A GEOGRAFIA DO SER EM ESCRITOS EM VERBAL DE AVE, DE MANOEL DE
BARROS
Alberto Lopes de Melo (FURG)
Este trabalho está relacionado ao percurso vivenciado no desenvolvimento do
projeto de tese O ser e o espaço na poesia brasileira contemporânea: a poesia de
Ademir Assunção, Antônio Cicero, Manoel de Barros e Oscar Bertholdo, orientado pelo
Prof. Dr. Antonio Carlos Mousquer (PPGLetras/FURG), com apoio financeiro da
CAPES (DS), e tem como ponto de partida a percepção da importância que as
imagens poéticas que apontam para a espacialidade possuem na poesia
contemporânea. Essa percepção encontrou amparo nas reflexões do teórico francês
Michel Collot.
A emergência, na França, de uma leitura de poesia que considerava a forte
presença de imagens objetais enquanto marca da ausência do sujeito lírico motivou
Collot a investigar o fenômeno e a buscar, na profusão de imagens do mundo, não a
ausência ou a negação da subjetividade lírica, mas um mecanismo de construção do
próprio eu na poesia através da alteridade, ou, em outras palavras, a manifestação do
sujeito lírico fora de si (expressão que intitula um de seus escritos) (Cf. COLLOT,
2004). No Brasil, pode-se vislumbrar um paralelo da poesia objetiva (encontrada por
Collot na obra de Francis Ponge) no percurso chamado de antilira, termo utilizado por
Luiz Costa Lima (1968), que teria sua plena manifestação na obra de João Cabral de
Melo Neto.
Tomando então como perspectiva a consideração de que o enfoque do
mundo, em vez de anular a presença do sujeito, acaba por ser meio de afirmação de
sua identidade através da construção de imagens poéticas deste mundo enquanto
necessária referência da alteridade, efetuo aqui uma breve leitura da obra Escritos em
verbal de ave, de Manoel de Barros, tendo com prisma a importância da espacialidade
na construção de sentido da mesma.
Manoel de Barros (Mato Grosso, 1916) estreou em 1937 com Poemas
concebidos sem pecado e publicou mais dezoito livros de poemas. Embora, como
destaca Alfredo Bosi (cf. 2003, 488), o reconhecimento de sua obra tenha sido tardio,
sua palavra, “nascida em contato com a paisagem e o homem do pantanal” é de
“coerência vigorosa e serena” (BOSI, 2003: 488). Hoje, Manoel de Barros é um poeta
que está entre os mais reconhecidos, com livros publicados em Portugal, Espanha,
França e Estados Unidos. O poeta foi premiado diversas vezes, duas delas com o
Prêmio Jabuti de Literatura (1989 e 2002). Seu mais novo é de 2011, Escritos em
verbal de ave1.
O pequeno livro traz como epígrafe os seguintes versos do poeta matogrossense da geração mimeógrafo Nicolas Behr: “A infância/ É a camada/ Fértil da
vida”. Esta epígrafe aponta para a necessidade do olhar lúdico para alcançar uma
produtiva apreciação da poesia que segue, consonante com a proposta poética de
Manoel de Barros, bem representada em trecho do poema “Entrada”, que abre sua
Poesia completa (agora incompleta) publicada em 2010: “fazer desenhos verbais de
imagens” (p. 7).
O primeiro da série de “desenhos verbais” que compõem Escritos em verbal
de ave estende-se na dimensão do tempo e, mais especificamente, da finitude: a obra
é uma “desbiografia” de Bernardo, é a narrativa da morte do personagem conhecido
dos leitores de Manoel de Barros, presente em poemas de O guardador de águas
(1989), do Livro de pré-coisas (1985) e de Menino do mato (2010). Essa narrativa em
versos não é concebida como parte de sua biografia – grafia da vida – mas como
representativa da descontinuidade da escrita da vida, que deixa de se inscrever no
mundo e de se escrever, mas que deixa escritos – o “acervo” de Bernardo.
O personagem é descrito como o ser que “tinha visões que remetiam a
gente/para a infância” e que “tinha uma linguagem de/ canto e arrebol!” – o verbal de
ave, deixando com a morte, como espólio, justamente seus “Escritos/ em verbal de
ave”. Estes seguem à narrativa primeiramente com o poema “Os desobjetos” (Do
acervo de Bernardo), que vale a leitura:
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Prego que farfalha
Uma pua de mandioca
O fazedor de amanhecer
O martelo de pregar água
Guindaste de levantar vento
O ferro de engomar gelo
O parafuso de veludo
Alarme para o silêncio
Presilha de prender silêncio
Formiga frondosa com olhar de árvore
Alicate cremoso
Peneira de carregar água
Besouro de olhar ajoelhado
A água viciada em mar
Rolete para mover o sol
Pertencem a essa obra todos os poemas citados neste escrito que, pela ausência de
paginação da mesma, aparecem sem a indicação convencional de referência.
