A ORALIDADE COMO FATOR DE COMPREENSÃO DO TEXTO Hildea Carine de Souza Medeiros Bolsista de Iniciação Científica - PPPg Uma característica importante observada no experimento O ensino de literatura e a dinâmica da formação do leitor em professores da rede pública do Rio Grande do Norte (CNPq, 1999), foi a necessidade que os sujeitos manifestaram de utilizar a leitura em voz alta dos textos para sua melhor compreensão. Assim, percebemos que a oralidade se constituiu como uma estratégia que os sujeitos reconheciam, embora intuitivamente, como sendo um recurso eficaz no processo de atribuição de sentido. Zumthor (1993 p. 21) prefere a palavra vocalidade em vez do termo oralidade. Vocalidade é a historicidade de uma voz: seu uso. Uma longa tradição de pensamento, é verdade, considera e valoriza a voz como portadora da linguagem, já que na voz e pela voz se articulam as sonoridades significantes... Bajard (1999, p. 111), faz a distinção entre oralizar e dizer. Oralizar é uma atividade de identificação das palavras através da voz e dizer é uma terminologia empregada à atividade de comunicação vocal de um texto preexistente. Dessa forma o texto escrito se torna um novo texto, multicodificado com a música da voz. Para este estudo foi analisada a 13ª sessão nos grupos A, B e C cujo o texto lido de Maria Judite de Carvalho, foi “A noiva Inconsolável”. Quando já ninguém mais esperava a personagem principal, feia, sem graça encontra um rapaz que deseja casar-se com ela. A paixão inicial, no entanto, esvai-se e a moça vive angustiadamente, o desvanecimento da relação. O destino interfere fazendo desaparecer o noivo em um acidente mal explicado. Livre da opressão social de ser obrigada a se casar, a moça veste-se para sempre de preto, tornando-se assim, a irônica figura da noiva inconsolável. (Amarilha, 1997). Por este resumo, identificamos que se trata de um texto de caráter irônico que traz uma discussão sobre o papel feminino na sociedade. Observamos que nessa sessão, a oralidade se destacou como uma estratégia de acercamento do texto em três momentos: 1º na leitura feita pelo animador; 2º na discussão pós-leitura; 3º na releitura de fragmentos do texto pelos sujeitos. 1º No primeiro momento, o animador, lia oralmente o texto para os sujeitos, graduando emoção, criando suspenses, produzindo expectativas, dando assim vida ao texto, com o objetivo de estimular a interlocução entre os sujeitos para uma melhor compreensão do texto. Utilizou também de elementos como ritmo, entonação, ênfase, para assim motivar o interesse, a atenção e o entusiasmo dos sujeitos, além de imprimir à leitura o envolvimento pessoal, para manter a continuidade do interesse na discussão do texto, que logo segue a essa leitura. Utilizando-se da metodologia scaffolding ou seja da leitura assistida. Isso só nos faz aceitar o que diz Bajard. A voz que diz o texto certamente leva em conta a função lingüística, mas também uma outra a musical. A voz do contador é apta a se dobrar à diversidade dos personagens ou das emoções. Uma mesma palavra, um único pronome podem transmitir múltiplas mensagens. (Bajard, 1999, p.97) Durante a leitura feita pelo animador, os sujeitos acompanharam essa leitura através do texto escrito que dispunham naquele momento. Para uma narrativa oralizada o papel do animador (narrador) é muito importante, pois nele está depositada a responsabilidade de mediar os sujeitos, indicando possíveis caminhos para a compreensão do texto, através da entonação da voz, do seu conhecimento acerca do texto narrado, do ritmo em que distribui as frases. Na voz do animador abrem-se as possibilidades que segundo Abramovich seria de sussurrar quando a personagem fala baixinho ou está pensando em algo importantérrimo; [...] levantar a voz quando uma algazarra está ocorrendo ou falar mansinho quando a ação é de calma... (Abramovich 1991 p.21). Cada nuance destacada irá fornecer indicações de sentido ao texto. 2º No segundo momento ou seja na discussão pós-leitura do texto, os sujeitos através da negociação e interação entre eles, utilizam de estratégias de inserção, reformulação e hesitação na busca de sentido no texto (Koch 2000). Vejamos um exemplo de inserção. E eu acho que tem o aspecto do padrão de beleza, que já faz ela ser discriminada. Tem a própria (SIC) como é estruturada a família dela. Por exemplo, o irmão tem mais ascensão, coloca o irmão que é homem - não sei se é porque; é homem - tem mais ascensão, tem mais abertura na família e tem mais assim perspectiva de vida enquanto que ela, a irmã, a mulher, não tem perspectiva nenhuma. E quando surge um homem, para toda a família, seria uma forma de resolver o problema dela. E tanto que eles se animam. E até parece que o irmão começa logo a ter interesse, né? Querer algo em troca, além de tirar ela de lá, daquela situação. Para ele seria um presente, aparecer um homem que levasse-a (SIC). (Transcrição da turma “A” p.06). (Grifos meus) Nessa fala, o sujeito utilizou da estratégia de inserção introduziu exemplificações ou justificativas para manter o interesse dos outros, ou mesmo tentar exemplificar para melhor se expressar. Vejamos um exemplo de reformulação: ... Porque ela achava muito importante. Começava com