Território em transe: a Floresta Nacional de Carajás1 Jorge Luis Ribeiro dos Santos2 Resumo O presente artigo reflete sobre a criação da Floresta Nacional de Carajás no município de Parauapebas-PA, e as motivações sócio-econômicas, políticas e ambientais implicados na criação desta Unidade de Conservação – UC relacionadas com a implantação do Projeto Grande Carajás de extração mineral na região da Serra dos Carajás. O trabalho consistiu metodologicamente em análise bibliográfica e documental, pesquisas na internet e com atores informantes. Considerou-se os fundamentos teóricos subjacentes às políticas ambientais no Brasil, a partir dos anos oitenta, e a aproximação da presente situação destas UCs em cotejo com os debates sócio-ambientais atuais. No caso investigado o contexto geopolítico, econômico e o ambientalismo, então vigentes, influíram nas decisões governamentais para a criação destas áreas protegidas UC´s. Todavia, estas UC´s, a despeito dos seus conflitos socioambientais, se estruturam, se reestruturam e se reconstroem sob a influência de novos paradigmas socioambientais, depois de mais de vinte anos de sua criação. Palavras-chave: Unidades de Conservação, socioambientalismo, Amazônia. I - Introdução O presente artigo tece reflexões acerca da criação da Floresta Nacional de Carajás (comumente denominada de FLONA de Carajás) uma das Unidades de Conservação (UC) criada na chamada Província Mineral de Carajás3, Serra dos Carajás, município de Parauapebas, no Sudeste do Pará e busca contextualizar historicamente o processo e motivações sócioeconômicas, políticas e ambientais implicados na criação desta UC. O trabalho consistiu metodologicamente de análise bibliográfica e documental e pesquisas na internet. Ouviu-se também alguns atores e informantes para a reconstituição histórica de alguns conflitos e aspectos afetos à temática trabalhada. Buscou-se contextualizar o momento histórico local, que antecede a criação desta UC, em que os efeitos das intervenções estatais (re)estruturaram o território de Carajás, em função da implantação do Projeto Grande Carajás (PGC) de exploração mineral. Considerou-se os fundamentos subjacentes às políticas ambientais no Brasil, a partir dos anos oitenta, para uma aproximação da atual situação desta UC, e de outras ali criadas, em cotejo com os debates sócio-ambientais e jurídico-ambientais atuais. Ao final se conclui que, a despeito de uma concepção inicial conservacionista e centralizadora do Estado ao instituir a FLONA de Carajás 1 - Este artigo foi apresentado como atividade avaliativa durante a disciplina “Tópicos especiais: populações tradicionais, territórios sociais quilombolas e indígenas e unidades de conservação” no Programa Pós-Graduação em Direito da UFPA. 2 - Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS, advogado, professor de Direito da UFPA, doutorando em Direitos Humanos no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Pará - UFPA. 3 - A definição e delimitação das “províncias minerais” é feita pelo DNPM – Departamento Nacional de Pesquisas Minerais. Segundo o órgão as chamadas Províncias Minerais são áreas classificadas como de relevante valor mineral. “As províncias minerais brasileiras foram caracterizadas a partir da seleção de 160 áreas, catalogadas como as principais produtoras de bens minerais, agrupando-as, em seguida, com base em critérios geológicos”. (...) Desse processo resultou a delimitação de 33 províncias minerais” dentre as quais a denominada Província Mineral de Carajás (DNPM, 2010) 2 4 e as demais UC´s do Mosaico de Carajás juntamente com a TI Xikrín do Cateté, mais com forte motivação de se construir um “escudo” verde para afastamento de intrusão humana na área, o Estado agiu motivado tanto por um complexo de interesses econômicos internos e transnacionais quanto por exigências ambientais impostas pelos financiadores bilaterais do PGC. O contexto geopolítico, econômico e do ambientalismo, então vigentes, influíram nas decisões governamentais. Tais fatores possibilitaram a criação destas áreas protegidas. Todavia, estas UC´s não estão isentas dos conflitos socioambientais, sejam internos ou exógenos. Elas se reestruturam e se reconstroem sob a influência de novos paradigmas socioambientais ao longo destes mais de vinte anos de sua criação. II - Contexto da ocupação fronteiriça: um território em transe. O processo de criação de UC´s durante o regime militar na Amazônia teve como principal característica as decisões centralizadas e autoritárias que pouco levaram em conta o caráter sócio-cultural implicado nesta nova intervenção territorial, assim como o foram as demais políticas públicas instituídas pelo regime ditatorial nesta região. A região de Carajás foi instituída por decreto nos anos oitenta. Como narra Almeida (1993, p. 19), o Decreto 1.813/80 criou o Programa Grande Carajás e delimitou um espaço supostamente homogêneo, instituído para fins administrativos, financeiros e fiscais. O estoque territorial considerado necessário a um grande programa oficial é, assim, produto de uma imposição. O ato jurídico, mais que configurar a área decretada, legaliza o arbitrário desta base cartográfica. Esta medida organiza territorialmente uma coalizão de interesses empresariais e financeiros complexos que abarcam empresas transnacionais, agências financeiras multilaterais e o próprio Estado (agências reguladoras e de planejamento estatal, empresas estatais, mineradoras, siderurgias, reflorestadoras, fábricas, madeireiras, carvoarias, agropecuaristas, guseiras, empreiteiras, indústrias de óleos vegetais, hidrelétricas, bancos, etc.) (ALMEIDA, 1993). A partir daí é que as terras indígenas na área de influência do PGC serão demarcadas e homologadas sucessivamente, assim como as principais áreas de preservação ambiental serão criadas na área de extração mineral da Serra de Carajás e no seu entorno5. Hoje as FLONAS 4 - Consideramos o conceito de mosaico o conjunto de unidades de conservação contíguas conforme disposto na Lei do SNUC, Lei 9985/2000 em seu Art. 26, que diz: “Quando existir um conjunto de unidades de conservação de categorias diferentes ou não, próximas, justapostas ou sobrepostas, e outras áreas protegidas públicas ou privadas, constituindo um mosáico, a gestão do conjunto deverá ser feita de forma integrada e participativa, considerando-se os seus distintos objetivos de conservação, de forma a compatibilizar a presença da biodiversidade, a valorização da sociodiversidade e o desenvolvimento sustentável no contexto regional. Parágrafo único. O regulamento desta Lei disporá sobre a forma de gestão integrada do conjunto das unidades” (grifo nosso). 