Os desobjetos apresentam-se como imagens ora de um instrumental
destinado ao manejo do inefável – “Presilha de prender silêncio” –, ora de uma
inventiva descrição dos mistérios contidos no ínfimo, no aparentemente desimportante,
como o “Besouro de olhar ajoelhado”, e lembram muito os “desenhos verbais” que
Manoel de Barros apontava como um objetivo no referido poema de abertura de sua
Poesia completa. O parentesco é claro no trecho em que Barros dá quatro exemplos
do que seriam os “impossíveis verossímeis” (2010: 7) que constituiriam seus
“desenhos verbais”: “1) É nos loucos que grassam luarais; 2) Eu queria/ crescer para
passarinho; 3) Sapo é um pedaço de chão/ que pula; 4) Poesia é a infância da vida”
(id.). A “infância da vida” de quem “cresceu para passarinho” é representada em seu
momento de desfecho em Bernardo, nítido alterego de Barros.
Bernardo, em seu espólio, apresenta a mesma natureza de procedimentos
poéticos constante em Barros: a utilização de imagens de uma fauna ínfima em
simbiose com o mundo vegetal (o olhar de árvore na formiga, p. ex.), a associação de
elementos díspares que instauram a revelação que emerge do paradoxal, a
profundidade do olhar sobre a existência brotando da abordagem poética do
aparentemente banal.
Até este ponto, tem-se a breve exposição da riqueza que o leitor pode
encontrar na leitura de Escritos em verbal de ave, que de certa forma é presente nas
demais obras do poeta. Entretanto, a obra surpreende mais: a materialidade do livro é
também poeticamente elaborada. À semelhança do criativo formato de caixa com
páginas guardadas em seu interior visto em Memórias inventadas (BARROS: 2003),
Escritos em verbal de ave também tem um formato inventivo: depois da “desbiografia”
de Bernardo e da leitura de Os desobjetos, o leitor precisa, para prosseguir no livro,
abri-lo como um mapa2.
Após ceder ao artifício poético materializado nesse processo de abertura do
livro, possível imagem de uma abertura do ser, encontra-se o desenho de Bernardo,
ambígua forma de braços estendidos, entre quem voa como pássaro ou quem foi
deixado “de manhã/ em sua sepultura” (BARROS, 2011). Sua imagem encontra-se
circundada por trinta e dois poemas, tercetos com espírito de haicai, o de dizer o
imenso na expressão mínima.
Os poemas, em certa medida, completam a construção da personagem,
descrevendo sua natureza através do espaço que a circunda, no qual ela é contida e,
ao mesmo, é parte da estrutura que a contém – constituindo e sendo também
2
Esse “artifício”, o de abertura física do livro, não se encontra presente nas outras publicações
do livro, posteriores a esta leitura: sua Poesia completa atualizada em 2013 e a coleção
Biblioteca Manoel de Barros (Leya, 2013), caixa que contém os dezoito livros do poeta.
constituída na espacialidade. Os versos não são apenas uma unidade de ritmo,
circunscrita à dimensão temporal, eles também se estendem no espaço e, na mesma
medida, o ser não se diz ou é dito apenas em sua ipseidade, mas também naquilo que
dele só se apreende em suas relações com a alteridade, com o mundo.
Neste ponto, é produtivo olhar o caminho proposto pelo já citado teórico
francês Michel Collot, que supõe a consideração da criação lírica enquanto fenômeno
que ultrapassa a mera expressão confessional de um eu desligado do mundo ou o
puro artesanato verbal. Para Collot, tal caminho de reinterpretação da lírica e do
sujeito (lírico) é o da fenomenologia,
que não considera mais o sujeito em termos de substância, de
interioridade e de identidade, mas em sua relação constitutiva com um
fora que, especialmente em sua versão existencial, o altera, colocando
a acentuação em sua ek-sistence, em seu ser no mundo e para o outro
(COLLOT, 2004: 166-167).
Em consonância com as ideias de Merleau-Ponty, para quem o horizonte é
concebido como parte do próprio movimento perceptivo do ser, pois é um “horizonte
cuja distância em relação a mim desmoronaria, (...) se eu não estivesse lá para
percorrê-la” (MERLEAU-PONTY, 1999: 3-4), Collot sublinha que não apenas a
percepção do mundo tem horizontes como contingência, como também a percepção
que o sujeito tem de si mesmo.
Para Collot, a linguagem poética é o espaço no qual a construção da
identidade do sujeito dá-se na inevitável relação com a alteridade. O próprio horizonte
da espacialidade humana condiciona a percepção da identidade, pois o sujeito,
através de seu olhar ou movimento, está sempre ao mesmo tempo aqui e lá, de modo
que o horizonte pode parecer o que há de mais próximo, enquanto que a localização
do próprio corpo permanece no limite inacessível ao olhar (Cf. COLLOT, 2006: 32).
