedo. Muito jovem Flor já fazia encomendas de doces e salgados para festas. Adolescente apenas
e já dava aulas de culinária. Gabriela também garota aprende tudo sobre cozinha trabalhando em
casa rica, nos fazendo acreditar que há algo de inato, de dom nelas, a julgar pela pouca idade e o
sucesso conquistado.
Cozinhar está diretamente relacionado a comer, satisfazer-se, a ter prazer. “Comer”
também é um termo popular que significa fazer sexo. Nos romances o ar de prazer, cheiros e
gostos que as envolvem enquanto cozinheiras, também as envolve enquanto mulheres. As
22
comparações gastronômicas se avultuam. Estas são identificadas com doces, frutas, pratos
típicos, condimentos, etc.
Não é apenas como cozinheiras que estas mulheres são consideradas excepcionais,
sexualmente também. O fascínio que exercem sobre os homens é muito grande, todos os homens
as desejam. Igual a elas não existe. Até Vadinho tão mulherengo, confirma: “Vou te dizer: Já
colhi muita xoxota em minha vida, uma boa safra, nenhuma como a peladinha, é a melhor de
todas, te juro, minha Flor.” (AMADO, Dona Flor...,2000, p. 422).
Cozinhar também está estreitamente ligado a “servir” (e nestes romances a servir não
apenas à mesa), pois não é disso que nos fala Gabriela, servia para cozinhar e para com homem
deitar. Demarcando a cozinha e a cama como os espaços mais ocupados por estas mulheres no
decorrer da narrativa.
Todo este ar de sensualidade e excepcionalidade que cerca estas personagens(que como
foi dito anteriormente, quase saltam das páginas do livro) e a forma como foram apropriadas
pelas novelas, filmes, músicas, entre outros, ajudaram na construção de uma imagem de mulher
baiana mitificada. Mulheres morenas, bonitas, quentes, dengosas, cheirosas, gostosas, fogosas,
em tudo, ou melhor, sexualmente mais e melhores. É a esta imagem que muitos turistas
brasileiros e estrangeiros vem buscar.
A enorme vendagem dos romances amadianos, principalmente os titulados por mulheres,
foi um dos fatores que muito contribuiu para a socialização deste estereótipo para todo o mundo
em seu livro.
A versão amadiana de Bahia e dos baianos é em seus livros reforçados e continuamente
reafirmada de modo a levar ao convencimento dos que lêem da grande intimidade entre o
representado( as mulheres, os homens e os costumes baianos) e a representação contida em seus
romances. Se suas histórias não aconteceram de “verdade” é facilmente aceito que elas poderiam
ter acontecido. Pelo menos na “cidade mágica da Bahia” onde todas as coisas se “sucedem sem a
ninguém causar espanto”(Ibidem, Dona Flor, p. 448).
Na modalidade de leitura que a literatura provoca que é a da impatia e identificação
inseriríamos uma questão importante e delicada. O baiano se identifica e aceita o discurso
jorgeamadiano sobre Bahia, por várias razões: para ser diferente, especial, reconhecido,
idolatrado, para tirar vantagens, etc., apesar de percebê-lo como parcial, consente e até ajuda em
sua reprodução.
23
Quem foi numa boa parte da careira altamente pedagógico não perde esta característica
assim tão facilmente, o que há é uma mudança na postura, como muitos críticos dizem, há uma
mudança no eixo temático passando Jorge Amado a tematizar questões de gênero, raça etnia,
religiosidade, tentando acabar com o preconceito do seu povo tematizando-o. Criando lá fora e
também dentro do país a idéia de que o povo baiano não é racista, não é preconceituoso. É assim
que normalmente o baiano é caracterizado.
Não estamos dizendo que o autor(sobre sua pretensão de realidade) tenha a intenção de
provar que os fatos narrados aconteceram realmente, pelo contrário, mas os fatos “reais” que
cercam o tema central dão a este maior credibilidade no que poderia ter sido, e tendo maior
credibilidade fica mais fácil intervir na construção do imaginário.
Se pensarmos que a função principal do mito é:
compensar, pelo sonho, os sofrimentos reais: apaziguar os espíritos perturbados,
revoltados ou perdidos, seduzi-los para que aceitem as estruturas de um universo que os
faz sofrer.
fica menos difícil entender porque os baianos e especialmente as mulheres baianas aceitam o
estereótipo amadiano.
A Bahia inseri-se numa das regiões mais pobre do país. Teve seu tempo no poder, porém
desde o final do século XIX, não tem mais. É um estado mergulhado em pobreza, analfabetismo e
violência. Não é potência industrial nem agrícola, precisa adquirir algum status. Para ser potência
turística já possui as belezas naturais e divulgando para o mundo o caráter de seu povo como
calorosamente hospitaleiro, facilita. Por isso a aceitação da baianidade amadiana.