5 - Foram criadas as seguintes áreas indígenas: Dec. 316/91 – Demarcação da Terra Indígena (TI) Kaiapó; Dec. 93148/86, Demarcação da TI Mãe Maria (Gaviões); Dec. 88648/83 – Demarcação da TI Sororó; Portaria Ministerial 319/93 – Declara ocupação e posse dos grupos indígenas: Araweté, Assurini, Xikrín e Apyterewa. Já as UC´s criadas foram a FLONA (Floresta 3 (Florestas Nacionais) e áreas de uso sustentável criadas como Flona de Carajás, Flona do Itacaiúnas e Flona do Tapirapé-Aquirí e APA (Área de Preservação Ambiental) do Igarapé Gelado) formam o “arco” da mineração da Vale, protegidas por um “escudo” de uma UC de uso indireto a REBIO (Reserva Biológica) do Tapirapé. A TI Xikrín do Cateté completa o “escudo” geopolítico (vide mapa pg. 06) de limitação socioambiental e cartográfica da região de Carajás. Esta delimitação territorial se deu sucessiva e concomitantemente à forte ocupação da Amazônia oriental brasileira, a partir dos anos 60. Várias frentes de expansão desestruturaram as organizações sociais e étnicas então existentes (GUERRA, 2001, HEBETTE, 2004). A região era ocupada por camponeses e indígenas quando o “progresso” veio com as rodovias, formação de núcleos urbanos caóticos, empreendimentos empresariais, minerários e agropecuários. Tudo isto transformou a região em uma área de constantes conflitos e transformações sócioambientais profundas. A Amazônia, a partir do golpe militar de 1964, com o deslocamento da “fronteira”6 constitui-se num cenário de ocupação massiva de seu território, de forma violenta e rápida, ela significa destruição, mas também resistência e esperança, salienta Martins (MARTINS, 1997). A descoberta de jazidas minerais na Serra dos Carajás e de ouro na Serra Pelada, nos anos oitenta, provocaram uma intensa migração e apropriação de milhares de hectares de terra por fazendeiros, mineradoras e empresas, surgiram novos atores no contexto social (PETIT, 2003) e a desarticulação de comunidades indígenas e tradicionais. A região tornou-se cenário de transformações com o ingresso de mineradoras, estradas, hidrelétricas, siderurgia, serrarias, garimpos, cuja conseqüência foi uma abrupta reestruturação espacial que veio impactar de forma sensível o contexto sócio-ambiental. Nas últimas décadas que se seguram ao golpe militar, a região deixa de ser apenas um território composto por terras devolutas, dos donos de castanhais e de índios, e passa a ser também terra dos bancos, dos pecuaristas, dos grileiros, dos garimpeiros, dos projetos de colonização, das companhias de mineração e das indústrias de ferro-gusa (GUERRA, 2001), e também territórios de intervenção e domínio federal do INCRA, do Exército e de empresas Estatais. Almeida (2004)7, em outro contexto, afirma que a Amazônia da década de setenta seguia o rumo histórico da modernização capitalista, orientado pelos militares e classes dominantes, para a ocupação dos espaços “vazios” da fronteira e no avanço sobre as terras livres, sob o financiamento do capital internacional. Mas nos anos que se seguiram na década de oitenta, a história não se seguiu assim. Índios até então “invisíveis” impuseram demandas frente ao Estado e invasores, conflitos e resistências camponesas se acentuaram num complexo de relações e Nacional) de Carajás pelo Dec. no 2.486/98 e FLONA do Itacaiúnas pelo Dec. Decreto 2480/98. Já o Dec.97718/89 Cria a APA (Área de Proteção Ambiental) do Igarapé Gelado, o Dec. 97719/89 a REBIO (Reserva Biológica) do Tapirapé e o Dec. 97720/89 cria a FLONATA - FLONA do Tapirapé-Aquiri. 6 - Para Martins (1997) fronteira significa não só frente pioneira ou expansão geográfica, mas também fronteira “do humano” onde o sujeito se transforma, se transporta, conflita, às vezes subjugado, outras libertado. 7 - O autor analisa em seu trabalho a transição na trajetória de líderes seringueiros do Acre que construíram um movimento e ao “ecologizar” suas lutas ganharam visibilidade nacional e internacional. 4 interações inesperadas. Pensar que o poder hegemônico possa incontestavelmente controlar territórios e povos e desacreditar-se das mudanças impostas por agentes locais é perder a perspectiva de que “haja caminhos imprevistos por meio dos quais se constroem fatos novos em nível local, e que não eram previstos nos esquemas antecipados” (ALMEIDA, 2004: 48). Mudanças e resistências afloraram naquele território até então silenciado. UC´s foram criadas, terras indígenas demarcadas. Um Estado preservacionista é acionado, ao mesmo tempo este mesmo Estado toma feição desenvolvimentista empresarial, avança sobre as terras e promove a limpeza territorial, degrada povos tradicionais e biomas, instituições governamentais se acionam e cindem interesses e populações tradicionais (ou tradicionalizadas)8 resistem em suas posses. Um novo desenho territorial se constrói em movimentos divergentes e convergentes, até se tornar o que veio a se chamar o, ainda tenso, território do Mosaico de Carajás, onde se constituíram de formas geograficamente contíguas de UCs (três FLONAS, uma REBio e uma APA) e a Terra Indígena (Xikrín do Cateté). II - Tensões no (re)desenho territorial O PGC foi uma iniciativa centralizada pelo governo militar. As jazidas foram encontradas em 1967 nas Serras de Carajás, Buritirana e Serra do Sereno. Em 1970 a estatal CVRD (Companhia Vale do Rio Doce) une-se à americana United States Steel para explorar o ferro de Carajás. Em 1974 a CVRD obtém direito de lavra para toda a região de Carajás (COTA, 2007). Em 1980 o governo oficializa a delimitação territorial do PGC9, através do Decreto 1813 que para Almeida (1993) constitui-se de um espaço que se supunha homogêneo, criado por um ato impositivo e autoritário, visando delimitar administrativa, fiscal e financeiramente o espaço, dentro de uma complexa coalizão de interesses empresariais, abrangendo uma área de 900.000 km², entre parte dos estados do Pará, Tocantins e Maranhão, o que corresponde a 11% do território nacional. A região é recortada geoestrategicamente, segundo os interesses das empresas estatais e privadas e das agências internacionais financiadoras, como Banco Mundial e G-7. Institui-se 8 - O termo população tradicional aqui parte da definição de Little (2002) que designa esta população como indivíduos cuja vivência junta “fatores como a existência e regimes de propriedade comum, o sentido de pertencimento a um lugar, a procura de autonomia cultural e práticas adaptativas sustentáveis”. O termo foi incorporado em instrumentos legais do governo federal como a Constituição de 1988 e a Lei do SNUC. O conceito de povos tradicionais encontra semelhanças dentro da diversidade fundiária do país e se insere no campo das lutas territoriais presentes no Brasil. Cunha (1999) completa: “são populações tradicionais aquelas que aceitam as implicações da definição legal que exige o "uso sustentável de recursos naturais" - seja conforme práticas transmitidas pela tradição, seja por meio de novas práticas. Uma outra maneira de entender este processo é perceber que "população tradicional" é uma categoria ocupada por sujeitos políticos, que se dispõem a ocupá-la, comprometendo-se com certas práticas associadas à noção de uso sustentável”. 