Nessa medida, a autopercepção é também composta por “antecipações”, por
construções do sujeito nos espaços incompletos do horizonte de sua percepção. Às
realizações no poema de tais construções imagéticas, Collot constrói o conceito de
paisagem. Dessa forma, mais do que mera referencialidade, as representações do
espaço através de imagens poéticas no poema – as paisagens – apresentam-se
enquanto formas como a subjetividade lírica constrói-se nos horizontes do poema.
Assim, a emoção lírica, no que diz respeito à constituição de um eu através da
linguagem, é vista por Collot como algo que talvez, nas suas palavras:
apenas prolongue ou reapresente esse movimento que (...) porta e
deporta o sujeito em direção a seu fora, através do qual ele pode ek-
sistir e se exprimir. É apenas saindo de si que ele coincide consigo
mesmo, não como uma identidade, mas como uma ipseidade que, ao
invés de excluir, inclui a alteridade (COLLOT, 2004: 167).
Essa perspectiva ultrapassa a dicotomia entre sujeito e objeto na medida em
que, no poema, artefato de linguagem, o sujeito é expresso enquanto construto que se
estabelece necessariamente na sua relação com a alteridade. É essa concepção da
lírica enquanto lugar de encontro com o outro e, sobretudo, consigo mesmo através do
espaço – paisagem – que se presta ao exame da obra de Barros aqui estudada.
Os poemas que circundam e compõem o Bernardo de Manoel de Barros ora
referem-se textualmente ao personagem, ora são feitos em primeira pessoa e, por
vezes, constituem aparentemente simples descrições de uma paisagem lúdica:
“Concha fechada/ na beira do rio/ só se abre no amanhecer”. Não existe um
centramento absoluto nem na expressão do sujeito em si, nem na exposição do
mundo que o envolve: uma leitura que buscasse o assunto de cada um dos poemas,
para então relacioná-los, seria infértil, pois não encontraria uma necessária conexão
através desse procedimento.
É preciso lembrar a epígrafe de Nicholas Behr e o que ela oferece como norte
para o olhar do leitor – é a infância o solo propício em que brotam os efeitos da poesia
de Barros, é necessário um olhar próprio para a apreciação dessa poesia, um tipo
específico de olhar como o que, segundo o renomado filósofo Gaston Bachelard, só
nos pode fornecer a alma em seu repouso, em seu estado mais propício ao devaneio
poético – o olhar de anima (Cf. 2009).
Bachelard considera que a psique do homem é dividida em dois pólos
indissociáveis: um masculino, pleno de racionalidade e voltado às vivências cotidianas
– o animus; e um feminino, voltado à sensibilidade, ao devaneio e, portanto, à fruição
poética – a anima. Em anima, o ser em devaneio não observa o mundo, encontra-se
em uma instância “onde já não nos dividimos entre observador e coisa observada”
(BACHELARD, 2009: 43). Sujeito e objeto constituem, no poema, um conjunto que
expressa o ser – como apontava o supracitado Michel Collot ou, ainda, Carlos
Drummond de Andrade em seu Procura da poesia (1978: 76-77).
Em anima, o estado favorável à fertilidade das imagens poéticas, pode-se fruir
cada um dos poemas e perceber que as relações que mantém entre si e entre o
próprio Bernardo que, quem sabe, os diga na diegese (a escolha aqui é do leitor), não
obedecem a qualquer lógica propriamente dita – o que, para Bachelard, seria atividade
de um outro estado – o estado de animus, o da racionalidade.
Assim, nem mesmo as conhecidas relações de parataxe, tão valorizadas pelos
poetas concretistas, dão conta da ligação existente entre os pequenos poemas de
Barros. É preciso ler todos, um a um, e, pouco a pouco, perceber que se constrói uma
atmosfera entre os poemas que dizem de um mundo de ínfimos habitado, dos desejos
fantásticos de um Bernardo que anseia por dizer palavras como um passarinho canta,
e que dizem também do próprio canto, manifesto no silêncio da grafia – escrito.
No mapa poético aberto, tanto em larga página como à fruição, vai sendo
composta uma “geografia do ser”, em poemas de instantes, que constroem
imageticamente os referidos elementos da paisagem de Bernardo (sua paisagem e
aquela que compõe seu horizonte) ou que expressam seus anseios, como em “Queria
que um passarinho/ escolhesse minha voz/ para seus cantos”.
A imagem do pássaro e de seu canto aparece em outros quatro poemas. Um
deles traz a expressão do mesmo anseio de dizer em verbal de ave:
Fosse bem:
que as minhas palavras
gorjeassem!
O outro atribui uma qualidade fundamental da palavra associada à natureza da
ave:
Palavra abençoada
pela inocência
é ave.
Pode-se compreender, nesse sentido, que a palavra poética com tal qualidade
de passarinho elevar-se-ia por sua pureza, de natureza tão “cândida” como “conversar
com as águas”.
