Luciana Namorato diálogos borgianos Intertextualidade e imaginário nacional na obra de Jorge Luis Borges e de Antonio Fernando Borges Sumário Introdução Capítulo 1 Jorge Luis Borges: escrita, leitura e identidade nacional 7 13 O papel da influência estrangeira na criação de uma identidade argentina 13 Um escritor na biblioteca: a escrita e a leitura de acordo com Jorge Luis Borges 24 Capítulo 2 A dinâmica da autoria: redefinindo os conceitos de originalidade e plágio 41 O conceito de originalidade e suas transformações 43 A sociedade brasileira no início do século xx 57 Capítulo 3 Antonio Fernando Borges: canibal de Jorge Luis Borges? 77 A escrita como um ato de canibalismo: individualidade, despersonalização e o papel dos predecessores 77 A intertextualidade em Que fim levou Brodie? 93 Capítulo 4 Memorial de Buenos Aires: resgatando os (não) tempos de Jorge Luis Borges 113 A eternidade segundo Jorge Luis Borges 115 A novidade na conjuntura de um tempo absoluto 122 A tradição literária e a formação de identidades 125 O potencial de um texto e os limites da interpretação 126 Celebrando infidelidades: leitura, tradução e reescritura em “Los traductores de Las 1001 Noches” 133 O discurso e seu disfarce das limitações 139 A despersonalização de leitores e personagens 141 Memorial de Buenos Aires e a formação de um escritor: entre a herança literária e a individualidade 150 As ficções da identidade e seus efeitos sobre a noção de origem: “Las ruinas circulares” 153 Eternidades borgianas: o alcance da imortalidade por meio da despersonalização 154 A desierarquização entre os terrenos do real e do possível 157 Conclusão 159 Referências bibliográficas 165 Introdução Com a publicação de Memorial de Buenos Aires, em 2006, o escritor brasileiro Antonio Fernando Borges (1954-) completa uma trilogia que o crítico Sérgio Rodrigues descreve como “tão obsessiva quanto corajosa”. Em sua coleção de contos Que fim levou Brodie?, publicada em 1996, o autor toma emprestado temas recorrentes na obra de Jorge Luis Borges (1899-1986), dando continuidade ao mundo fictício e filosófico do escritor argentino. Em sua segunda publicação, o romance Braz, Quincas & cia. (2002), o Borges brasileiro estabelece um diálogo com Machado de Assis (1839-1908), transformando-o em personagem. Um narrador que escreve do além-túmulo, capítulos curtos e recorrentes conversas com o leitor são alguns dos vestígios machadianos nessa narrativa. Em entrevista à escritora Sonia Coutinho, Antonio Fernando Borges comenta sua fascinação por seus dois predecessores: Quem comparar, vai se espantar: Machado tão pé no chão, tão pessimista, e o Borges aquele delirante [...] Com o otimismo de um homem que pensava — não, não quero esse mundo, vou inventar outro para mim. Mas, na verdade, como o Machado, Borges é um homem da leitura, do gabinete, um tímido, introvertido, acreditando mais na literatura do que na vida. Também ele um autor de leituras, Antonio Fernando Borges promove em seu segundo romance, Memorial de Buenos Aires, o encontro entre as obras desses dois homens de gabinete: Machado de Assis e Jorge Luis Borges. Frente a essa “trilogia da influência”, o leitor se interroga sobre os motivos que justificam uma deliberada declaração do papel primordial da ascendência literária na gênese de uma obra. Em uma época em que se vivencia um aumento da demanda por romances de denúncia (das condições de vida das 7 parcelas marginalizadas da população brasileira, da violência que assola as grandes cidades, do isolamento humano em um mundo “globalizado”), a opção do autor por dialogar com dois escritores que acreditam “mais na literatura do que na vida” parece demonstrar seu investimento no divórcio entre a literatura e as questões políticas, econômicas e socias da atualidade. No entanto, um exame atento dos contos e romances de Antonio Fernando Borges conduz à conclusão oposta: à de que seu diálogo com a tradição é instrumental à discussão de questões que trespassam as paredes de uma biblioteca, como, por exemplo, a formação de identidades nacionais. No conto “La biblioteca de Babel” (Ficciones, 1944), Jorge Luis Borges narra a experiência de um homem que, depois de dedicar sua juventude à busca de um livro sem-par, “el catálogo de catálogos”, se prepara para morrer a poucas léguas do hexágono onde nascera. Assim como os demais “homens da biblioteca”, o