9 - Os objetivos proposto pelo PGC, era alcançar um crescimento regional harmônico e equilibrado, promover a descentralização nacional, gerar empregos, redirecionar fluxos migratórios, pagamento da dívida externa (Cota, 2007). 5 programas com pólos florestais, siderúrgicos, agrícolas, assim como projetos agroindustriais, agropecuários, madeireiros e mineradores (ALMEIDA, 1993; PICOLI, 2007). A CVRD investe no domínio territorial de Carajás para consolidar o espaço de exploração mineral. As agências financiadoras internacionais do PGC impõem como condicionantes ao seu financiamento da exploração de minérios a regularização fundiária da região. Isto implica em demarcação de terras indígenas, criação de áreas de proteção ambiental e amparo às populações indígenas. O que subjaz a este movimento pela regularização fundiária, para Almeida (1984), é o objetivo de dar segurança jurídica aos investimentos na região, o que significa colocar as terras no mercado, desimpedidas de quaisquer “irregularidades” cartoriais ou normativas. Estas exigências visam retirar o mercado paralelo, informal ou costumeiro as terras e colocá-las no mercado formal, ou seja, possibilitar a mercantilização de terras imobilizadas e a formalização jurídica desta terra. Tem-se então o incremento de demarcação territorial do entorno da Serra de Carajás que é seguido de uma confusa incidência de domínios sobre os territórios e sobreposições como áreas do Exército, do INCRA e de posseiros, sobre as quais se impõe posse da CVRD e interesses do Estado do Pará (Gleba Ampulheta, Cinzento e Aquiri) e também áreas de preservação ambiental já criadas, as quais coincidiam com áreas de pretensão da CVRD (Almeida, 1993). Até que foram finalmente delimitadas todas as UC´s e devidamente regulamentadas dando solução ao menos demarcatória ao território com as últimas UC´s regularizadas no final dos anos noventa (vide mapa). 6 Fonte:http://mosaicocrajas.webng.com No Brasil, a partir dos anos sessenta, com a vigência do Código Florestal de 1965 as UC´s criadas se fundavam na proteção não só de monumentos de valor estético e cultural para a proteção também de espécies ameaçadas de extinção (FILHO, 1997). Nos anos setenta as UC´s ganharam caráter ainda mais abrangente visando proteger também ecossistemas de grande biodiversidade, já nos anos oitenta considerou-se a conservação da biodiversidade para o uso da biotecnologia e também da manutenção do equilíbrio ecológico do planeta. Nos anos noventa a preocupação volta-se para uma conservação da biodiversidade no contexto da sustentabilidade, embora o próprio Filho (1997) faça advertência a uma periodização rígida. O autor reitera que é na Amazônia que se cria mais UC´s no Brasil nas décadas de setenta e oitenta e contraditoriamente é nesta região onde se instala um sistema de degradação pelo desmatamento em grande escala (FILHO, 1997). O mesmo Estado que imprime uma concepção preservacionista no processo de criação de diversas UC`s também promove incentivos fiscais e financeiros para a iniciativa privada, na prática, desmatar e promover a limpeza da floresta para criação do gado, implemento da indústria madeireira e produção carvoeira. Um aspecto predominante dentre as motivações e interesses no início da exploração minerária na Serra dos Carajás e que motivou a criação destas UC`s e a demarcação da TI Xikrín do Cateté formando o Mosaico de Carajás, deve-se a dois fatores, pelo menos, que nos parecem fundamentais: um é geoestratégico e o outro é contratual. 7 Em primeiro lugar o contexto da criação da FLONA de Carajás e outras UC´s do entorno é o momento do Estado que tem uma perspectiva de expansão capitalista dando continuidade à política macro-econômica do Estado ditatorial, na região. É um Estado redemocratizado, mas cujo domínio territorial ainda tem fins específicos e está subordinado ao grande capital internacional, principalmente, e assenta-se na economia extrativo-exportadora. As políticas públicas federais se assentam na idéia de que a Amazônia estaria vocacionada à grande produção agro e mínero-exportadora nacional. Desta forma o Estado deve promover a limpeza territorial da Serra dos Carajás, garantir a segurança militarizada da região das minas e seu entorno por processos repressivos e preventivos. A Vale estatal pagava à segurança particular ou pública para evitar intrusão de garimpeiros, posseiros, ribeirinhos, ao mesmo tempo em que promovia, pela via judicial ou policial, a retirada de moradores mais antigos. Para consecução do seu domínio sobre a área são criadas UC´s que irão compor uma área “escudo” que irá proteger a mineração sem intrusão humana. A esta época o antigo IBDF prestava-se aos interesses gerais da estatal. Com a extinção do IBDF e implantação do IBAMA não houve mudanças significativas, a Vale determinava e financiava a vigilância do território conforme seus interesses de exploração. Nos últimos anos este modelo centralizado de gestão territorial de UC´s tem mudado drasticamente, principalmente com a vigência em 2000 da Lei do SNUC que de certa forma abre espaços para gestão compartilhada e mais participativa das UC´s. Neste contexto a FLONA de Carajás10, encravada na região central da Província Mineral do Carajás e circundada pelas outras UC´s e TI Xikrín do Cateté, desempenha papel importante na gestão futura destas UC´s e na construção partilhada de novos paradigmas sustentáveis de inter-relação da natureza com a população local (instituições de ensino, entidades, movimentos sociais e ONG´s) e não somente com a empresa mineradora como único interlocutor na gestão do território com os órgãos institucionais (ICMBIO e IBAMA). A FLONA de Carajás foi criada em 1998 quando a área já era concedida à CVRD há décadas. Todas as UC`s de Carajás foram instituídas sob a vigência do Código Florestal de 1965. Mesmo nesta Lei as áreas de preservação criadas limitavam à presença humana. Só com advento da Lei SNUC