Há a possibilidade então de ler a geografia de Bernardo como impregnada de
um desejo de elevação da voz ao canto do pássaro. Porém, junto das imagens que
podem ser lidas como essa tendência à elevação (sublimação), há abundância de
imagens associadas ao que é rasteiro, ao chão:
Vi a metade
da manhã
no olho de um sapo.
Vi um lesma pregada
na existência
de uma pedra.
Vi uma rã
sentada
nos braços da Tarde!
Nos três poemas acima, rico é o trabalho de aproximação entre a enormidade
intangível e o sumariamente pequeno ou irrisório: a lesma e a existência, o olho do
sapo como prisma para observar a metade da manhã, ou a rã que senta nos braços
de uma “Tarde” com sugestiva maiúscula inicial. Se o leitor optava já por ver um
Bernardo de braços abertos alçando vôo com seu cantar de pássaro, depara-se
novamente com um Bernardo de braços estendidos ao chão. A figura mantém sua
ambigüidade. Mas o chão que ocupa não é um chão qualquer, é um chão nobre, como
o designa um dos poemas. Outro poema chama atenção sobre a necessidade de olhar
para esse chão: “Quem não vê/ o êxtase do chão/ é cego!”.
É lícito lembrar que Tratado geral das grandezas do ínfimo (2001), o décimo
quinto livro de poemas de Barros é dividido em duas partes – a segunda parte é
justamente “O livro de Bernardo”, composto em sua maior parte de poemas
semelhantes às tríades de Escritos em verbal de ave. Neste último, as “grandezas do
ínfimo” chão e dos rasteiros seres que nele habitam são celebradas:
Tenho um gosto
elevado
para o chão.
Profetas nasciam
de uma linguagem
de rãs.
A grandeza desse ínfimo que constitui o horizonte através do qual Bernardo é
construído para o leitor que o tem então como horizonte é visível através de um olhar
a ele afim, um olhar também poético que demonstra como a paisagem, o sujeito e a
linguagem unem-se de modo indissociável:
Visão
tem sotaque
de nossas origens.
Visões descobrem
descaminhos
para as palavras.
O Bernardo descoberto ou entrevisto com a leitura conjunta dos poemas e da
própria composição gráfica da obra é alcançado através de um olhar como o dos
“videntes” que aparecem num dos poemas, aqueles que “não ocupam o olho/ para ver
– mas para transver”. Nesse olhar através do sujeito rumo ao seu mundo ou através
do seu mundo em busca de sujeito – ambos linguagem poética – não cabe um
fechamento. Não é acertado delimitar Bernardo ou uma significação da obra de
Barros. Sua riqueza está justamente nas ambíguas surpresas das inusitadas
associações imagéticas cunhadas pelo poeta mato-grossense, que ressalta:
“Significar/ reduz novos sonhos/ para as palavras”.
Cabe, como um fechamento que não prescinde da necessária abertura, citar o
rico devaneio que é a definição do verbal de ave: “Desenho da voz/ na areia/ é verbal
de ave”, que une em um paradoxo revelador a massa sonora e a dimensão espacial –
a manifestação do ser no tempo através do som é aqui também concebida enquanto
marca feita simultaneamente na espacialidade de pertença desse ser, em sua
geografia.
REFERÊNCIAS
BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. 3. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
BARROS, Manoel de. Escritos em verbal de ave. São Paulo: Leya, 2011.
_____. Memórias Inventadas: A infância. São Paulo: Planeta, 2003
_____. Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010.
COLLOT, Michel. O sujeito lírico fora de si. Trad. Alberto Pucheu. Terceira Margem:
Revista do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura. Rio de Janeiro,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Ano IX, nº 11, p. 165-177, 2004.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Reunião: 10 livros de poesia. 9. ed. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1978.
LIMA, Luis Costa. Lira e antilira: Mário, Drummond, Cabral. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1968.
DEL MITO EN UNA DESCUBIERTA QUE NO HUBO
Um passeio pelas narrativas sobre Malinche na história e na ficção
Aline Coelho da Silva (UFPel)
O imaginário das Américas se inscreve na fundação da dita civilização
ocidental. É-nos comum saber das peripécias do glorioso Odisseu, que cruzou os
mares apesar e graças aos deuses de volta a sua Ítaca mais que de nosso sujeito e da
literatura que fundou nosso imaginário e subjetividade. Nosso sujeito se filia e se dá
em um espaço marcado pela profunda cicatriz da colonização. Os vencedores da
conquista das Américas assim disseram:
Nos quedamos admirados y decíamos que parecía a las cosas
de encantamiento que cuentan en el libro de Amadís, por las
grandes torres y cués (templos) y edificios que tenían dentro en
el agua, y todos de calicanto, y aun algunos de nuestros
soldados decían que si aquello que veían si era entre sueños, y
no es de maravillar que yo escriba aquí de esta manera,
porque hay mucho que ponderar en ello que no sé cómo lo
cuento; ver cosas nunca oídas, ni aun soñadas, como veíamos
(DÍAZ DEL CASTILLO, 2013: 82).