protagonista apequena-se diante de uma coleção vastíssima, ainda que finita. A biblioteca do conto é “total” por conter tudo o que pode ser expresso dentro dos limites impostos pelo formato preciso de suas publicações (cada livro contém quatrocentas páginas; cada página, quarenta linhas; cada linha, oitenta letras). Nas palavras do narrador, la biblioteca es total y [...] sus anaqueles registran todas las posibles combinaciones de los veintitantos símbolos ortográficos (número, aunque vastísimo, no infinito) o sea todo lo que es dable expresar: en todos los idiomas. Todo: la historia minuciosa del porvenir, las autobiografías de los arcángeles, el catálogo fiel de la Biblioteca, miles y miles de catálogos falsos, la demostración de la falacia de esos catálogos, la demostración de la falacia del catálogo verdadero, el evangelio gnóstico de Basílides, el comentario de ese evangelio, el comentario del comentario de ese evangelio, la relación verídica de tu muerte, la versión de cada libro a todas las lenguas, las interpolaciones de cada libro en todos los libros, el tratado que Beda pudo escribir (y no escribió) sobre la mitología de los sajones, los libros perdidos de Tácito. (Obras 1, 467-68) Pouco a pouco, o leitor descobre, porém, que a completude do acervo alegórico de Borges se faz presente também em cada um de seus volumes. A previsão dos homens quanto à abundância de livros que não carregam sentido algum se revela errônea. Na biblioteca de Babel, não há sequer um disparate absoluto. Conforme elucida o narrador, “No puedo combinar unos caracteres dhcmrlchtjdj que la divina biblioteca no haya previsto y que en 8 alguna de sus lenguas secretas no encierren un terrible sentido” (p. 470). Com o desenrolar do conto, confirmam-se as suas suspeitas de que cada uma das obras armazenadas nessa biblioteca coincide com o inestimável (e jamais encontrado) livro total, aquele que seria a cifra ou o compêndio perfeito de todos os demais. Nessa biblioteca “febril”, cada volume transforma-se em outro de modo incessante, dado que, em lugar de significar algo em si mesmo, cada exemplar admite significados: os livros da biblioteca de Babel motivam e pressupõem a criação de contextos ou de sistemas (linguísticos ou interpretativos) que os tornem legíveis.1 Em “La biblioteca de Babel”, Jorge Luis Borges sugere que a literatura (e, por extensão, as práticas da leitura e da escrita) somente pode ser pensada sob o signo do paradoxo. O objeto livro, ainda que limitado — por seu formato, pela assinatura que encerra, pelo conhecimento de seu contexto de produção ou apreciação —, é infindável, uma vez que sua materialidade lhe assegura a possibilidade de transitar por uma miríade de âmbitos interpretativos. Ao manipular contextos — através do cotejo de autores ficcionais a livros existentes, ou do recurso a obras imaginadas como motivadoras de resenhas críticas, entre outros exemplos —, o autor de Ficciones explora a flexibilidade dos sentidos de um texto. Borges comprova, desse modo, que a persistência material do discurso lhe assegura uma variedade de significados ao permitir que se estabeleçam relações entre o texto analisado e os elementos a este extrínsecos. Compreende-se, dessa maneira, a relevância da proposta de uma literatura de leituras, isto é, de uma escrita que enfatiza o diálogo com obras e autores diversos, para a compreensão do estabelecimento e da manutenção de identidades autorais e pessoais. Para que o processo de interpretação ocorra, um leitor precisa equipar-se de (pré-)conceitos, que moldam e (des)informam sua leitura. Ao enfatizar a tolerância do discurso a adulterações impostas ao contexto da leitura — conforme exemplifica a hipótese de um novo autor para Don Quijote, no conto “Pierre Menard, autor del Quijote” (Ficciones) —, Jorge Luis Borges previne o leitor sobre a deficiência do discurso enquanto ferramenta de comprovação da estabilidade e 1 No ensaio “Borges e a maldição de Babel: escritura, interpretação e conflito”, Rosemary Arrojo ressalta a textualização da realidade representada pela biblioteca borgiana e a compara à Torre de Babel armada pela desconstrução de Jacques Derrida, fruto da desconfiança da oposição real entre significante e significado. “Se o significado não pode ser uma essência, uma verdade a ser descoberta por trás da linguagem, e é, irremediavelmente, sempre outro significante, a realidade se textualiza e impõe a interpretação como único modo possível de conhecimento e de relacionamento”, observa autora (p. 150). 