estas UC´s adquiriram denominação atualizada sem que tenha mudado as restrições quanto às categorias de UC´s criadas. A Lei do SNUC dispõe sobre as diversas categorias de UC´s segundo os objetivos e graus de interferência humana sobre as mesmas. Neste sentido a FLONA de Carajás, de uso sustentável, isto é, admite uso de seus recursos naturais, é espaço de domínio por sessão de uso concedido à Vale e está rodeada de outras UC´s de uso sustentável (APA e FLONA) e de uso indireto (REBio) que, sendo assim, possui 10 - Como descrito no Plano de Manejo a FLONA de Carajás “limita-se ao norte com a Área de Proteção Ambiental do Igarapé Gelado, a noroeste com a Floresta Nacional do Tapirapé-Aquiri e, a oeste, com a Reserva Indígena Xikrín do Cateté. A sudoeste é delimitada pelo rio Itacaiúnas e Reserva Indígena do Xikrín do Cateté, ao sul constitui fronteira seca com propriedades rurais de terceiros, a sudeste limita-se com o Igarapé Sossego e propriedades de terceiros e a leste é limitada pelo rio Parauapebas e propriedades de terceiros (Plano de Manejo, 2003). 8 11 limitações rigorosas à interferência humana conforme Lei SNUC de 2002 . Por outro lado é protegida geograficamente pela TI Xikrín do Cateté, cuja categoria não se enquadra na classificação de UC´s12. Em segundo lugar o PGC é fruto de uma articulação econômica supranacional que teve o aval e financiamento do BIRD e G7. As agências multilaterais instituíram, depois da Convenção de Estocolmo em 1972, certo componente ambientalista em suas políticas de fomento econômico. Desta forma dentre as exigências impostas pelo Banco figuram a mitigação dos impactos ambientais bem como a proteção das populações indígenas diretamente afetadas pelo projeto. Vem desta cláusula a obrigação da Vale de repassar recursos financeiros para populações indígenas impactadas com o PGC como os povos indígenas Xikrín, Sororó e Gavião, assim como financiar projetos de educação ambiental e de preservação nas UC´s da Serra de Carajás. 11 - O Artigo 2º, incisos IX, X e XI, respectivamente, da Lei 9.985/ 2000 que cria o SNUC - Sistema Nacional de Unidades de Conservação define como uso indireto: aquele que não envolve consumo, coleta, dano ou destruição dos recursos naturais; uso direto: aquele que envolve coleta e uso, comercial ou não, dos recursos naturais; uso sustentável: exploração do ambiente de maneira a garantir a perenidade dos recursos ambientais renováveis e dos processos ecológicos, mantendo a biodiversidade e os demais atributos ecológicos, de forma socialmente justa e economicamente viável. Já o Art. 7º., incisos I e II divide os grupos de UC´s em Unidades de Proteção Integral e Unidades de Uso Sustentável. Na seqüência os § 1º e 2º. Determinam que o objetivo das Unidades de Proteção Integral é preservar a natureza, sendo admitido apenas o uso indireto dos seus recursos naturais e o objetivo das Unidades de Uso Sustentável é compatibilizar a conservação da natureza com o uso sustentável de parcela dos seus recursos naturais. As APAS e FLONAS são de Uso Sustentável, já a REBio é Unidades de Proteção Integral. A lei assim caracteriza as APAS, FLONAS e REBios: Art. 8º. O grupo das Unidades de Proteção Integral é composto pelas seguintes categorias de unidade de conservação: (...) II - Reserva Biológica; (...) Art. 10. A Reserva Biológica tem como objetivo a preservação integral da biota e demais atributos naturais existentes em seus limites, sem interferência humana direta ou modificações ambientais, excetuando-se as medidas de recuperação de seus ecossistemas alterados e as ações de manejo necessárias para recuperar e preservar o equilíbrio natural, a diversidade biológica e os processos ecológicos naturais. (...) § 2º. É proibida a visitação pública, exceto aquela com objetivo educacional, de acordo com regulamento específico. § 3º. A pesquisa científica depende de autorização prévia do órgão responsável pela administração da unidade e está sujeita às condições e restrições por este estabelecidas, bem como àquelas previstas em regulamento. (...) Art. 14. Constituem o Grupo das Unidades de Uso Sustentável as seguintes categorias de unidade de conservação: I - Área de Proteção Ambiental; (...); III - Floresta Nacional; Art. 15. A Área de Proteção Ambiental é uma área em geral extensa, com um certo grau de ocupação humana, dotada de atributos abióticos, bióticos, estéticos ou culturais especialmente importantes para a qualidade de vida e o bem-estar das populações humanas, e tem como objetivos básicos proteger a diversidade biológica, disciplinar o processo de ocupação e assegurar a sustentabilidade do uso dos recursos naturais. (...) Art. 17. A Floresta Nacional é uma área com cobertura florestal de espécies predominantemente nativas e tem como objetivo básico o uso múltiplo sustentável dos recursos florestais e a pesquisa científica, com ênfase em métodos para exploração sustentável de florestas nativas. (...) § 2º. Nas Florestas Nacionais é admitida a permanência de populações tradicionais que a habitam quando de sua criação, em conformidade com o disposto em regulamento e no Plano de Manejo da unidade. § 3º. A visitação pública é permitida, condicionada às normas estabelecidas para o manejo da unidade pelo órgão responsável por sua administração. § 4º. A pesquisa é permitida e incentivada, sujeitando-se à prévia autorização o órgão responsável pela administração da unidade, às condições e restrições por este estabelecidas e àquelas previstas em regulamento. (negritamos). 12 - Ricardo & Macedo (2004), Santilli (2004) e Benatti (1999), defendem a diferenciação entre TI e UC´s. Esta visão é criticada por Besunsan (2004) que propõe uma gestão territorial integrada para além do conceito legal de UC´s. 9 A região do Mosaico de Carajás ainda é um desafio para ambientalistas e para a população local. Há toda sorte de conflitos socioambientais neste território, embora hoje não haja mais sobreposição ou justaposição geográfica de UC´s. Cada unidade está geograficamente delimitada e aparentemente não há conflitos fronteiriços. Contudo há intrusão na área da FLONA de Carajás bem como persiste a polêmica de moradores dentro da área ameaçados de despejo. Há relatos de ameaça de invasão na TI Xikrín do Cateté por dificuldades de vigilância e também há invasão de fazendeiros na FLONATA e FLONA Itacaiúnas. Outro fato curioso é que os índios Xikrín perambulam ainda nas suas incursões de caça pelas UC´s circunvizinhas sem que haja registro de impedimento destas caças ou coletas. É importante salientar também que em diversos relatos que pudemos ouvir as