As fronteiras, que marcam o que vivemos e como nos foi narrada esta
trajetória nos localiza em um espaço-tempo em que ficção e realidade se fundem nos
relatos dos conquistadores e na narrativa do “nós” que irá se formar; essa cultura nos
localiza no espaço da coexistência do outro e de seu olhar estrangeiro sobre o
“americano” que nascia. A fronteira que todos cruzamos a partir do movimento do
sujeito europeu rumo a nossas terras foi bastante fértil para localizar o montante de
crenças que traziam sobre o outro, logo, sobre o monstruoso (ROJAS MIX, 2002). O
homem que aqui chegava trazia consigo não somente o imaginário de um povo, mas
de todos os povos que constituíam o espanhol renascentista (fenícios, gregos, godos,
visigodos, romanos, muçulmanos etc.). Este passo coloca o espanhol mais próximo à
Renascença, mas o aproxima verticalmente à razão mitológica medieval. Os relatos
destes “descobridores” estão repletos de exemplos de que acreditavam estar em um
espaço/tempo em que os seres exóticos de seu imaginário habitavam.
A descontinuidade aparente de nosso continente como resultado da
multiplicidade de etnias, narrativas, políticas e linguagens pode ser resolvida na leitura
reveladora dos relatos (crônicas) dos conquistadores e de suas releituras propostas
pela ficção contemporânea, em um ponto de intersecção desses discursos sobre a
América. Nos momentos em que o nacionalismo esteve em voga (no século XIX com o
processo da independência e no princípio do século XX, por exemplo) personagens da
conquista são revisitados. Em 2005 é lançado o romance Malinche, que volta seu
olhar para os primeiros encontros entre “americanos” e espanhóis, reescrevendo,
fabulando e resolvendo (ou não) algumas lacunas da história.
A memória da cultura autóctone foi registrada, em grande parte, pelo
paradigma europeu que “registrou” o processo da conquista, comparando as
divindades, os mitos, a cultura e os corpos com esse outro europeu, que acabou por
fundar um outro americano, que passará a ser nomeado pelo “coletivo” indígena, na
alusão às Índias que não habitou e a uma coletividade (indígena) inexistente.
Pensemos, então, em como será descrito e representado o indígena e
pensemos ainda em como uma mulher indígena – e me permitam a correção –
autóctone será representada e comporá esta nova “sociedade”. É nesse contexto que
Malinche, de Laura Esquivel, adentra, romantizando um dos mais discutidos mitos da
cultura nacional mexicana. Este é um estudo bastante incipiente, de um mito que vem
sendo escrito desde as chamadas “crônicas das índias ocidentais” até hoje, seja na
narrativa de ficção, na dramaturgia, nas narrativas íntimas produzidas nas casas e nas
narrativas da história – nomear a personagem de quem trataremos já é um estudo a
parte, mas nos refiramos a ela como Malinche.
A figura de Malinche provoca, em si, uma controvertida variedade de
emoções. Nela se funda a história do México pós-Hispânico em um entrecruzamento
da mitologia e da história. Era (Malintzin) uma autóctone talvez de família nobre que,
com a morte do pai e da avó paterna, aos nove anos é entregue como escrava pela
mãe. Ela é violentada em diversos níveis e depois é vendida pelos pochtecas. Em
1519 é presenteada a Hernán Cortés, que a entrega a outro senhor – Alonso
Hernández Portocarrero, mas retorna a ele como sua intérprete (la lengua) por
conhecer algumas línguas autóctones (o maya e o nahualt) e, posteriormente, o
castelhano. Ela ganha importância na vida de Cortés e na conquista do México por
negociar com as tribos descontentes com o domínio azteca e por indicar a Cortés o
melhor modo de se aproximar (e vencer) aqueles povos. Eles se tornam amantes
(expressão controversa quando uma das partes foi escravizada) e Malinche se torna
sua esposa e mãe do primeiro mestiço conhecido na história da México: Martín Cortés.
Como de costume para esses “conquistadores” Cortés terá também uma esposa
espanhola (Catalina) e com sua ida para o México, abandona Malinche. Em 1524 ele a
casa com Juan Jaramillo que estaria bêbado na cerimônia. Ela morre misteriosamente
em sua casa, em 1529, provavelmente assassinada por ordem de Cortés, para que
não depusesse contra ele em juízo (RICO: s/d.).
Um dos mais importantes registros desse período é o do já citado Bernal Díaz
del Castillo que em sua Verdadera historia de la conquista de la Nueva España revela
seu reconhecimento do papel de Malinche na Conquista e na vida de Cortés, não
apenas como uma escrava submissa, mas como de fato uma interlocutora e
negociadora entre conquistadores e conquistados; para que tenhamos uma ideia,
Malinche é citada cerca de 40 vezes no relato do cronista (como D. Marina). Assim ela
é introduzida na narrativa:
Otro día de mañana, vinieron muchos caciques y principales de
aquel pueblo de Tabasco y de otros comarcanos, haciendo
mucho acato a todos nosotros, y trajeron un presente de
oro.No fue nada todo este presente en comparación de veinte
mujeres, y entre ellas una muy excelente mujer, que se dijo
doña Marina, que así se llamo después de vuelta cristiana.