aquela pressão que está ficando coroa, que já está ficando velha, tá passando o tempo de casar ai... velha demais, ou então já está na hora e as pessoas apressam casamento [...] Porque existe uma pressão que a gente... a partir de 20 anos - eu digo por experiência, né? -, a partir de 20 anos - quando eu completei - as pessoas perguntaram quantos anos tu tem? “ E não casa mais, não? Já tá na hora! (Transcrição da turma “B” p.02). (Grifos meus) Percebemos que no início da fala desse sujeito, ele repete várias vezes a mesma coisa, como forma de reforçar aquilo que ele está querendo enfocar. Ele utiliza da estratégia de reformulação que tem como função principal reforçar a argumentação. Vejamos um exemplo de hesitação: O que me lembrou também aqui no início, no comercinho..., quando ele diz do compromisso social que as pessoas tem que fazer né? E que depois do... depois de resolver aquele problema...aquela/ quando a gente vai fazer aquela visita, compromisso que a gente tem, né? (SI) (Transcrição da turma “C” p.01). (Grifos meus) Através da fala desse sujeito podemos observar algumas pausas, alongamentos de sílabas ou repetição de palavras, que demonstram que o sujeito utilizou da estratégia de hesitação, que tem como função cognitiva ganhar mais tempo para planejamento do que está sendo dito. Essas estratégias segundo Koch, facilitam a compreensão dos sujeitos, além de atender as suas solicitações e (re) negociações entre eles do sentido daquilo que está sendo discutido. Smolka (1993) também fala da negociação da leitura através de recursos entonacionais. No processo de negociação estabelecido entre [os sujeitos] durante a leitura, podemos apontar o uso da entonação como forma de se fazer prevalecer ou de ceder à leitura do outro como mais um recurso presente nesse processo (p.28). Outro dado que nos chamou atenção foi as anotações que os sujeitos da turma C fizeram para sustentar a discussão. Pois eu anotei aqui..... Indicando que o apoio ao texto é também ferramenta para melhor oralização dos argumentos e garantia de participação nas discussões. Comprova-se assim que a escrita é mediadora de uma oralização mais fluente. 3º No terceiro momento, ou seja, da releitura de fragmentos do texto, observamos que os sujeitos utilizam desta estratégia com a finalidade de se apropriar do significado, o que permitiu ao sujeito ter uma visão mais rigorosa sobre o texto à medida em que os detalhes eram evidenciados. Vejamos um exemplo de releitura de fragmentos: Passa a imagem dela como uma pobre coitada, uma pessoa que lá designada para viver sozinha. Aqui, na página 262 no segundo parágrafo “ Ela e o seu pequeno rosto ingrato, de coelho, os seus óculos espesso, de muitos deoptrias, a silhueta pesada e sem graça. Outras tantas grades a isolarem-na do mundo exterior o taparem a entrada a quem viesse”. Quer dizer, como se ela tivesse predestinada a viver na solidão. “ Mas ninguém vinha. E ela tão só, coitada. Via-se ao espelho, estudava o novo penteado...experimentava um creme de que se diz a maravilhas no número da Ele. Mas tinha a carinha de coelho”...- aí, ele relaciona tudo isso a cara de coelho - “ era mais forte do que tudo.... Mesmo ela se enfeitando, mesmo ela querendo... a carinha de coelho continua... (Transcrição da turma “A” p.03). (Grifos meus) Ao se constatar que a oralidade proporciona aos sujeitos diferentes oportunidades de aferição de sentido. Percebemos que ela é veículo de confronto sócio-cognitivo, de interação e de negociação entre os sujeitos. Quando na situação do sujeito ouvir o outro esse sujeito muda a sua opinião na atribuição de sentido ao texto. Constatamos também que, a oralidade pode ser outro mediador entre o sujeito e o texto na ausência do animador. Lembramos que na turma C não havia nenhum animador. Ficou evidente nessa pesquisa que, a interferência da voz do animador contribui para o sujeito ter outra percepção do texto. Houve um momento em que o animador (narrador) ao fazer uma releitura oral do texto e ao imprimir um tom e um ritmo tão diferente, fez com que um dos sujeitos chegasse a pensar que se tratava de outro texto. Isso se deu na sessão de releitura do texto Felicidade Clandestina.. Umas das reflexões a que se chegou com essa pesquisa foi que os grupos A e B foram privilegiados com a presença do animador para estimular a participação e compreensão da leitura, enquanto que a turma C mesmo sem ter essa figura, apoiou-se em um indivíduo mais experiente que se destacava e realizava esta função estimulando a discussão. E o interessante é que eles usavam do artifício de reler o texto em voz alta (p.34), procurando construir o sentido do texto e garantindo sua explanação e apropriação do significado. Na ausência do animador ficou muito mais evidente a contribuição da oralidade nesse processo, como que para compensar o papel do mediador, que não existia. Assim pode-se dizer que a voz do próprio sujeito e do grupo é mediadora importante e fundamental do processo de aferição de sentido ao texto. Frente a essas constatações concluímos que a oralidade tanto facilita com modifica a compreensão de um texto, promovendo assim uma leitura lúdica e prazerosa. 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