lideranças indígenas não reconhecem as UC´s como não sendo território seu, pelo contrário, é comum ouvir-se em discursos das lideranças as ameaças de fechamento das minas (como já ocorrido), pois para eles aquelas terras da Serra de Carajás, são deles assim como o minério que ela guarda. Os conflitos socioambientais nascidos há décadas persistem em maior ou menor grau e não podem ser descontextualizados dos mais diversos conflitos socioambientais vindos com a frente de expansão fronteiriça nesta região. Mesmo incorrendo no risco das generalidades podese dizer que os conflitos socioambientais presentes na área têm como fundo a exclusão de populações marginais, historicamente já excluídas, do acesso à terra e/ou ao que nela pode-se produzir ou coletar. Estes conflitos, embora pouco visíveis são concretos e latentes em toda a extensão do Mosaico de Carajás. É preciso um olhar mais descentrado para dar visibilidades a eles, um olhar que contemple a diversidade social, as dinâmicas regionais e interação homem/natureza. Um olhar que fuja aos extremismos tanto conservacionista quanto preservacionista, que neste caso parece não conduzir a perspectivas muito promissoras. Contudo, necessariamente não são os moradores do entorno ou do interior das UC´s quem são as ameaças a estas, mas as concepções predatórias de domínio da natureza que se construiu nas sociedades ocidentais. Vale lembrar que a própria empresa Vale, suas subsidiárias e prestadoras de serviços (terceirizadas) foram e são reiteradas vezes multadas pelo IBAMA por transgressão de normas ambientais por conta da atividade mineradora na região de Carajás. Portanto, os conflitos sócio-ambientais na região da FLONA não envolvem somente a população local, mas também a grande empresa em suas atividades extrativas. Hoje a Vale é uma empresa privada que propaga sua “responsabilidade” ambiental, mas que não está isenta do controle das agências ambientais como o IBAMA e ICMbio e já não é ela quem controla o acesso à FLONA de Carajás como acontecia até recentemente. O IBAMA e o ICMbio de hoje já não parecem tão inativos e subordinados à Vale como há décadas atrás. De outro lado também, a legislação ambiental evoluiu, em certo sentido, com a entrada em vigor da nova Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação, Lei 9985/2000 (o SNUC) e com os 10 decretos que o regulamentam. O IBAMA e o Instituto Chico Mendes, na região de Carajás, parece que tomaram para si o caráter executivo da gestão do das UC´s conforme lhes atribui competência o Art. 6.º da Lei do SENUC13 ao deliberar: Art. 6º. O SNUC será gerido pelos seguintes órgãos, com as respectivas atribuições: (...) III – Órgãos executores: o Instituto Chico Mendes e o IBAMA, em caráter supletivo, os órgãos estaduais e municipais, com a função de implementar o SNUC, subsidiar as propostas de criação e administrar as unidades de conservação federais, estaduais e municipais, nas respectivas esferas de atuação. Mas décadas atrás não era assim. As delimitações territoriais, com a chegada da CVRD na Serra dos Carajás e início dos trabalhos de exploração mineral em meados dos anos oitenta, não seguem sem que haja intensos conflitos entre a mineradora e população tradicional14 local ou entre mineradora e indígenas, como entre a mineradora e índios Gavião da Terra Indígena – TI, Mãe Maria como relata Ferraz (1984). Dados apontavam que havia na Gleba Ampulheta, área sob controle da CVRD, 67 agricultores e outra área de posse desta empresa (Glebas Cinzento e Aquiri) eram de domínio do Exército (ALMEIDA 1993). Pelo que se conclui, os conflitos e sobreposições territoriais no domínio territorial da Província Mineral de Carajás eram geridos de forma centralizada e militarizada, com uma forte presença do Governo Federal, principalmente através da CVRD. Hoje não encontramos mais áreas de domínio do Exército nesta região, nem tampouco áreas sobrepostas. Mas existem contestações territoriais em relação a limites entre as UC´s assim como intrusões não resolvidas. Todas as antigas glebas, de uma forma ou outra, foram adjudicadas ao patrimônio da União nas diversas modalidades de UC´s. Isto não significa dizer que não haja questões relativas a posseiros e fazendeiros ainda habitando no interior de algumas unidades, sejam estas posses idôneas ou não. Os conflitos entre CVRD e posseiros que originalmente ocupavam áreas de sua pretensão não foram poucos. Almeida (1993) resgata relatório de uma ONG de Direitos Humanos de Marabá, que narra estes confrontos entre a empresa e posseiros na região da FLONA de Carajás. Estes conflitos envolveram mais de 100 famílias. Foram relatados vários atos de violência contra os posseiros como despejos forçados, destruição de roças e barracos, cerceamento do direito de passagem, vigilância armada dos chamados “guardas florestais” da Vale (CVRD) e ameaça por parte destes seguranças da empresa. O advogado da SDDH na ocasião relatou na ocasião (dezembro de 1987): São aproximadamente 80 (oitenta) posseiros que constroem suas rocas, e não ficam no local porque a segurança da Vale, ou os guardas-florestais, como gostam de ser 13 - Ainda segundo o mesmo artigo em seus incisos I e II, está previsto que o CONAMA terá competência consultiva e deliberativa e o Ministério do Meio Ambiente têm a incumbência de coordenar o SNUC. 14 - O termo população tradicional aqui parte da definição de Little (2002) complementado pela definição de Cunha (1999). 11 chamados, expulsam-nos. Isso ocorre desde 1984. Os trabalhadores não podem ter uma canoa no rio para pescar ou se locomover, que os “guardas-florestais” prendem e não devolvem mais; além de todo equipamento de pesca (BENATTI, 1987, apud. ALMEIDA, 1993) Na FLONA de Carajás as populações tradicionais ou que ocupavam esta área haviam sido expulsas. Mas, como diagnosticado no Plano de Manejo, ainda hoje algumas famílias de agricultores persistem em viver dentro da terra da FLONA, como relatado no diagnóstico do Plano de Manejo da FLONA: “Existem 11 propriedades de posseiros no sul da Floresta Nacional de Carajás (...) as quais ocupam cerca de 1.170 ha e estima-se que possa haver cerca de 45 pessoas ocupando estas propriedades” (Plano de Manejo: 2003). Impactos sócio-ambientais também assolaram os povos indígenas com a chegada do PGC. O povo Xikrín do Cateté é um exemplo emblemático, suas terras, confrontantes com a FLONA de Carajás a oeste e sul, depois de muitos conflitos e invasões de posseiros e madeiros é reconhecida e definitivamente demarcada em 1991 (Decreto 384/91), com uma área de 439.151 hectares. Como destacamos em outro trabalho (SANTOS, 2009) A mineração e as estradas acentuaram o contato urbano na vida Xikrín. Hoje a Terra Indígena Xikrín está rodeada por onze projetos de exploração mineral da Vale. Este processo é impactante e contínuo, o espaço se transforma abruptamente, os índios lutam por sua reprodução cultural e fazem sua moderna “guerra” por objetos e equipamentos urbanos. Esta fricção étnica marcada pela intromissão colonial (empresarial) no cotidiano Xikrín intensificou-se com a implantação do Projeto Grande Carajás de exploração mineral na Província de Carajás nos anos setenta pela então Estatal CVRD - Companhia Vale do Rio Doce, hoje empresa privada renomeada de Vale. As conseqüências do desflorestamento e destruição maciça dos recursos naturais do entorno do ecossistema do território Xikrín pressiona o território florestal deste povo e a demarcação do território Xikrín expropriou grande parte de suas terras para implantação da Vila de Carajás e minas de extração de minério de ferro. Com a privatização da CVRD impôs-se uma nova lógica empresarial com as populações impactadas pela mineração o que acirrou os conflitos e gera tensões entre indígenas e Vale (SANTOS, 2009). O Povo Gavião, da TI Mãe Maria, também sofreu os impactos como narrou Ferraz (1984) ainda no início do PGC: A área dos Gaviões - Posto Indígena Igarapé Mãe Maria - vem sofrendo pressões sistemáticas e diretas oriundas de projetos (...) que ali se imp1antaram desde o final da década de 60. A abertura da rodovia PA-70 (atual BR- 322) atravessou o território tribal em toda a sua extensão e, em fins dos anos 70, uma linha de transmissão de alta tensão, subsidiária da Usina Hidrelétrica de Tucuruí,destruiu a antiga aldeia dos Gaviões, suas roças e seus melhores castanhais. A nova aldeia que, forçosamente, tiveram que construir, acabou por se situar a menos de 10 quilômetros da ferrovia de Carajás que, mais uma vez, cortou 0 sul da área indígena em toda a sua extensão. A construção da barragem da Usina de Tucuruí, por sua vez, destruiu completamente a área dos Gaviões da Montanha, como era conhecida aquela localidade (FERRAZ, 1984). 12 III - Tensões e intenções no mosaico: concepções do ambientalismo Para Hébette (2004) a fronteira em expansão no sudeste paraense constituiu-se por duas frentes: uma frente camponesa de origem migrante e uma frente industrial que se estende da Serra de Carajás até a foz do rio Tocantins, com empreendimentos de mineração, siderurgia e geração de energia elétrica. Outra característica foi o encontro destas frentes exógenas com as populações “primitivas” (indígenas), isto tudo no curso de apenas uma geração. Os impactos são evidentes neste contexto de coexistência conflitiva. Desde os anos setenta, sustenta Albert (1995) a Amazônia defrontou-se com múltiplas e antagônicas estratégias de territorialização, ora planejadas, ora não. Desta forma se forjaram “contra espaços” no interior da fronteira (terras indígenas, reservas extrativistas, etc). Na reconfiguração territorial da região de Carajás o empreendimento minerário teve também de criar áreas de proteção ambiental, durante, antes ou depois de sua implantação. Seja por pressões externas ou internas, seja por deliberação política, econômica ou para fechar e controlar o espaço explorável contra intrusão humana. Há alguns condicionantes internos e externos que podem clarear a constituição de tais espaços. E isto certamente perpassa pelas transformações sociais, políticas e ambientais do Brasil e do mundo nas décadas que sucederamse aos anos setenta. Esta reconfiguração territorial, portanto, está aderida a determinadas concepções mais preservacionistas ou conservacionistas do meio ambiente. Diegues (1994), explicita o debate entre as duas principais concepções ambientalistas no embate de superação do paradigma da natureza absolutamente intocável das origens do ambientalismo15. O conservacionismo, surgido em contraposição ao preservacionismo, assevera Diegues, deve basear-se em três idéias: o uso dos recursos naturais pelas gerações presentes de modo a evitar desperdícios e o desenvolvimento para muitos e não restrito a poucos. Para esta concepção a essência da “conservação de recursos” é o uso adequado dos recursos da natureza. Esta concepção prevaleceu na Conferência sobre Meio Ambiente de Estocolmo em 1972. Enquanto que as idéias preservacionistas pregam a reverência à natureza, a apreciação estética, a vida selvagem preservada do progresso urbano e industrial. As novas concepções ambientalistas e os embates teóricos e jurídicos justificam, em parte, a criação de UCs na região de Carajás. Em parte porque, como já dito, no contrato de financiamento do PGC pelas agências internacionais havia cláusulas de compensação ambiental, criação de áreas protegidas e de proteção às populações indígenas. Tais fatores de ordem internacional não podem ser descontextualizados da conferência de Estocolmo que imprimiu compromissos ambientais às agências multilaterais e governos signatários da Convenção 15 - A concepção fundante de ambientalismo é inspirada na criação do primeiro parque, o Yelloswstone, nos EUA em meados do século XIX e, segundo Diegues (1994), era baseada na idéia de área natural, selvagem, reservada e intocada para fins de contemplação e recreação humana. 13 aprovada, desencadeando a revisão das normas ambientais internas e as mudanças nos conceitos tradicionais que se sucederam desde então16. O reflexo destas políticas ambientais externas e internas se fazem sentir na criação de UC´s na região de Carajás. Lima e Pozzobon (2001) ressaltam que o modelo de ocupação capitalista começa a ser questionado por pressões internacionais que condicionam elementos de sustentabilidade para conceder financiamentos (BIRD e Banco Mundial). E com o advento da ECO-92 intensificam-se ainda mais as exigências de proteção ao meio ambiente. Little (2002) resume estas mudanças, contradições e efeitos da visão ambientalista para a Amazônia no processo de expansão da frente desenvolvimentista a partir dos anos setenta: houve um crescimento extraordinário no estabelecimento de novas áreas protegidas − uma frente preservacionista −, que produziu um grande impacto fundiário no país devido ao alto índice de sobreposição das novas áreas protegidas com os territórios sociais dos povos indígenas, dos quilombolas e das comunidades extrativistas. Nos quinze anos de 1975 a 1989, foram criados no Brasil 17 Parques Nacionais, 21 Estações Ecológicas e 22 Reservas Biológicas, que produziu o quadruplicamento da área total de Unidades de Conservação de Uso Indireto no país. Como