Cortés recibió aquel presente con alegría, y se apartó con
todos los caciques y con Aguilar, el intérprete, a hablar, y les
dijo que por aquello que traían se lo tenía en gracia; mas que
una cosa les rogaba, que luego mandasen poblar aquel pueblo
con toda su gente y mujeres e hijos. Lo otro que les mandó fue
que dejasen sus ídolos y sacrificios, y respondieron que así lo
harían (DÍAZ DEL CASTILLO, 2013: 26).
Em contrapartida, Cortés a cita apenas uma vez na 5ª Carta de Relação,
escrita em 15261. Nos dois relatos, no entanto, a função de lengua é destacada e
revela ainda mais: com a chegada de Cortés ao México, Francisco de Aguilar, que
apenas conhecia a língua maya precisará de um suporte (que será Malinche). Os
lenguas, de modo geral, eram naturais/autóctones escravizados (e batizados) que
enganavam muitas vezes os espanhóis; em uma sociedade que valorizava o
masculino Malinche será uma das poucas mulheres a exercerem essa função (se tem
registro de uma jamaicana que também o era), mas isso se dá, também, pela imagem
que os espanhóis faziam dela: “de buen parecer y entremetida y desenvuelta” (DÍAZ
DEL CASTILLO, 2013: 27); agregando características fundamentais: o porte e a
obediência à coroa espanhola.
1
“(...) para que creyese ser verdad, que se informase de aquella lengua que con él hablaba,
que es Marina, la que yo siempre conmigo he traído, porque allí me la habían dado con
otras veinte mujeres; y ella le habló y le certificó de ello, y cómo yo había ganado a México, y le
dijo todas las tierras que yo tengo sujetas y puestas debajo del imperio de vuestra majestad, y
mostró holgarse mucho en haberlo sabido, y dijo que él quería ser sujeto y vasallo de vuestra
majestad y que se tendría por dichoso de serlo de un tan gran señor como yo le decía que
vuestra alteza lo es” [grifo meu] (CORTÉS, s/d.:17).
Glantz observa que “para os espanhóis o intérprete é um corpo mutilado,
transformado em sinédoque, a figura retórica que toma a parte pelo todo e condensa
em um só órgão a eficácia de seu fazer, mas (...) em contradição com essa operação
simbólica, o corpo em sua totalidade deve incorporar-se a outra forma de conceber o
corpo em outra forma de vê-lo” (GLANTZ A, s/d: 7). O indígena escravizado era
batizado com as roupas e a língua de seu senhor; porém, as mulheres permaneciam
com as roupas de seu povo, como pode ser observado nos relatos e nos códices nos
quais Malinche é representada trajando seu huipil, interposta entre figuras, por
exemplo, Moctezuma e Cortés.
O herói da epopeia de Bernal é rebatizado e o discurso do conquistador
passa a ver-se, também, no significante que lhe outorga o conquistado: Cortés passa
a ser conhecido pelos autóctones por Malinche2. Ironicamente, o silêncio relegado
discursivamente à Malinche (Malinalli) é rompido pelo poder de nomear a Cortés, em
uma fusão de significante e significado; um corpo duplo, pelo menos na visão
daqueles que por Malinche o batizaram, contraposto à hierarquia e soberania vista
pelos espanhóis, como descreve Bernal ao contrapor sua virilidade aos imberbes
indígenas.
No século XIX, tempo tomado pelo nacionalismo, Ignácio Manuel Altamiro
comparou Malinche com Medeia, conhecida nas letras gregas por ser traidora de seu
povo e assassina de seus filhos; ambas eram princesas e peças fundamentais na
conquista exercida por seus amantes. Cabe observar que o papel delegado à mulher é
o da que apóia, auxilia o homem em sua aventura de conquistador, portanto, uma
coadjuvante. Sua história é incerta, assim como é incerto seu nome para o qual os
ensaístas e ficcionistas trataram de recobrar (ao seu significante) vários significados.
Voltando-nos ao século XIX, Malinche protagonizará a obra La noche triste, de Ignácio
Ramírez, na qual o anti-hispanista a representa como a traidora que fará sofrer
gerações e gerações de seu povo, por não suportar a ideia de ser rechaçada por
Cortés ou ser entregue como sacrifício a um deus asteca (STEN, 134).