Desde a produção destes textos(Gabriela e Dona Flor) nas décadas de 1950 e 1960 até os
dias presentes(só que com menor intensidade) as mulheres enfrentaram graves problemas de
submissão ao homem(pais, irmãos, marido) herança de uma cultura paternalista, esta submissão
familiar é incorporada ao mercado de trabalho quando estas o adentram. Subordinadas aos
patrões que se consideram não apenas donos de sua força de trabalho, alguns também se
consideram donos de seus corpos. Estas mulheres precisam de um espaço onde elas pudessem ser
superiores, melhores, diferentes e isto elas encontram nesta imagem de mulher baiana irresistível
que os romances amadianos é o principal divulgador.
24
Não se está postulando que Jorge Amado criou a identidade da mulher baiana, contudo
ajudou em sua construção, pois como diz o próprio autor referindo-se a relação entre realidade e
ficção - uma nasce da outra e a recria.
NOTAS:
1
Estamos falando mais especificamente da terceira geração dos Annales e dos estudos sobre mulher intensificados
na década de 1970. Cf. CARDOSO, C.F. & VAINFAS, R.(orgs) Domínios da História: ensaios de teoria e
metodologia, 1997.
2
O trabalho completo incluirá mais duas obras: Tieta do agreste a pastora de cabras e Tereza Batista cansada de
guerra, além de outras fontes como: jornais, músicas, mini-séries e filmes.
3
Entrevista cedida por Jorge Amado aos Cadernos de Literatura Brasileira em 1997.
4
A apresentação da mulher baiana(e brasileira) como dotada de uma forte erotização já é algo presente desde o
desembarque dos primeiros colonizadores: nos relatos de viajantes, nos poemas de Gregório de Mattos, entre outros.
5
Os grifos que se seguem são nossos.
6
A dura lei(costumeira) de Ilhéus como a caracteriza o autor assegura que esposo traído tem o direito de lavar sua
honra com o sangue da esposa adúltera e do seu amante. Porém, se a traição vier de sua amante basta uma boa surra
na mulher para resolver o problema.
25
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AMADO, Jorge. Dona Flor e seus dois maridos: história moral e de amor. 49 ed., Rio de Janeiro,
Record, 2000.
______________. Gabriela cravo e canela: crônica de uma cidade do interior. 83 ed., Rio de
Janeiro, Record, 2000.
CARDOSO, Ciro Flamarion & VAINFAS, Ronaldo(orgs). Domínios da História: ensaios de
teoria e metodologia,. Rio de Janeiro, Campus, 1997.
CHALHOUB, Sidney & PEREIRA, Leonardo A de Miranda(orgs). A História Contada:
capítulos de história social da literatura no Brasil. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1998.
DEL PRIORE, Mary, A Mulher na História do Brasil. 4 ed., São Paulo, Contexto, 1994.
FREITAS, Maria Tereza de, Literatura e História: o romance revolucionário de André Malraux.
São Paulo, Atual, 1986.
GAY, Peter, Razão, realidade, psicanálise e o historiador. In: Freud para historiadores. 2 ed., Rio
de janeiro, Paz e Terra, 1989.
JANOTTI, Maria de Lourdes Mônaco, O Coronelismo: uma política de compromissos. 8 ed.,
Brasiliense, São Paulo, 1992.
LEENHARDT, Jacques & PESAVENTO, Sandra Jathy(orgs), Discurso Histórico e Narrativa
Literária. São Paulo, Unicamp, 1998.
MOISÉS, Massaud. História da Literatura Brasileira: Modernismo. Vol. V, São Paulo, Cultrix,
1989.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Em busca de uma outra história: imaginando o imaginário. Revista
Brasileira de História. Vol. 15, número 29, São Paulo, ANPUH, Contexto, 1995.
________________________, Com os olhos de Clio ou a literatura sob o olhar da história a
partir do conto O Alienista de Machado de Assis. Revista Brasileira de História, vol. 16, números
31 e 32, São Paulo, ANPUH, 1996.
PORTO, Maria Bernadete & et all(orgs), Mulher e Literatura. Rio de Janeiro, Eduff, 1999.
Elisângela Sales Santos, graduada em História, pós-graduanda em História Regional pela Uneb,
campus V e professora do ensino médio e fundamental. E-mail: [email protected]
___________________
Elisângela Sales Santos
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Ana Carolina Eiras Coelho Soares