as Unidades de Conservação de Uso Indireto não permitem a presença de populações humanas dentro de seus territórios − sendo isto uma de suas regras cosmográficas mais firmes −, a solução inicialmente proposta pelos preservacionistas foi a expulsão dos habitantes de “seus” novos territórios, seja por indenização ou por reassentamento compulsório, tal como se fazia com as barragens e os outros grandes projetos de desenvolvimento. Na linguagem dos preservacionistas, esses habitantes viraram “populações residentes” (West e Brechin 1991), categorizando-lhes assim em função das novas áreas protegidas (...) ignorando a existência prévia de regimes de propriedade comum, relações afetivas com o seu lugar e memórias coletivas (LITTLE, 2002, p. 20). No processo de criação das UC´s de Carajás as contradições teóricas ambientalistas subsistem principalmente, por ser este um ambiente de territorialização e zoneamento complexos. Não é fácil identificar qual das concepções seja condizente para equacionamento e compreensão dos conflitos socioambientais presentes. Para Cunha & Almeida (1999, p. 07) os socioambientalistas ressaltariam “que há um grande número de unidades de conservação que só existe no papel” e “um grande número de unidades de conservação abriga grupos humanos, particularmente na região sudeste, onde 85% das unidades de conservação são habitadas". Já o argumento do conservacionistas é de que “o Brasil abriga reservas de biodiversidade que são patrimônio de toda a nação brasileira, sendo dever constitucional e de justiça intergeracional conservá-las para uso presente e futuro da nação” e que “apenas 3% do território nacional é destinado a unidades de conservação de uso indireto, ao passo que há grandes áreas do país em poder privado do Estado que podem servir para o assentamento de populações rurais”. Para Cunha e Almeida para a superação do impasse Talvez seja prudente evitar duas formas de dogmatismo: um conservacionismo autoritário inviável (exigindo nas áreas de conservação de uso direto uma limpeza biológica socialmente 16 - Leis &Viola (1993) e Benatti (2003) sintetizam muito bem a evolução histórica da legislação ambiental no Brasil 14 impossível – visando “separar e manter livres de qualquer intervenção humana amostras expressivas de ambientes naturais virgens”), e um populismo ambientalista igualmente inviável (porque ignora as pressões ambientais que podem a longo prazo degradar a vida das próprias ‘populações tradicionais’) (CUNHA & ALMEIDA, 1999, p. 07). IV - Conclusão A FLONA de Carajás, UC de uso sustentável (Art. 14, inciso III, Lei do SNUC), pode compatibilizar preservação ambiental com uso de parcela de seus recursos naturais (Art. 7º, inciso II, § 2º, SNUC.) e não precisa estar somente sob monopólio de extração mineral pela Vale. O Plano de Manejo é quem irá determinar as condicionantes do uso sustentável de seus potenciais naturais. Resta construir as alternativas cabíveis para as populações tradicionais daquela área fazerem uso sustentável da floresta. Para Cunha a solução de um uso sustentável de determinado território perpassa por alguns questionamentos sobre a situação concreta do grupo humano, sobre o território ocupado, a densidade demográfica, assim como quais são as atividades atuais, e qual é a organização social e política? Quais são os sistemas de uso ‘tradicionais’ e qual é a intenção manifestada por esses grupos no sentido de utilizar no futuro tecnologias de baixo impacto ambiental? Notemos que essas perguntas não se respondem pela investigação de traços culturais tradicionais. A resposta depende crucialmente da existência de organismos locais legítimos, falando em nome da(s) comunidade(s), bem como dotados de poder para executar planos, no quadro de instituições responsáveis – e de políticas públicas capazes de oferecer direitos territoriais, boa qualidade de vida e outros benefícios a esses grupos locais (CUNHA, 19990). Contudo, parece ainda não haver um inter-relacionamento satisfatório da comunidade local com a FLONA de Carajás, segundo demonstrado no sumário do Plano de Manejo: A Floresta Nacional, bem como outras unidades de conservação da região, são percebidas como uma “área particular” pela maior parte das pessoas que vivem no seu entorno. Usa-se muito o termo “área da Vale”. Esta percepção deve-se principalmente ao fato de a Floresta Nacional ter sido criada utilizando-se como referência a antiga área de direito real de uso da CVRD. De forma geral, o acesso à Floresta Nacional é restrito, inclusive com exigência de autorizações e revistas de veículos, dificultando o relacionamento da população com a unidade de conservação. Há um certo ressentimento da população da cidade de Parauapebas com relação aos moradores de Carajás em função de alguns “privilégios” dos moradores deste último, representados principalmente por uma infra-estrutura mais bem desenvolvida (Plano de manejo para uso múltiplo da Floresta Nacional de Carajás, Sumário Executivo. Análise da Unidade de Conservação 2003). O mesmo documento relata invasões na FLONA por garimpeiros, madeireiros, folheiros (de jaborandi), caçadores e aponta soluções baseadas em políticas “de fixação dos colonos vizinhos à Floresta Nacional de Carajás em seus respectivos assentamentos e de regulamentação das atividades exploratórias desenvolvidas ilegalmente na Floresta Nacional”. Ou seja, o conflito sócio-ambiental está posto e requer amplo e coletivo debate. Como salienta Little (2006) quando tratamos de conflito sócio-ambiental - e neste contexto assim o entendemos - queremos nos referir a “um conjunto complexo de embates entre grupos sociais em função de seus distintos modos de inter-relacionamento ecológico”. Little 15 defende um conceito antropológico do conflito, pois para ele este vai além do foco dos embates políticos e econômicos e incorpora elementos cosmológicos, rituais, identitários e morais os quais nem sempre são visíveis. Para o autor Um olhar antropológico pode enxergar conflitos latentes que ainda não se manifestaram politicamente no espaço público formal, porque os grupos sociais envolvidos são politicamente marginalizados ou mesmo invisíveis ao olhar do Estado. (...) a etnografia dos conflitos socioambientais explicita as bases latentes dos conflitos e da visibilidade a esses grupos marginalizados (LITTLE, 2006.p. 85,86). Estes grupos marginalizados, não obstante ainda serem considerados por muitos como objetos de intrusão, são atores intrínsecos do conflito, cujos universos cosmológicos e ecológicos vivenciados no dia-a-dia de convívio com a floresta e com os usos que dela