Contemporânea a esse romance, o dramaturgo Alfredo Chavero lança a obra Xóchitl
(1879), que será a nova paixão do “conquistador” por quem a aqui chamada Marina
será trocada – na tragédia a personagem ganha voz e se apresenta como uma
2
“(...) llamaban a Cortés Malinche, y así lo nombraré de aquí adelante Malinche en todas las
pláticas que tuviéremos con cualesquier indio así de esta provincia como de la ciudad de
Méjico; y no lo nombraré Cortés sino en parte que convenga. Y la causa de haberle puesto este
nombre es que como doña Marina, nuestra lengua, estaba siempre en su compañía, en
especial cuando venían embajadores o pláticas de caciques, y ella lo declaraba en la lengua
mejicana, por esta causa llamaban a Cortés el capitán de Marina, y por más breve lo llamaron
Malinche” (DÍAZ del CASTILLO, 2013: 60).
amante vingativa (a la Medeia) que deseja o sofrimento do amante a quem ameaça
com a morte do filho.
Uma das mais emblemáticas visões sobre Malinalli é a de Otávio Paz, que lhe
dedica um capítulo (los hijos de malinche) do célebre “El laberinto de la soledad”, de
1950. Nele, Paz assevera:
Doña Marina se ha convertido en una figura que representa a
las indias, fascinadas, violadas o seducidas por los españoles.
Y del mismo modo que el niño no perdona a su madre que lo
abandone para ir em busca de su padre, el pueblo mexicano no
perdona su traición a la Malinche. Ella encarna lo abierto, lo
chingado, frente a nuestros (...) impasibles y cerrados.
Cuauhtémoc y doña Marina son así dos símbolos _aria_ários y
_aria_ários_ios. Y si no es sorprendente el culto que todos
profesamos al joven emperador —“único héroe a la altura del
arte”, imagen del hijo sacrificado— tampoco es extraña la
maldición que pesa contra la Malinche. De ahí el _aria del
adjetivo despectivo “malinchista”, recientemente puesto em
circulación por los periódicos para denunciar a todos los
contagiados por _aria_ário extranjerizantes. Los malinchistas
son los _aria_ários de que México se abra al exterior: los
verdaderos hijos de la Malinche, que _a la Chingada en
persona” (PAZ, 1992: 35-36).
Alguns dos conceitos trazidos por Paz são postos de lado e não mais se
discute a problemática de uma identidade nacional de pachucos (os que não seriam
nem mexicanos nem espanhóis), mas surge em meio a isso uma nova Malinche
símbolo da identidade mexicana. Paz a analisa como um ser histórico que transforma
em mito, símbolo da mulher mexicana, a chingada. Em uma revisão de seu texto, mais
tarde dirá:
El lenguaje popular refleja hasta qué punto nos defendemos del
exterior: el ideal de la “hombría” consiste en no “rajarse” nunca.
Los que se “abren” son cobardes. Para nosotros,
contrariamente a lo que ocurre con otros pueblos, abrirse es
una debilidad o una traición. El mexicano puede doblarse,
humillarse, “agacharse”, pero no “rajarse”, esto es, permitir que
el mundo exterior penetre en su intimidad. El “rajado” es de
poco fiar, un traidor o un hombre de dudosa fidelidad, que
cuenta los secretos y es incapaz de afrontar los peligros como
se debe. Las mujeres son seres inferiores porque, al
entregarse, se abren. Su inferioridad es constitucional y radica
en su sexo, en su “rajada”, herida que jamás cicatriza.
Tal excerto é apontado por Margo Glantz em Las hijas de Malinche, que cobra
de Paz a exclusão da mulher no nosotros usado por ele ao definir o mexicano: se ser
mexicano, se ser filho de Malinche é ir em direção ao nada, que sobrará para a
mulher, a quem será atribuída uma dupla marginalidade (GLANTZ, 1992: 3-4),
questiona a autora.
Carlos Fuentes, amigo e depois desafeto de Paz escreve em 1970 Todos los
gatos son pardos, motivado pela concepção de Artur Miller sobre a conquista do
México – o dramático encontro do homem que tudo tinha (Moctezuma), com o que
nada tinha (Hernán Cortés) – e pelo estudo de Lacan cuja premissa é a de que “o
inconsciente é o discurso do outro” (FUENTES, 2005: 5). Fuentes pretende
desmascarar os discursos de poder e já no prefácio anuncia que: “el clamor de
Malinche es la advertencia del nuevo sacrificifio humano y de la nueva necesidad
humana de México nacido después de la conquista” (p. 8). A questão do outro, da
estrangeirização do mexicano é constante na discussão de sua identidade nacional e
este é um ponto de intersecção entre os estudos de Paz e Fuentes. Não nos cabe,
neste momento, aprofundarmo-nos nos textos de Fuentes ou de Paz, mas é inegável
sua contribuição para o estudo de Malinche; Fuentes a apresenta como a mãe do
primeiro mexicano, e garantirá a Malinche em seu texto um lugar no discurso como a
voz de quem viveu a história, a reporta ao século XX quando lutará pelos seus filhos
contra as instituições de poder.