9 do monolitismo da identidade do autor que o compôs ou da nação onde foi engendrado. Em resposta à fascinação de Antonio Fernando Borges pela obra de seus antecessores literários, examinamos a relevância do projeto de literatura como diálogo com a tradição para o estabelecimento de identidades nacionais. No primeiro capítulo, revisitamos a obra de Jorge Luis Borges, focalizando sua proposta particular da escrita como um produto de leituras, assim como suas respostas à reavaliação do conceito de literatura nacional promovida pelo movimento modernista e pelas literaturas de vanguarda na Argentina das décadas de 1920 e 1930. No segundo capítulo, retornamos ao modernismo brasileiro, período em que se reflete de forma mais sistemática e aprofundada sobre o papel das influências estrangeiras na formação da literatura brasileira. Partindo de um resumo das transformações sofridas pelos conceitos de originalidade e plágio desde a Idade Média até os dias atuais, prosseguimos a retratar a pertinência da investigação da identidade brasileira nos anos que antecedem e sucedem à Semana de Arte Moderna. Ressaltamos o projeto de redefinição do conceito de originalidade dos principais escritores modernistas brasileiros, com destaque para os membros do Grupo da Antropofagia e seu recurso ao canibalismo como metáfora esclarecedora do processo de criação em contextos pós-coloniais. No terceiro capítulo, analisamos de forma mais aprofundada a metáfora do canibalismo. Iniciamos com um estudo dos significados dos relatos sobre o canibalismo literal e de seus efeitos sobre a concepção de intercâmbio cultural. Buscamos compreender o que essas narrativas sobre homens que devoram os membros de sua própria espécie nos informam quanto à relação entre culturas diferentes. Em seguida, investigamos a associação entre a metáfora do canibalismo e os debates sobre a individualidade, a despersonalização e o papel dos predecessores na constituição da autoria, registrados em “Que fim levou Brodie?” e “Com certeza, quem sabe” (Que fim levou Brodie?). Nesses contos, Antonio Fernando Borges responde e dá continuidade a discussões semelhantes inscritas por Jorge Luis Borges em textos como “El informe de Brodie”, “Veinticinco de agosto, 1983” e “El otro”. No quarto capítulo, dedicamo-nos à questão do tempo, descrevendo sua relevância para a visão de Jorge Luis Borges sobre a atividade interpretativa. Nele, ponderamos sobre o projeto de existências paralelas, isto é, de um tempo absoluto, delineado pelo autor em ensaios e contos de Historia de la eternidad e Ficciones. Nosso objetivo é evidenciar as conexões entre esse projeto e a compreensão, por parte do 10 escritor argentino, dos sistemas interpretativos e da influência destes na elaboração de identidades pessoais e coletivas. Desde o ingresso de Jorge Luis Borges no terreno da literatura — com a composição, aos sete anos de idade, de “La visera fatal”, um relato inspirado por um episódio de Don Quijote —, as interpretações da obra do autor argentino vêm sendo multiplicadas em leituras divergentes, convergentes, paralelas. A análise que aqui propomos é apenas um sendeiro (previsto? possível?) em uma trama de leituras que se bifurcam. Nessa trilha, um escritor brasileiro, Antonio Fernando Borges, é um intérprete dedicado da vasta obra de Jorge Luis Borges. Em meio ao opulento arquivo crítico sobre as publicações do escritor argentino, uma leitura a mais de sua obra evoca inevitavelmente a súplica do protagonista de “La biblioteca de Babel”, que, cansado de buscar sem sucesso o livro total, aquele que seria o compêndio perfeito de todos os demais, roga aos deuses desconhecidos que pelo menos um homem, ainda que há milhares de anos, tenha examinado tal volume absoluto: “Que yo sea ultrajado y aniquilado, pero que en un instante, en un ser, Tu enorme Biblioteca se justifique” (Obras 1, p. 469). 11 Capítulo 1 Jorge Luis Borges: escrita, leitura e identidade nacional 1.1. 