fazem, podem constituir-se numa potencial aliança de preservação aliada à sustentabilidade de maneira a “Transformar a população residente e do entorno da Floresta Nacional de Carajás em agentes de proteção do patrimônio natural, sensibilizando-os sobre as necessidades de utilizar os recursos naturais de forma adequada”, em conformidade com seu Plano de Manejo (2003), cujos objetivos prevêem ainda: – Permitir a pesquisa, a lavra, o beneficiamento, o transporte e a comercialização de recursos minerais; – Promover o manejo dos recursos naturais com ênfase na produção de madeira e outros produtos vegetais; – Garantir a proteção dos recursos hídricos, das belezas cênicas, dos sítios históricos e arqueológicos e da biodiversidade; – Fomentar o desenvolvimento da pesquisa científica básica e aplicada, da educação ambiental e das atividades de recreação, lazer e turismo (FLONA de Carajás, Plano de Manejo, 2003). A consecução destes objetivos dependerão fundamentalmente de desarmes mútuos, das alianças que se construírem com cada comunidade, do envolvimento de atores diversos (ONG´s ambientais locais; sistemas educacionais fundamental, médio e superior; poder público local, IBAMA, ICMbio e Vale), para que se cumpram o disposto no programa de Manejo da Floresta Nacional de Carajás. Um passo fundamental para este intento nos parece partir de uma rigorosa consideração sobre as comunidades afetadas. O Plano de Manejo, em si, é uma peça diretiva importante, mas pode se apresentar como algo externo, verticalizado e formal. Pode não considerar a construção coletiva de diretrizes, ou ignorar os saberes das populações tradicionais locais envolvidas. Conhecimentos científicos e tradicionais devem se concatenar em respeito mútuo para construções democráticas de gestão compartilhada destes territórios, agora que finalmente - mediante evoluções legislativas e mudanças de concepções de agentes das instâncias ambientais - o reconhecimento do fator cultural e natural cada vez mais se intercruzam para não subjugar um ao outro. O Leviatã ecológico que vê no homem somente o lobo da natureza (BENATTI, 1999) e cuja solução seria apartar estas áreas de quaisquer 16 contatos humanos nas quais o Estado determina e garante a natureza intocada (DIEGUES, 1994) deve ser sucedido por uma conjugação respeitosa entre natureza e cultura. Para Benatti (1999) existem dois pontos que merecem atenção quanto às UC´s e populações tradicionais: o aspecto natural e o cultural. O autor já alertava que há casos em que um se sobrepõe ao outro (natural e cultural), um destrói e desarticula o outro. Para ele, Considerando que as áreas protegidas são importantes instrumentos para a política de conservação do meio ambiente brasileiro, a sua criação não pode se restringir as informações do meio físico, portanto ficando a sua criação à mercê somente das informações contidas nas ciências naturais, desconsiderando os processos sociais, econômicos e culturais existentes na área a ser protegida. O meio ambiente é uma concepção unitária, um todo composto por recursos naturais, artificiais e culturais (BENATTI, 1999, p.303). Consoante esta acepção, hoje existe uma cooperativa17 de trabalhadores locais que fazem a coleta de Jaborandi na FLONA de Carajás e FLONA do Itacaiúnas sob a supervisão do IBAMA. Há também um projeto em curso de Educação Ambiental em parcerias de extensão universitária desenvolvido pelo NEAM (Núcleo de Educação Ambiental da UFPA, Campus de Marabá) que capacitou mais de 400 educadores/as ambientais provenientes de escolas do ensino fundamental de Marabá e Parauapebas, com dois cursos anuais em cada município. Esta iniciativa do NEAM fomentou a instituição do CEAC (Centro de Educação Ambiental de Carajás) e um grupo de educadores ambientais em Itupiranga, assim como estabeleceu parceria com uma Escola Família Agrícola de Parauapebas cujo trabalho se volta para a formação ambiental para filhos de agricultores dos projetos de Assentamentos do INCRA, nas imediações da FLONA de Carajás (MARTINS, 2009). Pelo exposto, a proposta de um futuro que alia sustentabilidade ecológica em prol do benefício da natureza e das populações que a conservam passam por um processo de educação ambiental capaz de construir com as populações tradicionais e aquelas em contatos com as UC´s (agentes populares, educadores/as e agências oficiais) uma proposta coletiva de convívio harmônico com a floresta. Cuja sustentabilidade ecológica seja entendida como a capacitação da população no sentido de explorar os “recursos naturais sem ameaçar, ao longo do tempo, a integridade ecológica do meio ambiente” (POZZOBON & LIMA, 2005, p. 45). Contudo, é preciso romper também com a concepção de política pública exógena (sem xenofobia) que concebe o “potencial amazônico” como um tesouro patrimonial da nação e não 17 - Na FLONA Carajás e na FLONA Tapirapé-Aquiri ocorrem grande abundância de Jaborandi. Essas aglomerações de Jaborandi são popularmente chamadas de "bolas". 74 bolas foram mapeadas e georreferenciadas na FLONA Carajás, perfazendo uma área total de 1.277,13 hectares. As folhas coletadas são vendidas para a empresa Source Tech de São Paulo. O IBAMA acompanha os trabalhos dos "folheiros" na retirada de material da FLONA e emite ATPFs (Autorização para Transporte de Produtos Florestais) e vai ao campo para orientar seus trabalhos principalmente no que diz respeito aos cuidados com o ambiente (MERCK S/A INDÚSTRIAS QUÍMICAS. p. 86, 1997) 17 da região e que, portanto, deve estar em função do aproveitamento da nação, como alerta Mathis (2000). É dever do poder público, em alianças com as comunidades científicas, tradicionais e segmentos sociais, a construção de alternativas coletivas e compatíveis com a manutenção da floresta e também da promoção do bem-estar e emancipação das populações marginalizadas e pauperizadas pelos históricos sistemas de exclusão, seja de saber ou material. Bibliografia: ALBERT, Bruce. O ouro canibal e a queda do céu: uma crítica xamânica da economia política da natureza. Série Antropológica. Brasília, 1995 ALMEIDA, Alfredo W. Berno de. Carajás: a guerra dos mapas. Ed. Falangola, Belém, 1994. _____ Áreas indígenas e o mercado de terras. In: CEDI – Centro Ecumênico de Documentação e Informação. Povos Indígenas no Brasil. Sagarana Ed., São Paulo, 1984. ALMEIDA, Mauro W. Barbosa de. Direitos à floresta e ambientalismo: seringueiros e suas lutas. Rev. Brasileira de Ciências Sociais – Vol. 19, Nº. 55, 2004. BENSUNSAN, Nurit. Terras indígenas: as primeiras unidades de conservação. 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