Muitos dos textos críticos, ensaísticos ou ficcionais apresentados têm um
caráter notoriamente machista e parecem abreviar sua condição de escrava sexual. As
questões de gênero e raça estão atravessadas nos discursos sobre Malinche e sobre
a própria colonização, que acabam por tornar-se O discurso DE Malinche. Ainda que
uma das mais importantes intérpretes e negociadoras do processo, é entregue em
sacrifício aos vencedores e será um corpo tomado pela parte la lengua que,
ironicamente, não terá voz no enunciado dos cronistas.
Nesse sentido, cabe pensar como esse discurso se constitui na narrativa
ficcional escrita por Laura Esquivel em 2005, já que a voz de Malinche será um
constructo discursivo reconstruído pelo outro, pois não temos registros seus. Uma
relação da consciência moderna com e sobre a figura de Malinche é trazida por
Esquivel, que funda um sujeito (Malinche) consciente de seus conflitos de identidade e
com uma visão bastante “bem resolvida” sobre a presença e domínio dos homens de
barba, já que desde o princípio da narrativa Malinche se questiona e sofre por ser
escravizada. O caráter individual não era previsto em sua comunidade, que
determinava os destinos a partir da interpretação dos presságios. Com base no dia do
nascimento de um bebê e de seu sexo era traçada sua trajetória. A escolha por seu
nome, seu primeiro batismo e seu passado nobre legitimam seu papel na conquista e
os mecanismos de controle sobre si. O narrador refaz toda a trajetória da menina,
desde o nascimento, até ser abandonada pela mãe e escravizada desde a infância.
Sua aparente resignação com o domínio dos brancos é rompida pelos apelos que faz
a Quetzalcoátl e à avó e pelo espanto com os milhares de mortos deixados pelos
espanhóis. “Tenía que haber alguna otra manera de castigarse pero no encontraba
cual. Sin embargo, se sentía sucia, pecadora” (p.50). Essa mescla de valores cristãos
(o pecado) com a obediências aos deuses de seu povo dão um caráter específico a
esta Malinali: uma lógica de devoção a sua fé e a seu amor a Cortés seriam o
motivadores de seus atos.
A narrativa de ficção, ao romantizar a figura do conquistador assim o
apresenta: “nunca se lo dijeron abiertamente, pero él sentía en su corazón que a sus
padres les decepcionaba su corta estatura. Le faltaba altura para formar parte de una
orden de caballería o un ejército” (ESQUIVEL, 2006: 8). Cortés também trará os
valores medievais caros a um cavalheiro: por não poder dar a Malinche a família que
queria, ele a casa com Jaramillo, um homem apaixonado que lhe daria a vida que
merecia; seu afã conquistador se justificará na fé:
(...) nunca había sentido tanta fe reunida. Y pensó que si estos
indios, en vez de dedicar su fe a un dios equivocado la
encaminaran con el mismo empeño al dios verdadero, iban a
ser capaces de producir muchos milagros. Esta reflexión lo
llevó a concluir que tal vez ésa era su verdadera misión, salvar
de las tinieblas a todos los indios, ponerlos en contacto con la
religión verdadera, acabar con la idolatría y con la nefasta
práctica de los sacrificios humanos, para lo cual tenía que tener
poder, y para adquirirlo tenía que enfrentarse al poderoso
imperio de Moctezuma. Con toda la fe que le fue posible, le
pidió a la Virgen que le permitiera salir triunfante en esa
empresa (p. 23).
E, finalmente, a morte de Malinche, cuja assassinato não é cogitado, mas sim,
uma decisão da própria personagem que cansa de viver após o pedido de Cortés para
que seja sua testemunha; se despede dos deuses e da família e morre.
O passado de Malinche como nobre indígena escravizada ou como escrava
que chega à princesa parecem ressaltar e balizar o discurso do colonizador que
reconhece seu papel na conquista, a batiza (Marina) e lhe cobra a lealdade à causa
espanhola tão cara nessas épocas de Conquista travada por aventureiros que
buscavam riqueza pessoal travestida nas diversas e nobres motivações (religiosas,
principalmente).
A utopia de encontrar aqui um mundo de riquezas parece ter-se tornado
realidade, excetuando-se o monstruoso construído pelo desconhecimento de nossas
terras, gentes e discursos que ainda buscam um real espaço discursivo que dê conta
de dizer do que é feito nosso sujeito. Nosso espaço ficcional dá forma ao mito na
recuperação do passado e das tradições latino-americanas, mas percebemos a
continuação da cultura dialógica (racionalidade versus barbárie), da diferença agora
politicamente correta. Fomos levados a pensar que aquela fosse nossa imagem e
seguimos sendo o que não fomos ou somos. Seria o fronteiriço nosso espaço de
inscrição? Hoje, a pluralidade de espaços discursivos busca, quiçá, romper (com o que
nos alertou Raymond Willians) com os movimentos que rompem e fossilizam a
história. Serão as diferentes concepções de cultura que farão possível rever o mito da
colonização e refazer sua trajetória narrada.
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