0 papel da influência estrangeira na criação de uma identidade argentina A obra do escritor argentino Jorge Luis Borges distingue-se por seus recorrentes diálogos com a tradição literária ocidental,1 característica não raras vezes interpretada pela crítica como prova do distanciamento do autor de suas raízes nacionais. Sua produção poética e em prosa, quando contraposta à dos escritores argentinos que abordam temas marcadamente regionais, destaca-se por seu cosmopolitismo.2 O interesse de Borges pelo fantástico, pela mitologia nórdica e pela cabala, assim como seus debates com a filosofia e com os grandes nomes da literatura inglesa são repetidamente julgados pela crítica literária como deslocados da realidade argentina e, por isso, incompatíveis com a investigação da identidade nacional. Borges reinventa personagens e autores estrangeiros, como Ulisses e Don Quijote, Spinoza e Shakespeare, afirmando assim sua liberdade de examinar questões não necessariamente suscitadas no contexto geográfico e temporal que o cerca.3 Desde o presente de sua escrita — o século xx, a região do Rio da Prata —, os textos de Borges 1 A respeito da presença do cânone ocidental na obra de Borges, consultar Juan E. de Castro (2008). Para um registro das mais significativas amizades de Jorge Luis Borges e da relevância destas para sua produção literária, consultar o artigo “Borges y los otros: desencuentros y glorificaciones”, de Teresa Alfieri. 2 Não se pode ignorar, entretanto, uma parcela significativa da crítica que investiga e sublinha o elemento local na obra de Borges, conforme exemplifica o ensaio “Buenos Aires in the Poetry of Jorge Luis Borges”, de James C. McKegney (1954). 3 Para mais informações sobre a prática da reescritura na obra de Borges, consultar Alazraki (1984), Fernández Ferrer (2009) e Gutiérrez Girardot (1996). 13 lançam-se em direção à atemporalidade e à riqueza espacial de uma literatura dita universal, mas que, em suas mãos, se revela surpreendentemente maleável e receptiva às questões centrais da identidade argentina. As primeiras manifestações literárias do jovem Borges datam da década de 1920, um período de agravamento das contradições resultantes do processo de formação da nação argentina. Ocupada por povos autóctones até a instalação do primeiro assentamento espanhol em 1527 na presente província de Santa Fé, o território atual da Argentina integra o Vice-Reino do Peru até passar a fazer parte do Vice-Reino do Rio da Prata, criado em 1776, tendo como capital a cidade de Buenos Aires. Enquanto as regiões ocupadas pela colonização espanhola sobrevivem do cultivo de grãos e da pecuária, grande parte da Patagônia e do Pampa argentinos, assim como a região do Chaco, permanecem sob o controle de diversos povos indígenas até as últimas décadas do século xix. A vitória das milícias formadas por criollos,4 indígenas e escravos de origem africana contra a invasão inglesa entre 1806 e 1807 aumenta o prestígio da população de Buenos Aires, cidade que lidera a Revolução de Maio de 1810, que culmina com a deposição do vice-rei espanhol Baltasar Cisneros e com o início da guerra de independência contra a Espanha (1810-1824). Com a proclamação da independência em 1816 sob o nome de Provincias Unidas en Sud América, a Argentina enfrenta, ao longo do século xix, uma série de guerras civis. Após mais de meio século de disputas entre suas várias províncias (uma das quais culmina, em 1828, com a declaração de independência da Banda Oriental da Argentina sob o nome de Estado Oriental del Uruguay, uma região de 176 mil km2), assim como entre a facção de governo unitária (defensora de uma administração centralista) e a federalista (partidária da autonomia das províncias), a Argentina consolida sua unificação em 1861. O último quartel do século xix é marcado por incursões às regiões da Patagônia, do Pampa e do Chaque, com o objetivo de ocupar os territórios até então controlados pelos povos indígenas, subjugar a população autóctone e incorporar essas regiões ao sistema político e econômico nacional. Inicia-se, na segunda metade do século xix, um período de grande prosperidade econômica da República Argentina, que somente se encerrará com a Grande Depressão de 1929. No início do século xx, sob um imaginário nacional comum, a consciência do extermínio da população indígena 4 O termo criollo refere-se à população de ascendência espanhola cujas origens podiam ser traçadas à época da colonização e é usado para diferenciar os primeiros imigrantes daqueles que chegam à Argentina no século xx. 14 por parte do colonizador europeu convive com uma acentuada influência cultural e econômica de imigrantes oriundos em sua maioria da Itália, Espanha e Europa do Leste;5 somando-se à identificação dos criollos viejos com o legitimamente nacional, o gaucho é eleito símbolo do homem argentino. Em 1914, a população urbana argentina supera pela primeira vez a população rural, e o campo passa, aos poucos, a ocupar o espaço do exótico no imaginário nacional.6 No início da década de 1920, Buenos Aires encontra-se em processo de consolidação como importante centro econômico e cultural. A população da capital argentina testemunha uma desenfreada modernização com o surgimento de novas tecnologias.7 Nas palavras de Beatriz Sarlo, Entre los años veinte y los treinta, los cables eléctricos y las líneas de teléfono, las antenas de radio y los trolleys de los tranvías tejen su red aérea. Los habitantes de Buenos Aires viven a una velocidad desconocida hasta entonces: el transporte eléctrico, la ilusión de inmediatez de las comunicaciones a distancia. (Borges, un escritor en las orillas, p. 30) Apesar de a cidade de Buenos Aires encontrar-se cercada por áreas rurais e ser influenciada pela cultura criolla, os novos fluxos de imigração europeia e as migrações internas mudam drasticamente o perfil da cidade.8 A Buenos Aires dessa época é uma cidade moderna e heterogênea, caracterizada por intercâmbios e contrastes entre indivíduos com origens e trajetórias diversas. Os jornais, as revistas, as estações de rádio e o cinema nacionais ressaltam as diferenças sociais entre os antigos criollos e os novos imigrantes e seus descendentes. O impulso de celebrar e incorporar as diferentes culturas que compartilham um mesmo espaço urbano divide lugar com o medo da desestabilização das hierarquias. Nas primeiras décadas do século xx, a 5 Com o objetivo de ocupar o território nacional e garantir mão de obra às zonas rurais, o governo argentino incentiva a imigração europeia. A partir de meados do século xix, imigrantes italianos, espanhóis, suíços, franceses, alemães, poloneses, ucranianos e russos chegam à Argentina para trabalhar na agricultura e na extração madeireira. Com o agravamento das condições de trabalho no campo e com a industrialização e o crescimento urbano, muitos desses imigrantes emigram às grandes cidades, como Buenos Aires. 6 Para o estudo das transformações por que passou a capital argentina, assim como dos reflexos destas sobre os debates literários a respeito da definição da identidade nacional, ver Sarlo (1988). 7 Consultar, a esse respeito, Liernur e Silvestri (1993). 8 Em 1936, 36% da população urbana das províncias costeiras era produto da imigração recente, que compunha grande parte da classe média dessa região. 15 esquerda reformista argentina cria instituições com o objetivo de facilitar o acesso da classe proletária a produtos e eventos culturais. O estabelecimento de bibliotecas públicas, salões de palestras e editoras são algumas das iniciativas governamentais que visam a disseminar e democratizar a cultura. No âmbito literário, defende-se o barateamento de livros, revistas e jornais, ou seja, uma distribuição dos meios de informação em consonância com os ideais democráticos de acesso das várias camadas da população à educação e à participação política, independentemente de sua renda. Diante de um futuro promissor, o caráter periférico da nação parece fazer parte de seu passado. Sob a definição de “Argentina”, permanece, entretanto, um arranjo de vozes dissonantes que determinam, dependendo do momento histórico em questão, quais parcelas da população são consideradas “civilizadas” e, como consequência, são incluídas na definição da identidade nacional. Na pátria a que Borges retorna em 1921 de sua viagem à Europa, o isolamento e a dizimação das populações indígenas convivem com um discurso oficial unificador das diversas etnias; a promessa da distribuição de terra aos imigrantes recém-chegados coexiste com a exploração destes como mão de obra barata nos latifúndios. São estas complementares e não raramente contraditórias faces da nação que levantam em Borges a suspeita de que a identidade nacional argentina reside no (des)encontro entre suas diversas feições. Nas décadas de 1920 e 1930, os artistas e os intelectuais argentinos começam a examinar o impacto da urbanização e das recentes ondas de imigração na cultura nacional. Os debates acerca da definição do cânone cultural argentino abordam questões relacionadas aos limites dos desvios linguísticos e ao cosmopolitismo urbano: “Quais desvios devem ser aceitos como marcas de uma língua argentina? Como distinguir a faceta urbana e cosmopolita do país dos aspectos estrangeirizantes que esta insinua?”, perguntam-se os intelectuais de então. Enquanto alguns estudiosos definem a identidade argentina como alicerçada em uma cultura nativa e rural — aqueles que propunham a tradição criolla como marca da literatura argentina, por exemplo, não consideram a literatura escrita por filhos de novos imigrantes como pertencente à produção cultural argentina —, outros criticam a idealização de um passado criollo, enfatizando a violência da imposição do europeu como modelo do homem nacional. Estes argumentam a favor da combinação das experiências urbanas e rurais, das heranças indígenas e europeias, assim como das manifestações populares e de elite; em outras palavras, constatam 16 a necessidade de reinterpretar o passado com os olhos do presente de forma a oferecer uma imagem mais dinâmica da cultura argentina. Marcada pela rejeição da passividade diante de modelos estrangeiros e pelo reconhecimento da inevitável impressão destes na cultura nacional, a obra de Jorge Luis Borges contribui para os debates a respeito da construção da identidade argentina. O autor critica a ingênua limitação da literatura nacional a temas locais ao privilegiar a abordagem de assuntos considerados “universais”. Por essa razão, pode-se dizer que Borges escreve de dentro da tradição literária ocidental e contra a mesma.9 Nas palavras de Fernando de Toro, “Borges alcança e examina o próprio terreno epistemológico estabelecido pela desconstrução do Ocidente, pelo descentramento e pela fragmentação do logos, do eurocentrismo e do fonocentrismo”.10 O escritor argentino interage com antepassados literários, mas nunca de maneira servil. Para Borges, a voz da tradição não é nem um exemplo a ser copiado, nem uma solução à ausência ou à debilidade de uma herança cultural local; ela funciona, sim, como contraponto a uma identidade latino-americana em formação e em constante revisão. As tensões que permanecem não resolvidas nos textos de Borges amplificam polaridades análogas às presentes na história nacional, algumas das quais caracterizam os debates a respeito da identidade nacional argentina durante os períodos do modernismo e das vanguardas. Modernismo e literatura de vanguarda na Argentina A Buenos Aires dos fins do século xix é o ambiente de encontro entre o nicaraguense Rubén Darío (1867-1916), o argentino Leopoldo Lugones (1874-1938), e o boliviano (nascido no Peru) Ricardo Jaimes Freyre (18681933), autores que publicam três livros de semelhante inspiração modernista: Prosas profanas (1896), Las montañas del oro (1897) e Castalia bárbara (1899), respectivamente. O modernismo hispano-americano contrapõe-se ao realismo na literatura e reafirma a independência da inspiração por meio de uma ênfase no papel da intuição e do subconsciente no processo de escrita, marcas de sua herança simbolista. Embora modernismo e socialismo se confundam na figura de Leopoldo Lugones — cuja obra elege o proleta9 No ensaio “Jorge Luis Borges: A View from the Periphery”, John King examina o ponto de vista “periférico” do diálogo de Jorge Luis Borges com a tradição literária. 10 “Borges accomplishes and expounds the very epistemological ground set by the deconstruction of the West, the de-centering and fragmentation of the logos, eurocentrism and phonocentrism”. (New Intersections, p. 20) 17 riado como protagonista e privilegia a investigação de motivos nacionais e autóctones —, o modernismo na América hispânica não pressupõe necessariamente uma americanização da matéria literária, uma vez que considera que a “originalidade” pode resultar, por exemplo, da descoberta de temas inéditos na obra de autores até então excluídos do cânone. Dessa forma, o estreito vínculo do modernismo argentino com a história nacional não é seu único aspecto responsável por reavivar a polêmica relação entre nação e literatura. O caráter cosmopolita11 do modernismo, ao realçar o contraste entre o espontâneo e o aprendido, a tradição e a inovação, e, mais especificamente, entre o local e o estrangeiro,12 conduz, também, a um reexame do conceito de nacionalidade. É justo em torno das polaridades anteriormente mencionadas que se organizam os debates literários dos inícios da década de 1920, com a transição do modernismo para a literatura de vanguarda na Argentina. O primeiro número da revista Prisma (dezembro de 1921), acompanhado da publicação de Veinte poemas para ser leídos en el tranvía (1922), de Olive “El cosmopolitismo modernista ha buscado sus temas en los más diversos autores, sin conceder el monopolio de los préstamos a ninguno en particular, de modo que el cuadro de autores prestamistas es de lo más abigarrado y caprichoso que se pueda imaginar: Poe, Whitman, Longfellow, Carducci, D’Annunzio, Baudelaire, Gautier, Stendhal, Banville, Barbey d’Aurevilly, Balzac, Verlaine, Leconte de Lisle, Villiers de l’Isle Adam, Lautréamont, Adam, Moréas, Bloy, Eugenio de Castro, Nordau, Ibsen, Amiel, Brandès, Ruskin, Dickens, Shakespeare, Spencer, Tolstoi, en especial, y algunos clásicos redivivos, como Berceo, Hita, Góngora, Quevedo, Dante, los líricos griegos del helenismo, etc. [...] Representantes de tantas escuelas, gustos, ideas, países y épocas, confirman la libertad selectiva con que se pusieron a escribir los modernistas [...]. Este catálogo permite, además, señalar dos particularidades características de la inspiración modernista: la reacción contra el españolismo dogmático y clasicista — postergado por el amor a todo el francesismo finisecular — y la relegación inexorable del romanticismo, y con menor fobia, del clasicismo y el naturalismo” (Loprete, p. 15). 11 12 Em conferência de agosto de 1894 à academia literária El Ateneo de Buenos Aires, intitulada “La raza en el arte”, o poeta e ensaísta argentino Calixto Oyuela discorda da existência de um “tipo argentino” distinto da raça espanhola, argumentando que os laços que unem os homens da mesma raça seriam mais fortes que os que unem homens da mesma nação, visto que os vínculos políticos e nacionais muitas vezes violentam as fronteiras entre povos distintos. Defendendo a estreita relação entre raça e tradição literária (“cada raza piensa, siente, imagina de un modo diverso, según sus condiciones étnicas, sus vicisitudes históricas y las regiones que habita o que habitó en la época de su principal desarrollo”, p. 201), Oyuela reconhece os matizes diferenciais proporcionados pelo ambiente que habita o homem argentino, mas defende suas “naturales cualidades españolas” (p. 213), geradoras de uma arte “de nuestra raza española, modificada y enriquecida, pero no desnaturalizada en su esencia por el nuevo ambiente, y vencedora en la lucha contra las otras razas que nos vienen de fuera” (p. 221-22). 18 rio Girondo (1891-1967), e de Fervor de Buenos Aires (1923), de Jorge Luis Borges, inauguram a literatura de vanguarda nas letras argentinas, período de estreitas interlocuções com as vanguardas europeias e de questionamento da identidade literária nacional.13 A partir de Prisma, inicia-se uma longa lista de publicações periódicas, como as revistas Inicial, Martín Fierro, Proa, Dínamo, Extrema Izquierda e Los pensadores.14 Nas páginas de uma mesma revista, publicavam-se com regularidade textos de autores com identificações ideológicas e estéticas contrárias, como, por exemplo, dos partidários do Grupo de Florida e do Grupo de Boedo.15 Jorge Luis Borges é a figura-chave para a compreensão dessa dinâmica, uma vez que em sua obra ficcional e ensaística reverberam antíteses semelhantes às que marcam as principais publicações da Buenos Aires de então. Borges é o autor de três manifestos sui generis da década de 1920 — “Ultraísmo”, “Proclama de Prisma, revista mural” e a apresentação da segunda época da revista Proa. Esses manifestos pregam a ruptura com o rebuscamento e a abolição do aspecto confessional modernista. Em “Ultraísmo” (publicado na revista Nosotros, em dezembro de 1921), o autor reconhece a saturação da tradição como modelo para a literatura que propõe: “La belleza rubeniana es ya una cosa madurada y colmada, semejante a la belleza de un lienzo antiguo, cumplida y eficaz en la limitación de sus métodos y 13 A respeito da literatura de vanguarda na Argentina, consultar Scrimaglio (1974) e Masiello (1986). Para mais informações sobre o papel da literatura de vanguarda na construção de um discurso identitário nacional, consultar Fernández (1999). 14 Para mais informações sobre as diversas revistas publicadas nas décadas de 1920 e 1930 em Buenos Aires, consultar Salvador (1962) e Giordano (2002, p. 19-144). 15 O embate entre Florida e Boedo resulta do confronto ideológico entre os que defendem a renovação estética na arte e aqueles que enxergam nesta um instrumento de revolução social, produzindo uma literatura social de tese com foco nas camadas desprivilegiadas da sociedade. O Grupo de Florida, criticado por sua falta de rebeldia, apolicidade e europeísmo, identifica-se com a revista Martín Fierro. Sua denominação provém da rua Florida, localizada no centro de Buenos Aires e comparável em fama e refinamento às avenidas europeias. Já a denominação do Grupo de Boedo, associado às revistas Dínamo, Extrema Izquierda e Los pensadores, tem origem na rua do mesmo nome, localizada em um bairro operário e de aspecto descuidado. Conforme observa May Lorenzo Alcalá, “Si en vez de decir, erróneamente por otra parte, que los jóvenes de Florida eran conservadores o de derecha, mientras los de Boedo de izquierda, se enunciase que los artistas de la época, comprometidos con la renovación en el arte, sea cual fuese su ideología, se agrupaban en Florida; y que los que proponían el realismo social como única forma de expresión, lo hacían en Boedo, se estaría mucho más cerca de la comprensión de lo que era la intelectualidad argentina de los años veinte” (p. 127). 19 en nuestra aquiescencia al dejarnos herir por sus previstos recursos; pero por eso mismo, es una cosa acabada, concluida, anonadada” (p. 466-67). Esse manifesto ressalta as limitações de uma literatura linguística e tematicamente restrita devido a sua subordinação aos compromissos com a língua e a temática quotidianas e com o ambiente nacional: Me refiero a los sencillistas, que tienden a buscar poesía en lo común y corriente, y a tachar de su vocabulario toda palabra prestigiosa. Pero estos se equivocan también. Desplazar el lenguage quotidiano hacia la literatura es un error. [...] El miedo a la retórica — miedo justificado y legítimo — empuja a los sencillistas a otra clase de retórica vergonzante, tan postiza y deliberada como la jeringonza académica, o las palabrejas en lunfardo que se desparraman por cualquier obra nacional, para crear el ambiente. (p. 467) Borges nega ser herdeiro direto da tradição gauchesca. O autor discorda da eleição da imagem do gaucho como único e legítimo símbolo das qualidades e dos valores argentinos, e critica a opção por um realismo meramente descritivo. Seu posicionamento, no entanto, não impede que as circunstâncias locais se façam presentes em seus textos.16 Borges insiste na soberania nacional no terreno da cultura ao identificar-se com a proposta estética de Martín Fierro,17 sem, entretanto, propor a veneração acrítica de um passado idealizado. Para o autor, o conceito de “argentinidade” não se confunde com o passado ou com a cultura daqueles que primeiro habitaram a nação. O Borges de Fervor de Buenos Aires rejeita as utopias ruralistas quando, por exemplo, propõe, como ponto de partida para as discussões a respeito da 16 Para mais detalhes a esse respeito, consultar o prefácio de Jorge Luis Borges a The Gaucho (1968), tradução ao inglês da publicação em castelhano do mesmo ano que examina o significado histórico da figura do gaúcho na Argentina desde a época colonial, assim como sua retratação nas artes. Nessa obra, o texto de José Luis Lanuza precede fotografias de René Burri. Consultar também “Lectura borgeana de la literatura gauchesca”, de Guillermo Gotschlich, em que se traça a relação entre os primeiros ensaios de Jorge Luis Borges sobre a literatura gauchesca e sua leitura de Martín Fierro, e a eleição do gaúcho como modelo do homem argentino nos contos de sua autoria. 17 No ensaio “El gaucho y la nueva literatura rioplatense” (publicado pela primeira vez em outubro de 1926, na revista Martín Fierro), Leopoldo Marechal argumenta: “Las letras rioplatenses, tras un discutible propósito de nacionalismo literario, están a punto de adquirir dos enfermedades específicas: el gaucho y el arrabal. Nada habría de objetable en ello si se tratara del campesino actual, que monta un potro y maneja un Ford con la misma indiferencia; pero se refieren a ese gaucho estatuable, exaltado por una mala literatura; a ese superhombre de cartón que, abandonando su pobre leyenda, quiere hoy erigirse en arquetipo nuestro” (p. 235). 20